Brunhoso - Com a devida vénia

Brunhoso há 50 anos
2 - As Autoridades (Continuação)
Tanto o padre como a professora, não sendo autoridades civis, tinham um poder inegável sobre a formação e o comportamento espiritual e cívico da população. Por esses motivos eram muito respeitados e temidos pela população.
A professora, natural da aldeia, pertencia a uma das famílias mais ricas da terra. Família muito religiosa que ajudava muito o padre, de quem até me parece que seriam parentes, no arranjo da igreja e nas cerimonias religiosas. Cultivavam um distanciamento conveniente e higiénico com a generalidade da população, sobretudo com os mais humildes.
Por caridade cristã, penso eu, davam algumas esmolas aos mais pobres e também reprimendas à mistura. Eram honestos e rigorosos no cumprimento das suas obrigações para com os outros, mesmo quando mais tarde, com a crise provocada pela emigração dos anos sessenta, alguns foram forçados a vender muitos bens.
Com a educação familiar que recebeu e com a formação que lhe deu o antigo regime, a professora tinha que ser autoritária, até um pouco despótica. Era boa professora no sentido do esforço e do trabalho a que não se poupava mas usava todos os meios de coação física, desde palmatoadas, bofetadas, puxões de orelhas e vara.
Os antigos alunos dela, da minha idade, mais velhos e outros mais novos, depois de tantos anos passados, dividem-se no seu julgamento, alguns ainda não esqueceram os maus tratos excessivos e o orgulho pelo cargo que desempenhava e pela família donde provinha, outros agradecem-lhe o esforço feito, apesar dos castigos severos.
O padre Zé merece um tratamento com nome, pois a sua fama perdurará mais do que a dos outros, pela sua bondade, pelo trato cordial que tinha com todos, pelas dádivas desinteressadas que diariamente fazia, pelas famosas zangas que tinha por vezes com o seu rebanho que se queria desviar dos caminhos de Deus.
Sendo filho de famílias ricas de uma aldeia próxima, com bastantes bens também em Brunhoso, manteve o pagamento da côngrua, segundo afirmava, apenas para que o povo não perdesse esse hábito, quando ele fosse substituído por morte ou outro motivo. Todos os ofícios religiosos, batizados, casamentos, funerais etc. eram grátis. Os mais desfavorecidos não pagavam a côngrua indo para ele um ou dos dias à apanha da amêndoa ou da azeitona para a terra dele, que distaria da nossa aldeia cerca de oito quilómetros.
Todos os anos iam também os lavradores com carros de vacas e outros trabalhadores, buscar lenha a essa aldeia para o seu aquecimento e da casa durante o ano. Recordo-me que estas tarefas entusiasmavam muito os meus conterrâneos porque o padre Zé, além de ser muito jovial, também os tratava bem, com vinho à farta, presunto, queijo e outros petiscos. Fumava muito e tinha o hábito de oferecer cigarros a uns e a outros, fumadores ou não fumadores. Os responsos que recebia nas missas por alma dos mortos distribuía-os pelos rapazes que o fossem a ajudar na celebração. Eu fui muitas vezes na esperança, nunca defraudada, de receber um escudo ou dois. Tínhamos que aprender todo aquele latinório e ajudá-lo com as galhetas e a campainha.
Não havia escola para isso, íamos aprendendo com a prática, por vezes era uma confusão terrível mas o padre, com a paciência dele, lá nos ia ensinando. Do latim que lhe ouvíamos e do que lhe tínhamos de lhe responder nada compreendíamos mas o importante era chegar ao fim da missa e que houvesse muitos responsos.
Vivia numa casa grande que à escala da dimensão da freguesia e descontando exageros de vária ordem, eu comparo com o Vaticano. Quando passava à porta da casa, parecia-me que havia sempre gente perto, gente a entrar e a sair, principalmente mulheres. Tinha uma governanta e uma criada efectivas, duas ou três vizinhas e uma sobrinha da governanta que muitas vezes iam lá a ajudar. Calculo o amor e desvelo dessas senhoras, tanto a lavar como a engomar os fatos do padre Zé, as calças, o casaco, a camisa, a roupa interior, mas sobretudo a cuidar-lhe dos paramentos, numa atitude quase devota, a casula, a túnica, a estola, a dalmática, a mitra, a batina, a alva.
Durante alguns anos viveu lá também um rapaz, filho duma mulher muito pobre, que ele recolheu, ainda muito novo que tinha hábitos de muita liberdade e alguma vadiagem. Não se entendiam mal, viveu lá até à idade adulta, com todo o conforto em alojamento e alimentação, a ouvir os bons conselhos do padre Zé, que nunca conseguiu alterar-lhe o gosto pela liberdade. Não sei se era por viver junto do padre mas lembro-me que lhe deram a alcunha de "Vigário". Em adulto, saiu da aldeia para outra terra do distrito e tornou-se um homem responsável e mais calmo.
Brunhoso tinha dois oragos, S. Leão e S. Lourenço, nesse tempo a aldeia guardava feriados nos seus dias, o padre dizia a missa e não havia outras cerimonias ou festividades. O grande dia da festa anual era dedicado a Santa Bárbara, que não era padroeira nem tinha direito a dia de feriado. Santa padroeira dos artilheiros e mineiros, os lavradores procuravam também junto dela defender-se das desgraças provocadas pelas tempestades, raios e trovões.
Brunhoso - S. Lourenço
Brunhoso - Festa a Santa Bárbara 2007
Fotos: Com a devida vénia a Brunhoso - Mogadouro
De uns anos para os outros eram nomeados os mordomos que se iriam encarregar da organização das festividades. Todos os anos havia grandes zangas entre os mordomos e o padre Zé pois ele nunca queria admitir que houvesse arraial. Bem, ele arraial só com música até podia tolerar, não admitia é que ao som da música andassem rapazes e raparigas, homens e mulheres agarrados a dançar. Houve sempre este braço de ferro entre o padre e mordomos, mas embora todos lhe tivessem muito respeito e amizade, o povo, em tempos de tantas proibições, nunca quis privar os rapazes e raparigas de poderem expressar algum afecto e calor naquele abraço bailado ao som da música, que era a maior proximidade consentida entre solteiros.
Entre a sabedoria antiga das mulheres e dos homens e o puritanismo da Igreja, o Povo de Brunhoso impunha a sua vontade. O padre Zé perdia esse braço de ferro mas no ano seguinte ia tentar novamente impor a lei da Igreja, pois ele era casmurro. Voltava a perder, não se consegue impedir a corrente do rio, não se podem conter as forças da natureza.
Havia outra grande festa sobre a qual não se pronunciava, era o Entrudo, essa festa pagã tão antiga, que os homens do seu rebanho pareciam afastar-se, para passar a adorar outros deuses antigos e pagãos, mais permissivos como Dionísio e Baco, deuses loucos que não tinham as boas maneiras, nem a justiça severa, nem a promessa de salvação do Deus que ele sempre lhes procurava revelar.
Era um dia em que o padre Zé rezava para que eles voltassem de almas manchadas, mas dispostas ao arrependimento e a lavar-se no perdão que a Santa Madre Igreja garantia aos pecadores.
Nas mulheres ele confiava, como na sua mãe, que ficara tão contente quando ele foi padre, o sentimento das suas paroquianas era o mesmo da sua amada mãe, como não amar mais um homem que está tão próximo de Deus, que até pode falar com Ele. Elas não duvidavam dele, elas não queriam os deuses antigos, loucos, devassos, com todos os defeitos dos seus homens, que não lhes garantiam uma vida melhor no fim das suas vidas. O seu Deus tinha que ser o mesmo do padre Zé, o filho duma mulher, Maria, que ela criou com amor, como elas criaram os seus. As mulheres gostam de um Deus Filho, pois os filhos delas são todos deuses que elas adoram.
Já os homens, nesse tempo, não mostravam ter muita fé. Cumpriam os rituais mínimos por tradição, para não desagradar à comunidade e a um Deus desconhecido, porque não sabiam o que havia para além da morte e não lhes agradava que houvesse o silêncio e o nada. Havia ainda outra razão de carácter politico e social que os obrigava a ter alguma pratica religiosa, pelo menos ir à missa ao domingo. É que nesse tempo, todo o que fugia dessa pratica era considerado comunista, e isso era pior do que ser apelidado de ladrão ou desordeiro.
A propaganda anticomunista mais acérrima foi feita pela Igreja no tempo das cruzadas de Fátima como reação às barbaridades que os comunistas cometeram contra a Igreja quando tomaram o poder na Rússia. O antigo regime serviu-se dela para meter todos os opositores no mesmo saco e apelidá-los de comunistas pois a história dos males que tinham causado à Igreja ainda era recente. Era eu ainda menino e crente, por obediência familiar e escolar, recordo-me das novenas de Maio, à Nossa Senhora de Fátima, em que todos rezávamos pela conversão da Rússia. Quem conduzia estas cruzadas apostólicas era a professora primária, mais atenta, sensível e sintonizada com o regime e com o sofrimento da "Igreja do Silêncio", para lá das "cortinas de ferro".
Portugal, um pais tão religioso e católico, que alguns Papas proclamaram de Nação Fidelíssima, com tantas devotas e santas mulheres, somente tem uma santa, nascida e criada no país que se chama Beatriz da Silva.
Homens haverá meia dúzia ou pouco mais. Ou é Deus que não é justo ou os seus representantes no Vaticano. O padre Zé não foi um deus, foi um santo, podia ser canonizado se Portugal fosse um país mais rico e próximo do Vaticano.
Mas meus amigos e camaradas. para tudo são precisas ajudas dos vários poderes, mesmo para ser santo!
Um abraço todos!
____________
Nota do editor
Último poste da série de 10 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14342: Brunhoso há 50 anos (1): As Autoridades (Francisco Baptista)