Quadragésimo sexto episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 18 de Novembro de 2015.
“We Speak English”
Cada País tem o seu idioma oficial, todavia em alguns,
praticam-se diversos, mas, por vezes, pelo menos por
aqui, tirando a normal conversação entre pessoas que se
querem compreender, pelo menos nós emigrantes, ao
ouvir esta frase, vinda da boca de algumas personagens
em certas ocasiões, mostra um pouco de, “arrogância”,
“xenofobismo”, “querer ser mais”, “mostrar que a pessoa
com quem se fala, não tem suficiente educação escolar”,
ou única e simplesmente, “querer mostrar-se”.
Nas novas gerações, em qualquer País, é normal falar inglês e, claro, sem o perceberem, estão a esquecer o
idioma da sua Pátria, todavia, não é o caso dos
emigrantes que viveram ou ainda vivem no Bairro do
Ironbound, na histórica cidade de Newark, do lado de lá
do rio Hudson, no estado de Nova Jersey.
Muito antiga, fundada no ano de 1666, a cidade de
Newark é a cidade com mais habitantes no estado de
Nova Jersey e, dada a sua localização, é uma das
principais cidades da região metropolitana de Nova
Iorque, além de centro comercial, industrial e financeiro,
que é a Baía do Rio Passaic que abriga um dos maiores
portos de mar, inaugurado no ano de 1831, onde chegava
o carvão das minas do estado de Pensylvania para
sustentar as unidades fabris da região. Também aqui está
localizado o segundo principal aeroporto que é o conhecido mundialmente, o Aeroporto
Internacional de Newark, que movimenta quase 30
milhões de passageiros anualmente.
Mas hoje companheiros, não estamos aqui para falar das
potencialidades da cidade, mas sim de nós, portugueses,
emigrantes do século passado, onde quase todas as
conversações entre nós era, trabalho, trabalho e quase só
trabalho, onde a palavra “yes”, (sim), ou “overtime”, que
neste caso, quer dizer mais ou menos “horas
extrordinárias”, era sempre uma das primeiras que se
aprendia.
Portanto, cá vai.
Existe por aqui o tal bairro operário chamado Ironbound,
mais conhecido pelo bairro português, no qual existe
grande concentração de portugueses, onde a principal
rua é a Ferry Street, cujo segundo nome é “Portugal
Avenue”, ou seja Avenida de Portugal.
À medida que os emigrantes Portugueses foram
chegando à cidade, atraídos pela concentração de
indústria que existia na altura, principalmente no tal bairro
do Ironbound, que quer dizer mais ou menos “rodeado de
ferro”, com intensa actividade comercial e industrial,
cercado de linhas férreas, era um lugar muito atractivo,
para quem tinha desejos de trabalhar, onde estes homens
e mulheres, de descendência portuguesa, com a sua
força física e dedicação, por vezes destruindo a sua
própria saúde, compensavam a falta de educação escolar.
As raízes portuguesas na área são profundas, com os
primeiros emigrantes, talvez chegados na década de
1910, mas o grande afluxo de portugueses veio na
década de sessenta e setenta do século passado, porque
hoje, a emigração de Portugal é praticamente inexistente,
mas o idioma português mantém-se estável e, se
voltássemos àquelas décadas do século passado,
podíamos ver e ouvir, em qualquer rua do bairro do
Ironbound, este cenário:
“...a Gracinda, casada com o Manuel Murtosa, que é
encarregado de uma “gang” de construção de valas para
esgoto, homem robusto e respeitado, até tem “pic-up” da
companhia, onde todos os dias, por volta das quatro ou
cinco horas da manhã, pois o trabalho é longe, lá para os
lados de Riverville, transporta os outros cinco
companheiros do seu grupo. Hoje é domingo, eles, os
homens, estão para a “Ferry Street”, foram ouvir o relato e
beber uns copos, ela, a Gracinda, neste momento de
domingo à tarde, está sentada nas escadas de entrada do
edifício onde residem, num compartimento de cave, que
repartem com a Ermelinda e o João de Verdemilho, anda
sempre vestida de preto, gosta desta cor, às vezes,
quando vai à missa, até põe qualquer coisa de outra cor,
especialmente uma blusa branca, que uma vizinha lhe
trouxe da “fábrica da costura”, onde trabalha, está sol,
começou por pentear-se, desfez, tornando a fazer as
tranças, deu-lhe duas voltas, fazendo um “carrapito”, os
dedos das suas mãos, já estão um pouco tortos, é dos
calos, tem que falar com a Nazaré, que trabalha na
“fábrica das peles”, para lhe trazer umas luvas, pois ela,
trabalha na “fábrica dos colchões”, ganha mais que as
outras, compete com os homens, trabalha à peça, monta
o esqueleto dos colchões, encaixa as molas, “tudo a
pulso”, ali, em frente ao “boss”, que é o seu chefe, mas é
“cheap”, pois não lhe dá, lá muito “overtime”.
Ali sentada, entretem-se a falar com a Ermelinda, está um
pouco enjoada, pois comeu uns chocolates que a Alzira
lhe trouxe, aquela das “ilhas”, que trabalha na “fábrica dos
chocolates”, parece que lhe “caíram” mal, vai remendando
umas meias do seu Manuel, até nem precisava, pois tem
mais três pares, que lhe trouxe a Manuela, aquela
rapariga alta, que tem cara de homem, pois dizem que
corta o bigode, que trabalha na “fábrica das meias”, mas
está a guardá-las para levar para Portugal, quando lá for,
por altura das vindimas, pois a sua casa, que ela diz a
todos que é uma pequena “mansão”, lá em Portugal,
precisa de ser aberta e arejada e, talvez necessite de
pintura, pois à beira do mar, o vento e a chuva, às vezes
traz sal”.
E continuando, diz:
Porra, Caral.., que já me espetei na agulha, Santíssima
Nossa Senhora de Fátima me perdoe que hoje é
“Sunday”, (Domingo), e estou a dizer asneiras, já me
esquecia, lembra-me por favor, o meu Manuel tem que
chamar o Eurico, aquele da Agência, que fala muito bem
inglês, para ir com ele terça-feira ao aeroporto, para “grab”
(agarrar) o José Maricas, que foi a Portugal, creio que lhe
morreu um irmão, pois ele não sabe o caminho e, já
agora, tu sabes se a Filomena, aquela solteirona, que
anda “in love” (apaixonada) com aquele “bonitinho”, que
anda a estudar, que trabalha em “part-time” (meio
tempo) na farmácia, ainda trabalha na fábrica da “meat”
(carne), em Jersey City, queria ver se ela ”bring” (trazer)
umas chouriças italianas, o meu Manuel “like” (gosta
muito) fod.-.., caral.. que já me espetei outra vez, olha,
precisamos de uma panela maior para cozinhar as
batatas, couves e a carne de porco salgada, tu sabes,
caldo e conduto ao mesmo tempo, para todos nós, vamos
falar com a Isaura, aquela que trabalha na “fábrica das
cafeteiras”, para ver se nos arranja uma, das grandes, o
meu Manuel já tem quase cinquenta garrafões vazios,
daquele vinho da Califórnia “Paisano”, que parece
português, para “send” (mandar) para Portugal, quando
houver lugar no Contendor da agência do Eurico, que sai
do porto de Newark, pelo menos quatro vezes ao ano, tu
sabes que o Orlando da mercearia, na Ferry Street, já não
põe as coisas em “vegas” (cartuchos) de papel, que eram
tão jeitosas, eu até andava a guardá-las para levar para
Portugal, agora usa “vegas” de plástico, aquela merda
rompe-se toda.
Voltando aos dias de hoje, esta linguagem era corrente e
comum, as ditas “asneiras” eram normais, o bairro do
Ironbound é um bairro onde o idioma inglês é pouco
ouvido, sendo superado pelo idioma português, com
palavras em inglês pelo meio, ou mesmo espanhol,
tornando-se num bairro famoso, chegando a ser
considerado uma das maiores concentrações de
portugueses, fora de Portugal, aqui existia tudo o
necessário para se poder viver, falava-se, e ainda se fala
em alguns lugares, português com sotaque do Minho ao
Algarve, com algumas palavras de inglês pelo meio, nos
restaurantes, bares, casas de mercearia, alfaiatarias,
sapatarias, peixarias, galinheiros, padarias, lojas de fruta,
farmácias, lojas de ferramentas, consultórios de doutores,
dentistas ou advogados, hospital local e agências de
viajem. Construiu-se uma igreja, ao domingo havia e
continua a haver, missa em português, oficinas mecânicas
e venda de carros e, muito mais, em algumas ruas, em
alguns estabelecimentos, onde só viviam portugueses
havia letreiros, dizendo:
“WE SPEACK ENGLISH”.
Pois às vezes, também por lá passava uma pessoa de
origem americana.
Tony Borie, Dezembro de 2015.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 29 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15422: Libertando-me (Tony Borié) (45): Antes éramos cowboys
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
4 comentários:
Ora bem!
Um "litle Portugal".... pelas notícias que por cá vão aparecendo, principalmente quando há deslocações de equipas de futebol, tudo indica que essas características se vão mantendo.
E, parece, criando raízes em luso-descendentes, mesmo os que se encontram melhor integrados na comunidade americana.
Obrigado Tony, por essas pinceladas da portugalidade.
Abraço
Hélder S.
Viva a diáspora lusitana no país do Tio Sam!... Tony, I want yoou!
É pena, Tony, que outros camaradas, lusitanos da melhor estirpe como tu, não conheçam, o nosso blogue e não cheguem até nós... Precisamos de alimentar a nossa memória.... Tu tens sido um grã-tabanqueiro, profícuo, genial, formidável!... Mas também seria bom que descobrisses outros "tonis" para o blogue, camaradas que tenham estado na Guiné, e que tenham fotos e outras memórias para partilhar connosco...
Bolas, camaradas do outro lado do Atlântico, já não nos resta muito tempo... de antena!
Xi-Coração verde e rubro para ti e demais "tugas" da América!... Luís
Olá companheiros
Obrigado pelos comentários.
O Hélder, sempre acompanha, não importa o motivo, compreende e ajuda, ajuda mesmo bastante, dando o seu parecer com conhecimento, parece até que foi emigrante, que esteve fora desse bonito Portugal, é um pouco a voz dos nossos companheiros que não podem, ou por qualquer outro motivo, não se querem expor a comentar, quando os assuntos não são referentes à guerra que lá vivemos.
Ao Luís, não é todos os dias que se recebe um elogio do nosso comandante, parece que fui louvado na "parada lá do aquartelamento", em Mansoa City, com o Curvas, alto e refilão, a mandar calar os companheiros do pelotão de morteiros!.
Luís, o meu contributo, deve muito à dedicação do Carlos Vinhal, que me corrige, pois a minha gramática é da "quarta classe", quando me pedem, também dou o contributo a algumas publicações aqui e, com respeito a outros companheiros, existem alguns, mas não se querem expor, não sabem nada de computadores ou têm outras tarefas.
Qualquer destes dias, sem dar-mos por nada, vão aparecer e contribuir com as suas histórias!.
Amanhã ou depois vou para o norte, ver a família, é Natal e, já agora Boas Festas para todos os companheiros!.
Um abraço do tamanho do Atlântico,
Tony Borie.
Grande abraço, caro Tony!
Manuel Joaquim
Enviar um comentário