segunda-feira, 27 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25565: De volta às montanhas de Liquiçá, Timor Leste, por mor da Escola de São Francisco de Assis, em Boebau (5.ª estadia, 2024): crónicas de Rui Chamusco (ASTIL) (excertos) - VI (e última) Parte


 
Timor Leste > Liquiçá > Manati > Boebau > 2024 > Escola de 
São Francisco de Assis (ESFA) , que celebrou o  seu 6º aniversário... Mas erguer paredes é sempre o mais fácil... É preciso agora assegurar o seu futuro...
 

Foto (e legenda): © Rui Chamusco (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O nosso Dom Quixote lusitano, em terras de Timor, já regressou a casa, na Lourinhã, depois da sua quinta (e, quem sabe se não a última... nesta incarnação) estadia, por mor da sua escolinha e dos meninos que precisam de aprender o portuguès e outras matérias curriculares, crescerem e poderem ajudar os seus pais e o seu país a construir um futuro melhor...

É um Dom Quixote pela simples razão de que, pelo menos desde 2016 (a sua primeira estadia),  tem lutando contra os moinhos de vento da indiferença, da inércia, da burocracia... Lá e cá.  Em Dili, deixa o seu  Sancho Pança,  o seu 'mano' Eustáquio (João Moniz, do clã Sobral), que resistiu e lutou nas montanhas contra a ocupação indonésia.  


Rui Chamusco
Recorde-se que a luta do Rui e dos seus companheir0s, solidários nesta causa, tem sido a de ultrapassar as dificuldades burocráticas, o isolamento,  os acessos,  a falta de  pessoal docente, a articulação com o sistema de ensino oficial, problemas que afetam o funcionamento e o futuro da Escola São Francisco de Assis (ESFA), nas montanhas de Liquiçá, construída e apoiada pela ASTIL - Associação dos Amigos Solidários com Timor Leste. 

Esta é a sua sexta e última crónica de 2024. Acabou de nos chegar ontem às 19h46, depois de resolvido um problema informático no seu PC. O tom é de despedida mas também já de saudade.  Despedida, saudade e... esperança! Que este Dom Quixote da Malcata é de rija têmpera...

Mas o  Rui Chamusco, nosso  tabanqueiro, já tem a bonita  idade de 77 anos feitos... E como no caso de todos nós, a sua saúde também já anda "remendada"... É professor de educação musical reformado, do Agrupamento de Escolas de Ribamar, Lourinhã. Nascido em 1947, na  Malcata, concelho de Sabugal, é cofundador e líder da ASTIL - Associação dos Amigos Solidários com Timor Leste.





De volta às montanhas de Liquiçá, Timor Leste, por mor da Escola de São Francisco de Assis, em Boebau (5ª estadia, 2024): crónicas de Rui Chamusco (ASTIL) (excertos) - VI (e última) Parte



8 de maio de 2024, quarta feira - O senhor Luís


Quem já esteve em Timor-Leste, mais especificamente em Dili, lembra-se bem de cenas que diariamente encontramos nos locais mais frequentados.

Refiro-me aos vendedores ambulantes que, de vara no ombro, no lombo, de vara às costas carregam durante o dia os mais diversos produtos: fruta, vegetais, carnes, animais vivos (sobretudo leitões), etc... etc...

O senhor Luís é nosso vizinho e todos os dias palmilha, descalço, quilómetros e quilómetros pelas ruas de Dili para vender os seus produtos. É figura franzina e homem de poucas palavras. 

Quando lhe perguntam o preço das coisas ele mostra os dedos da mão. Isto faz-me lembrar uma pessoa que,  não sabendo ler as horas no relógio comprado a bom preço porque ainda pouca gente tinha relógio, respondia a quem lhe perguntava a horas: “Olha!...” E mostrava ostensivamente o seu relógio de pulso. Talvez mais para mostrar que tinha relógio do que para que o outro soubesse que horas eram. 

Mas o senhor Luís não é destes. Ele é humilde, simples e muito trabalhador.


9 de maio de 2024, quinta feira  - Balde de água fria...


Quem diria?!... Quando já nos davam como certo a aceitação da nossa roposta junto da educação distrital de Liquiçá, eis que tudo volta atrás, com a argumentação do diretor distrital que a Escola EBF 1 de Banitur (escola de Quilo) tem de funcionar com os quatro anos do ensino básico por ser uma escola pública. Portanto, a colaboração tão desejada entre as duas escolas (a nossa e a de Banitur) está posta em causa. 

É pena que assim seja, por que se criaram expectativas e assim serão defraudadas. De nada valeram as reuniões das escolas em causa com os professores e encarregados de educação.

Um sentimento de revolta se apoderou de mim. Alimentam a esperança e tudo resulta em nada. Que grande desilusão, que tamanha frustração. Mas, mesmo assim, continuo esperando. Entretanto, vamos acionar o plano B.

Desistir, nunca. Enquanto houver força para lutar iremos à luta. A esperança será a última coisa a morrer.


9 de maio de 20124, quinta feira - De novo em Boebau

Por minha vontade expressa, quis ir de novo a Boebau, à Escola São Francisco de Assis para mais uma vez partilhar alguns dias com as crianças e adultos deste povo, que também já me pertence, ou melhor eu julgo pertencer. 

De manhã foi o tal “balde de água fria” que levei na educação distrital de Liquiçá, seguida de uma vista ao CAFE a fim de ver a Maria em sala de aula e de me despedir da professora Teresa e colegas. 

De tarde, depois da compra de alguns mantimentos para a nossa curta estadia, rumamos até Boebau. Tudo normal, se contarmos os saltimbancos da maior parte do caminho, exceto quando nos aproximamos de Fatumeta, onde havia uma grande de concentração de pessoas vindas das localidades circundantes.


Ajuntamento (julgamento popular)

Seguindo a descrição anterior, paramos para perguntar o que se passava. Mais a mais reconhecemos logo algumas das pessoas presentes, de Boebau e Manati, e por isso, com alguma curiosidade e ansiedade, quisemos saber o que realmente se passava. 

Então o que foi? Um rapaz (senhor) já casado, que engravidou uma rapariga e que a agrediu. Os povos juntaram-se para decidir o que fazer com o comportamento deste senhor. A parte da agressão foi entregue à polícia. Quanto ao julgamento popular, depois de várias reuniões, decidiram aplicar-lhe uma pena elevada, com o pagamento em bens e em dinheiro, de modo a garantir o nascimento e sustento da criança ainda em gestação. 

Com o povo não se brinca...


10 de maio de 2024, secxta feira  - Quem ao mais alto sobe...

Subir a um coqueiro com mais de quinze metros de altura não é para todos, e sobretudo para quem sofrer de vertigens. 

Esta tarde, na casa do Cesário, foi-me perguntado: “Tiu, quer beber água de coco?” Claro que disse sim. Foi então que o Jorge Madeira, o Cesáreo e algumas crianças se deslocaram para junto de um coqueiro para procederem a apanha de cocos. 

O Jorge, de catana em punho e uma fita de não seu quantos metros, depressa trepou o coqueiro acima até chegar ao “ninho” de cocos. Acomodou-se no local, e começa de imediato à catanada sobre estes frutos. Alguns escapam-se e caiem estrondosamente no chão, outros são amarrados à fita que cuidadosamente os faz descer. 

A gravar estas cenas andava eu todo feliz, pois são momentos únicos na vida.

E todos carregados , até eu, lá fomos outra vez para a casa do Cesáreo, aonde saboreamos à farta diferentes águas de coco ( coco ainda jovem muito mais doce), e coco já adulto muito mais amargo). 

Foi então que se falou em óleo de coco, tão apreciado e caro. E de novo me perguntaram: “Tiu, quer ver fazer o óleo de coco?” 

Que acham? Anui logo. “Então amanhã à tarde vamos fazer para o Tiu registar:”


11 de maio de 2024, sábado - Óleo de coco... 
Ver fazer para aprender

Dito e feito, durante a tarde de hoje procedeu-se ao processo tradicional de como é feito o óleo de coco, e o nutem. Tudo está documentado através de alguns vídeos que fiz: partir os cocos (velhos), extrair a massa branca, raspar numa folha de zinco crivada de buracos, espremer muito bem a massa conseguida, ferver na “cataplana” , coar (extrair a água), voltar a ferver e eu sei lá quantas coisas mais. 

Como resultado final ficou uma chávena de óleo (eram quatro cocos) e uma mão cheia de nutem, que por sinal é muito saboroso.

Mas o que mais me impressionou em todo este processo foi o risco que a Rita (mulher do Cesáreo) corria enquanto raspava os pedaços de coco. Unhas e dedos davam a impressão de serem raspados também. Foi então que perguntei: “Não há uma máquina para fazer isso?” “Sim há máquina, mas não temos dinheiro para a comprar.” 

Foi então que prontamente respondi: “Eu compro a máquina”. Depois, em conversa com o João Crisóstomo e o Gaspar, eles quiseram também participar na compra, ficando assim dividida a três.


10 e 11 de maio, sexta feira e sábado - ESFA: À descoberta dos sons

Tinha prometido na visita anterior que, antes de regressar a Portugal, viria de novo para ensinar as crianças a descobrir e a utilizar os sons, particularmente os sons produzidos pela cana “fafulo”. E assim fizemos.

Durante dois dias preparamos e construímos alguns instrumentos (escala de notas) que nos permitiu explorar e interpretar algumas canções conhecidas dos nossos alunos, como por exemplo o hino da escola e a canção “Abre a janela”. 

Existem alguns vídeos que documentam o trabalho. Antecedendo a entrada principal, um carrilhão suspenso lembra estes dias de descoberta e exploração de sons.

11 de maio de 2024, sábado - Extraviado a solta

A notícia depressa se espalhou aqui por Boebau: “Cuidado!... Quem for para Liquiçá de motor tenha cuidado quando passar em Fatuquessi. Anda um maluco à solta que ataca à catanada os que vestirem t-shirt ou blusão vermelho. Ataca e depois esconde-se nas campas dos mortos que estão ali ao lado.” 

Já fez algumas vítimas, que oportunamente fizeram queixa na polícia. Surpreendentemente, a polícia respondeu que não podiam prender o homem porque não havia lei para tal. Quando nós descemos da montanha confirmamos o local onde atacava, mas já tínhamos informações que, finalmente, o extraviado já tinha sido preso.

13 de maio de 2024, segunda feira - Compra da máquina 
de triturar coco

Hoje fomos comprar a máquina de triturar os cocos. Em Dili procuramos, e só encontramos esta. Já está em casa do Eustáquio, à espera de seguir para Boebau. 

Eu sei que, na terça-feira, dia 14, depois de me irem levar ao aeroporto, o Eustáquio, o Cesáreo e outras viajantes seguirão para Boebau, levando consigo a “máquina” em causa. E que, não demora muito, vão pô-la à prova, tirando dela o devido rendimento. 

Espero com franqueza de que este pequeno investimento seja o ponto de partida de uma economia familiar e local que permita aproveitar e desenvolver outros recursos endógenos.

Quando tu sabes que em Boebau um coco custa dez cêntimos e que em Dili,
no restaurante “Água de coco” pagas um dólar e cinquenta cêntimos, pergunta-se se não será possível ajudar esta gente esquecida das ontanhas que têm recursos mas não os fazem render. 

Quantas vezes Deus dá nozes a quem não tem dentes! Solidariedade é o que se pede.

16 de maio de 2024,  quinta feira - De novo em Portugal


Finalmente, depois da estafada viagem com tantas horas de voo e de espera nos aeroportos, eis-me chegado ao solo lusitano. Como sempre chegamos bem, mas todo partido e cansado. Só o tempo e o descanso poderão amainar esta sensação de estar em terra, mas sentir-se no ar, de pensar que é de manhã mas ainda é noite, de refazer os horários e o ritmo de vida habitual.

Mais uma viagem, mais uma estadia em Timor-Leste. E a pergunta que os amigos me fazem é sempre esta: “Valeu a pena? Conseguistes realizar os objetivos que lá te levaram?” 

Vale sempre a pena se a alma não é pequena

Muitos encontros, muitas vivências. É sempre mais o que recebemos do que o que damos, desinteressadamente. Mas tenho de confessar que muitas das vezes os resultados não dependem de nós, mas dos poderes de decisão. E, quanto a isto, muito ficou por fazer mas que, pacientemente, esperamos concretizar com a ajuda preciosa dos que mandam e decidem.

Outra pergunta que sempre que me põem tanto lá como cá: “Tiu, quando volta a Timor?” 

Não sei responder quando nem se ainda volto. Veremos como tudo se desenvolve.  Já prometi que voltava, caso a questão da colocação de professores na ESFA esteja resolvida no início do ano escolar 2025, mas também já disse, na educação distrital da educação de Liquiçá, que assim não voltarei mais a Timor-Leste. 

Para não dar o dito por não dito é melhor ficarmos por aqui, não correndo o risco de ser apelidado de mentiroso. Por putro lado, a idade também tem as suas limitações. E, como diz a canção do António Variações,  “quando a cabeça não tem juízo / o corpo é que paga”.

Então, que seja como Deus quiser. O futuro só a Deus pertence.

Mais uma vez um Muito Obrigado a todos os amigos, sócios e benfeitores da ASTIL e, particularmente, a todos aqueles que se interessaram em ler estas Crónicas que fui escrevendo durante estas minhas cinco estadias neste país irmão Timor-Leste.

(Revisão / fixação de texto: LG)
________________

Para os leitores que se queiram associar a este projeto, aqui fica a conta solidária da Associação dos Amigos Solidários com Timor Leste (ASTIL) (Página do Facebook)

IBAN: PT50 0035 0702 000297617308 4

______________________

Nota do editor:

Sem comentários: