Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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quinta-feira, 12 de junho de 2025
Guiné 61/74 - P26914: Dando a mão â palmatória (35): O rio Fulacunda não era afluente do rio Geba, a norte de Fulacunda, mas sim do rio Grande Buba, a sul...
Guiné 61/74 - P26913: Efemérides (459): Discurso de Lídia Jorge, Presidente da Comissão Organizadora das Comemorações do 10 de Junho de 2025, em Lagos
Discurso de Lídia Jorge no Dia 10 de Junho em Lagos:
«Os países escolhem datas de referência para celebrarem a sua história, contemplando memórias de batalhas, ações de independência, encontros civilizacionais, momentos importantes em torno dos quais concitam a unidade dos cidadãos e promovem o orgulho patriótico.
Mas, em Portugal, é a data da morte de um poeta que protagoniza o nosso momento cívico de unidade mais relevante.
Muito se tem discorrido sobre o significado desta nossa singularidade e, muitas vezes, é difícil explicar que não se trata de um sinal de melancolia, mas sim do seu oposto.
Há a assunção de que um poeta do século XVI nos legou uma obra tão vigorosa que acabou por ser adotada no seu conjunto como exemplo da vitalidade de um povo e que a própria biografia do seu autor se oferece como exemplo não só de um percurso português, mas se transformou em símbolo universal da nossa peregrinação prometeica sobre a terra.
A fidelidade que Camões manteve em relação à pátria, quando se encontrava em paragens remotas, alimenta a simbologia que lhe é atribuída como exemplo da proximidade que os portugueses que se encontram longe mantêm com a sua cultura de origem.
O país retribui-lhes, reconhecendo, desde há muito, que as comunidades portuguesas são o corpo essencial do nosso ser identitário.
Mas as celebrações deste ano de 2025 têm um cunho muito particular. Em primeiro lugar, porque voltam a ter lugar na cidade de Lagos. No século passado, foi cidade anfitriã em 1996.
Passados 29 anos, esta cidade do Algarve continua a ser democrática, livre, próspera.
O que mudou e o que justifica que, de novo, tenha sido escolhida para ser palco das celebrações foi a nova consciência de que Lagos passou a representar um lugar obrigatório quando se pretende avaliar as relações entre os povos ao longo dos séculos.
É sabido que Lagos, lugar de saída para a África e lugar do comércio prático, tem como símbolo complementar o Promontório de Sagres.
A escassos 40 quilómetros de distância, Sagres e Lagos representam historicamente uma dualidade contrastiva cujo papel se encontra em avaliação.
A comunicação digital que se afirmou a partir dos anos 90 permite agora uma divulgação ampla dos estudos que os arqueólogos, antropólogos e historiadores estão a realizar neste espaço geográfico designado por Terras do Infante.
Era a altura de atribuir a Lagos, de novo, o estatuto de cidade vencedora e de apoiar estas celebrações de importância ou de interesse cultural.
Mas há outro motivo para que, este ano, a celebração deste dia seja particular. Desde há dois anos que estamos a invocar o nascimento de Camões, ocorrido há 500 anos, presume-se que entre 1524 e 1525. Calcula-se que assim tenha sido, mas vale a pena refletir sobre o facto, pois, tal como não sabemos como decorreu a sua infância, nem a sua formação, também desconhecemos o local e o dia em que o poeta nasceu.
Para sermos justos sobre a sua vida inicial, apenas podemos dizer o que um certo maestro célebre disse de Beethoven: Um dia Camões nasceu e nunca mais morreu. Nunca mais morreu.
Provam-no a forma como, passados cinco séculos, tem sido revisitado ao longo destes dois últimos anos. As escolas, a academia, o mundo da edição, os vários campos das artes e das ciências humanísticas em Portugal têm dado rosto a toda uma espécie de comemoração espontânea e informal em torno do nosso poeta maior.
Novos autores têm surgido, atualizando a exegese sobre os seus poemas e o conhecimento acumulado em torno da vida de Camões.
O jovem ensaísta Carlos Maria Bobone pôs recentemente em relevo o papel decisivo que Camões desempenhou ao fixar uma língua nova à altura de um pensamento novo que resultaria definitivamente na Língua Portuguesa moderna que hoje usamos.
Demonstrou como a língua portuguesa, manobrada no seu esplendor, resultou como uma dádiva que devemos ao grande cantor do Oceano, como lhe chamou Baltasar Estaço.
Por sua vez, a biógrafa Isabel Rio Novo, numa visita recente, profusamente documentada que faz à vida de Camões, no final, não deixa de se comover com os testemunhos sobre os últimos dias do poeta, demonstrando que as histórias que correm sobre certos passos da sua vida, afinal, não são lendas, são verdades.
O receio de sermos românticos não nos deveria afastar da realidade testemunhada. E assim, a mim, não me pareceria errado que os adolescentes portugueses conhecessem o comentário que Frei José Índio redigiu na margem de um exemplar d’Os Lusíadas, presumivelmente oferecido pelo próprio autor na hora de partir. Escreveu o frade: Yo lo vi morir en un hospital en Lisboa sem tener uma sábana com que cobrisse, despues de haver navegado 5.500 léguas per mar.
Assim foi, sem um lençol. Terá sido um amigo quem lhe enviaria a sábana, já depois de morto.
Não me parece que daí se devam retirar conceitos patrióticos ou antipatrióticos. Conceitos sobre a vida humana e seu mistério, isso, talvez.
Entretanto, por contraste, sobre a obra que deixou, milhares de páginas de novo têm sido escritas, confirmando a dimensão invulgar do poeta que foi.
Hélder Macedo, um dos seus leitores mais subtis, disse recentemente numa entrevista que, se Camões tivesse continuado a viver, ninguém mais em Portugal teria sido capaz de escrever um verso. Essa hipérbole é linda.
Assim como é reconfortante saber que os professores deste país continuam a ler às crianças epigramas, redondilhas e vilancetes de Camões, como se fossem filos modernos, feitos de palavras, o que mostra que os portugueses continuam vivamente enamorados do seu poeta maior.
Mas se o patrono destas celebrações é o poeta do virtuosismo verbal e do amor conceptual, o amor maneirista, o poeta do questionamento filosófico e teológico, como é em “Sôbolos rios que vão”, e o poeta dos longos versos enfáticos sobre o heroísmo dos viajantes do mar, ao regressarmos a todos esses versos, escritos há quase 500 anos, encontramos coincidências que nos ajudam a compreender que os tempos duros que atravessamos têm conformidade com os tempos em que o próprio viveu.
Camões, tal como nós, conheceu uma época de transição, assistiu ao fim de um ciclo e, sobre a consciência dessa mudança, no conjunto das 1.102 oitavas que compõem Os Lusíadas, 22 delas contêm avisos explícitos sobre a crise que se vivia então.
Aliás, hoje é ponto assente que o poema épico encerra um paradoxo enquanto género, o paradoxo de constituir um elogio sem limites à coragem de um povo que havia resultado da criação do Império e, em sentido oposto, conter a condenação das práticas que, passados 50 anos, impediam a manutenção desse mesmo Império.
E nesse campo pode-se dizer que Os Lusíadas, poema que no fundo justifica que o dia de Portugal seja o dia de Camões, expressa corajosas verdades dirigidas ao rosto dos poderes que elogia.
É bom lembrar que, entre os séculos XVI e XVII, três dos maiores escritores europeus de sempre coincidiram no tempo apenas durante 16 anos e, no entanto, os três desenvolveram obras notáveis de resposta ao momento de viragem de que eram testemunhas.
Foram eles Shakespeare, Cervantes e Camões. De modo diferente, mas em convergência, procederam à anatomia dos dilemas humanos e, entre eles, os mecanismos universais do poder, corpus que continua válido e intacto até aos nossos dias: sobre o poder grandioso, o poder cruel, o poder tirânico, o poder temeroso e o poder laxista.
No caso de Camões, de que se queixa ele quando interrompe o poema das maravilhas da história para lembrar a mesquinha realidade que envenenava o presente de então? Queixava-se da degradação moral, mencionava “o vil interesse e sede imiga/Do dinheiro, que a tudo nos obriga”, e evocava, entre os vários aspetos da degradação, o facto de sucederem aos homens da coragem que tinham enfrentado um mar desconhecido, homens novos, venais, que só pensavam em fazer cultura. Mais do que isso, queixava-se da subversão do pensamento, queixava-se da falta de seriedade intelectual, que resultava depois, na prática, na degradação dos atos do dia a dia.
Escreve o poeta no final do canto oitavo: “Este deprava às vezes as ciências,/ Os juízos cegando e as consciências./ Este interpreta mais que sutilmente/ Os textos; este faz e desfaz leis;/ Este causa os perjúrios entre a gente/E mil vezes tiranos torna os Reis”.
Na verdade, Camões, Cervantes e Shakespeare, de modos diferentes, expuseram os meandros da dominação, envolvidos com o tempo histórico dos impérios que viveram.
Por essa altura, sobre os reis de Portugal, Espanha e Inglaterra, dizia-se que lutavam entre si pelo domínio do globo terrestre. Ou mais concretamente, dizia-se então que os três competiam para ver quem acabaria por pendurar a terra ao pescoço como se fosse um berloque.
Os três autores perceberam bem que, em dado momento, é possível que figuras enlouquecidas, emergidas do campo da psicopatologia, assaltem o poder e subvertam todas as regras da boa convivência.
Escreveu Shakespeare no ato IV do Rei Lear: “É uma infelicidade da época que os loucos guiem os cegos”.
Enquanto isso, Cervantes criava a figura genial do alucinado Dom Quixote de La Mancha, que até hoje perdura entre nós como o nosso irmão ensandecido.
Por seu lado, Camões, no corpo d’Os Lusíadas, não falou da loucura, mas a vida haveria de lhe demonstrar que as páginas escritas por si mesmo haviam sido proféticas, em resultado dela, da loucura. O desastre de Alcácer-Quibir, ocorrido em 1578, estava assinalado numa das últimas estrofes do Canto X. Era a história, como sempre, a confirmar o pressentimento experimentado pela literatura.
No entanto, o fim do ciclo, que neste caso aqui interessa, não é mais uma transição localizada que diga apenas respeito a três reinos da Europa.
Nos dias que correm, trata-se do surgimento de um novo tempo que está a acontecer à escala global. Porque nós, agora, somos outros.
Deslocamo-nos à velocidade dos meteoros e estamos cercados de fios invisíveis que nos ligam para o espaço.
Mas alguma coisa desse outro fim de século, que se seguiu ao tempo da Renascença malograda, relaciona-se com os dias que estamos a viver. O poder demente, aliado ao triunfalismo tecnológico, faz que a cada dia, a cada manhã, ao irmos ao encontro das notícias da noite, sintamos como a terra redonda é disputada por vários pescoços em competição, como se mais uma vez se tratasse de um berloque.
E os cidadãos são apenas público, que assiste a espetáculos em ecrãs de bolso. Por alguma razão, os cidadãos hoje regrediram à subtil designação de seguidores. E os seus ídolos são fantasmas.
É contra isso e por isso que vale a pena que Portugal e as Comunidades Portuguesas usem o nome de um poeta por patrono. Por isso mesmo, também vale a pena regressar a Lagos.
Sobre estes areais, aconteceram momentos decisivos para o mundo.
No início da Idade Moderna, Lagos e Sagres representaram tanto para Portugal e para a Europa que à sua volta se constituíram mitos que perduram. O Promontório e a silhueta do Infante austero que sonhou com o achamento de ilhas e outros descobrimentos, como parte de uma guerra santa antiga, e tudo realizou a poder de persistência férrea e sagacidade empresarial, transformou-se numa figura de referência como criador de futuros. À sua figura anda associado um sonho que se realizou e depois se entornou pela terra inteira e a lenda coloca-o a meditar em Sagres.
Numa referência um tanto imprecisa, mas que permite a sua evocação, Sophia escreveu: “Ali vimos a veemência do visível/ o aparecer total exposto inteiro/ e aquilo que nem sequer ousáramos sonhar/ era o verdadeiro”.
Esta ideia de que, na mente do Infante, se processou uma epifania, anda-lhe associada enquanto mentor de uma equipa mais ou menos informal que teve a capacidade de motivar e dirigir. Sagres passou, assim, para a história e para a mitologia como lugar simbólico de uma estratégia que mudaria o mundo.
Mas existe uma outra perspetiva, como é sabido, e hoje em dia o discurso público que prevalece é, sem dúvida, sobre o pecado dos Descobrimentos e não sobre a dimensão da sua grandeza transformadora.
É verdade que a deslocação coletiva que permitiu estabelecer a ligação por mar entre os vários continentes e o encontro entre povos obedeceu a uma estratégia de submissão e rapto, cujo inventário é um dos temas dolorosos de discussão na atualidade.
É preciso sempre sublinhar, para não se deturpar a realidade, que a escravatura é um processo de dominação cruel, tão antigo quanto a humanidade.
O que sempre se verificou foi diversidade de procedimentos e diferentes graus de intensidade.
E é indesmentível que os portugueses estiveram envolvidos num novo processo de escravização longo e doloroso.
Lagos, precisamente, oferece às populações atuais, a par do lado mágico dos Descobrimentos, também a imagem do seu lado trágico.
Falo com o sentido justo da reposição da verdade e do remorso pelo facto de que se ter inaugurado o tráfico negreiro intercontinental em larga escala, como polos de abastecimento nas costas de África, e assim se ter oferecido um novo modelo de exploração de seres humanos que iria ser replicado e generalizado por outros países europeus até ao final do século XIX.
Lagos expõe a memória desse remorso. Mostra como, num dia de agosto de calor tórrido de 1444, desembarcaram aqui 235 indivíduos raptados nas costas da Mauritânia e como foram repartidos e por quem.
Alguém que, muito prezamos, encontrava-se em cima de um cavalo e aceitou o seu quinhão de 46 cabeças. Esse cavaleiro era nem mais nem menos do que o próprio Infante D.Henrique.
Lagos não se furta a expor essa verdade histórica.
Lagos também mostra o local onde depois levas sucessivas iriam ser mercadejados os escravos. E mais recentemente relata-se como eram atirados ao lixo quando morriam sem um pano a envolver os corpos. Até agora foram retirados desse monturo de Lagos os restos mortais de 158 indivíduos de etnia Banta.
Lagos mostra esse passado ao mundo para que nunca mais se repita. Talvez por isso estejamos aqui,no dia de hoje.
Aliás, a UNESCO criou a Rota do Escravo e inscreveu Lagos na Rota da Escravatura, para que saibamos como os seres humanos procedem uns com os outros, mesmo quando se fundamentam em religiões fundadas sob os princípios do amor e sob a lei dos direitos humanos.
Lagos mostra esse filme e faz-se parente de quem escreveu na porta de um lugar de extermínio moderno o pedido solene: Homens não se matem uns aos outros.
É verdade que só conhecemos o que sucedeu naquele dia 8 de agosto de 1444 porque o cronista do infante Dom Henrique o narrou. Eanes Gomes de Zurara não conseguiu evitar um sentimento de compaixão e comentou, de forma comovida, como a chegada e a partilha dos escravos era cruel. Felizmente que dispomos dessa página da “Crónica dos Feitos de Guiné” para termos a certeza de que havia quem não achasse justo semelhante degradação e o dissesse.
Aliás, sabemos que sempre houve quem repudiasse por completo a prática e o teorizasse.
O que significa que Lagos, a cidade dos sonhos do Infante de que Sagres é a metáfora, passados todos estes séculos, promove a consciência sobre o que somos capazes de fazer uns aos outros. Esta tornou-se, pois, uma cidade contra a indiferença.
É uma luta nossa, contemporânea.
Em Lagos, hoje em dia, está presente de outro modo a mensagem do cartoon de Simon Kneebone, datado de 2014, que tem corrido mundo.
A cena é nossa contemporânea. Passa-se no mar. Num navio enorme, aparelhado com armas defensivas, no alto da torre, está um tripulante que avista ao longe uma barca frágil, rasa, carregada de migrantes.
O tripulante da grande embarcação pergunta: de onde vêm vocês? Da lancha, apinhada, alguém responde: vimos da terra.
Sugiro que os jovens portugueses, descendentes de cavadores braçais, marujos, marinheiros, netos de emigrantes que partiram descalços à procura de trabalho, imprimam este cartoon nas camisas quando vão ao mar.
Consta que, em pleno século XVII, 10% da população portuguesa teria origem africana.
Essa população não nos tinha invadido. Os portugueses os tinham trazido arrastados até aqui. E nos miscigenámos.
O que significa que por aqui ninguém tem sangue puro. A falácia da ascendência única não tem correspondência com a realidade. Cada um de nós é uma soma.
Tem sangue do nativo e do migrante, do europeu e do africano, do branco e do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizou. Filhos do pirata e do que foi roubado. Mistura daquele que punia até à morte e do misericordioso que lhe limpava as feridas.
A consciência dessa aventura antropológica talvez mitigue a fúria revisionista que nos assalta pelos extremos nos dias de hoje, um pouco por toda a parte.
Agora que percebemos que estamos no fim de um ciclo e que um outro se está a desenhar, e a incógnita existencial sobre o futuro próximo, ainda desconhecido, nos interpela a cada manhã que acordamos sem sabermos como irá ser o dia seguinte.
A pergunta é esta: quando ficarem em causa os fundamentos institucionais, científicos, éticos, políticos e os pilares de relação de inteligência homem-máquina, entrarem num novo paradigma, que lugar ocuparemos nós como seres humanos? O que passará a ser um humano?
Comecei por dizer que Camões nasceu e nunca mais morreu.
Regresso à sua obra para procurar entender que conceito tinha a poeta sobre o que era um ser humano. Sobre si mesmo, toda a sua obra o revela como vítima da perseguição de todas as potestades conjugadas. A sua obra lírica é uma resposta a esse abandono essencial.
Em conformidade com essa mesma ideia, ao terminar o canto I d’Os Lusíadas, Camões define o ser humano como um ente perseguido pelos elementos: “Onde pode acolher-se um fraco humano,/ Onde terá segura a curta vida/ Que não se arme, e se indigne o Céu sereno/ Contra um bicho da terra tão pequeno”.
Nestes versos, se reconhece o conceito renascentista, o da grande solidão do ser humano e a sua luta estóica contra, centrada na confiança em si mesmo.
Mas, na prática, essa atitude representava uma orfandade orgulhosa que facilmente a fortuna não reconhecia. Curiosamente, no final da vida, o corpo nu de Camões só teve um lençol, o oferecido, a separá-lo da terra. Igual à sorte do seu corpo, essa sorte não difere daquela que mereceram os corpos dos escravos aqui em Lagos.
Mas entretanto, no século XIX, o direito à proteção beneficiada pelo Estado começou a emergir. Criaram-se documentos essenciais tendo em vista o respeito pelos cidadãos. Depois das duas guerras mundiais do século XX, foi redigida e aprovada a Carta dos Direitos Humanos e, durante algumas décadas, foi tentado implantá-los como código de referência um pouco por todo o mundo. Só que ultimamente regride-se a cada dia que passa.
O conceito de representatividade respeitável da figura do Chefe de Estado, oriundo do povo grego, princípio que sustentou a trama purificadora das tragédias clássicas, a que se juntou depois o princípio da exemplaridade colhida dos Evangelhos, essa conduta que fazia com que o rei devesse ser o mais digno entre os dignos, está a ser subvertida.
A cultura digital subverteu a regra da exemplaridade. O escolhido passou a ser o menos exemplar, o menos preparado, o menos moderado, o que mais ofende.
Um Chefe de Estado de uma grande potência, durante um comício, pôde dizer: adoro-vos, adoro os pouco instruídos. E os pouco instruídos aplaudiram.
Pergunto, pois, qual é o conceito hoje em dia de ser humano? Como proteger esse valor que até há pouco funcionava e não funciona mais?
Hoje, dia de Portugal, de Camões e das comunidades, não será legítimo perguntar, sem querer ofender quem quer que seja, perguntar como manteremos a noção de ser humano respeitável, livre, digno, merecedor de ter acesso à verdade dos factos e à expressão da sua liberdade de consciência?
Nós, portugueses, não somos ricos. Somos pobres e injustos. Mas, ainda assim, derrubámos uma longuíssima ditadura e terminámos com a opressão que mantínhamos sobre diversos povos e com eles estabelecemos novas alianças e criámos uma comunidade de países de língua portuguesa. E fomos capazes de instaurar uma democracia e aderir a uma união de países livres e prósperos que desejam a paz.
Assim sendo, por certo que ainda não temos as respostas, mas, perante as incógnitas que nos assaltam, sabemos que temos a força.
Leio Camões, aquele que nunca mais morreu, e comovo-me com o seu destino, porque se alguma coisa tenho em comum com ele, que foi génio, e eu não sou, é a certeza de que partilho da sua ideia, de que um ser humano é um ser de resistência e de combate. É só preciso determinar a causa certa.
Muito obrigada.»
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Nota do editor
Último post da série de 10 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26903: Efemérides (458): foi há 52 anos, o 10 de junho de 1973, Dia de Portugal, o último sob o regime do Estado Novo ("Diário de Lisboa", 11 de junho de 1973)
Guiné 61/74 - P26912: Diálogos com a IA (Inteligência Artificial) (4): A Canção dio Cherno Rachide (tr. e adapt. de Manuel Belchior): quem teria sido a o sábio Logomane ? Um figura histórica ou uma personagem lendária ou alegórica ?
Capa do livro de Manuel Belchior - Grandeza africana : lendas da Guiné Portuguesa [S.l. : s.n., s.d.] (Lisboa : Oficinas de S. José : Edições O Mosquito. - 125 p., 23 p. il. (capa e il. de José Antunes, 1937-2010) (Cortesia de Torcato Mendonça, 1944 -2021)
Canção do Cherno Rachide
Filhos amados, vosso pai Rachide
Uma regra de vida vos vai dar,
Segui-a com rigor e não tereis
Nada que lastimar.
Raparigas, sabei que um homem espera
Encontrar na mulher três qualidades:
Respeito aos seus segredos, ao leito
E a todas as vontades.
A vós, rapazes, dou-vos um conselho
Que todo o sábio para si tomou
De outro, ainda mais sábio, Logomane,
Que outrora assim falou:
- «Deves ter fé em Deus que tudo vê
«E tudo pode acerca dos mortais,
«Trabalha com ardor e serás útil
«A ti e aos demais.
- «Estuda e elevarás a tua alma
«Que os livros bons te podem ensinar
«Muitas coisas formosas deste mundo
«E a Deus agradar.
- «A palavra, o alimento e o sono
«Como remédio deverás tomar:
«O bastante p’ra que o corpo não sofra
«Mas sem nunca abusar.
- «A boca é uma e as orelhas duas.
«Isso te indica como proceder,
«Usa o ouvido mais do que o falar
«E saberás viver.
- «Em três partes o estômago divide,
«P’ra comida só uma reservar,
«As outras hão-de ser bem necessárias
«P’ra água e para o ar.
- «A noite é grande e não deve ser gasta,
«Do sol posto à manhã, toda a dormir,
«Destina parte dela à oração,
«Terás feliz provir.
- «Deves casar p’ra nunca cobiçares
«Mulher doutro. Não nego, o casamento
«Traz desgosto profundo.
«Mas se a fêmea procuras fora dele,
«Em vez desse desgosto terás dois,
«Neste e no outro mundo".
Meus filhos, quem seguir estes conselhos
No decurso da vida há-de contar
Satisfação a esmo.
E maiores triunfos que o atleta
Que vença toda a gente nos torneios,
Pois vence-se a si mesmo.
- ter fém em Deus;
- trabalhar com ardor;
- estudar;
- usar com moderação a palavra, o alimento e o sono;
- saber ouvir;
- comer frugalmente;
- dormir o suficiente;
- orar;
- casar;
- não cobiçar a mulher alheia...
Quem terá sido o sábio Logomane, que vem citado em "A Canção do Cherno Rachide", imã que morreu em setembro de 1973 na antiga Guiné Portuguesa ? A Canção foi alegadamente traduzida do árabe pelo etnógrafo português Manuel Dias Belchior (ou Manuel Belchior, n. 1911). (Temos dúvidas se o Manuel Belchior era fluente em árabe, fula e mandinga; ou se fonte original oral não seria antes o fula; o Cherno Rachide era futa-fula.)
(i) Resposta da Gemini IA / Google
Logomane e a Canção do Cherno Rachide
Sinto muito, mas não consigo encontrar informações sobre um sábio chamado Logomane que esteja diretamente ligado a Cherno Rachide, um imã que teria morrido em setembro de 1973 na antiga Guiné Portuguesa.
É possível que a referência a "Logomane" seja:
- Uma figura local ou tribal menos documentada: a Guiné Portuguesa (atual Guiné-Bissau) tinha umo rico painel de líderes religiosos e comunitários; pode ser que Logomane fosse uma figura respeitada num contexto local, mas cuja história não foi amplamente registada;
- Um nome simbólico ou alegórico: em muitas tradições orais e canções, nomes podem ser usados metaforicamente para representar sabedoria, antiguidade ou um idealM
- Uma grafia alternativa: o nome pode ter sido registado de diferentes formas ao longo do tempo;
- Informação pouco divulgada: a história de Cherno Rachide e a "Canção do Cherno Rachide" podem ser parte de um corpo de conhecimento oral ou documentos menos acessíveis publicamente.
Ao que tudo indica, Logomane é uma figura de sábio ou mestre citada na "Canção do Cherno Rachide", e não um indivíduo historicamente documentado de forma independente em registos ocidentais.
Fragmentos da canção que circulam online, mencionam Logomane com frases como:
"De outro, inda mais sábio, Logomane / Que outrora assim falou: - Deves ter fé em Deus que tudo vê. / E tudo pode acerca dos mortais. / Trabalha com ardor e serás útil. / A ti e aos demais. - Estuda e elevarás a tua alma. / Que os livros te podem ensinar. / Muitas coisas formosas deste mundo. / E a Deus agradar. - A palavra, o alimento e o sono. / Como remédio deverás tomar: O bastante p'ra que o corpo..."
Estes versos sugerem que Logomane é um porta-voz de valores religiosos, morais e educacionais, comuns nas tradições islâmicas e orais da região. Ele representa a sabedoria ancestral e a importância da fé, do trabalho e do estudo.
Para aprofundar a pesquisa: Consultar as obras de Manuel Belchior: se tiveres acesso a "A Grandeza Africana – Lendas da Guiné Portuguesa" ou "Contos Mandingas", poderás encontrar o contexto completo da canção e, possivelmente, mais informações sobre Logomane e a sua significância dentro da tradição que Belchior recolheu. (...)
(ii) Perplexiti IA
O sábio Logomane citado em "A Canção do Cherno Rachide"
Identidade de Logomane
Na canção "A Canção do Cherno Rachide", traduzida do árabe para português por Manuel Belchior, surge a referência a um sábio chamado Logomane, de quem se cita um ensinamento: “Deves ter fé em Deus que tudo vê. E tudo pode acerca dos homens”...
Contexto da referência
A citação de Logomane parece funcionar, no contexto do poema, como uma invocação de autoridade tradicional e sabedoria religiosa, típica da literatura oral e da poesia islâmica da África Ocidental.
Sobre o Cherno Rachide
O Cherno Rachide, imã muçulmano e figura religiosa de grande prestígio na região de Quebo (Aldeia Formosa, na época colonial), faleceu em setembro de 1973, pouco antes da proclamação unilateral da independência da Guiné-Bissau.
Conclusão
A referência a Logomane em "A Canção do Cherno Rachide" deve ser entendida como evocação de uma autoridade tradicional de sabedoria islâmica, sem que haja, até ao momento, confirmação documental de se tratar de uma figura histórica específica. O uso do nome reforça o tom de transmissão oral e de respeito pela cadeia de mestres espirituais típica da poesia religiosa da África Ocidental.
Manuel Belchior foi um funcionário colonial português com formação superior (Escola Superior Colonial) que desempenhou uma longa carreira administrativa no Ultramar Português, especialmente na Guiné Portuguesa, entre 1938 e 1961.
Além da recolha de lendas, Belchior também se interessou por questões antropológicas, analisando costumes, sistemas de sucessão e relações sociais das comunidades locais. Foi ainda autor de estudos históricos e culturais, como "Sobre a origem do termo Guiné", publicado no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa.
O seu legado é relevante para a preservação da memória oral e cultural da Guiné-Bissau, tendo contribuído para o conhecimento das tradições africanas junto do público lusófono e académico.
Apesar do contexto colonial, a sua metodologia de recolha etnográfica tem sido reconhecida por preservar a identidade cultural e literária da Guiné-Bissau.
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(**) Vd. postes de;
7 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22076: Antropologia (42): "Grandeza Africana, Lendas da Guiné Portuguesa", por Manuel Belchior (2) (Mário Beja Santos)
Guiné 61/74 - P26911: Álbum fotográfico de João Moreira (ex-Fur Mil Cav da CCAV 2721 - Olossato e Nhacra, 1970/72) (32)
1.ª Fila (à frente): Fur Mil Moreira; Cabos: Brito, Nunes, Lopes, Rodrigues, Anselmo, Costa Pereira (milícia do Pelotão de Milícias do Olossato) e Fur Mil Justino;
2.ª Fila (ao meio): Soldados: Roque, Cunha, Rafael, Costa, Caetano, Salvador e Dias;
3.ª FILA (em pé): Fur Mil Ramalho; Soldados: Marques, Sousa (padeiro), Albano, Martins, Belejo, Barata, Correia, Henriques, Duarte, Simões e Alf Mil Silva.
Nota de João Moreira:
Esta é provavelmente a primeira fotografia que fizemos quando chegamos à Guiné, e é a minha homenagem ao meu 4.º Grupo de Combate, que foi o único que regressou completo. Vieram todos os militares que embarcaram em Lisbo no dia 04 de Abril de 1970, no navio TT Carvalho Araújo.
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Nota do editor
Último post da série de 5 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26887: Álbum fotográfico de João Moreira (ex-Fur Mil Cav da CCAV 2721 - Olossato e Nhacra, 1970/72) (31)
Guiné 61/74 - P26910: S(C)em comentártios (72): Em Fulacunda, a tropa mal tinha o necessário para a sua própria alimentação, quanto mais alimentar 400 bocas civis e muçulmanas (Cherno Baldé, Bissau)
(*) Vd. poste de 9 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26900: Recordações de um fulacundense (Armando Oliveira, ex-1º cabo, 3ª C/BART 6520/72, 1972/74) - Parte IX
quarta-feira, 11 de junho de 2025
Guiné 61/74 - P26909: Os 50 anos da independência de Cabo Verde (1): a "nova força africana" e a falta de formação em liderança e sensibilidade sociocultural de oficais e sargentos metropolitanos (José Macedo, ex-2º ten fuzileiro especial RN, DFE 21, Cacheu e Bolama, 1973/74)
Assunto - Problemas de formação em lideranca e conhecimento das culturas da Guine Bissau no nosso tempo
A falta de instrução e treino em liderança e em consciência cultural para oficiais e sargentos no exército português durante a Guerra Colonial foi uma falha significativa, e vários fatores contribuíram para isso:
- Mentalidade colonial rígida: o regime do Estado Novo via as colónias como extensões de Portugal, não como sociedades distintas; isso levou a uma abordagem militar focada na dominação e controle, em vez de integração e compreensão cultural;
- Doutrina militar tradicional: na instrução e treino dos oficiais dava-se prioridade a táticas de combate e à disciplina, sem ênfase na liderança adaptativa ou na gestão de tropas de composição multicultural;
- Resistência à descolonização: Portugal lutava contra movimentos de independência e não queria fortalecer lideranças locais que pudessem desafiar a sua autoridade; isso resultou na falta de investimento em instrução e treino para comandar tropas africanas de maneira eficaz;
- Operações secretas e foco na guerra irregular: missões como a Operação Mar Verde, que envolveu a invasão de Conacri para tentar capturar Amílcar Cabral e desestabilizar o governo de Sékou Touré, mostravam que Portugal estava mais preocupado com ações militares diretas do que com a formação de líderes capazes de lidar com a complexidade cultural da guerra;
- Desconfiança e vigilância política: o regime do Estado Novo temia que oficiais treinados em liderança e cultura pudessem simpatizar com os movimentos de libertação; a presença da PIDE/DGS dentro das forças armadas reforçava um ambiente de repressão e controle, dificultando qualquer tentativa de desenvolver uma abordagem mais humanizada.
Em 2017, eu e o Zeca Macedo voltámos, muito brevemente, ao passado. Com a dupla nacionalidade, cabo-verdiana e americana, ele conhece e é amigo de diversos combatentes e dirigentes do PAIGC contra os quais combateu no TO da Guiné. Seria o caso, por exemplo, do antigo presidente da República de Cabo Verde, Pedro Pires. Mas não gosta de falar desse passado fraturante, o que se entende...
(*) Vd. poste de 13 de fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2532: Tabanca Grande (56): José J. Macedo, ex-2º tenente fuzileiro especial, natural de Cabo Verde, imigrante nos EUA
Guiné 61/74 - P26908: Historiografia da presença portuguesa em África (485): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1924 a 1925, continuamos na era do governador Vellez Caroço (39) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Dezembro de 2024:Queridos amigos,
Estamos a viver a época das circunscrições civis, a Guiné vive numa angustiante situação económica e financeira, o próprio BNU chegou a proibir as transferências para a metrópole, houve insurreição no território do comando militar dos Balantas, de Nhacra a Jugudul, não foi fácil de sanar, os acontecimentos dos Bijagós exigiram uma expedição militar, com o governador à frente, houve muito tiroteio, mortes e feridos. Excecionalmente, este texto deu lugar a uma série de anúncios que são reveladores do grau de transparência com que o governador agia, era meticuloso na análise dos dossiês, comprova-se com o despacho que ele elaborou sobre a situação dos médicos na Guiné, era igualmente um governador que acompanhava as situações do abastecimento interno, e por isso aqui se mostra a sua decisão de impedir temporariamente a exportação de arroz, para que não faltasse este alimento básico à população.
Um abraço do
Mário
A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1924 a 1925, continuamos na era do governador Velez Caroço (39)
Mário Beja Santos
O governador Vellez Caroço também se distinguiu e singularizou pela forma como comunicava com os cidadãos. Nenhum outro governador fez publicar com tanta minúcia os relatórios das operações ou explicar cabalmente os motivos que as empreendia. Vimos em texto anterior como se pauta pelo rigor e tratamento de equidade nos casos de infrações, desleixos e sanções de todo o tipo quer na administração civil quer na administração militar. Vamos começar por ver as imagens e comentá-las de acontecimentos passados em 1924, a Guiné vive ainda sequelas da Primeira Guerra Mundial, cresceu o número daqueles que pedem concessões, há sociedades agrícolas em plena atividade (embora com vida precária, como a Estrela de Farim ou a Sociedade Agrícola do Gambiel). O destaque do ano vai para os acontecimentos militares e mostra-se o teor de um despacho que tem a ver com o cuidado que o governador punha nos serviços de saúde.
Uma amostra de como o governador cuidava do abastecimento interno, estava atento aos preços do arroz, por isso decretou a exportação desse alimento até ver a normalização de transportes marítimos.
No Boletim Oficial n.º 25, de 26 de junho, publica-se um despacho do governador, que reza o seguinte:
“Não concordo com o parecer do Conselho de Saúde e Higiene na parte referente a considerar mais importante e de necessidade mais instante a colocação de um médico em Cacheu, do que prover o importante centro comercial, que é Bissau, com uma população tanto indígena como europeia maior do que Bolama e com tendências pronunciadas com rápido crescimento dos recursos clínicos reclamados pelo seu comércio e Câmara Municipal. De há muito venho reconhecendo essa necessidade e sempre considerei a cidade de Bissau como sendo a povoação da Guiné que melhor e mais urgentemente precisa ser dotada de um bom hospital com todos os melhoramentos que se encontram em outras colónias nossas, apesar de estarem em piores condições financeiras do que a Guiné, e por consequência, com os respetivos serviços médicos. A necessidade dos dois médicos em Bissau, quando não tivesse outros argumentos que a defendesse, bastava a circunstância providenciada de importantes lucros auferidos pelos que ali têm feito e fazem serviço, para plenamente a justificar. É incontestável que mesmo com dois médicos, o serviço clínico de Bissau é remunerado por forma tal que qualquer dos médicos fica com lucros superiores ao chefe e subchefe dos serviços de saúde da província.
Cacheu está há muito tempo sem médico, assim como o estão outros centros importantes e mais populosos da Guiné. Esse inconveniente está hoje, até certo ponto, compensado com as facilidades que há de comunicações, que permitem socorros médicos rápidos e o transporte de doentes para Bissau, como frequentemente está sucedendo. De resto, folgo bastante em constatar que o Conselho de Saúde e Higiene concorda com a necessidade de haver dois médicos em Bissau, como aliás já está consignado no Regulamento de Saúde, apresentando como único inconveniente para que Bissau seja desde já dotado de assistência clínica por dois médicos a falta que presentemente há de facultativos na província, mas, certamente o Conselho esqueceu que se apresentou recentemente na direção dos serviços de saúde o médico de Cacheu, o Dr. Sant’Ana Barreto, que muito bem podia voltar ao seu antigo lugar, visto que a Saúde considera tão imperiosa a necessidade de haver médico em Cacheu (e assim será se essa necessidade se confirmar) sendo dispensável o provimento desde já de diretor, interino, do Laboratório Central de Análises, pois esse cargo está desocupado há pelo menos quatro anos, embora oficialmente constasse que estava a cargo do sr. chefe dos Serviços de Saúde. Não há, pois, razão para deixar de atender as justas pretensões de Bissau, tendo chegado agora a oportunidade de restabelecer um pouco o equilíbrio de interesses dos médicos do quadro da Guiné, reduzindo aos limites do razoável a ucharia de Bissau, que tantos dissabores tem causados aos governadores da província pela luta de interesses que sempre provoca quando se lhe pretende bulir.
O Governador tem de orientar-se pelo bem geral ou interesses e comodidades do maior número, embora tenha de ir ferir interesses e necessidades, aliás ainda não criadas, do ilustre facultativo que é agora chamado a chefiar a secção médica de Bissau e por quem tem a maior consideração. Os outros pontos da província, e especialmente Cacheu, terão médico quando a Guiné tiver o seu quadro de saúde completo. Bolama terá dois médicos, Bissau terá dois. Cumpre-se assim o que está estabelecido no Regulamento de Saúde. É o que em última análise determino; indo para Bissau o Dr. José Vitorino Pinto e ficando ali fazendo serviço o Dr. Brandão que já lá se encontra e tem prestado serviços clínicos em Bissau a contento de toda a população. O Dr. Sant’Ana Barreto, se o sr. chefe dos serviços de saúde entender que os seus serviços são mais necessários em Bolama, poderá aqui continuar como diretor interino do Laboratório de Análises.”
Novo ciclo de rebeliões nos Bijagós, Canhabaque atacou à mão armada as forças do destacamento, o governador anuncia estado de sitio
Ficou na História com o nome Golpe dos Generais, Filomeno da Câmara pertencia à Cruzada Nun’Álvares, caminhamos passo a passo para o 28 de maio de 1926
Um dos problemas mais graves da economia guineense, havendo mesmo paralisação da economia, de tal modo que nem os funcionários públicos podiam transferir dinheiro para a metrópole, era resultado dessa suspensão do BNU, pelo que o governador autoriza as firmas comerciais a título provisório a fazer livremente transferências de dinheiro para a metrópole.
(continua)
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Nota do editor
Último post da série de 4 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26881: Historiografia da presença portuguesa em África (484): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, de 1922 para 1923, é a era do governador Vellez Caroço (38) (Mário Beja Santos)




















