domingo, 6 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15451: Libertando-me (Tony Borié) (46): O Bairro de Ironbound, Newark, N.J. - USA

Quadragésimo sexto episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 18 de Novembro de 2015.




“We Speak English”

Cada País tem o seu idioma oficial, todavia em alguns, praticam-se diversos, mas, por vezes, pelo menos por aqui, tirando a normal conversação entre pessoas que se querem compreender, pelo menos nós emigrantes, ao ouvir esta frase, vinda da boca de algumas personagens em certas ocasiões, mostra um pouco de, “arrogância”, “xenofobismo”, “querer ser mais”, “mostrar que a pessoa com quem se fala, não tem suficiente educação escolar”, ou única e simplesmente, “querer mostrar-se”.

Nas novas gerações, em qualquer País, é normal falar inglês e, claro, sem o perceberem, estão a esquecer o idioma da sua Pátria, todavia, não é o caso dos emigrantes que viveram ou ainda vivem no Bairro do Ironbound, na histórica cidade de Newark, do lado de lá do rio Hudson, no estado de Nova Jersey.

Muito antiga, fundada no ano de 1666, a cidade de Newark é a cidade com mais habitantes no estado de Nova Jersey e, dada a sua localização, é uma das principais cidades da região metropolitana de Nova Iorque, além de centro comercial, industrial e financeiro, que é a Baía do Rio Passaic que abriga um dos maiores portos de mar, inaugurado no ano de 1831, onde chegava o carvão das minas do estado de Pensylvania para sustentar as unidades fabris da região. Também aqui está localizado o segundo principal aeroporto que é o conhecido mundialmente, o Aeroporto Internacional de Newark, que movimenta quase 30 milhões de passageiros anualmente.

Mas hoje companheiros, não estamos aqui para falar das potencialidades da cidade, mas sim de nós, portugueses, emigrantes do século passado, onde quase todas as conversações entre nós era, trabalho, trabalho e quase só trabalho, onde a palavra “yes”, (sim), ou “overtime”, que neste caso, quer dizer mais ou menos “horas extrordinárias”, era sempre uma das primeiras que se aprendia.

Portanto, cá vai.

Existe por aqui o tal bairro operário chamado Ironbound, mais conhecido pelo bairro português, no qual existe grande concentração de portugueses, onde a principal rua é a Ferry Street, cujo segundo nome é “Portugal Avenue”, ou seja Avenida de Portugal.


À medida que os emigrantes Portugueses foram chegando à cidade, atraídos pela concentração de indústria que existia na altura, principalmente no tal bairro do Ironbound, que quer dizer mais ou menos “rodeado de ferro”, com intensa actividade comercial e industrial, cercado de linhas férreas, era um lugar muito atractivo, para quem tinha desejos de trabalhar, onde estes homens e mulheres, de descendência portuguesa, com a sua força física e dedicação, por vezes destruindo a sua própria saúde, compensavam a falta de educação escolar.

As raízes portuguesas na área são profundas, com os primeiros emigrantes, talvez chegados na década de 1910, mas o grande afluxo de portugueses veio na década de sessenta e setenta do século passado, porque hoje, a emigração de Portugal é praticamente inexistente, mas o idioma português mantém-se estável e, se voltássemos àquelas décadas do século passado, podíamos ver e ouvir, em qualquer rua do bairro do Ironbound, este cenário:
“...a Gracinda, casada com o Manuel Murtosa, que é encarregado de uma “gang” de construção de valas para esgoto, homem robusto e respeitado, até tem “pic-up” da companhia, onde todos os dias, por volta das quatro ou cinco horas da manhã, pois o trabalho é longe, lá para os lados de Riverville, transporta os outros cinco companheiros do seu grupo. Hoje é domingo, eles, os homens, estão para a “Ferry Street”, foram ouvir o relato e beber uns copos, ela, a Gracinda, neste momento de domingo à tarde, está sentada nas escadas de entrada do edifício onde residem, num compartimento de cave, que repartem com a Ermelinda e o João de Verdemilho, anda sempre vestida de preto, gosta desta cor, às vezes, quando vai à missa, até põe qualquer coisa de outra cor, especialmente uma blusa branca, que uma vizinha lhe trouxe da “fábrica da costura”, onde trabalha, está sol, começou por pentear-se, desfez, tornando a fazer as tranças, deu-lhe duas voltas, fazendo um “carrapito”, os dedos das suas mãos, já estão um pouco tortos, é dos calos, tem que falar com a Nazaré, que trabalha na “fábrica das peles”, para lhe trazer umas luvas, pois ela, trabalha na “fábrica dos colchões”, ganha mais que as outras, compete com os homens, trabalha à peça, monta o esqueleto dos colchões, encaixa as molas, “tudo a pulso”, ali, em frente ao “boss”, que é o seu chefe, mas é “cheap”, pois não lhe dá, lá muito “overtime”.
Ali sentada, entretem-se a falar com a Ermelinda, está um pouco enjoada, pois comeu uns chocolates que a Alzira lhe trouxe, aquela das “ilhas”, que trabalha na “fábrica dos chocolates”, parece que lhe “caíram” mal, vai remendando umas meias do seu Manuel, até nem precisava, pois tem mais três pares, que lhe trouxe a Manuela, aquela rapariga alta, que tem cara de homem, pois dizem que corta o bigode, que trabalha na “fábrica das meias”, mas está a guardá-las para levar para Portugal, quando lá for, por altura das vindimas, pois a sua casa, que ela diz a todos que é uma pequena “mansão”, lá em Portugal, precisa de ser aberta e arejada e, talvez necessite de pintura, pois à beira do mar, o vento e a chuva, às vezes traz sal”.

E continuando, diz: Porra, Caral.., que já me espetei na agulha, Santíssima Nossa Senhora de Fátima me perdoe que hoje é “Sunday”, (Domingo), e estou a dizer asneiras, já me esquecia, lembra-me por favor, o meu Manuel tem que chamar o Eurico, aquele da Agência, que fala muito bem inglês, para ir com ele terça-feira ao aeroporto, para “grab” (agarrar) o José Maricas, que foi a Portugal, creio que lhe morreu um irmão, pois ele não sabe o caminho e, já agora, tu sabes se a Filomena, aquela solteirona, que anda “in love” (apaixonada) com aquele “bonitinho”, que anda a estudar, que trabalha em “part-time” (meio tempo) na farmácia, ainda trabalha na fábrica da “meat” (carne), em Jersey City, queria ver se ela ”bring” (trazer) umas chouriças italianas, o meu Manuel “like” (gosta muito) fod.-.., caral.. que já me espetei outra vez, olha, precisamos de uma panela maior para cozinhar as batatas, couves e a carne de porco salgada, tu sabes, caldo e conduto ao mesmo tempo, para todos nós, vamos falar com a Isaura, aquela que trabalha na “fábrica das cafeteiras”, para ver se nos arranja uma, das grandes, o meu Manuel já tem quase cinquenta garrafões vazios, daquele vinho da Califórnia “Paisano”, que parece português, para “send” (mandar) para Portugal, quando houver lugar no Contendor da agência do Eurico, que sai do porto de Newark, pelo menos quatro vezes ao ano, tu sabes que o Orlando da mercearia, na Ferry Street, já não põe as coisas em “vegas” (cartuchos) de papel, que eram tão jeitosas, eu até andava a guardá-las para levar para Portugal, agora usa “vegas” de plástico, aquela merda rompe-se toda.

Voltando aos dias de hoje, esta linguagem era corrente e comum, as ditas “asneiras” eram normais, o bairro do Ironbound é um bairro onde o idioma inglês é pouco ouvido, sendo superado pelo idioma português, com palavras em inglês pelo meio, ou mesmo espanhol, tornando-se num bairro famoso, chegando a ser considerado uma das maiores concentrações de portugueses, fora de Portugal, aqui existia tudo o necessário para se poder viver, falava-se, e ainda se fala em alguns lugares, português com sotaque do Minho ao Algarve, com algumas palavras de inglês pelo meio, nos restaurantes, bares, casas de mercearia, alfaiatarias, sapatarias, peixarias, galinheiros, padarias, lojas de fruta, farmácias, lojas de ferramentas, consultórios de doutores, dentistas ou advogados, hospital local e agências de viajem. Construiu-se uma igreja, ao domingo havia e continua a haver, missa em português, oficinas mecânicas e venda de carros e, muito mais, em algumas ruas, em alguns estabelecimentos, onde só viviam portugueses havia letreiros, dizendo: “WE SPEACK ENGLISH”.

Pois às vezes, também por lá passava uma pessoa de origem americana.

Tony Borie, Dezembro de 2015.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 29 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15422: Libertando-me (Tony Borié) (45): Antes éramos cowboys

4 comentários:

Hélder Valério disse...

Ora bem!

Um "litle Portugal".... pelas notícias que por cá vão aparecendo, principalmente quando há deslocações de equipas de futebol, tudo indica que essas características se vão mantendo.
E, parece, criando raízes em luso-descendentes, mesmo os que se encontram melhor integrados na comunidade americana.

Obrigado Tony, por essas pinceladas da portugalidade.

Abraço
Hélder S.

Luís Graça disse...

Viva a diáspora lusitana no país do Tio Sam!... Tony, I want yoou!

É pena, Tony, que outros camaradas, lusitanos da melhor estirpe como tu, não conheçam, o nosso blogue e não cheguem até nós... Precisamos de alimentar a nossa memória.... Tu tens sido um grã-tabanqueiro, profícuo, genial, formidável!... Mas também seria bom que descobrisses outros "tonis" para o blogue, camaradas que tenham estado na Guiné, e que tenham fotos e outras memórias para partilhar connosco...

Bolas, camaradas do outro lado do Atlântico, já não nos resta muito tempo... de antena!

Xi-Coração verde e rubro para ti e demais "tugas" da América!... Luís

Tony Borie disse...

Olá companheiros
Obrigado pelos comentários.
O Hélder, sempre acompanha, não importa o motivo, compreende e ajuda, ajuda mesmo bastante, dando o seu parecer com conhecimento, parece até que foi emigrante, que esteve fora desse bonito Portugal, é um pouco a voz dos nossos companheiros que não podem, ou por qualquer outro motivo, não se querem expor a comentar, quando os assuntos não são referentes à guerra que lá vivemos.
Ao Luís, não é todos os dias que se recebe um elogio do nosso comandante, parece que fui louvado na "parada lá do aquartelamento", em Mansoa City, com o Curvas, alto e refilão, a mandar calar os companheiros do pelotão de morteiros!.
Luís, o meu contributo, deve muito à dedicação do Carlos Vinhal, que me corrige, pois a minha gramática é da "quarta classe", quando me pedem, também dou o contributo a algumas publicações aqui e, com respeito a outros companheiros, existem alguns, mas não se querem expor, não sabem nada de computadores ou têm outras tarefas.
Qualquer destes dias, sem dar-mos por nada, vão aparecer e contribuir com as suas histórias!.
Amanhã ou depois vou para o norte, ver a família, é Natal e, já agora Boas Festas para todos os companheiros!.
Um abraço do tamanho do Atlântico,
Tony Borie.

Bispo1419 disse...

Grande abraço, caro Tony!

Manuel Joaquim