quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25954: Historiografia da presença portuguesa em África (442): A Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1881 até 1882 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de julho de 2024:

Queridos amigos,
Estão a ser dados passos seguros para a implantação da presença portuguesa, aparece gente interessada, foi repelido um assalto à praça de Buba e alcançado um tratado de paz subscrito pelos régulos Fulas-Forros e Futa-Fulas do Forreá e Futa-Djalon; começou a ocupação dos territórios banhados pelos rio Nalu e Cacine, uma porção completamente nova de território que surgiu graças à compensação dada pelos franceses que tudo fizeram para ficar com o Casamansa e, sobretudo, Ziguinchor; caem pendularmente vindas de Bissau e de Geba, a agricultura está numa lástima, a indústria limita-se a fabricar tecidos e sabão; tornou-se obrigatório o sistema métrico-decimal; fica-nos a intuição de que perderam importância Geba, Fá e S. Belchior, o ponteiro da bússola está a oscilar para os Bijagós. Enfim, o Governo de Bolama parece ter entrado com o pé direito.

Um abraço do
Mário



A Guiné Portuguesa
Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1881 até 1882 (2)


Mário Beja Santos

Indiscutivelmente que em 1881 o governador Agostinho Coelho já não tem dependência alguma de Cabo Verde, a presença portuguesa mantém-se ténue, veremos adiante que o governador faz esforços para apagar os focos de guerra, caso do que se estava a passar no Forreá. Convém informar o leitor que há evidentes lacunas neste primeiro volume do Boletim Official, em determinado momento passamos dos finais de 1881 para agosto de 1882, mas é, por enquanto, o que tenho ao dispor. No Boletim n.º 7, de 19 de março, dispomos de informações vindas do presídio de Geba e assinadas pelo respetivo chefe, alferes Caetano Alberto da Costa Pessoa, do que por ali se passa: não há alterações no sossego público, o estado sanitário é regular, na agricultura não há quase nada a não ser a cultura da cebola; quanto à indústria, regista-se o fabrico de tecido de algodão e sabão para consumo do presídio; no tocante à instrução pública, e escola funciona com regularidade, tem 20 alunos do sexo masculino e 1 do sexo feminino; o estado alimentício é bastante escasso e o comércio insignificante.

No Boletim n.º 8, de 26 de março, uma novidade e com peso, faz-se a adoção do sistema métrico, assina o governador:
“Notando-se que o sistema anárquico de pesos e medidas em uso nas transações comerciais na Província impossibilita pela sua variedade arbitrária e falta de padrão a fiscalização legal de uma uniformidade regular, prejudicando o consumidor; considerando que este país, mais facilmente do que os melhor policiados, pode aceitar o estabelecimento da uniformidade de pesos e medidas, por isso que não há a impugnar o uso radicado de algum outro; tendo em vista as informações dos concelhos municipais; ouvido o conselho de Governo e com o seu parecer afirmativo; hei por conveniente determinar, que dentro do prazo de um ano, a contar da presente data, seja adotado na Província o sistema métrico-decimal em todas as suas fórmulas; e, outrossim que as comunicações municipais adquiram durante esse período os padrões e instrumentos de afilamento necessários, para dar execução ao que a este respeito dispõe o código administrativo de 1842.” A data do despacho é de 24 de março.

Neste mesmo Boletim vem publicado o termo da ampliação e ratificação do tratado feito em 16 de junho de 1856, na aldeia de Umbaná, entre o Governo do Distrito da Guiné e o régulo e chefes Biafares de Guinala e Buduel – na margem direita do Rio Grande; o objetivo é de que com este novo tratado se estreitassem mais as dependências e vassalagem daquele território, havendo garantia da proteção da bandeira portuguesa, tratado que se estendia até aos povos Biafadas.

O leitor encontrará em permanência referências a gente preso, sobretudo por embriaguez e tentativa de furto, síntese da Administração de Bissau, informações mensais, e também do presídio de Geba. Ganha importância no Boletim Official n.º 10, de 25 de junho, a notícia de que fora repelido uma tentativa de assalto a Futa-Fulas à Praça de Buba, que ocorrera em fevereiro de 1881, mencionavam-se comportamento exemplares, o do cidadão francês Henri de Galambert que apoiara eficazmente a defesa da dita praça e do soldado Manuel Gomes, que praticara um ato de coragem na maior força do assalto indo resgatar uma rês confiada à sua guarda e que o gentio lhe roubar, Sua Majestade recomendava para os ditos louvor pelas provas dadas.

Igualmente vem publicado no Boletim N.º 12, de 16 de julho, o tratado de paz celebrado entre o Governo português e os régulos Fulas-Forros e Futa-Fulas do Forreá e do Futa-Djalon. O tratado foi assinado em 3 de julho de 1871, em Bolama, da parte portuguesa faziam parte o Governador e um conjunto de membros do concelho do Governo (curiosamente aparece o nome de Marcelino Marques de Barros, o primeiro grande vulto cultural com naturalidade guineense), dos tempos da província da Guiné Portuguesa. E do lado dos Fulas-Forros e Futa-Fulas representantes de Bakar Kidaly e Mamadi Paté, estando presente pelos Futa-Fulas Mamadu Djau, representante de Alfa Labé, do Futa-Djalon, terminavam as contendas entre o Governo português e os povos Fulas e Futa-Fulas, reconhecendo estes terem dado origem à guerra, aceitavam os régulos a condição imposta de haver na principal povoação do Forreá um delegado do Governo, assim como a bandeira portuguesa arvorada na mesma população, como símbolo da soberania do Governo de Portugal.

É um texto detalhado, indiscutivelmente um momento da maior importância para a governação de Agostinho Coelho, como se pode especificar: obrigam-se todos os chefes assinantes do tratado à condição de não fazerem guerra aos povos limítrofes, em que seja empenhado o Forreá sem consentimento do Governo; os chefes Futa-Fulas obrigam-se a prevenir o Governo pelo comando militar de Buba, todas as vezes que os seus corpos de guerra vierem àquele território; aceitam a condição imposta pelo Governo de virem anualmente a Bolama em número de três ou mais chefes, sendo um pelo menos Futa-Fula, a fim de conferenciarem com a autoridade superior da Província; o Governo determina a reconstituição da povoação de Buba, permite que venham estabelecer-se ali todas as famílias do Forreá que o desejarem, comprometendo-se o Governo em não constranger o sistema de governação e constituição das tribos do Forreá; os chefes Futa-Fulas obrigam-se a facilitar a todos os enviados do Governo português os caminhos para o interior do continente até Labé; os chefes Fulas e Futa-Fulas obriga-se a não fazerem tratado algum com estrangeiros, sem consentimento prévio do Governo português.
Firmou-se este tratado em português e em árabe, documentos selados com o selo grande das armas reais.

Outro dado que me parece tido de menção é a determinação do Governo em ocupar os territórios banhados pelos rios Nalu e Cacine, nomeando um funcionário da administração. Na prática isto significa que esta porção do território incorporada na província da Guiné, pela Convenção Luso-Francesa, de 12 de maio de 1886, ainda não tinha sido ocupada. E passamos agora para o que resta do ano de 1882, como se disse há uma lacuna de cerca de 7 meses.

A agricultura tornou-se um valor atrativo, pode ler-se nesta folha de 19 de março de 1881 conceções legais de terrenos ou com autorização do Governo da Província
Rua Governador Catela, Bolama, em 1892
O que resta do majestoso Palácio dos Paços do Concelho, imagem retirada do blogue Alma do Viajante, com a devida vénia
A primeira igreja de Bolama

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 11 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25935: Historiografia da presença portuguesa em África (441): A Guiné Portuguesa em 1878 - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1880 e 1881 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25953: Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar: uma visão pessoal (Excertos) (Jaime Silva) - Parte X: Testemunho 5: "Desaparecido em combate, em Moçambique, em 15/11/1972: fur mil op esp / ranger João Manuel de Castro Guimarães"

 


SILVA, Jaime Bonifácio da - Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar : uma visão pessoal.

In:  Artur Ferreira Coimbra... [et al.]; "O concelho de Fafe e a Guerra Colonial : 1961-1974 : contributos para a sua história". [Fafe] : Núcleo de Artes e Letras de Fafe, 2014, pp. 23-84.


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Jaime Bonifácio Marques da Silva (n. 1946): 

(i) foi alf mil paraquedista, BCP 21 (Angola, 1970/72); (ii) tem uma cruz de guerra por feitos em combate; (iii) viveu em Angola até 1974; (iv) licenciatura em Ciências do Desporto (UTL/ISEF) e pós-graduação em Envelhecimento, Atividade Física e Autonomia Funcional (UL/FMH); (v) professor de educação física reformado, no ensino secundário e no ensino superior ; (vi) autarca em Fafe, em dois mandatos (1987/97), com o pelouro de desporto e cultura; (vii) vive atualmente entre a Lourinhã, donde é natural, e o Norte; (viii) é membro da nossa Tabanca Grande desde 31/1/2014; (ix) tem 85 referências no nosso blogue.

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1. Estamos a reproduzir, por cortesia do autor (e com algumas correções de pormenor), excertos do extenso estudo do nosso camarada e amigo Jaime Silva, sobre os 41 mortos do concelho de Fafe, na guerra do ultramar / guerra colonial. A última parte do capítulo é dedicada a testemunhos e depoimentos recolhidos pelo autor (pp. 67/82).


Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar – Uma visão pessoal [Excertos] 


Parte X:  Testemunho 5: "Desaparecido em combate,  em Moçambique, em 15/11/1972: fur mil op esp / ranger João Manuel de Castro Guimarães"  (pp. 78/79)



Testemunho 5 : 

Há algum militar fafense desaparecido em combate?


O furriel miliciano ranger João Manuel de Castro Guimarães desapareceu em combate no Norte de Moçambique durante a Guerra Colonial. O seu desaparecimento ocorreu durante uma operação realizada junto da povoação de Kytaia, aldeia situada no sul da Tanzânia, nas margens do rio Rovuma, e cujo corpo nunca mais foi resgatado.

Tenho em meu poder cópia de um documento que me foi cedido pela Direção do Centro de Trabalhos de Fafe da Associação de Operações Especiais – “Ranger” em 12.03.2012 e que descreve as circunstâncias do desaparecimento do furriel Guimarães.

O texto é da autoria de Carlos Vardasca, ex-soldado condutor nº mec. 15263570,  da CCAÇ 3309, estacionada no aquartelamento de Nangade. 

Vardasca afirma que só foi possível elaborar o documento com o depoimento de Filipe Manuel Cardão Pinto, ex-furriel mil da  CCAÇ 3309 e comandante dos GES 212, estacionados no aquartelamento de Nhica do Rovuma, em Cabo Delgado.

Relata que a operação denominada “Baga 6” teve como objetivo vigiar junto da fronteira da Tanzânia, a cerca de nove quilómetros do aquartelamento, as movimentações da população moçambicana que trabalhava em machambas (terrenos de cultivo) comunais junto da povoação tanzaniana de Kytaia, nas margens do rio Rovuma, e cujos produtos alimentares serviam para guarnecer os guerrilheiros da FRELIMO que, com bastante regularidade, ali se abasteciam para reentrarem em Moçambique e efetuarem as suas operações contra o exército português.

A operação decorreu entre os dias 14 a 16 de novembro de 1972, sendo enviado um pequeno grupo comandado pelo furriel Guimarães, recentemente chegado da Metrópole (designação dada a Portugal no período colonial).

Na tarde de 14 de novembro, o grupo atingiu o local previsto junto ao rio Rovuma e, dado o adiantado da hora, decidiu emboscar ali para observar as movimentações do outro lado da fronteira. 

Na manhã de 15, iniciaram-se as observações, ainda o cacimbo (nevoeiro) flutuava por cima do capim e o rio em maré baixa deixava emergir do seu leito vastos bancos de areia, permitindo alguns deles o acesso fácil ao outro lado da fronteira.

Talvez por inexperiência e desconhecimento da realidade ou por simples espírito de aventura, continua Verdasca, o furriel Guimarães, apesar de ser advertido pelos seus soldados africanos dos perigos em que ia incorrer, decidiu percorrer um dos bancos de areia que se estendia até à outra margem, tendo mesmo pisado território tanzaniano.

Inesperadamente e perante a angústia dos companheiros, ouvem-se dois tiros de arma de precisão e o corpo do Guimarães tombou de imediato, ficando inerte. 

Alguns dos elementos do grupo iniciam os preparativos para resgatar o corpo, mas, advertidos pelos mais experientes de que seriam, certamente, alvos, também da emboscada do atirador que os esperava, decidem não avançar e comunicar com o destacamento de Nhica do Rovuma que, consciente da gravidade da situação, decide enviar para o local um novo Grupo de Combate comandado pelo furriel Pinto para coordenar as ações no terreno. 

Foi decidido, relata o Verdasca, pedir apoio aéreo para proteger e apoiar o grupo de resgate do corpo do Guimarães. O comando do destacamento de Mueda negou esse apoio, sob o pretexto de se poder vir a abrir um conflito internacional com um país vizinho.

O corpo permaneceu no local e, no dia seguinte, 16 de novembro (de 1972), o soldado que estava de sentinela,  alertou os restantes, informando que o corpo do furriel já não se encontrava no local.

A convicção de todos é que o corpo do Guimarães teria sido levado pelos tanzanianos, facto corroborado por um dos GEs da aldeia de Nhica do Rovuma que disse ter ouvido no seu rádio um comunicado difundido por uma rádio tanzaniana em dialeto Swahili,  segundo o qual "as nossas forças fronteiriças abateram e capturaram um mercenário branco, de farda negra e armado de G3, que tentava penetrar no nosso espaço territorial".

Conclui que, com aquela informação oficial, o corpo do furriel Guimarães tinha sido retirado do local por quem o abateu, sendo mais tarde sepultado em território tanzaniano, local que ainda hoje se desconhece, mas provavelmente nas imediações da aldeia mais próxima do local, ou seja, na aldeia tanzaniana de Kytaia.

Insurge-se 
ainda pelo facto de o seu nome não constar na lista inscrita no Monumento Nacional aos Mortos da Guerra Colonial, erigido em Belém e insiste no dever de Portugal em recuperar ainda os seus mortos sepultados e dispersos por vários locais do continente africano. (**)

terça-feira, 17 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25952: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (33): O "Judeu'




Documento real de José I de Portugal (1714 - 1777) que declara: "Aos Cristãos Novos privilegio, per que El Rey lhe concede, que se possam ir pera onde quiserem, com outras mais graças nele conteúdas". (A distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos foi abolida por lei do Marquês de Pombal, de 25 de Maio de 1773)

Fonte: Wikimedia Commons  (Com a devida vénia...)

 

Contos com mural ao fundo > O Judeu 

por Luís Graça (*)


O seu nome era Esaú. O pai, Jacó. E o avô era só conhecido pelo apelido da família paterna,  Abraúl. 

Estávamos no início dos anos 20 do século passado. Esaú nascera no início do reinado do senhor dom Carlos, logo a seguir ao Ultimato Britânico. Nesse tempo já não havia a distinção entre cristãos-velhos e cristãos-novos. Ou, pelo menos, esbatera-se muito, desde o Marquês de Pombal. A Inquisição acabara há 100 anos, com a revolução liberal,  ou seja, há quatro gerações atrás.

Mas, mesmo assim, tinham ficado os preconceitos contra os judeus portugueses e os seus descendentes, pelo menos entre as classes mais baixas. Ainda se ouvia, em noite de temporal, o povo praguejar: "Até parece que morreu um judeu!".  E, em casa, admoestavam-se as crianças quando faziam... "judiarias".

A família Abraúl, segundo contava a avó Gertrudes, descenderia de judeus sefarditas de Córdoba, no sul de Espanha. Já os Oliveira, os do seu lado,  seriam cristãos novos. No tempo do senhor dom João II, os de Córdova haviam-se instalado em Portugal, fugidos do cruel édito dos Reis Católicos de Espanha. Ter-se-ão espalhado por Lisboa e vilas ribeirinhas do estuário do Tejo. Um ramo fixou-se em Alenquer. Outros tantos  terão seguido as rotas do Império e aproveitado as novas oportunidades de negócio, nomeadamente como  mercadores, prestamistas  e artesãos. 

A família (tanto dos Abraúl como dos Oliveira) não tinha qualquer pergaminho, manuscrito ou papel que comprovasse a sua origem. Era tudo da tradição oral. Nem a avó Gertrudes fazia a mínima ideia por onde os seus antepassados terão deixado os ossos, ao longo daqueles quatro séculos e tal. Espalhados, por certo,  por esse vasto e desvairado mundo, como muitos dos outros portugueses de quinhentos, seiscentos, setecentos…

A avó era do ramo de Alenquer. Gostava muito de contar ao Esaú, em pequeno, histórias, algumas seguramente fantasiosas, sobre os "marranos", os "cristãos-novos" e as perseguições a que a "gente da Nação" sofrera às mãos da Inquisição. "Marrano" era um termo que ela nunca pronunciava: considerava "aviltante" para designar os avós dos seus avós.

No passado, o vocábulo "marrano" (porco) era usado pelos cristãos-velhos para injuriar e discriminar a "gente da Nação", os de origem hebraica, e que em Portugal e na Espanha haviam sido convertidos ao cristianismo pela força, enquanto outros haviam sido forçados ao exílio (em França, Holanda, Norte de África, Império Otomano, etc.). 

− E até levavam a chave de casa!...

E acrescentava a matriarca:

− Sabes, Esaú, até na desgraça os seres humanos são capazes de serem ingénuos, para não dizer estúpidos. Levavam a chave de casa, imagina!… Pobres coitados... Eram como o cordeiro da Páscoa ("Pessach", para os hebreus) que, inocente, não sabe que vai ser sacrificado para a festa...

E, depois, batendo com o punho na mesa, indignava-se:

−  São tão ou mais antigos que os outros povos ibéricos. Depois da queda do templo de Jerusalém, acompanharam as legiões romanas, e aqui viveram e conviveram com outros povos invasores, como os visigodos e os mouros.

O Esaú nunca tinha ouvido,  antes,  falar da Inquisição, dos "marranos", nem de "cristão-novos" e "cristãos-velhos" e das tropelias a que foram sujeitos muitos dos seus antepassados. Na Escola Conde Ferreira em Alenquer (a primeira a ser construída por legado do grande benemérito José Ferreira, apoiante da causa da Dona Maria II), o Esaú aprendeu a ler e a escrever. Mas onde era mesmo bom era nas contas, na tabuada, na aritmética.

A avó, Gertrudes Oliveira, não tinha andado na escola mas era letrada e viajada, como as meninas das classes abastadas  da época. O pai dera-lhe uma educação esmerada e bastante livre para os padrões da época, viajando de barco a vapor e, depois, de comboio, entre algumas cidades e estâncias termais da Europa. Expressava-se fluentemente em francês. O marido, Abraúl,  era primo em segundo ou terceiro grau.

Ao virar do século (teria o Esaú dez anos) mudara-se a família Abraúl para uma vila mais a Norte onde o avô iria construir uma moderna "caldeira de queimar vinho",  capaz de produzir muitas pipas de álcool. A vitivinicultura nacional estava em recuperação, depois da desgraça da filoxera (c. 1887), era precisa então muita aguardente vínica para enriquecer o vinho do Porto, a nossa principal exportação na época. 

A região do Oeste tinha excelentes condições para o aumento do negócio da destilação à escala industrial. Foi uma coisa nunca vista, lá na terra,  com tantos carros de bois a carregar e descarregar tantas estruturas e peças em cobre, tubos, retortas, alambiques, torneiras,  caldeiras, serpentinas, etc., importadas de França e trazidas de barco. E ferros, para construir depósitos para o vinho. E cimento ( da fábrica "Tejo", em Alhandra). 

Foi construída uma grande destilaria, em alvenaria, um edifício, imponente, de elevado pé direito, ostentando ao alto o nome da firma, Abraúl & Filho Lda. A inauguração foi um evento social, como noticiou o jornal da terra.

Infelizmente os pais do Esaú irão morrer, ambos, com a pandemia da gripe espanhola. Aos 20 anos, o rapaz vê-se inesperadamente à frente da firma. O que lhe valeu é que o patriarca Abraúl ainda estava vivo, pelo que beneficiou do seu conselho, experiência e capital de relações pessoais, comerciais e políticas (morreria em 1930, aos 90 anos). Por sua vez, a matriarca, a avó, essa quase que chegaria, já centenária, às vésperas da II Guerra Mundial.

Ninguém sabia a origem da riqueza da família. Era o segredo mais bem guardado. A mãe da avó Gertrudes ter-lhe-á deixado, em herança, umas boas "barras de ouro". Falava-se do saque de igrejas, conventos e palácios no tempo das lutas liberais. Mas isso eram acusações mútuas que faziam "malhados" e "corcundas", liberais e absolutistas. 

A avó falava do "mealheiro do Brasil", deixado pelo avô do seu pai, dono de engenho e de escravos.  Seriam "libras em ouro"... Mas que importava a rota do dinheiro  ? Tinha chegado, por herança, às mãos do Esaú, de resto filho único de Jacó e Rebeca. E deveria chegar ao seu herdeiro, mais velho, se algum dia o chegasse a ter, como os Abraúl e os Oliveira tanto ansiavam. 

−  E depois o dinheiro é fêmea!  −  lembrava o avô Abraúl, transmitimdo-lhe de seguida, ao seu neto querido,  a cartilha que já vinha dos seus progenitores. "O dinheiro não é de que o ganha, mas de quem o poupa ... e o investe, e o multiplica por dois, três e mais".

Na nova terra da Estremadura que o acolheu, o Abraúl era conhecido pela alcunha de "o Judeu" ou então "o Abraúl da caldeira".  Essa alcunha passou para o neto, "Esau, o Judeu" ou o "Esaú da caldeira".

O Esaú não frequentava a igreja, não ia à missa, tal como o pai e o avô. Mas as mulheres da casa salvavam a "honra do convento", isto é, as aparências sociais. 

De resto, os novos tempos, com a República, eram de moderado anticlericalismo e de maior tolerância religiosa. A terra tinha alguma tradição republicana, desde pelo menos o Ultimato Britânico. Os grandes proprietários e os últimos nobilitados do final da Monarquia (os tais que tinham comprado "títulos em saldo") eram poucos, comparados com os de Alenquer. 

Predominava a pequena e média agricultura,  o pequeno comércio, os ofícios tradicionais, uma incipiente indústria e alguns funcionários públicos, incluindo o juiz da comarca, "ainda moço e de ideias arejadas" que frequentava a casa, o "casarão", da família Abraúl, cuja hospitalidade era procurada e reconhecida pela elite local.

Na família ainda era pela via matrilinear (ou "uterina", dizia o avô, brejeiro), que se transmitiam algumas tradições e sobretudo memórias dos antepassados. Os homens tocavam os negócios, ganhavam dinheiro, sustentavam a casa…

− E elas eram as guardiães do templo da memória!  − orgulhava-se a matriarca, uma feminista "avant la lettre". E sufragista!

Da celebração das festividades hebraicas já ninguém tinha a mais pequena memória. Afinal, as duas famílias sempre foram "cristãs-novas" em Portugal. A avó Gertrudes (um nome germânico, talvez visigótico) é que desenterrara o passado, quando veio a moda do sionismo, em finais do séc. XIX. Até então não havia uma consciência nítida da sua origem hebraica, apesar dos nomes de muitos dos seus membros, inspirados em figuras bíblicas.

A avó Gertrudes tinha nascido no final das guerras civis de 1828/34. Lembrava-se do pai dizer que, nessa época, "o clero andava assanhado, contando, de cacete na mão, as ovelhas malhadas" (sic). O pai combatera ao lado das tropas de Dom Pedro e fora dos primeiros a atravessar o rio Tejo e a entrar, vitorioso, em Lisboa, em 24 de julho de 1833, num destacamento avançado das tropas do duque de Terceira.

O Esaú, convenhamos,  não era dado às letras nem ao estudo da história, para grande desgosto da avó, que o amava como se fosse um filho. Casaria com uma "gentia" (sic), por amor, é certo: a primeira professora da terra, a ser formada pelo Magistério Primário, filha de um dirigente local do Partido Democrático, do façanhudo Afonso Costa.

Na terra sempre foi considerado "rico", "filho de rico", se bem que "forreta". Não se lhe conheciam extravagâncias. Nem luxos. Não bebia nem fumava. O único defeito que podia ter era o seu lado "femeeiro". Na tradição da família, emprestava dinheiro a juros, a pessoas conhecidas e de confiança. Era prestamista. Aceitava joias e ouro. Na época não havia bancos na província e a crise financeira dos anos 20 deu cabo de muitas poupanças e patrimónios.

O maior erro da vida do Esaú, entretanto,  terá sido o de dar sociedade a outro dos caciques da terra. Meteu-o como sócio, minoritário, da firma Abraúl & Filho Lda, pelo seu jeito para a parte comercial e as suas ligações aos meios políticos e militares mais conservadores de Lisboa. 

O sócio, o Sequeira, tinha sido o primeiros dos republicanos da terra a apoiar publicamente o golpe militar do 28 de maio de 1926. Faria depois carreira no Estado Novo dentro dos organismos corporativos. 

Esse sócio era "um dos viúvos da gripe espanhola". Mantinha uma amante, mais nova do que ele, antigo combatente da Grande Guerra. Oficiosamente,  e para salvar as aparências, a amante era a "governanta" da casa. Uma das suas criadas "de dentro", que não gostava da "nova patroa", foi meter nos ouvidos do senhor Sequeira que "a governanta andava a fazer olhinhos ao Judeu",

Numa terra pequena e de moral hipócrita, não era preciso muito para que constasse que "o Judeu" andava a infringir a Tábua dos 10 Mandamentos de Moisés, desejando a mulher do próximo…

O Sequeira era ciumento, como qualquer macho que se prezasse naquele tempo. Retorceu o farto bigode e fez questão de tirar "a prova dos noves aos dois safados". Montou a ambos uma armadilha. Aparelhou o cavalo e disse, lá em casa e na caldeira, que tinha de ir a  Lisboa tratar dos "negócios da porca da política", pelo que se iria ausentar por uma semana, pelo menos. 

Montou, cedo, a cavalo, percorreu a artéria principal da vila e perdeu-se na estrada, em  macadame, que levava à estação de comboio, já no concelho vizinho. Pela calada noite, e com a preocupação de não ser visto, deixou o cavalo nas imediações, e entrou furtivamente em casa. Foi encontrar os dois na sua cama, o "judeu" e a "governanta".

 −  Esaú, meu cabrão, nunca pensei!...

E desfechou um tiro de revólver, à queima roupa, nos órgãos genitais do sócio.

O grito de dor, lancinante, que o Esaú soltou não acordou a criadagem a quem a "governanta" tinha dado folga de um ou dois dias, na véspera de feriado do 5 de Outubro.

Por sorte e conveniência do "triângulo amoroso",  o escândalo foi abafado. O João Semana da terra, amigo dos dois, e vizinho do Sequeira, veio de pronto, com a maleta dos primeiros socorros. Tinha sido alertado pela "governanta", de roupão, em estado de histeria.

− Tiveste sorte, meu sacana. − Por um tris, não foste capado!... A bala, de pequeno calibre, passou de raspão por um dos teus tintins. Fez estragos mas ainda tens o sobresselente… Vamos lá estancar o sangramento. Pára de berrar e morde-me a toalha com força!...

O Sequeira, com as mãos na cabeça, deambulava pelo quarto, agitadíssimo, mal acreditando que podia ter morto o seu sócio e rival…

− Bem me tinham dito que não se pode confiar nos judeus!

O crime (aliás, o "duplo crime") ficou confinado às quatro paredes daquela alcova, de janelas largas e pesados cortinados. Um rápido acordo foi selado por intermediação do João Semana: desapartava-se a sociedade; o Sequeira recebia uma indemnização, em dinheiro, para reparar a "ofensa  à sua honra"; o Esaú aos costumes não dizia nada,,, enquanto a "governanta" dava sumiço logo nessa noite. 

À cautela, o médico levou o seu doente ao Hospital de São José, uns dias depois, para ouvir a opinião abalizada de um seu antigo mestre da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa. A boa notícia é que não havia infeção, que o ferimento iria sarar e não havia razão, em princípio,  para o homem ficar com medo de vir a sofrer de disfunção erétil… A má notícia, é que  muito provavelmente já não poderia procriar no futuro…  

Com a sua extraordinária intuição,  e o "olho de lince" (nunca usou óculos aquela mulher!), acabou por "tirar nabos da púcara" do João Semana de quem, de resto, era uma  "alegre paciente e amiga íntima", tendo ficado a par dos pormenores desta tragicomédia. 

Do alto da árvore da sua sabedoria, e com a autoridade dos seus 90 anos, a avô Gertrudes iria, uns tempos depois, dar um valente puxão de orelhas ao seu "netinho", acabrunhado e humilhado:

− Esaú, Esaú, meu filho!.. Eu bem te ensinei a nunca misturar alhos com bugalhos. De futuro, lembra-te sempre do meu conselho :  "Nunca te metas com a mulher do teu amigo, nem muito menos com a amante do teu sócio... E muito menos se ela for gentia"!

A matriarca tinha-se, entretanto,  convertido ao judaísmo ainda antes de enviuvar. Era, estatisticamente falando, a única judia da terra. E com tal constava do censo de 1930.

Mas a história do "Esaú, o Judeu" ficaria por aqui, se não tivesse entretanto acontecido , uns anos depois, a II Guerra Mundial. A matriarca, felizmente, foi poupada às notícias dos seus horrores. O ex-sócio do Esaú, esse, era agora presidente do Grémio da Lavoura local e um eufórico germanófilo. Curiosamente, já há muito havia esquecido que lutara contra os alemães em Moçambique, tendo sido ferido e feito prisioneiro em Negomano, em 25 de novembro de 1917 (conforme constava do monumento local aos heróis das guerras de África).

O Esaú,  por seu turno, continuava a emprestar dinheiro a juros e a lucrar com a sua "caldeira de queimar vinho" durante a guerra. Era, porém, um fleumático anglófilo. E nunca mais quis ter sócios em negócios. 

Ambos, até por rivalidade, acabaram por comprar, do seu bolso,  aparelhos de telefonia com altifalantes, colocados nos extremos opostos da Praça da República. Claro, com a anuência do presidente da Câmara Municipal, que era por sinal um oficial do exército, já na reserva. Era um "serviço público",  que se prestava ao povo da terra, concordou o autarca. 

A rádio ainda era um luxo para a maior parte da população. O aparelho do "Judeu" estava sintonizado para a BBC e a Voz da América. A do Sequeira para Roma e Berlim. E havia sempre ouvintes para todas as quatro emissoras: quando uma acabava, o grupo mudava-se para o canto oposto. 

Os germanófilos, mesmo assim, uma minoria, refrearam o seu entusiasmo quando as coisas começaram a correr mal para as potências do Eixo.

A celebração da vitória dos Aliados, em 7 de maio de 1945,  também foi comedida, quando a GNR recebeu ordens para dispersar uma pequena multidão que veio espontaneamente para a rua dar vivas aos vencedores. "A nossa política é o trabalho, é o trabalho!", dizia o capitão que estava à frente da edilidade, ajudando a enxotar os populares (que só podiam ser do "reviralho") bem como a banda filarmónica.

A mulher do Esaú, a "senhora professora", tinha muita pena de "não poder ter filhos"... E achava que a "culpa" era dela... O casal acabaria por receber e adotar, legalmente, um menino austríaco judeu, órfão de guerra. Uma linda criança, "lourinha e de olhos azuis". Cresceu mas não quis ser engenheiro:  formou-se em línguas na Universidade de Coimbra. Nunca manifestou interesse pelos negócios do pai adotivo. 

Entretanto, em 1973, rebenta o "escândalo do vinho a martelo" (a produção e destilação de misturas hidro-alcoólicas, com adição de açúcar). A inspeção das atividades económicas acabou por mandar a GNR selar a caldeira da firma Abraúl & Filho Lda. 

O Esaú, na altura,  também já tinha problemas com o delegado de saúde por causa das descargas para o rio e os maus cheiros da caldeira. A sua saúde mental degradou-se. Tinha 83 anos. O filho estava fora, em Angola, para onde havia sido mobilizado: comandava uma companhia de caçadores, como capitão miliciano. 

Inesperadamente a terra foi abalada com a trágica notícia do suicídio do "Judeu", numa trave alta da sua caldeira... A esposa enlouqueceu e viria a morrer em 1975.  O filho ainda veio a tempo, de Luanda, para assistir ao seu funeral.

Em 1977, o ex-capitão aliena o essencial do património da família. E fixa-se em Israel, onde funda uma empresa de guias e intérpretes de língua portuguesa. E deve ter levado com ele o famoso "mealheiro do Brasil"... 

Por volta de 1980 a caldeira, que não tivera comprador, já estava abandonada e vandalizada. Todo o recheio, em cobre, começou a ser paulatinamente roubado. Vinte anos depois o edifício era uma ruina completa, obrigando o município a intervir e a tomar posse administrativo do que restava,  bem como do terreno à volta. 

Acabou por construir-se, já no início do novo milénio, a universidade sénior. Mas nem toda a gente se atrevia a lá ir ou passar por lá, sobretudo à noite.  O sítio ficou amaldiçoado. Os idosos diziam que à noite se ouviam vozes. Era "a alma do Judeu Errante"...


© Luís Graça (2024). Quinta de Candoz, 17 de setembro de 2024.
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Guiné 61/74 - P25951: (De) Caras (219): Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de setembro de 2024:

Queridos amigos,
Sendo completamente inútil tecer juízes moralizantes quanto às razões pelas quais aparecem na Feira da Ladra correspondência privada, ainda por cima comportando, dada a proveniência deste expedidor e deste recetor, compreensíveis melindres, que os herdeiros deviam acautelar, esta correspondência contribui para a compreensão do estudo de mentalidades, estão em causa duas pessoas de formação superior, pode avaliar-se que o expedidor tem noções claras sobre o muitíssimo que é necessário fazer para inverter a evolução da guerra na Guiné e temos aqui uma apreciação sobre os erros praticados, por incapacidade de avaliação estratégica ao nível de Comandos, numa operação que decorreu em junho de 1970, na Península do Sambuiá. Entregarei, como é óbvio, esta correspondência no Arquivo Historico Militar.

Um abraço do
Mário



Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (1)

Mário Beja Santos

Nas minhas deambulações pela Feira da Ladra, tenho entre os meus fornecedores uma senhora que tem sempre na banca coleções de aerogramas, álbuns com oficiais da Armada, imensas caixas com bilhetes postais, fotografias, correspondência avulsa. Nesses sábados em que a visito há sempre um ritual da pergunta se apareceu algo relacionado com a Guiné, aerogramas, cartas, imagens. A resposta é sistematicamente negativa, o correio de guerra é sempre polarizado por Angola e Moçambique. Mas eis que naquela manhã a senhora me acenou e disse tenho ali uma carta que diz ser de Bissau, tenho a impressão que tenho lá mais, veja se lhe interessa, se lhe interessar trago o que encontrar.

Esta primeira carta endereçada a Paulo António Osório de Castro Barbieri foi-lhe escrita pelo irmão, tenente Nuno Barbieri, SPM 0418, tem interesse histórico, por isso se reproduz na íntegra. Caso o leitor pretenda saber quem escreve e quem recebe este documento, basta ir ao Google.

Vejamos, pois, o conteúdo da mesma, a primeira a que se irá fazer referência:

Bissau, 28 de junho 1970

Meu caro Paulo:

De boas intenções está o mundo cheio, no entanto é bem mais difícil concretizá-las. Refiro-me, é claro, aos teus anos que acabam de decorrer, a 23. Partindo do princípio que compreendes o que se passou, deixo de lado este assunto, enviando-te, no entanto, um grande abraço de parabéns, um pouco tardio.

Dificilmente consigo compreender as motivações que levam o pai a ocultar-me determinados assuntos, a não ser aqueles inerentes ao próprio “segredo absoluto”, que de forma alguma podem ser conhecidos de uma pequena minoria. Trata-se, decerto, do segredo dos deuses. Porém, como todos os segredos, mais tarde ou mais cedo acaba-se por se conhecer, senão o seu âmago, pelo menos as suas características mais evidentes. Refiro-me, é claro, ao litígio que opôs, em certa altura o pai ao Spínola.

Como a reforçar tudo isto, acabo hoje de aceitar um prolongamento da minha comissão, não no DFE, será rendido à data estabelecida, mas no Grupo de Acções Especiais do Comando-Chefe. A natureza de segurança deste meio não é suficiente a permitir-me esclarecer-te melhor qual o nosso papel e quais as tarefas a desempenhar.

Suponho, no entanto, que te bastará mencionar o facto de que passarei a estar subordinado ao Comandante Calvão. Talvez o pai te possa esclarecer sobre o assunto…

Estou em Bissau desde o dia 21, pois tive a possibilidade de aproveitar um avião, uma DO que fizera o PCV da Operação Meia Nau. Esta operação, espécie de grande batida à zona do Sambuiá, teve como resultado dois mortos do Exército e três feridos, um dos quais grave. Da parte do IN desconhecem-se os resultados, mas é de prever que os efeitos tenham sido ligeiros ou mesmo nulos.

A operação desencadeada visava uma zona já tradicional, procurando-se atuar sobre o IN, nos seus acampamentos de refúgio. Na realidade, as informações obtidas, umas do Senegal, outras de origens várias, eram absolutamente falseadas, lançadas no intuito de levar as nossas forças a desencadear uma operação de desgaste. Os objetivos entregues às tropas especiais, DFE 12 e DFE 7, revelaram-se inexistentes. Por outro lado, o bigrupo do Sambuiá atuaria sobre o perímetro externo de encercamento da zona, constituído por tropa dos aquartelamentos de três pontos distintos: Bigene, Guidaje e Binta.

Por ironia do destino, coincidência, ou fuga de informações, o IN escolheu a posição mais fraca, a assegurada pela tropa de Bigene. Claro que a pobre companhia de caçadores açorianos, quase exclusivamente armada de G3 e HK, foi completamente cilindrada. Valeu-lhe o helicanhão que em 5 minutos alcançou o local e obrigou à fuga do inimigo. Mesmo assim, as munições foram esgotadas e os resultados estavam definitivamente assegurados.

Ao meio-dia de 21, apenas restava mandar levantar o dispositivo posto em ação e contentarmo-nos com a captura de uma PPSH, já velha e três granadas de morteiro 82.  Graças a todos este esquema, estava em Bissau às 17h desse dia.

Para que possas ter uma noção mais completa da ação, será necessário frisar-te o seguinte: a tropa de Bigene e Guidaje, que recebera a missão de fechar o Sambuiá, foram enviadas, respetivamente, para as bolanhas de Samoje e de Facã – prolongamentos naturais do rio de Talicó (extremo Oeste do Sambuiá) para Oeste e deste. Por pouco que conheças a tática militar, logo te apercebes do erro destas “portas naturais”, aonde o terreno é plano. Claro que quem olha para a carta e desconheça este tipo de guerra, convence-se que a mata entre Facã e Guidaje constitui um tampão à passagem. A isto ponho apenas a pergunta: - Se quiseres penetrar no Sambuiá, sabendo que está a decorrer uma ação, ou de lá retirares, com a aviação na área, não irá escolher precisamente a mata? O arvoredo constitui a melhor garantia de cobertura em relação à observação aérea e para uma passagem fácil apenas é necessário abrir um trilho à catanada. Porém, desde há longa data que se fecha o Sambuiá nas bolanhas de Samoje e Facã!

Tirando estes pequenos acontecimentos, que vão constituindo a nossa guerra e a nossa vida, pouco mais há a dizer-te. Da situação geral da guerra deves estar mais bem informado do que eu, até porque enquadras este conflito dentro do quadro completo. 

Além disso, observas diretamente o nosso meio metropolitano, fator definitivo do conflito. Aqui, apenas chegam rumores adulterados do que se vai passando. Temos, no entanto, que compreender que a guerra dura quase há 10 anos, com todo o significado deste lento arrastar.

Aqui na Guiné, se bem que se esteja a trabalhar bem próximo do problema central, a questão socioeconómica, ainda não se adotaram medidas enérgicas para a solução definitiva. A revolução agrária que deveríamos decretar, no género do que se passa em Cuba, para aceleramento de produção de cana do açúcar, e que faria oscilar profundamente os quadros tradicionais africanos, daria a possibilidade de concretização e de luta à camada jovem africana. 

Assim, dentro destas perspetivas, a criação de campos de trabalho de jovens dos liceus, escolas técnicas e industriais, faria mostrar à população estagnada dos centros, que dispõem de meios de progresso e cultura, que a nossa luta é dinâmica e visa a solução do problema fundamental: o zero económico da província.

Por outro lado, poderíamos aproveitar o estado de guerra para expropriar as companhias monopolizadoras do território guineense. Todos os terrenos que não fossem cultivados, pelo menos nas épocas de melhor rendimento, reverteriam para o Governo da província e constituiriam uma espécie de bolo a dividir pelas populações que os pretendessem e cuja segurança pudéssemos garantir. Constituiríamos, assim, um novo tipo de propriedade, em função do investimento e do empenhamento na produção.

Os meios de escoamento das riquezas deveriam ser pertença do Governo, de forma a impedir o bloqueio de produtos por parte das companhias. Se a isto somássemos a obrigatoriedade da mobilização civil, por períodos de 2 anos, veríamos, rapidamente, solucionado o problema dos meios técnicos e humanos, isto é, engenheiros agrónomos, engenheiros civis, economistas, etc., que fariam uma comissão dentro do seu ramo de atividade – considerável aumento de interesse da camada civil de metropolitana por estas condições de Ultramar, devido à especialização que este período de tempo necessariamente acarreta.

Além disto, é necessário acelerar a educação na Guiné, quer ao nível juvenil, que em campanhas de educação de adultos, procurando uma lenta conversão de valores, fácil de obter em espíritos simples. Mas, sobretudo, é necessário compreender que não poderemos responder à real e profunda revolução africana de caráter comunista a “tranquilidade das populações”, tão do estilo do defunto Salazar. Alargar-me-ia muito mais sobre este assunto. No entanto, isto é o suficiente para te passar a palavra.

Guiné 61/74 - P25950: (In)citações (261): tudo o que temos pedido é que forneçam professores devidamente acreditados para a Escola de São Francisco de Assis (ESFA), nas montanhas de Liquiçá, Timor Leste (João Crisóstomo, Nova Iorque)




João Crisóstomo, régulo da Tabanca da Diáspora Lusõfona
e amigo de Timor Leste. Foto: LG (2017)


1. Email enviado por João Crisóstomo, na sequência de comentário ao poste P25944 (*)

Data - 15 de setembro de 2024, 08:51

Caros Rui Chamusco  e Luís Graça,


Nem sempre leio, mas hoje vi, li e tive de desabafar (*) (...). São 01.24 da manhã de 15 de setembro. Não consigo dormir e resolvi buscar o computador, talvez alguma leitura amena no nosso blogue, como as peripécias narradas pelo Jorge Cabral ou outras me trouxessem o sono.

E ao deparar com esta crónica do Rui, resolvi lê-la para “lembrar”; ao fim e ao cabo também cheguei a ir e estive em Timor (em 2017 e 2018), onde , perante a situação de que o Rui me tinha falado e que confirmei, pensei poder continuar a ajudar: a minha experiência e contactos que ainda mantinha desde os tempos da luta pela independência poderiam com certeza ajudar, pensava eu.

Mas hoje, em vez de uma leitura amena, deparei com o contar duma situação que tem sido uma constante desde esses dias em 2018 até hoje. Raiva, tristeza, saudades, frustração, não sei qual deles maior, foi o que experimentei agora.

De alguma maneira quase me sinto culpado, pois que na altura sonhei e falei do muito que se poderia fazer para ajudar aquelas crianças esquecidas e aquelas gentes tristemente ignoradas nas montanhas de Liquiçá; alimentei tantas esperanças ao Rui, ao Gaspar e à Glória e a tanta gente boa em Portugal, e não só, que perante o nosso entusiasmo resolveram dar também a sua ajuda. E de alguns não foi só ajuda financeira como a de oferecerem-se e irem a Timor Leste. E agora passados seis anos ainda continuamos lutando pela mera sobrevivência duma única escola. Como é triste!

Mas como poderia eu, como poderíamos nós esperar tão pouca resposta por parte daqueles que em Timor Leste, em Portugal e em outras partes do mundo (como na Guiné), desta situação e outras semelhantes, se deviam ocupar?

Se razões de consciência, solidariedade e mesmo justiça não os motivam, então que cumpram o dever e obrigações dimanadas pela situação de poder ou de privilégio em que se encontram agora ou tiveram no passado se ainda agora podem ser influentes.

Os deveres inerentes à consciência e solidariedade são deveres permanentes e não devem ser coisas acidentais e temporárias na nossa vida.

Tenho acompanhado outros projectos semelhantes na Guiné e S.Tomé, aqui descritos no nosso blogue. Que são para mim sempre motivos de motivação, não só pelo simples facto de existirem, como pelo facto de serem motivo de tanto interesse por parte de todos nós que por lá andamos e conhecemos o que era e o que ainda é.

No caso de Timor admiro a boa vontade de tantos que nunca lá estiveram mas que inspirados pelo Rui e outros continuam ajudando, persistindo em fazer bem.

Bem hajam! Eu não acredito em milagres, mas, mesmo na minha muita desilusão, ainda teimo em persistir, esperando sempre por um milagre.

João Crisóstomo

PS - Esqueci-me de dizer que tudo o que temos pedido é que, que forneçam professores devidamente acreditados para esta escola, uma vez que agora já há uma escola construída e uma residência para professores nestas montanhas onde as crianças, que são tão timorenses como as crianças que vivem em cidades ou em locais com mais facilidades e que têm sorte de terem pais mais afortunados, parecem ou foram completamente esquecidas. (**)

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segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25949: O nosso livro de estilo (16): O blogue não foi feito para a gente se chatear.. Por isso, às vezes é preciso reintroduzir a moderação ou triagem de comentários





Lisboa > Mosteiro de São Vicente de Fora > Fábulas de La Fontaine > 24 de maio de 2024 > Este antigo mosteiro é um dos sítios mais deslumbrantes de Lisboa, com uma coleção única no mundo inteiro, de 38 painéis de azulejos, ilustrando outras tantas fábulas de La Fonatine (das 200 que o autor escreveu para educação do príncipe). Uma delas é sobre os médicos. 


Fotos (e legenda): © Lu7ís Graça (2024).Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


A. Comentar no nosso blogue é fácil ... Comentar (concordar, discordar, criticar, elogiar, complementar, acrescentar,  etc.), em amena cavaqueira, sob o sagrado poilão da nossa Tabanca Grande... é fácil. Ou deveria sê-lo...  

Há vinte anos que constatamos aqui que o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande, todos ou quase todos (os antigos combatentes da Guiné) cá cabendo com tudo o que nos une e até com aquilo que nos pode separar... A única coisa que nos pode separar não são as diferenças mas o conflito manifesto na exposição dessas diferenças sob a forma de opiniões, perceções, experiências, sentimentos, ideias, etc., levando à violência verbal e até ao ódio patológico... 

Razão por que, de tempos a tempos, temos de relembrar alguns pontos do Nosso Livro de Estilo (há gente que nunca o leu) (*)



1. As opiniões aqui expressas, sob a forma de postes ou de comentários, são da única e exclusiva responsabilidade dos seus autores, não podendo vincular o fundador, proprietário e editor do blogue, Luís Graça, bem como a sua equipa de coeditores e demais colaboradores permanentes.

2. Camarada, amigo, simples leitor: Podes escrever no final de cada poste um comentário, uma informação adicional, um reparo, uma crítica, uma pergunta, uma observação, uma sugestão... (De preferência sem erros nem abreviaturas; evitar também as frases em maiúsculas ou caixa alta).

Basta, para isso, apontares o ponteiro do rato para o link Comentários, que aparece no fim de cada texto (ou poste), a seguir à indicação de Postado por Fulano Tal [Editor] at [hora], e clicares...

3. Tens uma "caixa" para escrever o teu comentário que será publicado, após apreciação de um dos editores.  Infelizmente, e ao fim de 20 anos, tivemos que reintroduzir, temporariamente, a moderação ou triagem..

Se tiveres uma conta no Google deves usar essa identificação. Mas também podes entrar como "anónimo": é obrigatório no final da mensagem pôr o teu nome, e facultativamente a localidade onde vives; sendo ex-combatente do ultramar, podes indicar o Teatro de Operações onde estiveste, local ou locais, posto e unidade a que pertenceste. 

Não são permitidas abreviaturas de nomes, siglas, acrónimos, pseudónimos; e muito menos "falsos perfis" (os camaradas da Guiné têm a ombridade de "dar a cara", não se escondendo atrás do bagabaga do anonimato e da cobardia...). 

Se voltares ao blogue, poderás não encontrar logo a mensagem que lá deixaste, a qual precisa do OK do editor de serviço (que deve zelar pelas regras do jogo). Repete as operações acima descritas para visualizar o teu comentário.

4. Escreve com total liberdade e inteira responsabilidade, o que significa respeitar as boas regras de convívio que estão em vigor entre nós: por exemplo,


(i) não nos insultamos uns aos outros;

(ii) não usamos, em público, a 'linguagem de caserna';

(iii) somos capazes de conviver, civilizadamente, com as nossas diferenças (políticas, ideológicas, filosóficas, culturais, étnicas, estéticas, etc.);

(iv) somos capazes de lidar e de resolver conflitos 'sem puxar da G3';

(v) todos os camaradas têm direito ao bom nome, à privacidade, à proteção dos seus dados pessoais (incluindo o nome completo, a morada, o nº de telemóvel, o email, etc.);

(vi) não trazemos a "actualidade política" para o blogue, etc.

Os editores reservam-se, naturalmente, o direito de eliminar, "a posteriori", rápida e decididamente, todo e qualquer comentário que violar as normas legais (incluindo as do nosso servidor, Blogger/Google), bem como as nossas regras de bom senso e bom gosto que devem vigorar entre pessoas adultas e responsáveis, a começar pelos comentários ANÓNIMOS (por favor, põe sempre o teu nome e apelido por baixo), incluindo mensagens com:


(i) conteúdo racista, xenófobo, sexista, homofóbico, pornográfico, etc.;

(ii) carácter difamatório;

(iii) tom intimidatório ou provocatório;

(iv) acusações de natureza criminal;

(v) apelo à violência, física e/ou verbal;

(vi) linguagem inapropriada;

(vii) SPAM, publicidade comercial ou propaganda claramente político-ideológica, ou de cariz partidário;

(viii) comunicações do foro privado, sem autorização de uma das partes.

Excecionalmente, alguns comentários poderão transformar-se em postes se houver interesse mútuo (do autor e dos editores).

Os editores, 13 de setembro de 2024,

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Guiné 61/74 - P25948: Notas de leitura (1727): "A Guerra Colonial: realidade e ficção" (livro de actas do I Congresso Internacional), organização do professor universitário e escritor Rui de Azevedo Teixeira; Editorial Notícias, 2001, com o apoio da Universidade Aberta e do Instituto de Defesa Nacional (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Maio de 2023:

Queridos amigos,
Este I Congresso Internacional sobre a guerra colonial, que se realizou em abril de 2000, no Instituto de Defesa Nacional, em Lisboa, teve uma extensão no Porto, dias depois, onde se organizou um ciclo de cinema e um debate. Num volume de cerca de 500 páginas, a comissão organizadora entendeu debruçar-se sobre duas áreas fundamentais: a realidade (o papel dos militares, a natureza da guerra, consequências físicas e psicológicas da guerra, visão antropológica, etc.) e a ficção (guerra e literatura, guerra e jornalismo e guerra e cinema). Voltaremos ainda ao assunto, mas lembrando ao leitor que muita água passou pelas fontes nos últimos 20 anos no que toca à ficção. Em termos de levantamento desta vasta e diversificada literatura, é de toda a conveniência recordar as obras publicadas por João de Melo, Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes, bem como Margarida Calafate Ribeiro, mas não se pode esquecer o papel pioneiro de Rui de Azevedo Teixeira na sua obra A Guerra Colonial e o Romance Português.

Um abraço do
Mário



A Guerra Colonial: realidade e ficção (livro de atas do I Congresso Internacional) (2)

Mário Beja Santos

O volume "A Guerra Colonial: realidade e ficção (livro de atas do I Congresso Internacional)", teve como organizador o professor universitário e escritor Rui de Azevedo Teixeira, Editorial Notícias, 2001, com o apoio da Universidade Aberta e do Instituto de Defesa Nacional. Participaram dezenas de comunicadores. Na altura em que foi editada, a obra era assim apresentada: “Neste livro, que recusa a tirania da coisa política sobre a História ou a Literatura ou a insidiosa pressão do mediaticamente correto, correm textos de estudiosos da guerra e de grandes guerreiros, de portugueses e estrangeiros (lusófilos, lusófobos e lusófonos), de homens e de mulheres, de nomes consagrados e de novos investigadores da temática da Guerra Colonial ou Guerra do Ultramar. Académicos, militares, académicos militares, escritores, psiquiatras, cineastas, jornalistas, gestores e outros contribuem nesta obra para uma compreensão mais alargada e mais profunda da guerra de guerrilha que, fechando o Império, obrigou a uma definitiva mudança de paradigma da nossa História.”

No capítulo respeitante à natureza da guerra, cabe uma referência à comunicação do coronel David Martelo intitulada O pensamento estratégico das cúpulas militares nacionais nas vésperas da última campanha colonial, há aqui dados que podem pesar para o melhor conhecimento do prelúdio dos eventos iniciados em 1961, vale a pena reproduzir estes parágrafos:
“Em 1956, é nomeado subsecretário de Estado do Exército o coronel Almeida Fernandes. É através dele que entra no Ministério uma nova sensibilidade no tocante aos problemas do Ultramar. De facto, estava o Exército de tal modo fascinado pela integração na estrutura da NATO que tudo o resto parecia secundário. Havia planos de transferência de tropas entre as parcelas portuguesas no mundo, mas apenas para reforço do teatro de operações europeu. A evolução da situação internacional impunha, pelo contrário, que se previsse o reforço dos territórios ultramarinos com forças metropolitanas. Almeida Fernandes apercebe-se das gravíssimas vulnerabilidades do aparelho militar. A reorientação do esforço de defesa não iria, no entanto, revelar-se tarefa fácil. Salazar opinava de que havíamos atingido já há muito uma exagerada percentagem de encargos com as Forças Armadas, percentagem essa que não podia ser de forma alguma ultrapassada.

Iniciado o primeiro mandato de Américo Tomás, Salazar efetua uma ampla remodelação do governo e é nomeado ministro da Defesa o general Júlio Botelho Moniz. Sem grandes surpresas, Almeida Fernandes ascende a ministro do Exército, entrando para as suas anteriores o tenente-coronel Costa Gomes. A nova equipa do ministério do Exército vai, então, rever o dispositivo das forças terrestres em Angola. Num estudo elaborado em abril de 1959, era claramente mencionado que tudo se conjugava para que num prazo mais ou menos breve sermos confrontados com situações mais difíceis do que as anteriores, em especial no que tocava aos territórios ultramarinos; havia que se proceder a uma análise, corajosa e realista da nossa política militar em ordem a, com ainda maior urgência, corrigir e preparar adequadamente o aparelho militar. Não existia ou era insuficiente uma estratégia verdadeiramente nacional, em particular que tivesse em vista o emprego do nosso potencial militar na segurança dos territórios ultramarinos.

Em meados de 1959, desloca-se Angola uma missão militar destinada a recolher o máximo de dados respeitantes à reformulação do dispositivo e ao levantamento de estruturas viradas para resposta a uma agressão do tipo não convencional. Na sequência dessa missão e de outras que, entretanto, se deslocaram aos demais territórios, os representantes do Exército concluíram, com evidente moderação, que as necessidades ultramarinas destes ramos das Forças Armadas se cifrariam num total de 18 companhias de caçadores e algumas poucas unidades de reconhecimento, sapadores, intendência e saúde. Com a aquisição do armamento e equipamento orgânico dessas unidades, o programa proposto implicaria uma despesa calculada em um milhão e quinhentos mil contos.

Enfrentando as maiores resistências por parte do governo central, a reforma militar dá, ao iniciar-se a década de 1960, os primeiros passos reveladores de uma reorientação do esforço militar. É criado o Centro de Instrução de Operações Especiais destinado a preparar quadros para as operações de contrainsurreição. Em maio de 1960, é a vez da Força Aérea iniciar a sua presença em Angola. Em fevereiro de 1961, a poucos dias do início da onda do terrorismo, os primeiros meios aéreos recolhem-se à pista do Negage.
Estas medidas não satisfaziam as necessidades expressas pelos mais altos responsáveis da Defesa, Almeida Fernandes haveria de recordar mais tarde esses tempos, afirmando que houvera um completo imobilismo do presidente do Conselho, perante os instantes apelos que lhe fizera.

No centro das preocupações do ministro situava-se a falta de equipamentos para distribuir às unidades que tivessem de recorrer ao Ultramar. Essas forças não dispunham de meios para se moverem e se estacionarem ou mesmo pernoitarem em pleno mato, nem mesmo armas ligeiras modernas para enfrentar as ameaças previstas.

O ano de 1961 traz consigo a concretização das ameaças que se haviam pressentido no passado recente. Ao desvio do paquete Santa Maria segue-se um grave incidente na Baixa do Cassanje, em Angola como protesto contra o cultivo obrigatório do algodão e o atraso no pagamento de salários, trabalhadores nativos revoltam-se contra a presença dos europeus. Tratando-se de uma rebelião localizada numa pequena área, é possível às poucas Forças Armadas do Exército presentes em Angola, apoiadas por meios aéreos, reprimir os protestos dos agricultores.

A 4 de fevereiro, na capital angolana, elementos independentistas levam a efeito ataque contra instalações prisionais e forças de Polícia de Segurança Pública, provocando diversos mortos e feridos. Poucos dias volvidos, o comandante da Região Aérea de Angola, brigadeiro Pinto Resende, informa o Chefe-de-Estado-Maior da Força Aérea de que tirara da revolta dos algodoeiros e dos incidentes de Luanda as seguintes conclusões:
‘Que a cultura obrigatória do algodão é extremamente antipática aos pretos e que é ilegal;
Que os concessionários, que são os ricos, só têm benefícios e não são afetados pelas contingências das culturas; enquanto os agricultores que são pobres, os desgraçados burros de carga dos pretos, são quem arrosta com todos os prejuízos’.

Depois, referindo-se a uma carta que o CEMFA lhe solicitara estas informações, Pinto Resende concluía: ‘Concordo inteiramente com o que diz na sua carta; não estamos dispostos a morrer para servir ganâncias e egoísmos dos senhores que têm responsabilidades no regime político em que vivemos […] A solução para este problema, se é que existe, é, evidentemente, uma solução político-económico-social que seja amparada pelas Forças Armadas, e nunca uma solução armada para manter as coisas como elas estão, que são de evidente promessa de sucessivo agravamento.”


Tudo irá ser revertido depois do chamado golpe Botelho Moniz que merecerá a José Manuel Homem de Melo a seguinte frase: “Afastemos, de vez, a concessão que procura impor manu militari a nossa presença no mundo. Portugal terá tudo a seu favor (história, missionação, razão, etc.). Seria trágico tentar ficar ao sabor da única coisa que não tem – a força!"

Salvato Trigo, reitor da Universidade Fernando Pessoa, interveio na conferência falando de Factos, equívocos e fictos da guerra colonial de Angola:
“Depois de construir a sua doutrina contra-insurrecional e de redelinear as suas Forças Armadas, Portugal encarou severo constrangimento de erguer um exército e de mantê-lo nos necessários níveis. A metrópole apresentava um frágil e limitado potencial de homens para este empreendimento. Se existia um elemento de chauvinismo nos anos iniciais, em 1966 este patriotismo estava bastante desgastado e, em 1968, Portugal teve de enfrentar o problema de identificar as fontes desse potencial simplesmente para fazer a guerra prosseguir. Em teoria, através do período de 1961 a 1964, o conjunto de machos aptos fisicamente com idades entre os 20 e os 24 anos era adequado. Havia, contundo, outros fatores a influir. Havia a imigração clandestina. Portugal, com uma população, na altura, de perto de 9 milhões de habitantes, tinha uma população expatriada avaliada em 3 milhões.

A duração da guerra requereu à metrópole que aumentasse os efetivos de 48.832 homens em 1961 para um máximo de 70.504 em 1968, permanecendo mesmo abaixo deste número para o restante tempo de guerra, fazendo-se, contudo, esforço para manter este nível máximo. Para conseguir tal, o Exército foi forçado a implementar duas práticas não atrativas. Em 1968, o período de incorporação de 2 anos foi efetivamente alargado para 4 através de um novo diploma que obrigava a 2 anos de serviço em África. Em 1971, tomou-se uma medida adicional baixando a idade de incorporação de 20 anos para 18.

A metrópole de Portugal tinha uma população de quase 9 milhões de habitantes, em contraste com uma população somada de 12 milhões aquando da guerra. Esta distribuição pareceria indicar que, proporcionalmente, 60% do potencial humano do Exército seria recrutado localmente. Esta via foi, de facto, a que o Exército escolheu. Em 1966, 30% do potencial humano veio das colónias e gradualmente subiu até à área dos 50% em 1970, permanecendo neste nível daí para a frente.

As limitações de basear em populações domésticas ameaçou os esforços de guerra. Desde o início das guerras em 1961 até à sua conclusão em 1974, o número de pessoal na organização do Exército principal aumentou de 49.422 para 149.090, um incremento médio anual de 11%. As necessidades de Portugal em recrutar sempre em números cada vez maiores foram consequências de dois fatores: a expansão da atividade da guerrilha de Angola para a Guiné e, por fim, para Moçambique, e o uso crescente de militares para a expansão da atividade psicossocial.

Transferindo os seus esforços de recrutamento para o Ultramar, Portugal conseguiu quatro importantes ganhos: primeiro, aliviou a pressão de recrutamento na metrópole com os consequentes benefícios no sentimento público; segundo, os africanos portugueses que tinham o maior interesse no êxito das guerras e, portanto, a mais alta motivação para uma conclusão de sucesso, iriam, agora, à primeira vista, dar o seu quinhão de esforço na luta; terceiro, a política de africanização introduziu rendimentos na colocação de potencial humano, uma vez que os recrutados europeus, com o seu maior saber técnico e educação, foram desviados para tarefas mais complicadas, enquanto os seus correspondentes africanos, com a sua educação irregular e carências gerais de saber técnico, foram empregues em tarefas de maior esforço; quarto, usando tropas africanas reduziu-se, sobretudo, os custos do potencial humano, uma vez que era menos caro recrutar e treinar uma soldado no palco de operações do que fazê-lo em Portugal, com o custo adicional de o transportar para África.

Portugal mobilizou cerca de 1% da sua população para lutar me África e não podia aguentar o escoamento do potencial humano doméstico. Numa base percentual houve mais pessoas em armas que em qualquer outra nação, excetuando Israel. A mobilização de Portugal seria equivalente aos Estados Unidos terem 2,5 milhões de homens no Vietname em vez de 500 mil. Comparando a outros países, só cerca de 19% das forças francesas na Indochina eram tropas locais. Na Argélia eram 33%. Quanto aos EUA no Vietname, eram de 29%. Assim, embora o uso de tropas recrutadas localmente não fosse um conceito recente, Portugal ergueu-o a um novo nível. Em nenhum caso tais tropas foram empregues numa extensão proporcional à que Portugal usou em África e poucas situações atingiram os números absolutos de Portugal. Por último, e em contraste com outras contra-insurreições, estas tropas provaram ser muitíssimo leais.”

Mensagens de Natal, Moçambique, imagem retirada da RTP, com a devida vénia
Guerrilheiros do PAIGC deslocando-se num carro blindado na Guiné-Bissau. Imagem retirada da Casa Comum, Mário Pinto de Andrade, com a devida vénia

(continua)
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Notas do editor

Vd. post de 9 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25925: Notas de leitura (1725): "A Guerra Colonial: realidade e ficção" (livro de actas do I Congresso Internacional), organização do professor universitário e escritor Rui de Azevedo Teixeira; Editorial Notícias, 2001, com o apoio da Universidade Aberta e do Instituto de Defesa Nacional (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 13 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25940: Notas de leitura (1726): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1874) (20) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25947: Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) - Parte IX: De novo em Catió... P*rra, deixem-me comer o petisco em paz!

 


Guiné > Região de Tombali > Ilha do Como >Ilustração, in "Tridente - Memórias de um Veterano", de António Manuel Constantino Vassalo Miranda @ 12Fev2007, 29 pp. (Disponível em formato pdf, no Portal UTW - Dos Veternos da Guerra do Ultramar
https://ultramar.terraweb.biz/Livros/AntonioVassalo/OpTridenteAntonioVassalo.pdf) (com a devida védia...)


1. Estamos a publicar algumas das memóras do ex-alf mil art, José Álvaro Carvalho, membro  nº 890 da nossa Tabanca Grande:

(i) tem 85 anos, sendo natural de Reguengo Grande, Lourinhã;

(ii) com 26 meses de tropa, acabou por ser moblizado para o CTIG por volta da primavera de 1963 (não conseguimos ainda  apurar a data);

(iii) foi render um alferes de uma companhia de intervenção, de infantaria, sediada em Bissau (QG/CTIG) (não conseguimos ainda identificar qual); 

(iv) irá cumprir mais uns 26 ou 27 meses, no TO da Guiné, entre o primeiro trimestre de 1963 e o início do segundo semestre de 1965;

(v) passou por Bissau, Olossato, Catió e a ilha do Como, aqui já a comandar um Pel Art, obus 8.8 (a duas bocas de fogo), com que participou, entre outras, na Op Tridente (jan-mar 1964);

(vi) no CTIG era popularmente conhecido pelo seu nome artístico, "Carvalhinho" (cantava o fado de Lisboa e tocava guitarra); em Bissau, chegou a fazer espetáculos com o alf médico Luís Goes (que cantaca e tocava o "fado de Coimbra"); 

(vii) tornou-se também amigo dos então alferes milicianos 'comandos' Justino Coelho Godinho e Maurício Saraiva (já falecidos), quando se estavam a organizar os Comandos do CTIG (ofereceu-se para os "comandos",mas náo foi aceite);

 (viii) o José Álvaro Almeida de Carvalho (seu nome completo) publicou em 2019 o "Livro de C", Lisboa, na Chiado Books (710 pp.) ("C" é o "nickname" pelo qual o pai o tratava); 

(ix) é empresário reformado, trabalhou também como quadro técnico em  empresas metalomecânicas como  a L. Dargent Lda; aqui foi  diretor do departamento de trabalhos exteriores, e sócio minoritário (fez, por exemplo, a montagem da superestrutura metálica e cabos de suspensão da ponte na foz do Rio Cuanza em Angola).


2. Voltando às memórias do José Álvaro Carvalho (*), estamos agora em 1964, em Catió, no BCAÇ 619, 1964/66, onde ele está destacado com um Pel Art 8.8 a duas bocas de fogo,  e vai participar em grandes operações no setor de Catió ("Tridente", "Broca", "Macaco", "Tornado" e "Remate"). A sua atuação operacional, comandante do Pel Art,  valeu-lhe, em 1967, uma Cruz de Guerra de 3ª Classe.

O alferes Carvalho esteve em dois meses na Ilha do Como, no àmbito da  Op Tridente (jan-mar 1964). 

 
Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) - 

Parte IX:  De novo em Catió... P*rra, deixem-me comer o petisco em paz!


O calor e a humidade transformavam corpos saudáveis em coisas moles difíceis de descrever.

Havia dias que o alf mil art Carvalho tinha regressado à sua sede [ em Catió] e não entrava em operações.

Os oficiais do batalhão para onde fora destacado  [ BCAÇ 619] tinham menos
um ano de guerra do que ele, pelo que não conseguia adaptar-se aos temas das suas conversas que passavam por preocupações carregadas de ansiedade para si já distantes.

Todo o tempo que passara no mato em operações, tanto no primeiro ano, como oficial dum pelotão infante – a companhia para onde viera em rendição individual, embora constituída por pessoal de artilharia, por necessidade, fora destinada a operações de infantaria enquanto que agora, ali no Sul, comandava um pelotão indígena independente de artilharia com 2 obuses de 88 milímetros, anexo a um Batalhão de Cavalaria - tinha-lhe retirado a paciência para ouvir opiniões afastadas da realidade, que não lhe apetecia contradizer.

Deste modo quando não se encontrava em operações, levantava-se cedo, mandava formar o pelotão e levava-o para a mata com tractores reboques de obus, alguns machados e pás.
Passavam toda a manhã a cortar árvores cujos troncos eram rebocados para o quartel e serviam para reforçar a paliçada que o rodeava, construir paióis para as munições, ou ainda reforçar os existente que eram constituídos por um buraco quadrangular no chão coberto ao nível superior por várias camadas de árvores em cruz, sendo a última camada coberta de terra. A entrada era formada em rampa com passagem para um homem.

Depois disto o pessoal ia almoçar e passava a tarde a descansar. Ele almoçava sozinho porque desencontrava as horas do almoço para esse efeito. Em seguida deslocava-se ao estabelecimento dum sírio, que tinha uma esplanada com 2 mesas de ferro debaixo duma velha árvore.  Sentava-se numa e o sírio, por ser esse o costume, trazia-lhe 4 cafés e 4 cálices de anis, que bebia calmamente para depois se enfiar a dormir no seu quarto até, não havendo qualquer emergência, Deus o acordar.

Nestes dias sentia-se particularmente bem e às vezes até jantava com os outros oficiais ou pelo menos ia até ao tosco bar da messe jogar pocker ou bridge

Este era um desses dias mas com uma particularidade acrescida. Tinha chegado para um dos oficiais com quem mais convivia, um frasco de farmácia de 3 litros em vidro, com trouxas de ovos. A mãe também lhe enviava de quando em quando uma lata de banha com lombo de porco assado lá dentro. A alimentação era escassa no que se refere a alimentos frescos e a guloseimas ou petiscos. As famílias enviavam para o quartel general encomendas deste género que eram por sua vez levadas para a sala de operações militares no aeroporto e, quando os pilotos de avião ou helicóptero tinham alguma missão que os faziam passar nas zonas indicadas no endereço,  levavam-nas.

O oficial das trouxas de ovos, que habitualmente convidava para comer o lombo de porco que a mãe lhe enviava, sentiu-se na obrigação de lhe retribuir, convidando-o para saborear a delícia recebida. Estas ceias eram destinadas a pequenos grupos com mais afinidades e realizavam-se depois de os outros se deitarem uma vez que tais mimos por natureza pequenos não chegavam para todos.

Naquele dia, após as cartas, ficaram a aguardar que todos se retirassem. Foi então trazido o frasco ainda acondicionado da viagem, servidas as bebidas de acompanhamento: whisky e cerveja. 

Mas pouco depois, começaram a ouvir-se metralhadoras a norte, no mato a dispararem para o aquartelamento. Eram metralhadoras lentas de 12mm e pistolas metralhadoras de 9 mm que se distinguiam pelo “Pec-Bum! Pec-Bum! Pec-Bum!” mais lento e mais pesado para as primeiras e mais vivo rápido e menos forte para as restantes. O ruído de “Pec” era originado pela passagem da bala e o “Bum” pelo seu disparo. Por isso se ouvia primeiro o PEC e depois o BUM!

Logo em seguida foram apagadas as luzes e a noite ficou mergulhada na escuridão, constantemente interrompida por very-lights – foguetes disparados para o ar que caíam lentamente com grande poder de iluminação.

A povoação era atacada em média 2 vezes por semana. Eram ataques sem grande perigo e não duravam muito mais do que uma hora.

Nestas situações não lhe tinha sido destinado fazer nada, uma vez que as granadas de artilharia eram caras para repelir ataques de pouca importância e que se destinavam a flagelação e desgaste. Quanto aos outros oficiais, cada um tinha a sua função.

Continuou sentado e a beberricar as bebidas até que o ataque terminou, o sossego voltou, acenderam-se as luzes, os seus companheiros regressaram e continuaram os preparativos para comerem o desejado manjar.

Quando já prontos para comer, de novo se ouviram as metralhadoras inimigas. Foram outra vez apagadas as luzes, cada um seguiu para o seu posto e ele continuou a beberricar. Não era normal haver ataques sucessivos e começou a pensar se por qualquer capricho do destino, aquilo não teria alguma coisa a ver com as trouxas de ovos.

Ficou assim sozinho, sentado no bar a remoer calúnias até que de novo o ataque terminou e tudo regressou à normalidade precária habitual da situação. Os companheiros regressaram. Os pratos foram distribuídos, as resplandecentes trouxas de ovos começaram a ser distribuídas e novamente se ouviram metralhadoras inimigas a alvejar o aquartelamento.

Achou que era demais. Já tinha entretanto bebido o suficiente para tomar atitudes pouco prudentes. Levantou-se, dirigiu-se á caserna, chamou o pessoal atribuído a um dos dois obuses do pelotão, mandou os municiadores trazerem munições, para o seu estacionamento, - um abrigo escavado até á altura do tubo do obus com acesso através de trincheira junto ao posto de sentinela que o guardava a um dos cantos do quartel - e logo de seguida disparou 70 granadas em tiro direto para a mata a leste do quartel com diferenças de direcção de alguns graus o que cobriu toda essa zona.

Durante duas semanas não houve ataques de flagelação ao aquartelamento.


(Seleção, revisão / fixação de texto, título e substítulo, parênteses retos: LG)

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Nota do editor:

Último poste ds série > 8 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25921: Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) - Parte VIII: Uma voltinha de Alouette II