segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7246: (Ex)citações (107): Mininus di praça e “O Fascínio” (José Eduardo Oliveira)


O nosso Camarada José Eduardo Oliveira (ex-Fur Mil Enfº da CCAÇ 675 – Binta -, 1964/66), enviou-nos, em 8 de Nobvembro de 2010, a seguinte mensagem:

Camaradas,
Remeto um texto que foi escrito por um jovem amigo da minha terra, que está a trabalhar na Cáritas da Guiné-Bissau.
Reflecte uma Guiné actual que julgo ser de interesse para o nosso blogue, onde por vezes aparecem vozes críticas a dizer que só se fala do passado...
Pois aqui está um texto bem actual que dá que pensar!
Um grande abraço de Alcobaça,
JERO

Mininus di praça e “O Fascínio”
Os garotos que vivem na cidade de Bissau são chamados “Mininus di Praça” e gozam de um estatuto que é invejado por miúdos e graúdos que vivem nas aldeias/ tabancas da Guiné-Bissau e que pensam que na “Praça” se vive melhor.
Certo é que muito daquilo que a “praça” de Bissau tem para oferecer aos seus “Mininus” são bairros precários, edificados com tijolos cozidos ao sol e cobertos com chapa de zinco debaixo da qual se dorme em magote a uma temperatura ambiente que, mesmo à noite, pode ultrapassar os 40 graus, entre outras coisas relativamente desagradáveis para qualquer “Mininu” de qualquer outro ponto do mundo.
Verdade seja dita que na “praça” também há mais escolas, mas onde o ensino é o que é… Certo é, também, que a língua oficial do país é o Português e nem mesmo os “Mininus di Praça” o falam porque os professores não o sabem falar, logo não o podem ensinar.
Mas, mesmo assim, há coisas boas na praça. Uma delas tem a ver com os centros culturais que se encontram espalhados pela cidade de Bissau e que são iniciativa de países com interesses estratégicos na região ou de outros cuja história os compromete.
Só para que o leitor tenha uma ideia, o centro cultural brasileiro encontra-se instalado na principal avenida da cidade, junto ao edifício da assembleia popular, o centro cultural francês ocupa a principal praça de Bissau. Quanto ao centro cultural português tenho alguma dificuldade em situá-lo uma vez que, de todas as visitas que fiz ao local, acabo por chegar nauseado e confundido pelas muitas curvas e contracurvas, depressões e buracos que tive de atravessar em ruas periféricas para chegar a um lugar envergonhado e sombrio.
De qualquer das formas, há cerca de quinze dias atrás, lá fui ao nosso centro cultural que, numa louvável iniciativa, estava a promover uma temporada de cinema português, para ver um filme chamado “O Fascínio”.
Quando cheguei à sala percebi que a assistência não ia ser muita, no entanto, a maioria dos lugares estavam ocupados por guineenses e, na primeira fila, eram só putos, “Mininus di Praça”. Eu, que me sentei na segunda fila, até achei piada a um garoto que tinha uma canita pequena na mão, daquelas que usam para correr atrás de uma roda de bicicleta velha, e que insistia em bater na cabeça da garota que tinha ao lado.
Meti conversa com o miúdo, em crioulo, caso contrário pensei que não me faria entender, e percebi que morava por ali, junto do centro cultural português. Morava ele e toda a audiência atenta e expectante de “Mininus” que se perfilavam na primeira fila para ver “O Fascínio”.
Já o dito filme ia a meio ou mais, quando uma das cenas desvendou muito da intriga que nos prendia a todos à tela torta que tínhamos à frente dos olhos, eis senão quando se ouve uma voz, vinda da tal primeira fila onde estavam sentados os “Mininus di praça” que, num português perfeito, disse: “Vês, eu não te disse que ia ser assim?!”.
Fiquei espantado porque percebi que, excepção das excepções, aqueles “Mininus” comunicavam entre si em Português e, se num acto quase irreflectido se expressaram em Português, era sinal que também era em Português que estava alicerçada a sua estrutura mental.
Isto leva-me a pensar que se Portugal deixasse de estar envergonhado e escondido em lugares sombrios, se se orgulhasse da sua história e da sua cultura e cumprisse as suas obrigações para com o mundo que a dada altura disse ter sido seu, teria um óptimo paradigma para estimular a sua economia, animar as suas gentes, honrar a vastidão de terras que falam a sua língua.
No fundo, cumprir-se e ter mais “Mininus di praça”, por esse mundo fora, a falar PORTUGUÊS.
Bissau, 07 de Novembro de 2010
Emanuel Pereira (Coordenador da CARITAS na Guiné-Bissau)
__________
Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:

4 comentários:

Juvenal Amado disse...

Caro Jero

Não conheço o Emanuel que te mandou a estória embora seja como nós de Alcobaça.
Ele faz uma abordagem sobre o que é muita da «ajuda», que é feita por muitos paises à Guiné, bem a todo o terceiro Mundo.
Lamentavelmente Portugal também vende uma imagem nos discurssos oficiais, que não corresponde à realidade.
Perderemos assim a lingua comum, que é o unico elo de ligação que poderiamos ter oferecido aos povos que governamos durante centenas de anos.
Um abraço para o Emanuel que de certa forma invejo pelo seu voluntarismo e espirito de ajuda, que o levou para aquelas terras sacrificadas.

Um abraço para ti também.

Juvenal Amado

Anónimo disse...

O problema da lingua portuguesa,particularmente seu ensino na Guine,deixou desde 1975, de ser um problema de Portugal...passando a ser um problema ...dos guineenses...que de forma soberana a elegeram como lingua oficial...

Agora, para a massificacao do seu ensino, ai sim, todo o contributo,incluindo a de Portugal e pouco...

Digo isto por me orgulhar de pertencer a uma geracao de guineenses que aprendeu a escrever,falar e a dominar esta nossa lingua comum ... ainda enquanto estudante na Guine...

E garanto que nao foi gracas a mais ...ou menos Portugal...

E que na Guine (do meu tempo) estava em construcao um estado moderno !!!!

Mantenhas

Nelson Herbert
Washington DC,USA

Cayres Figueiredo disse...

Caro Zé Eduardo,
Esta estória do Emanuel está fantástica.
Não posso, de modo algum, deixar de
louvar o seu voluntariado e a sua abnegação às terras da Guiné por onde
ambos passámos no longinquo ano de 1964.
Para ti, meu bom amigo vai um forte
abração do,
Cayres Figueiredo

Manuel Joaquim disse...

Subscrevo, totalmente. os dois primeiros parágrafos do comentário anterior do Nelson Herbert.
Acho que em Portugal, na discussão deste tema,sobressai um certo paternalismo acompanhado de alguma sobranceria. Costuma-se dizer que "quem não tem dinheiro para calças não vai a bodas". A salvação, se a houver, para a língua portuguesa no mundo, está no "comportamento" do Brasil, quero dizer, na capacidade do Brasil para a proteger e desenvolver a sua expansão.Portugal pode e deve ajudar(há muitas maneiras de o fazer, entre elas não descurar mas incentivar as relações de amizade e culturais que existem) É verdade que há ou deve haver uma "política" da Língua mas a sua existência como veículo oficial de comunicação num determinado país, neste caso Guiné-Bissau, está(rá)dependente das opções políticas dos seus dirigentes.