sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Guiné 63/74 - P3948: FAP (14): Um dia rotineiro na Base Aérea nº 12, em Bissalanca (Miguel Pessoa, ex-Ten Pilav, 1972/74)

Guiné > Bissalanca > BA12 > O Ten Pilav Miguel Pessoa (1972/74). O Miguel foi o primeiro piloto de Fiat G-91 a ser abatido por um Strela (em 25 de Março de 1973, sob os céus de Guileje) (1). Efectuou mais de 400 missões no TO da Guiné. Esteve 4 meses em Lisboa, hospitalizado, a seguir à queda do seu Fiat.

Foto: © Miguel Pessoa (2009). Direitos reservados


1. Mensagem de Miguel Pessoa (ex-Ten Pilav, BA12, Bissalanaca, 1972/74):

Luís: Aqui vai um texto para o blogue, se quiseres publicá-lo. Podes pensar que soa a romance barato, mas foi a maneira que arranjei de exorcisar os meus fantasmas, sem falar deles directamente...
Abraço, Miguel


2. FAP (14) > UM DIA ROTINEIRO NA BA12
por Miguel Pessoa

O mecânico acompanha-me enquanto faço a inspecção de 360º ao Fiat G-91 estacionado na placa, na BA12. Sinto a ansiedade habitual nos últimos voos. Também não admira - quando sabemos que vamos encontrar fogo de anti-aérea e possíveis Strela, é natural que fiquemos preocupados.

Como tem vindo a ser habitual, a tensão dá-me voltas ao estômago enquanto continuo a inspecção exterior ao avião. Parece que tenho vontade de vomitar mas nada sai. Tento disfarçar, que o mecânico continua ao meu lado e ninguém gosta de dar parte de fraco ao pé dos outros.

Mas os antecedentes não ajudam muito... Já fui ao charco uma vez e não gostei. E o problema é que matematicamente tenho as mesmas hipóteses que os outros de ser abatido - não me parece lá muito justo! Só voltei à Guiné há poucas semanas e a readaptação tem sido difícil; é muito penoso para mim recordar o tempo que estive sozinho no mato, depois da minha ejecção, sempre na iminência de ser apanhado à mão, por isso é natural que esteja preocupado.

Aliás, também os mecânicos andam preocupados. É grande a sua responsabilidade - o avião tem que funcionar que nem um relógio, o armamento não pode falhar, a Martin-Baker (*) tem que funcionar se tudo o resto correr mal - nenhum quer ser responsável pela perda de um piloto.

Logo hoje, que era o meu dia de folga! Bom, nesta bagunçada nada é garantido e temos que ser adaptáveis às mudanças... Mas a Esquadra foi solicitada para uma série de missões importantes que podem contribuir para diminuir o fluxo de pessoal e material que se interna na Guiné, vindos do exterior. Se resultar, poder-se-á reduzir a intensidade das flagelações aos nossos aquartelamentos; este esforço já se prolonga há dois dias e todos juntos não somos demais.

Neste momento sou o oficial mais antigo (um tenente!) a seguir ao Comandante de Esquadra, por isso, como oficial de operações (nome pomposo!) cabe-me a mim indicar os pilotos para as missões. Naturalmente, o meu nome tem que aparecer lá (o exemplo tem que começar por nós) e a folga, paciência!, fica para outro dia.

O avião está OK, o armamento pronto, como normalmente - o pessoal da linha não falha, como de costume - e eu dirijo-me para a escada para ocupar o meu lugar no cockpit - controlo um último espasmo e, enquanto subo a escada verifico, penduradas nela, as diferentes cavilhas de segurança que o mecânico retirou.

Coloco o capacete, o mecânico ajuda-me a colocar os cintos. Percorro com os olhos o check-list para confirmar que fiz todos os procedimentos correctamente antes de pôr em marcha. O chefe da formação, no avião ao meu lado, faz sinal com a mão para pormos em marcha. Primo o botão do cartucho de arranque do motor, este começa a rodar e estabiliza nas rotações normais. Executo os restantes procedimentos, acciono a descida da canopy (**) e faço sinal ao mecânico para tirar os calços das rodas.

Tudo OK! Aumento as rotações do motor para sair do estacionamento e inicio a rolagem do meu avião atrás do outro, fazendo antes um aceno de despedida ao mecânico que me deu a saída.

Toda a excitação acumulada anteriormente parece abandonar-me. Estou ali só, dentro do avião, controlando os meus medos de modo a que não interfiram com o cumprimento da missão. Temos de esquecer tudo e concentrarmo-nos totalmente no voo que temos pela frente, vigiando o espaço à nossa volta, tentando detectar alguma ameaça para o nosso ou para os outros aviões.

Finalmente estamos no ar e dirigimo-nos para o alvo definido no briefing antes do voo. Tudo corre normalmente e sinto uma estranha sensação de calma que contrasta com o nervosismo anterior. Os Tigres da Esquadra 121 estão no ar para mais uma missão de rotina nos céus da Guiné...


Miguel Pessoa
(Cor Pilav Ref)
_______

Notas do autor

(*) Cadeira de ejecção do Fiat G-91 R4

(**) Cobertura da cabina

________

Notas de L.G.:

(1) Vd. postes de:

19 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1675: 28 de Março e 5 de Abril de 1973: cinco aeronaves da FAP abatidas pelos toscos mísseis terra-ar SAM-7 Strella (Victor Barata)

25 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1699: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (1): Abatido o primeiro Fiat G91

29 de Janeiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3816: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (5): Strelado nos céus de Guileje, em 25 de Março de 1973 (Miguel Pessoa, ex-Ten Pilav)

31 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3825: FAP (2): Em cerca de 60 Strelas disparados houve 5 baixas (António Martins de Matos)

1 de Fevereiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3826: FAP (3): A entrada em acção dos Strella, vista do CAOP1, Mansoa, Março-Maio de 1973 (António Graça de Abreu)

4 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3839: FAP (4): Drama, humor e... propaganda sob os céus de Tombali (Miguel Pessoa, Cor Pilav Ref)

9 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3859: FAP (6): A introdução do míssil russo SAM-7 Strela no CTIG ( J. Pinto Ferreira / Miguel Pessoa)

(2) Vd. último poste da série FAP > 16 de Fevereiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3904: FAP (13): Nha Bolanha, o Ramos, o Jorge Caiano, o Manso, o corta-fogo do AL III, Bissalanca... (Jorge Félix)

4 comentários:

Anónimo disse...

Leio o texto de um Piloto que, com frontalidade diz - eu sentia medo!
Também nós os que andavam no chão o sentíamos. Eu sentia medo e "via-o" no rosto dos Homens que comandava.
Sabes meu caro, não era no estômago que se reflectia,em nós era mais abaixo, na bexiga...e eram "urinadelas" até á partida. Os graduados sabiam com antecedência as operações e, até se habituarem era aborrecido. No dia ou horas antes era a rotina, parecida com a tua mas sem avião, o deixa a mija, controla o medo e sai... já totalmente diferente.Era o treino a actuar. Se cais numa emboscada, se assaltas etc não sei o que sentia, não sei explicar bem. Por vezes dava gozo...um tipo chamava "nomes" ao In e a suas famílias. Se dava para o torto...aí vem a aviação.Se há feridos idem. Pior se o tecto não deixava. Vocês foram muito importantes para a moral e para salvar a vida de muitos de nós. Um abraço Torcato

Anónimo disse...

Caro Pessoa:
Não é um comentário.
Senti o "jota" e o silvo da turbina.
A foto merece-me um apontamento:
Estás muito bem, mas o "gipe" arrancou-me as saúdades das pequenas viagens pela placa,cem quihentos metros , ou as idas a Bissau na busca de um piloto para resolver uma "emergência".
Era o local onde ,á ida "largava-mos" aqueles excessos de gaz, e á vinda ,saboreavamos a brisa da deslocação já com o pensamento no "Biafra".
Todos os pilotos tem uma fota na "burra" da placa.
Grato pelo momento.
Um abraço Jorge Félix

Anónimo disse...

Miguel Pessoa

Gostei da maneira singela com que é descrita preparação técnica (observação de 360º,cavilhas,mecanicos...)e o psicológica (controlode sensações...) ,feita nos momentos antecedentes a uma missão dos "Cavaleiros do ar"que tantas e tantas vezes ajudaram e confortaram psicológicamente os que se movimentavam no terreno.

Grato
Luis Faria

Anónimo disse...

Desculpem-me os restantes camaradas bloguistas eu fazer esta especial referência ao post do Ten. Pilav. Miguel Pessoa, que acabou de "aterrar no nosso aeroblogue" com o seu FIAT G-91.

Atrevo-me a dizer: - Até que enfim!

Até que enfim, que "alguém dos ares" nos veio brindar com uma deliciosa narração sobre aquele "mundo", que de nós esteve sempre tão perto, mas que nos pareceu sempre tão longe.

Graças ao Miguel Pessoa, quem não sabia como eu, o que são os "Martin-Baker" e "Canopy" ficou a saber.

Aproveito esta oportunidade para reforçar o desafio que é feito no blogue, para que outros homens do ar, e também os do mar, a escreverem as suas histórias, e assim tornarem mais rico o nosso vocabulário, com palavras como estas.

É que, ou é impressão minha, ou a malta que não andou na "porrada", tem algum constrangimento em pronunciar-se sobre aquilo que viveu, julgando que as suas histórias não têm qualquer interesse.

Nada mais errado digo eu e não só.

Eu era RANGER, fui para a Guiné em 1974, não cheguei a entrar em acção, mas conheço malta da 38ª de Comandos e outro pessoal "especial" que concluem, como eu, o seguinte:

O pessoal da "retaguarda" tinha funções fundamentais. Como é que seria possível aos "especiais" e restantes operacionais dos diversos batalhões e companhias, fazerem a guerra, sem que lhes chegassem por terra, mar e ar: as armas, as viaturas, as munições, os combustíveis, os alimentos e os equipamentos complementares?

Escrevam que nós gostamos, se não tiverem outras histórias, por simples que vos pareçam, contem-nos nomes e pormenores dos quartéis, das viaturas, dos blindados, das armas, etc.

P.S. - Queira pedir um favor ao Miguel Pessoa, se me sabe dizer alguma coisa sobre um piloto (meu amigo de infância e de escola), que não vejo há mais de 40 anos.
Só posso dizer que o conheço por Alípio e que vivia na Senhora da Hora/Matosinhos/Porto.
A última vez que sou dele, disseram-me que estava como director, ou coisa parecida, no Aeroporto de Macau.
O meu mail é: magalhaesribeiro04@gmail.com