terça-feira, 28 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25573: O Cancioneiro da Nossa Guerra (24): Os Gandembéis - Canto III, Estrofes de I a VIII (CCAÇ 2317, Gandembel, Ponte Balana e Nova Lamego, 1968/69)


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4


Foto nº 5


Foto nº 6


Foto nº 7


Foto nº 8

Foto nº 9


Foto nº 10

Guiné > Região de Tombali > Gandembel > CCAÇ 2317 (8 de abril de 1968 a 28 de janeiro de 1969) > Aspetos da brutal vida quotidianoa dos homens-toupeira, que tiveram de construir de raiz e defender, com unhas e dentes num curto espaço de tempo (inferior a nove meses), dois aquartelamentos, Gandembel e Ponte Balana, a escassos 3 km da fronteira com a Guiné-Conacri.  Total de ataques e flagelações sofridos: 372 (Fotos nºs 2 e 3).  

Não há, em todos os teatros de operações da guerra do ultramar / guerra colonial, nenhuma epopeia como esta.  Estes homens foram condenados pelo "deus da guerra" (Schulz) ao "suplício de Sísifo": uma missão completamente estúpida, suicida, absurda, inútil, reveladora do absoluto desprezo em relação à vida, ao valor e à dignidade do soldado português... 

Outro "deus da guerra" (Spínola), mais inteligente, e com visão estratégica, no mínimo sensato e  realista, e que dava valor à coragem, ao sofrimento e à lealdade dos seus homens,  percebeu que construir uma montanha na "autoestrada do Nino" (o "corredor de Guileje", o "corredor da morte", o "carrreiro do povo"...), a espinha dorsal de toda a cadeia logística do PAIGC, era provocar um braço de ferro, à partida sem vencedor à vista... Era uma questão de vida ou de morte para Nino e para os seus homens, razão por que infernalizaram a vida aos "gandembéis"...

A construção e defesa de Gandembel (e seu destacamento, em Ponte Balana) foi um sorvedouro de recursos (homens e material) e fez correr muito sangue, suor e lágrimas em 1968 ... Para quê ? Para nada!... A 28 de janeiro de 1969 as NT abandonam esta cruz da estação do calvário da Guiné. A Força Aérea irá arrasar tudo... Spínola, contrariamente ao seu antecessor, visitou pelo menos duas vezes os "gandembéis"...  Isto diz muito sobre a qualidade da liderança dos dois generais.

Embora a engenharia militar tenha fornecido algumas estruturas para a construção dos abrigos (Fotos nºs 5, 6 e 7), estes não era à prova de morteiro 120 mm (usado pela primeira vez aqui, em agosto de 1968), nem de canhão sem recuo: eram cobertos com troncos de cibe, chapa de bidão  e terra, como na maior parte das outras duzentas e tal guarnições espalhadas pelo território (Fotos nºs 8, 9 e 10) ... E as paredes laterais não eram de "cimento armado", como em Guileje (construído pelo BENG 447)... 

Felizmente, para os "gandembéis", o PAIGC tinha  maus artilheiros, analfabetos, incapazes de usar um aparelho de pontaria ou de fazer simples cálculos... Faziam fogo a "olhómetro", de preferência tiro direto com o canhão sem recuo... Melhoraram já  em 1973 e 1974 (contra Guidaje, Guileje, Gadamael, Copá, Canquelifá...), com os cubanos e os cabo-verdianos vindos das "academias militares" da União Soviética... 

Por outro lado, o abastecimento de água era feito no rio Balana, com bidões. Tomava-se banho no rio ou em bidões (Foto nº 1). Mas a messe de oficiais era de "cinco estrelas" (Foto nº 4).

Fotos do notável álbum de Idálio Reis e seus camaradas, editadas por L.G.


Fotos (e legenda): © Idálio Reis (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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1. Continuação da publicação de "Os Gandembéis", poema épico-burlesco, parodiando "Os Lusíadas", de autoria coletiva (mas com forte contributo do poeta João Barge, 1944-2010), escrito em 1969, que retrata a epopeia da CCAÇ 2317 em Gandembel e Ponte Balana (*), recolhido e reproduzido pelo nosso camarada e amigo Idálio Reis, engenheiro agrónomo reformado, ex-alf mil at inf da CCAÇ 2317, no seu livro "A CCAÇ 2317 na guerra da Guiné: Gandembel / Ponte Balana", edição de autor, s/l, 2012 (il, 250 pp.). (O livro é ilustrado por mais de meia centena de fotos dos arquivos do Idálio Reis e dos seus camaradas.)

O lançamento do livro, uma peça fundamental para a historiografia da guerra colonial na Guiné, foi feita feito no Palace Hotel, em Monte Real, em 21 de abril de 2012 , no âmbito do VII Encontro Nacional da Tabanca Grande.




Os Gandembéis > Canto III, Estrofes de 1 a VIII


I
Estas sentenças tais o velho honrado
Dizendo estava, quando abrimos
As malas e as fizemos ao sossegado
Vento, e do quartel temido nos partimos. (15)
E, como é já na guerra costume usado
A bandeira desfraldando, o céu ferimos
Dizendo: “Boa viagem”. E logo as viaturas
Fizeram as usadas roncaduras.

II
Passámos à Formosa Aldeia
Que das muitas bajudas assim se chama;
Das que nós passamos a primeira
Mais célebre por nome que por fama,
Mas nem por ser a derradeira
Se lhe avantajam quantas o Moura ama (16).
Ali tomámos todos um bom assento
Por tomarmos das terra mantimento.

III
Por Nhala passámos, povoada
De gente amiga, que ali vivia;
E de luz total sendo privada
Mesmo assim do turra se defendia.
Novamente nos lançámos à estrada
P’ra chegar a Buba, ainda de dia,
Onde ainda a Companhia não sabe
Se irá haver descanso ou a guerra acabe.

IV
Contar-vos longamente as perigosas
Cousas da estrada, que os homens não entendem.
Súbitas emboscadas temerosas,
Morteiradas que o capim em fogo acendem,
Negros chuveiros, noites tenebrosas,
Bramidos de canhões, que o mundo fendem,
Não menos é trabalho que grande erro
Ainda que tivesse a voz de ferro.

V
Casos vi em que os rudes fuzileiros
Que têm por mestra a longa experiência
Não acreditarem casos certos e verdadeiros,
Mas julgando as cousas só pela aparência.
E os Comandos, com fama de guerrilheiros,
Só por puro engenho e por ciência
Se distinguiam quando formavam,
Porque nas armas aos demais se igualavam.

VI
Daqui fomos cortando muitos dias
Entre tormentas tristes e bonanças,
Na larga mata fazendo novas vias, (17)
Só conduzidos de árduas esperanças.
Com o turra tempo andamos em porfias
Que, como tudo nele são mudanças,
Poder nele achamos tão possante
Que passar não deixava por diante.

VII
Era maior a força em demasia
Segundo para trás nos obrigava,
Da estrada que contra nós ali se abria
Pelo poder da máquina que trabalhava.
Ó malvado Nino da porfia,
Que sempre estás onde a gente estava!
Em vão os tiros esforças iradamente
Pois nós não tememos a tua gente.

VIII
Desta parte descanso algum tomamos
E do rio fresca água, mas contudo
Nenhum sinal aqui da paz achamos
No povo, com nós outros quase mudo.
Ora vejam em que tamanha guerra andamos
Sem sair nunca deste viver rudo,
Sem vermos nunca nova nem sinal
Da nossa tão desejada terra natal.

(Revisão / fixação de texto: IR/LG)

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Notas de IR/LG:

(15) Abandono do aquartelamento de Gandembel (e do destacamento de Ponte Balana)  em 28/1/1969 e partida para Aldeia Formosa.

(16) Referência irónica ao capitão da companhia, que terá metido "baixa"

(17) Transferência para Buba, em 8/2/1969 onde a CCAÇ 2317  ficou, até 14/5/1969, a fazer segurança aos trabalhos de renovação da velha estrada Buba-Aldeia Formosa.

Lembra aqui o Zé TeixeiraZé Teixeira, da CCAÇ  2381 (Buba, Quebo. Mampatá e Empada, 1968/70, em comentário ao poste P25552 (*)

(... ) Quando fui a Gandembel pela primeira vez em meados de julho de 68, os abrigos já estavam construídos. Numa noite escura apontaram creio que onze canhões sem recuo em tiro direto a um ponto do muro em betão de um dos abrigos e conseguiram furar a parede. Em janeiro do ano seguinte fui com a minha Companhia Proteger a sua retirada. A CCaç 2317 saiu de Gandembel e foi fazer umas “férias” a Buba,  alinhando na dura missão de proteger a construção da nova estrada para Aldeia Formosa. A minha companhia alinhava na mesma tarefa. Foi duro. Uns meses que rebentaram com muita gente. A minha Companhia  chegou a estar reduzida a trinta e seis operacionais. Um Grupo de Combate." (...)



Guiné 61/74 - P25572: Convívios (999): "Bambadinquenses" de 1968/71 (CCS/BCAÇ 2852, CCAÇ 12) reuniram-se no passado dia 25, em Vila Nogueira de Azeitão


Foto nº 1A  > Sentados: Humberto Reis (CCAÇ 12), António F. Marques (CCAÇ 12), Fernando Oliveira (CCS/BCAÇ 2852), João Gonçalves Ramos (organizador) (CCAÇ 12).
De pé: José Luís de Sousa (CCAÇ 12), (?), Joaquim Fernandes (CCAÇ 12), Otacílio Luz Henriques (CCS/BCAÇ 2852), Ismael Augusto (CCS/BCAÇ 2852), Mourão Mendes (CCS/BCAÇ 2852), (?), Patronilho  (CCAÇ 12), (?)(Cond CCAÇ 12), (?), (?)(Cond  CCAÇ12)


Foto nº 1B > Sentados: Fernando Calado (CCS/BCAÇ 2852), Gabriel Gonçalves (CCAÇ 12). Silvino Carvalhal (CCS/BCAÇ 2852) (que veio de V.N. Famalicão), e o José Manuel Amaral Soares, (CCS/BCAÇ 2852)


Foto nº 1 > Foto de grupo dos "bambadinquenses"

Foto nº 2A

Foto nº 2B


Foto nº 2 > Foto de grupo ("Bambadinquenses" + familiares)


Foto nº 3 > Très ex-furrieis da CCAÇ 2590 / CCAÇ 12: José de Sousa (Funchal), António F. Marques (Cascais) e Humberto Reis (Alfragide) ... À direita, o irmão do Sousa (que vive no Continente)


Foto nº 4 > Da esquerda para a direita, o Fernando Oliveira, o Joaquim Fernandes, o José de  Sousa, o Humberto Reis, a esposa do Joaquim Fernandes, a Gina e o marido, António F Marques.

Vila Nogueira de Azeitão > 25 de maio de 2024 > 28º almoço-convívio do pessoal de Bambadinca de 1968/71 (BCAÇ 2852, CCÇ 12 e outras subunidades) > Antigos combatentes e suas famílias

Fotos gentilmente cedidas pelo Humberto Reis. tiradas por um fotógrafo da organização.  Edição e legendagem complementar:  Humberto Reis e Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)




1. Realizou-se no passado dia 25, em Vila Nogueira de Azeitão o 28º almoço-convívio do pessoal de Bambadinca de 1968/71 (BCAÇ 2852, CCÇ 12 e outras subunidades). A organização coube desta vez ao João Gonçalves Ramos (ex-sold radiotelegrafista, CCAÇ 12, 1969/71 (Contuboel e Bambadinca, jun 69/ mar 71).

O local do almoço e convívio foi o Restaurante Típico Manuela Borges, em Santo António da Charneca. O nº de particiapntes não cehgiu à meia centena, dos quais 19 antigos combatentes. Faltaram sobretudo os camaradas que vivem no Norte.

Alguns fotos, acima reproduzidas, ajudam-nos a recordar caras (e nomes) de outros tempos e de outros convívios, para quem, como eu, não pôde comparecer. Obrihgado ao Humberto Reis por ter partilhado com o nosso blogue as fotos e as legendas possíveis.

Diz.nos o Humberto Reis que os únicos "totalistas" (isto é, os que participaram nos 28 almoços-convívios, o primeiro tendo-se realizado em 1994, em Fão, Esposende), seriam agora o António F.  Marques e o Joaquim Fernabdes, ambos da CCAÇ 12.  Esperemos que para o ano o convívio seja em local nais acessível aos camaradas do Norte.
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Notas do editor:


(**) Último poste da série > 27 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25569: Convívios (998): Rescaldo do Almoço / Convívio dos combatentes, e respectivas famílias, da CCAÇ 2796 ("Os Gaviões de Gadamael"), levado a efeito no passado dia 18 de Maio de 2024, em Fátima (Cor Morais da Silva, CMDT da CCAÇ 2796)


Guiné 61/74 - P25571: Parabéns a você (2275): António Acílio Azevedo, ex-Cap Mil, CMDT da 1.ª CCAV / BCAV 8320/72 e da CCAÇ 17 (Buka e Binar, 1973/74)

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Nota do editor

Último post da série de 26 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25561: Parabéns a você (2274): Jorge Narciso, ex-1.º Cabo Especialista MMA da FAP (BA 12, Bissalanca, 1969/70)

segunda-feira, 27 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25570: Notas de leitura (1695): "Quando os Cravos Vermelhos Cruzaram o Geba", por Tony Tcheka (nome literário de António Soares Lopes Júnior); Editorial Novembro, 2022 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Novembro de 2022:

Queridos amigos,
É sempre com satisfação que vos dou conta das boas surpresas que a literatura luso-guineense oferece. Este livro de Tony Tcheka é de leitura indispensável. Como escreve Pires Laranjeira no prefácio acerca destes contos aguerridos, há na escrita de Tony Tcheka, no seu processo produtivo uma matriz que lhe foi dada por ter vivido a pré-independência e agarrado com ambas as mãos a raiz patriótica, daí estar amplamente dotado para abordar, como desassombradamente aborda os sobressaltos provocados pelo 25 de Abril em gente com convicções que eram próprias dos assimilados, gente que acabará condenada a certas formas de autismo e dissolução, desencontradas com a história, inadaptados e rejeitados. Uma belíssima escrita, um tratamento delicado para um mundo de espectros bem incómodos para a história das primeiras décadas da Guiné-Bissau independente.

Um abraço do
Mário



Tony Tcheka, um corajoso denunciador de segredos e mentiras (2)

Mário Beja Santos

A obra intitula-se "Quando os Cravos Vermelhos Cruzaram o Geba", o seu autor é o jornalista e escritor Tony Tcheka (nome literário de António Soares Lopes Júnior), nascido em Bissau em 1951, Editorial Novembro, 2022. É muito mais do que uma surpresa literária, ficamos assombrados com a ousadia deste guineense que rompe com mitos, palavras de ordem e dogmas de fé em que a política bissau-guineense é exuberante. 

Como escreve Pires Laranjeira no prefácio, “Trata-se de um livro corajoso, com seus contos estéticos, contos-ensaios, contos-testemunhos, contos-de-casos sociológicos – e – ontológicos, para ler de um fôlego e entrar numa área da vida guineense que a literatura nunca tocou, a dos guineenses que assumiam identidade portuguesa e dela não queriam abdicar, mesmo mergulhados em grandes infortúnios. Com conhecimento, compreensão e ternura contando a amargura de destinos malparados. Em última instância, todo o livro aborda o Estado-Nação formado por competências antigas e modernas, herdadas das colonizações (dos impérios antigos do oeste africano e do oeste europeu) e da revolução independentista, em que o valor consuetudinário continua a ter muita força e a revigorar na terra branku".

Se o conto "Pekadur di Sambasabi" é arrepiante por nos revelar uma história de ódio, de abominável ajuste de contas e expor com total evidência que não houve vontade em criar uma atmosfera de reconciliação entre a força independentista dominante e aqueles que tinham servido a causa portuguesa (como se contou no texto anterior), vamos agora conhecer outra dimensão, discretamente ocultada, em torno daqueles que acreditavam estar a prestar serviço do lado justo, como se comportaram depois da independência. Tony Tcheka assombra-nos com descrições de tal modo verosímeis de degradação e aniquilamento, que nos deixa amargor pela descoberta, ou confirmação, de que muita gente, nascida ou não na Guiné, pagou bem caro pelo desprezo a que foram votados ou pela atmosfera de indiferença e humilhação a que foram sujeitos depois da independência.

Primeiro, o conto "Manito, O Patriota". Estamos em abril de 1974, Manito Ribeirinho, cidadão temido na cidade e arredores pela sua dureza de trato, teve sono agitado, e pela rádio chegam-lhe notícias indesejáveis, há reboliço em Lisboa, o escritor socorre-se de uma imagem onomatopeica: “Uma forte trovoada em tempo seco estoirando na sua cabeça”

O inacreditável aconteceu, mas à sua volta tudo parece seguir na normalidade. É um homem que acredita num Portugal uno e indivisível, é adjunto do subchefe da terceira secção postal, nado e criado naquela terra (filho legítimo do gã-Ribeirinho de Cacheu). Confuso e desfeiteado, depois de lançar reprimendas a quem trabalha lá em casa põe-se a caminho, foi até à central telefónica dos CTT para telefonar ao sr. Administrador do concelho, não está, recomendam-lhe que fuja enquanto puder. Nem sossegou com o telefonema ao sr. Inspetor da PIDE, encontra a cidade em ebulição, para seu pavor a cidade de Bissau fervilhava de euforia, a PIDE em silêncio. 

E enquanto Lisboa e Bissau preparam a independência da Guiné o casal Ribeirinho desembarcou em Lisboa. Vai começar uma via sacra, começa a beber uma pinga a mais, a família desintegra-se, “ao ponto de o genro chamar o sogro de catingoso”. Ribas, ou o Manito Ribeirinho, e a sua mulher, vão viver para a Quinta dos Mochos, isolam-se, os amigos de outras eras fecham-lhes a porta. É a descrição de um espectro, entre as recordações do salazarismo e os estímulos do álcool, é um fantasma do passado, um inadequado, anda para ali perdido, tem momentos de levitação patriótica.

Inevitavelmente, será engolido pelo alheamento, restam-lhe sombras e solidão.

Outro conto bem pungente é "Camarada, Melhor Amanhã". Tudo acontece num prédio bem situado no centro da cidade de Bissau, vive-se nos tempos de uma Guiné-Melhor, depois deu-se o recrudescer da guerra que provocou a debandada de muitas famílias metropolitanas e algumas guineenses, as de maior posse, o prédio conhece um novo quadro de mobilidade social, surgem tensões, “as desavenças só terminaram quando os novos passaram à situação de maioria, impondo as suas normas aos poucos sobreviventes da mudança. E de premeio também chegou a independência”

Vamos conhecer outro espectro, Epuíno Ermelindo Mendonça, um entusiasta confesso da Guiné-Melhor, expedito a datilografar, tratando todo aquele maquinismo com desvelo, é um homem marcado pela religião e pela tradição, Tony Tcheka, em admirável arquitetura da escrita, dá-nos conta do definhamento, aos poucos vão desaparecendo as joias, os bibelots, ficaram as fotografias, as lembranças de almoçaradas e jantaradas. 

Resta a Epuíno a cadeira antiga de balouçar, estrategicamente colocada na varanda do sobrado. Recusou sempre as propostas de trabalho na antiga metrópole, lá se foi adaptando aos novos tempos da independência, ele pertencera ao pessoal civil da manutenção militar, procurou desenrascar-se, trabalhou na câmara municipal, revoltou-se quando passaram a tratá-lo por camarada, foi depois trabalhar na área das pescas, foi uma época feliz: 

“Todas as semanas, caixas e caixas de peixe, moluscos e crustáceos, davam entrada na casa dos Mendonça. A vida estava a mudar. O camarada inspetor partiu para Portugal beneficiando de um estágio.”

Aqui permaneceu um ano e quatro meses e desembarcou em Bissau rigorosamente uniformizado, com crachá ao peito: “Camarada Comandante Inspetor Geral”

A seguir deu-se o grotesco e o burlesco, meteu-se numa lancha patrulha, foi tudo enjoos e vómitos. Morre a mulher, a espinha dorsal da casa, os filhos vão partindo para outros rumos, desapareceram os desempregados, veio a reforma, ainda procurou socorrer-se de expedientes, biscates, era insuportável viver com uma reforma de miséria: 

“Passou a ser visto na zona do Registo Civil e dos tribunais de Comarca de Bissau, sempre munido da sua maquineta. Safava alguns casos, aconselhava procedimentos, escrevia cartas, preenchia documentos e com isto, no final do dia, recolhia algum dinheirito.” 

Ainda escreveu cartas de amor para um comandante militar, plagiou Camões e Florbela Espanca, escreveu que havia neve na Guiné, tudo acabou bem para os arrulhados, menos para Epuíno que nem para o casamento foi convidado.

Foi vendendo o que restava lá em casa, ficou reduzido ao indispensável, acabou por vender a máquina de escrever e o final desta dolorosa trama é pungente que se farta:

“Ao não entrar mais em casa, a maquineta parece ter levado a alma do seu dono. Entristeceu-se mais. Dobrou-se. Não voltou a descer os degraus do sobrado. Confinou-se a um cantinho da varanda que alternava com a cama de lençóis sebentos já sem cor. E o último a sair foi o camarada Melhor Amanhã. Antes do suspiro final, ainda se queixou da dor da ingratidão no coração magoado ruidoso – a sua maior doença, aquela que lhe apertava o peito e secava a alma. Numa das últimas visitas do médico que foi seu colega no liceu Honório Barreto, antes de ingressar nas fileiras dos nacionalistas e ser enviado para a URSS estudar medicina, e à pergunta sobre o que lhe doía, respondeu secamente: A vida. Hoje é a vida que mais me dói.”

Fora deste contexto de dolorosas mudanças que revelaram a incapacidade de reconciliação guineense e a transformação de gente em espectros, devido a complexidades da inadaptação, Tony Tcheka aborda no seu último conto algo que tem a ver com o peso da tradição em duro confronto com este novo mundo de direitos humanos: a excisão genital feminina, que aqui se reportará no termo da leitura desta admirável obra.

Bissau-Velho na atualidade
O centro de Bissau no tempo colonial

(continua)
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Notas do editor:

Vd. post anterior de 20 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25543: Notas de leitura (1693): "Quando os Cravos Vermelhos Cruzaram o Geba", por Tony Tcheka (nome literário de António Soares Lopes Júnior); Editorial Novembro, 2022 (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 24 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25558: Notas de leitura (1694): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1853 a 1854) (4) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25569: Convívios (998): Rescaldo do Almoço / Convívio dos combatentes, e respectivas famílias, da CCAÇ 2796 ("Os Gaviões de Gadamael"), levado a efeito no passado dia 18 de Maio de 2024, em Fátima (Cor Morais da Silva, CMDT da CCAÇ 2796)

Foto de família dos combatentes da CCAÇ 2796 presentes no Almoço/Convívio de 2024

1. Mensagem do nosso camarada, Coronel Art Ref, António Carlos Morais da Silva (ex-Instrutor da 1.ª CCmds Africanos em Fá Mandinga; Adjunto do COP 6 em Mansabá e Comandante da CCAÇ 2796 em Gadamael, 1970 e 1972), com data de 21 de Maio de 2024, com a foto de família relativa ao Convívio da sua Unidade:

Caro Vinhal

Anexo foto do almoço anual da CCaç Ind 2796 – "Gaviões de Gadamael" no passado dia 18 de Maio.

Presentes 41 militares que acompanhados de familiares permitiram reunir à mesa o total de 97 convivas mais 2 bebés.

Reencontro de camaradas com amizade forjada nas terras da Guiné no período 70-72.

Abraço cordial e o desejo de muita saúde
Morais da Silva
Cap cmdt da CCaç 2796

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Nota do editor

Último post da série de 22 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25550: Convívios (997): Rescaldo do Almoço / Convívio dos combatentes, e respectivas famílias, da CCAÇ 2796 ("Os Gaviões de Gadamael"), levado a efeito no passado dia 18 de Maio de 2024, em Fátima (Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf)

Guiné 61/74 - P25568: Facebook...ando (58): "Os Bravos da Freguesia: Vidas Roubadas": homenagem da junta de freguesia de Figueira dos Cavaleiros, concelho de Ferreira do Alentejo, aos seus antigos combatentes - II (e última) Parte: Vídeo (51' 40''



"Os Bravos da Freguesia: Vidas Roubadas", Vídeo: 51' 40'' (Alojado na página do Facebook de Juvenália Salgado: ideia de Juvenália Salgado, produção da Junta de Freguesia de Figueira de Cavaleiros; disponível também no  You Tube / Conta de Juvenália Isabel Guerreiro Salgado (Reproduzido com a devida vénia...)




Cartaz da homenagem


1. Interessante vídeo com testemunhos de diversos antigos combatentes da freguesia de Figueira dos Cavaleiros, que falam da sua experência de vida, antes, durante e depois da sua participação na guerra do ultramar / guerra colonial. Entre eles, figura o nosso tabanqueiro Jacinto Cristina (*), de 74 anos. 


O vídeo foi apresentado, no passado dia 21 de abril, na junta de freguesia de Figueita dos Cavaleiros, no âmbito das Comemorações dos 50 Anos do 25 de Abril.

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 27 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25567: Facebook...ando (57): "Os Bravos da Freguesia: Vidas Roubadas": homenagem da junta de freguesia de Figueira dos Cavaleiros, concelho de Ferreira do Alentejo, aos seus antigos combatentes - Parte I: Fotos

Guiné 61/74 - P25567: Facebook...ando (57): "Os Bravos da Freguesia: Vidas Roubadas": homenagem da junta de freguesia de Figueira dos Cavaleiros, concelho de Ferreira do Alentejo, aos seus antigos combatentes - Parte I: Fotos


Foto nº 1

Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4


Foto nº 5


Foto nº 6


Foto nº 7


Foto no 8

Ferreira do Alentejo > Figueira de Cavaleiros > 21 de abril de 2024 > Hmenagem da junta de freguesia aos seus antigos combatentes. Foi também feito um vídeo com histórias de vida ("Os bravos da freguesia: vidas roubadas") (51' 40''). 

O Jacinto Cristina aparece nestas fotos (nºs 5, 6, 7 e 8)  com óculos escuros e camisola com losangos às cores. Na primeira foto de cima (nº 1), a de grupo, aparece em primeiro plano a presidente da junta de freguesia, a dra. Juvenália Salgado, técnica superior de serviço social.

Na foto nº 4, surge na parede, no lado direito, a imagem do 1º cabo at cav Casemiro Manuel Mestre Caneiras, que esteve no TO da Guiné, em 1971/73. (Desconhece-se a unidade ou subunidade a que pertendeu.)

Do concelho de Ferreira do Alentejo, morreram 10 camaradas nossos (4 na Guiné, 3 em Angola e 3 em Moçambique). O único morto da freguesia de Figueira dos Cavaleiros foi o Elisário Brandão Penedo (em combate, em Moçambique, em 1967) (Fonte: Portal UTW  - Dos Veteranos da Guerra do UltramaPortal UTW  - Dos Veteranos da Guerra do Ultramar).

Fotos: Facebook da Junta de Freguesia de Figueira de Cavaleiros (2024) e Facebook de Jacinto Cristina (2024) (com a devida vénia...) 



Ferreira do Alentejo > Figueira de Cavaleiros > 25 de abril de 2024 > Fotograma do vídeo (51' 40'')

Os Bravos da Freguesia: Vidas Roubadas"  (Alojado na página do Facebook de Juvenália SalgadoJuvenália Salgado: ideia de Juvenália Salgado, produção da Junta de Freguesia de Figueira de Cavaleiros) (Disponível no poste a seguir, P25568)


1. Nos 50 anos do 25 de Abril e do fim da guerra do ultramar / guerra colonial, há autarquias que se lembram de nós, antigos combatentes. E ainda bem, mesmo que nalguns casos, tinha sido tarde e a más horas, quando muita gente já morreu. Independemente disso, as nossas palmas vão hoje para a Freguesia de Figueira dos  Cavaleiros, concelho de Ferreira do Alentejo.  E, claro, para o nosso tabanqueiro Jacinto Cristina, o mais famoso padeiro da Guiné, o padeiro da Ponte Caium, no setor de Piche. (Através dele, homenageamos também os demais camaradas da freguesia, que passaram pelo ultramar, e nomeadamente Angola, Guiné e Moçambique)



Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Setor de Piche > CCAÇ 3546 (1972/74) > Destacamento da Ponte de Caium, guarnecido pelo 3º grupo de combate, "Os fantasmas do leste". Na foto, o o nosso amigo e camaradas soldado at inf Jacinto Cristina, municiador do morteiro 81, que as circunstâncias obrigaram a tornar-se padeiro... Foi aqui, de resto,  que ele aprendeu a arte, tentando pôr em prática o que via fazer à sua mãe quando amassava e coaiz o pão em forno de lenha.

Foi mobilizado para a Guiné, já casado e pai de um filha pequena. Colocado no leste, no subsetor de Piche, foi um "sem-abrigo", viveu um ano e tal em cima do tabuleiro da ponte do rio  Caium, com a G3 a seu lado e o morteiro 81 (deque era municiador(... 

É membro da nossa Tabanca Grande desde 24/9/2010, tem 45  referências no nosso blogue.  Natural de Figueira de Cavaleiros, concelho de Ferreira do Alentejo, vai fazer 75 anos, no  próximo dia 14 de novembro de 2024.   Viúvo, reformou-se de industrial de panificação,  aos 62 anos, em 2011, por invalidez.

Na foto acima, vê-se de costas, em tronco nu, o seu amigo e camaradas Manuel da Conceição Sobral (que vive hoje em Cercal do Alentejo, Santiago do Cacém), e era o ajudante de padeiro e o o apontador do morteiro 81.  O Jacinto Cristina, o padeiro, está a enfornar.

No destacamento da ponte de Caium (Foto nº 6) estava um grupo de combate, à época pertencente à CCAÇ 3546 (Piche, 1972/74). O Sobral e o Cristina faziam reforço das 4 às 6 da manhã. Por volta das 5h/5h30, um deles ia amassar a farinha (12 kg / dia)... O outro ficava de reforço até às 6. Depois das seis, até às 8h/8h30, ficavam os dois a trabalhar. Às 9h já havia pão fresco... 

Todos os dias coziam. Tinham um stock de farinha que dava para um mês. Faziam uma média de 30 pães de 400 gramas, por dia. Como bons tugas, os camaradas que defendiam a ponte, adoravam pão!... O resto do dia os padeiros descansavam, ou jogavam à bola, ou brincavam no rio, quando levava água... Tabanca,  só havia a 3 km dali.

O Sobral era o apontador do morteiro 81 e o Cristina o municiador. Portanto, uma parelha completa!... Depois na "padaria", trocavam de papeis...Também havia um morteiro 10,7, ao cuidado do Pinto e do Algés. O 81 ficava do lado direito, à saída da ponte, no sentido de Buruntuma. O 10,7 ficava no lado esquerdo, junto ao paiol, também no sentido de Buruntuma... Mais à frente estava o 1º cabo Torrão, apontador da HK 21 (irá morrer na emboscada de 14 de Junho de 1973, na estrada Ponte Caium - Piche). Também havia o morteiro 60 e a bazuca 8,9.

O Cristina (eu trato-oo sempre por Jacinto) tornou-se de tal maneira imprescindível (por causa do "pão nosso de cada dia") que, além de municiador (e apontador, quando necessário) do morteiro 81, ficou na ponte de Caium 14 meses!!!... (Em rigor, 13, se descontarmos o glorioso mês de férias, em abril de 1973, em que veio a casa para estar com a mulher e a filha; já não se lembra de quanto pagou pela viagem na TAP, mas foi ma fortuna para um soldado, para mais casado e pai de filha: "seis contos, para aí", diz-me ele.)

Diziam que o pão da dupla Cristina-Sobral era o melhor casqueiro da Zona Leste...  Terrível foi aquele período de um mês (entre meados de maio e junho de 1973) em que o destacamento esteve sem reabastecimentos, sem farinha, sem pão... Por que a fome era negra, meteram-se a caminho de Piche, no Unimog, a 14 de junho de 1973, tendo sofrido uma brutal emboscada (que não era para eles
) e em que morreram o 1º cabo apontador de metralhadora David Fernandes Torrão, e os soldados atiradores Carlos Alberto Graça Gonçalves ("Charlot"), Hermínio Esteves Fernandes e José Maria dos Santos...

Disse-me o Jacinto Cristina (que ficou na ponte a tomar conta do seu morteiro 81), que os corpos foram cortados em quatro, com rajadas de Kalash... O bigrupo do PAIGC (onde foram referenciados cubanos) levou cinco armas (incluindo a do furriel que foi projectado com o impacto do RPG7, juntamente com o sold cond auto Rocha, o Florimundo ).

Uns meses antes, em 19 de Fevereiro de 1973, tinha morrido o fur mil op esp Amândio de Morais Cardoso, na sequência da desmontagem de uma armadilha de caça. Essa cena passou-se debaixo dos olhos do Cristina que se salvou por um triz, ao pressentir o perigo.
 
 Foto: © Jacinto Cristina (2010). Todos Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Guiné 61/74 - P25566: Agenda cultural (855): Lisboa, Torre do Tombo, 28 de maio, 3ª feira, 18h > Apresentaçáo do livro "Tarrafal, campo de concentração: Presos políticos e sociais, 1936-54 e 1961-74" (Afredo Caldeira e João Esteves, coord.) (Edições Colibri, 2024, 444 pp)

 



Convite dos coordenadores do livro (Alfredo Caldeira e João  Esteves) e das Edições Colibri 

Sinopse: "Cinquenta anos depois do 25 de Abril e da libertação dos presos políticos em Portugal e nas ex-colónias, assinalamos o encerramento do Campo de Concentração do Tarrafal, no dia 1 de Maio de 1974. Instalado em Cabo Verde em 1936, funcionou até 1954, essencialmente destinado a presos políticos antifascistas deportados de Portugal.

Reaberto em 1961, sob a designação de Campo de Trabalho de Chão Bom, acolheu até 1974 nacionalistas de Angola, Guiné e Cabo Verde. Aí foram encarcerados, na sua maioria sem julgamento, um total de 588 homens, morrendo 36 deles, vítimas das condições 
prisionais impostas pelo regime fascista. A todos eles, a nossa homenagem."

Sobre 0 Tarrafal temos 25 referências no nosso blogue.

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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P25565: De volta às montanhas de Liquiçá, Timor Leste, por mor da Escola de São Francisco de Assis, em Boebau (5.ª estadia, 2024): crónicas de Rui Chamusco (ASTIL) (excertos) - VI (e última) Parte V


 
Timor Leste > Liquiçá > Manati > Boebau > 2024 > Escola de 
São Francisco de Assis (ESFA) , que celebrou o  seu 6º aniversário... Mas erguer paredes é sempre o mais fácil... É preciso agora assegurar o seu futuro...
 

Foto (e legenda): © Rui Chamusco (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O nosso Dom Quixote lusitano, em terras de Timor, já regressou a casa, na Lourinhã, depois da sua quinta (e, quem sabe se não a última... nesta incarnação) estadia, por mor da sua escolinha e dos meninos que precisam de aprender o portuguès e outras matérias curriculares, crescerem e poderem ajudar os seus pais e o seu país a construir um futuro melhor...

É um Dom Quixote pela simples razão de que, pelo menos desde 2016 (a sua primeira estadia),  tem lutando contra os moinhos de vento da indiferença, da inércia, da burocracia... Lá e cá.  Em Dili, deixa o seu  Sancho Pança,  o seu 'mano' Eustáquio (João Moniz, do clã Sobral), que resistiu e lutou nas montanhas contra a ocupação indonésia.  


Rui Chamusco
Recorde-se que a luta do Rui e dos seus companheir0s, solidários nesta causa, tem sido a de ultrapassar as dificuldades burocráticas, o isolamento,  os acessos,  a falta de  pessoal docente, a articulação com o sistema de ensino oficial, problemas que afetam o funcionamento e o futuro da Escola São Francisco de Assis (ESFA), nas montanhas de Liquiçá, construída e apoiada pela ASTIL - Associação dos Amigos Solidários com Timor Leste. 

Esta é a sua sexta e última crónica de 2024. Acabou de nos chegar ontem às 19h46, depois de resolvido um problema informático no seu PC. O tom é de despedida mas também já de saudade.  Despedida, saudade e... esperança! Que este Dom Quixote da Malcata é de rija têmpera...

Mas o  Rui Chamusco, nosso  tabanqueiro, já tem a bonita  idade de 77 anos feitos... E como no caso de todos nós, a sua saúde também já anda "remendada"... É professor de educação musical reformado, do Agrupamento de Escolas de Ribamar, Lourinhã. Nascido em 1947, na  Malcata, concelho de Sabugal, é cofundador e líder da ASTIL - Associação dos Amigos Solidários com Timor Leste.





De volta às montanhas de Liquiçá, Timor Leste, por mor da Escola de São Francisco de Assis, em Boebau (5ª estadia, 2024): crónicas de Rui Chamusco (ASTIL) (excertos) - VI (e última) Parte



8 de maio de 2024, quarta feira - O senhor Luís


Quem já esteve em Timor-Leste, mais especificamente em Dili, lembra-se bem de cenas que diariamente encontramos nos locais mais frequentados.

Refiro-me aos vendedores ambulantes que, de vara no ombro, no lombo, de vara às costas carregam durante o dia os mais diversos produtos: fruta, vegetais, carnes, animais vivos (sobretudo leitões), etc... etc...

O senhor Luís é nosso vizinho e todos os dias palmilha, descalço, quilómetros e quilómetros pelas ruas de Dili para vender os seus produtos. É figura franzina e homem de poucas palavras. 

Quando lhe perguntam o preço das coisas ele mostra os dedos da mão. Isto faz-me lembrar uma pessoa que,  não sabendo ler as horas no relógio comprado a bom preço porque ainda pouca gente tinha relógio, respondia a quem lhe perguntava a horas: “Olha!...” E mostrava ostensivamente o seu relógio de pulso. Talvez mais para mostrar que tinha relógio do que para que o outro soubesse que horas eram. 

Mas o senhor Luís não é destes. Ele é humilde, simples e muito trabalhador.


9 de maio de 2024, quinta feira  - Balde de água fria...


Quem diria?!... Quando já nos davam como certo a aceitação da nossa roposta junto da educação distrital de Liquiçá, eis que tudo volta atrás, com a argumentação do diretor distrital que a Escola EBF 1 de Banitur (escola de Quilo) tem de funcionar com os quatro anos do ensino básico por ser uma escola pública. Portanto, a colaboração tão desejada entre as duas escolas (a nossa e a de Banitur) está posta em causa. 

É pena que assim seja, por que se criaram expectativas e assim serão defraudadas. De nada valeram as reuniões das escolas em causa com os professores e encarregados de educação.

Um sentimento de revolta se apoderou de mim. Alimentam a esperança e tudo resulta em nada. Que grande desilusão, que tamanha frustração. Mas, mesmo assim, continuo esperando. Entretanto, vamos acionar o plano B.

Desistir, nunca. Enquanto houver força para lutar iremos à luta. A esperança será a última coisa a morrer.


9 de maio de 20124, quinta feira - De novo em Boebau

Por minha vontade expressa, quis ir de novo a Boebau, à Escola São Francisco de Assis para mais uma vez partilhar alguns dias com as crianças e adultos deste povo, que também já me pertence, ou melhor eu julgo pertencer. 

De manhã foi o tal “balde de água fria” que levei na educação distrital de Liquiçá, seguida de uma vista ao CAFE a fim de ver a Maria em sala de aula e de me despedir da professora Teresa e colegas. 

De tarde, depois da compra de alguns mantimentos para a nossa curta estadia, rumamos até Boebau. Tudo normal, se contarmos os saltimbancos da maior parte do caminho, exceto quando nos aproximamos de Fatumeta, onde havia uma grande de concentração de pessoas vindas das localidades circundantes.


Ajuntamento (julgamento popular)

Seguindo a descrição anterior, paramos para perguntar o que se passava. Mais a mais reconhecemos logo algumas das pessoas presentes, de Boebau e Manati, e por isso, com alguma curiosidade e ansiedade, quisemos saber o que realmente se passava. 

Então o que foi? Um rapaz (senhor) já casado, que engravidou uma rapariga e que a agrediu. Os povos juntaram-se para decidir o que fazer com o comportamento deste senhor. A parte da agressão foi entregue à polícia. Quanto ao julgamento popular, depois de várias reuniões, decidiram aplicar-lhe uma pena elevada, com o pagamento em bens e em dinheiro, de modo a garantir o nascimento e sustento da criança ainda em gestação. 

Com o povo não se brinca...


10 de maio de 2024, secxta feira  - Quem ao mais alto sobe...

Subir a um coqueiro com mais de quinze metros de altura não é para todos, e sobretudo para quem sofrer de vertigens. 

Esta tarde, na casa do Cesário, foi-me perguntado: “Tiu, quer beber água de coco?” Claro que disse sim. Foi então que o Jorge Madeira, o Cesáreo e algumas crianças se deslocaram para junto de um coqueiro para procederem a apanha de cocos. 

O Jorge, de catana em punho e uma fita de não seu quantos metros, depressa trepou o coqueiro acima até chegar ao “ninho” de cocos. Acomodou-se no local, e começa de imediato à catanada sobre estes frutos. Alguns escapam-se e caiem estrondosamente no chão, outros são amarrados à fita que cuidadosamente os faz descer. 

A gravar estas cenas andava eu todo feliz, pois são momentos únicos na vida.

E todos carregados , até eu, lá fomos outra vez para a casa do Cesáreo, aonde saboreamos à farta diferentes águas de coco ( coco ainda jovem muito mais doce), e coco já adulto muito mais amargo). 

Foi então que se falou em óleo de coco, tão apreciado e caro. E de novo me perguntaram: “Tiu, quer ver fazer o óleo de coco?” 

Que acham? Anui logo. “Então amanhã à tarde vamos fazer para o Tiu registar:”


11 de maio de 2024, sábado - Óleo de coco... 
Ver fazer para aprender

Dito e feito, durante a tarde de hoje procedeu-se ao processo tradicional de como é feito o óleo de coco, e o nutem. Tudo está documentado através de alguns vídeos que fiz: partir os cocos (velhos), extrair a massa branca, raspar numa folha de zinco crivada de buracos, espremer muito bem a massa conseguida, ferver na “cataplana” , coar (extrair a água), voltar a ferver e eu sei lá quantas coisas mais. 

Como resultado final ficou uma chávena de óleo (eram quatro cocos) e uma mão cheia de nutem, que por sinal é muito saboroso.

Mas o que mais me impressionou em todo este processo foi o risco que a Rita (mulher do Cesáreo) corria enquanto raspava os pedaços de coco. Unhas e dedos davam a impressão de serem raspados também. Foi então que perguntei: “Não há uma máquina para fazer isso?” “Sim há máquina, mas não temos dinheiro para a comprar.” 

Foi então que prontamente respondi: “Eu compro a máquina”. Depois, em conversa com o João Crisóstomo e o Gaspar, eles quiseram também participar na compra, ficando assim dividida a três.


10 e 11 de maio, sexta feira e sábado - ESFA: À descoberta dos sons

Tinha prometido na visita anterior que, antes de regressar a Portugal, viria de novo para ensinar as crianças a descobrir e a utilizar os sons, particularmente os sons produzidos pela cana “fafulo”. E assim fizemos.

Durante dois dias preparamos e construímos alguns instrumentos (escala de notas) que nos permitiu explorar e interpretar algumas canções conhecidas dos nossos alunos, como por exemplo o hino da escola e a canção “Abre a janela”. 

Existem alguns vídeos que documentam o trabalho. Antecedendo a entrada principal, um carrilhão suspenso lembra estes dias de descoberta e exploração de sons.

11 de maio de 2024, sábado - Extraviado a solta

A notícia depressa se espalhou aqui por Boebau: “Cuidado!... Quem for para Liquiçá de motor tenha cuidado quando passar em Fatuquessi. Anda um maluco à solta que ataca à catanada os que vestirem t-shirt ou blusão vermelho. Ataca e depois esconde-se nas campas dos mortos que estão ali ao lado.” 

Já fez algumas vítimas, que oportunamente fizeram queixa na polícia. Surpreendentemente, a polícia respondeu que não podiam prender o homem porque não havia lei para tal. Quando nós descemos da montanha confirmamos o local onde atacava, mas já tínhamos informações que, finalmente, o extraviado já tinha sido preso.

13 de maio de 2024, segunda feira - Compra da máquina 
de triturar coco

Hoje fomos comprar a máquina de triturar os cocos. Em Dili procuramos, e só encontramos esta. Já está em casa do Eustáquio, à espera de seguir para Boebau. 

Eu sei que, na terça-feira, dia 14, depois de me irem levar ao aeroporto, o Eustáquio, o Cesáreo e outras viajantes seguirão para Boebau, levando consigo a “máquina” em causa. E que, não demora muito, vão pô-la à prova, tirando dela o devido rendimento. 

Espero com franqueza de que este pequeno investimento seja o ponto de partida de uma economia familiar e local que permita aproveitar e desenvolver outros recursos endógenos.

Quando tu sabes que em Boebau um coco custa dez cêntimos e que em Dili,
no restaurante “Água de coco” pagas um dólar e cinquenta cêntimos, pergunta-se se não será possível ajudar esta gente esquecida das ontanhas que têm recursos mas não os fazem render. 

Quantas vezes Deus dá nozes a quem não tem dentes! Solidariedade é o que se pede.

16 de maio de 2024,  quinta feira - De novo em Portugal


Finalmente, depois da estafada viagem com tantas horas de voo e de espera nos aeroportos, eis-me chegado ao solo lusitano. Como sempre chegamos bem, mas todo partido e cansado. Só o tempo e o descanso poderão amainar esta sensação de estar em terra, mas sentir-se no ar, de pensar que é de manhã mas ainda é noite, de refazer os horários e o ritmo de vida habitual.

Mais uma viagem, mais uma estadia em Timor-Leste. E a pergunta que os amigos me fazem é sempre esta: “Valeu a pena? Conseguistes realizar os objetivos que lá te levaram?” 

Vale sempre a pena se a alma não é pequena

Muitos encontros, muitas vivências. É sempre mais o que recebemos do que o que damos, desinteressadamente. Mas tenho de confessar que muitas das vezes os resultados não dependem de nós, mas dos poderes de decisão. E, quanto a isto, muito ficou por fazer mas que, pacientemente, esperamos concretizar com a ajuda preciosa dos que mandam e decidem.

Outra pergunta que sempre que me põem tanto lá como cá: “Tiu, quando volta a Timor?” 

Não sei responder quando nem se ainda volto. Veremos como tudo se desenvolve.  Já prometi que voltava, caso a questão da colocação de professores na ESFA esteja resolvida no início do ano escolar 2025, mas também já disse, na educação distrital da educação de Liquiçá, que assim não voltarei mais a Timor-Leste. 

Para não dar o dito por não dito é melhor ficarmos por aqui, não correndo o risco de ser apelidado de mentiroso. Por putro lado, a idade também tem as suas limitações. E, como diz a canção do António Variações,  “quando a cabeça não tem juízo / o corpo é que paga”.

Então, que seja como Deus quiser. O futuro só a Deus pertence.

Mais uma vez um Muito Obrigado a todos os amigos, sócios e benfeitores da ASTIL e, particularmente, a todos aqueles que se interessaram em ler estas Crónicas que fui escrevendo durante estas minhas cinco estadias neste país irmão Timor-Leste.

(Revisão / fixação de texto: LG)
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Para os leitores que se queiram associar a este projeto, aqui fica a conta solidária da Associação dos Amigos Solidários com Timor Leste (ASTIL) (Página do Facebook)

IBAN: PT50 0035 0702 000297617308 4

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Nota do editor:

domingo, 26 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25564: In Memoriam (503): Lino Bicari (1935-2024) foi a sepultar ontem, no Alvito, Alentejo... "Senti a partida deste bom amigo, que encontrei na Guiné, e desejo-lhe o descanso eterno" (Arsénio Puim, ex-alf grad capelão, BART 2917, Bambadinca, mai 70/mai71)


Recorte do jornal "Público", de  24 de setembro de 1990... Do Lino Bicari, depois de o entrevistar em Lisboa (onde se fixou em 1990, para uma "última missão"),  disse o jornalista João Paulo Guerra: (...) "Não é um homem desiludido, mas um homem amargo que hoje, à margem da Igreja e do Estado da Guiné-Bissau, continua, no entanto, a afirmar-se religioso e militante do PAIGC." (...)


1, Mensagem do Arsénio Puim:

Lino e Arsénio, em maio de 2019,  na ilha de
São Miguel, Açores. Um reencontro ao fim de 48 anos.
Conheceram-se em Bafatá, em 1971.
Foto (e legenda): © Arsénio Puim  (2019).
Todos os direitos reservados.
 [Edição e legendagem complementar:
Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Data - sábado, 25/05/2024, 22:46 
Assunto - Lino Bicari

Caro amigo Luís

Primeiramente, dou-te a saber - talvez já saibas - que o Lino Bicari faleceu, como já se esperava. Sepultou-se ontem em Alvito, onde tinha residência.

Falei com a Fernanda acerca 
do texto publicado no blogue (*), prontificando-me para lho enviar por email. Ela disse-me que podia ter acesso ao mesmo indo diretamente ao blogue. Missão cumprida, portanto.

Posso também dizer-te que o jornalista  
António Marujo está a preparar 
uma reportagem sobre  o Lino, a publicar muito em breve.

Digo-te que senti a partida deste bom amigo, que encontrei na Guiné. 
E desejo-lhe o descanso eterno. (**)

Um grande abraço. Arsénio Puim

2. O jornalista António Marujo, no jornal diário digital "7Margens" já  deu  a notícia da morte do amigo do Arsénio Puim, nestes termos:

Missionário e médico da guerrilha, padre e professor

António Marujo | 25 Mai 2024


(...) O antigo missionário italiano e depois militante do PAIGC, na Guiné-Bissau, Lino Bicari, morreu na última quinta-feira no Alvito (Alentejo), onde residia desde 1990. Era “um homem bom, simples, de altos ideais humanos e com um currículo rico, corajoso e autêntico”, diz dele o amigo Arsénio Puim, também antigo padre, que o conheceu na Guiné quando foi capelão militar em Bambadinca, no início da década de 1970. Tinha 88 anos.(...)


3. Descobrimos este amigo do nosso Arsénio Puim só em 2018, numa pesquisa pela Net (**). Nunca o conhecemos pessoalmente. Falámos uma vez ao telefone, trocámos alguns mails por causa dos nossos capelães, expulsos do CTIG, o Mário de Oliveira e o Arsénio Puim (de quem ele ficou amigo, na Guiné; nunca conheceu o Mário de Oliveira) .  

Nascido em 1935, na Sicília, viveu  23 anos na Guiné, primeiro, como missionário católico (1967-71)  e depois, mais tarde, a partir de 1973, como militante do PAIGC: era  o único estrangeiro que tinha o estatuto de "combatente da liberdade da Pátria" (sic), mas nunca pegou em armas. Serviu o PAIGC e a Guiné-Bissau nas áreas onde se sentia competente e útil: a educação e a saúde. Radicou-se em Lisboa em 1990. Tinha como "última missão" criar uma espécie de "Casa do Estudante" pós-colonial...

O jornalista João Paulo Guerra fez, na altura, uma nota biográfica deste homem: 

(...) "O padre Lino Bicari chegou à Guiné em Maio de 1967. Tinha 31 anos, um curso teológico e formação em medicina tropical, em psicopedagogia e didáctica e etnologia. De passagem por Lisboa, meteu na bagagem curso rápidos de língua portuguesa e administração colonial e, como todos os missionários destinados às colónias portuguesas, assinou compromissos renunciando aos seus direitos como cidadão italiano e submetendo-se às leis e tribunais portugueses, à Concordata, ao Acordo e ao Estatuto missionários.

"Na Guiné vivia-se o quarto ano de guerra e Lino Bicari foi colocado em Bafatá, a cidade natal de Amílcar Cabral. A guerra, para ele como para os outros missionários, significava ouvir tiros ao longe e viver num centro populacional sob controlo militar, de onde só podia ausentar-se à luz do dia.

(..) "Foi em Itália, onde se deslocou em 1972 no âmbito de um programa de apoio ao Terceiro Mundo, que o padre Lino Bicari conheceu José Turpin, dirigente do PAIGC e, por seu intermédio, trocou correspondência com Amílcar Cabral. Quando tomou a decisão da sua vida, resolvendo trabalhar com o PAIGC, a Secretaria de Estado do Vaticano sentiu-se embaraçada. Não disse que sim, nem que não, e acabou por consentir, pedindo-lhe apenas que, formalmente, se desligasse do [Pontifício] Instituto para as Missões Estrangeiras [PIME]

(...) "No final de 1973, proclamado já o Estado da Guiné-Bissau, Lino Bicari entrou de novo no território. Mas, dessa vez, não levava o visto de Lisboa nem as guias de marcha do colonialismo missionário. Entrou através da fronteira com a Guiné-Conakry, numa ambulância da Cruz Vermelha e foi instalado pelo PAIGC na região de Boé, a sul de Madina, como responsável pelo Hospital Regional. 'Não era uma base de guerrilha mas uma zona totalmente libertada, defendida por forças armadas locais e, dada a sua configuração geográfica, de difícil acesso às tropas portuguesas', recorda Bicari." (...).

O Lino Bicari e a Maria Fernanda Dâmaso traduziram do italiano o livro do Salvatore Cammilleri, "A identidade cultural dos balantas" (***). 
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 22 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25548: Banco do Afeto contra a Solidão (29): Hospitalizado em Beja, o luso-italiano Lino Bicari, de 88 anos, antigo missionário do PIME (Bafatá, 1967-1971), professor do nosso Cherno Baldé, grande amigo e companheiro do nosso capelão Arsénio Puim

(**) Último poste da série > 22 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25424: In Memoriam (503): Agradecimento a René Pélissier (1935-2024) que ao blogue é devido; paraninfo a um devotado historiador (Mário Beja Santos)

(***) Vd. poste de 19 de outubro de 2018 > 
19 DE OUTUBRO DE 2018 > Guiné 61/74 - P19116: Notas de leitura (1111): Salvatore Cammilleri, missionário siciliano do PIME, expulso da Guiné em 1973 por ordem de Spínola, autor de "A identidade cultural dos balantas" (Lisboa, 2010, tr. do italiano: Lino Bicari e Maria Fernanda Dâmaso) - Parte I (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P25563: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (19): "O MINITITANIC"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


O MINITITANIC

Quem por ali passe nem repara no MINITITANIC, nem se apercebe da vida que ele foi. Um pequeno barco de quatro ou cinco metros, já gasto, assente na margem lodosa do rio, a um canto de um apodrecido cais, preso não se sabe onde nem a quê, por uma longa corda cheia de nós e de tempo. Um barco sem fé nem esperança, isolado do mundo, afastado de todos os seus irmãos, ancorado na memória, agarrado ao lado esquecido da vida. Há muito parado e imóvel, apenas baloiça levemente à flor da água quando a maré lhe entra sorrateiramente por baixo, afagando o casco de cores já mortas, num beijo de saudade como que a dizer: “Anda, desprende-te, vem comigo até ao infinito.” Um barco muito triste, quando a maré se vai e o deixa de novo pousado na areia negra e suja.

Para quem passa e nele encontra os olhos, o MINITITANIC parece não ser de ninguém, mas tem por dono um velhote de oitenta anos que por ali anda sonhando, desde que se levanta até que se deita, no fim de uma vida passada no mar. Há muito que o vejo por ali, sempre enredado naquele barco. Perdidas as forças, há anos que não vai à pesca, mas todos os dias ali vem, olhando enternecido e cheio de amor para o seu barquinho, companheiro de tantos desafios e angústias, afagando-o, limpando-o das cagadelas das gaivotas, retirando com um balde a água empoçada da chuva, fazendo aqui e ali pequenos arranjos e reparações, e nele dormindo até o pôr do sol, ou mesmo durante a noite, em tempo de verão, embalado certamente pelo longo sonho de que um dia, em maré bem cheia, ele o levará, uma vez mais, bem longe, para onde sempre viveu e onde vive, no misterioso silêncio do fundo do mar, o seu pai, o GRANDE TITANIC.

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Nota do editor

Último post da série de 19 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25540: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (18): "Mas a senhora, quem é?"