terça-feira, 4 de novembro de 2014

Guiné 63/74 - P13848: Memórias da CCAÇ 2616 (Buba, 1970/71) (Francisco Baptista) (6): Uma consulta no HM 241 interpretada como um abandono do pelotão que comandava

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 25 de Outubro de 2014, com mais uma memória de Buba:


Memórias da CCAÇ 2616

6 - Uma consulta no HM 241 interpretada como um abandono do pelotão que comandava

Camaradas e amigos

Após a reforma li muitos livros para me reconciliar com um velho prazer que tinha descurado bastante tempo. Ler é melhor do que escrever pois a leitura enriquece o espírito enquanto a escrita... o acto de escrever é em si uma tarefa empolgante como desafio como paixão mas depois de concluído, o seu resultado deixa de entusiasmar o autor.

O acto de escrever será parecido com outros actos que praticamos com muita euforia, com muita adrenalina enquanto os praticamos e depois nos deixa na boca um sabor amargo a fim de festa e a desengano. Quantos escritores já não ouvimos dizer que não mais releram o livro que tinham escrito. Os grandes escritores naturalmente pensam num público, tal como os cantores, pintores e outros artistas mas julgo que escrevem também porque têm a cabeça cheia de palavras e essa foi a forma que encontraram para se libertarem do seu excesso.

Acabei de ler há poucos dias o livro "Das Trincheiras com Saudade" da Isabel Pestana Marques.
O livro descreve a vida quotidiana dos militares portugueses na 1.ª Guerra Mundial. Está muito bem escrito com grande preocupação de objectividade e com muito trabalho de pesquisa da autora.

Neste tempo em que os nossos políticos, a reboque dos políticos europeus, segundo opinião do camarada Luís Graça, e ele costuma estar bem informado, resolveram relembrar esses pobres camaradas das trincheiras, tão maltratados pela República, mal vestidos, mal armados, mal alimentados, mesmo se por suspeita foi encomenda deles, não deixa de ser um bom livro sobre o tema, segundo a minha opinião que não é de um critico de literatura e muito menos de livros histórico-militares.

Entre muitos assuntos recordo de falar em problemas entre soldados e graduados, já que as diferenças de regalias e tratamento eram chocantes, ainda por cima se se pensar que o regime político desse tempo se proclamava defensor das virtudes republicanas.
Conta nomeadamente como através de cunhas de vários tipos, familiares, amigos, médicos, etc. muitos graduados, sobretudo oficiais, fugiam à frente de combate. Muitos passavam longas férias em Portugal e outros havia que regressavam por qualquer doença e não mais voltavam.
A par disso havia companhias inteiras que por falta de rotação chegavam a passar mais de um ano na linha da frente das trincheiras, muitas vezes à chuva, à neve a ter que suportar temperaturas inclementes sem roupa nem alimentação adequada.

Tudo isso provocava sentimentos de grande revolta, chegando a haver algumas vezes sublevações de companhias inteiras e até de batalhões. Ainda é cedo para se escrever a história da guerra do ultramar e de retratar conflitos semelhantes que lá se terão gerado. Este blogue também não é o sitio próprio para se falar desse assunto. A organização militar já é em si uma pirâmide em que os postos ou escalões inferiores têm que obedecer, sem discussão, sempre aos superiores.
Os exércitos foram concebidos como máquinas de guerra, normalmente alheios a regras democráticas pela sua própria finalidade. Quarenta anos de ditadura e obediência cega à autoridade devem também ter contribuído bastante para retirar à maioria dos portugueses a vontade de praticar actos de indisciplina e rebeldia.

Num convívio recente da CCaç 2616, muitos anos já anos passados e com outra liberdade e abertura de espírito, foi interessante ouvir o que uns e outros tinham a dizer sobre o comportamento e a personalidade de cada um nessa época. Procurei falar bastante com os camaradas do meu pelotão e criar um ambiente descontraído que pudesse dar lugar a críticas da personalidade de cada um, nesse tempo. Gostaram do desafio e disseram-me que ficaram surpreendidos porque eles recordavam-se de mim como um tipo mais fechado, menos comunicativo.

Nesse ambiente de cordial e descontraído houve um soldado, o mais falador, que me disse o seguinte: "Passados poucas dias daquela emboscada na Bolanha dos Passarinhos, o alferes foi quinze dias para Bissau, alguém do pelotão se queixou várias vezes que nos tinha abandonado nesses tempos difíceis em que chegámos a ter três emboscadas no mesmo dia".

Eu fui a Bissau a uma consulta já marcada antes dessa emboscada em que comandava o pelotão, sem prever que as condições de guerra se iriam agravar. Quando regressei de Bissau soube que a companhia tinha passado por um período difícil, mas não me recordo de ouvir dizer que o meu pelotão tivesse tido três emboscadas no mesmo dia. Esse camarada que me terá criticado pela minha ausência, além de ser muito competente, era muito frontal e não me lembro de alguma vez me pôr essa questão. Também esteve no convívio mas não lhe cheguei a falar nisso.

Por outro lado, o camarada que me contou isto acredito que não foi por má fé ou por querer fazer intriga. Tanto por um como pelo outro tenho e sempre grande estima e consideração.
Nada disto é importante e grave, interessante é analisar aquilo que à distância de mais de 40 anos recordamos de muitas formas diferentes, mais vivas, já esquecidas, mais apagadas, mais fantasiadas.

Reconheço também que eu pela proximidade com o alferes médico tive a possibilidade de ir passar 15 dias a Bissau e a maior parte dos camaradas não a tinham. De resto garanto-vos que passei toda a minha comissão no mato, em Buba ou em Mansabá.

Um abraço a todos os camaradas
Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de Abril de 2014 > Guiné 63/74 - P13064: Memórias da CCAÇ 2616 (Buba, 1970/71) (Francisco Baptista) (5): Pequenas estórias de medo, pesadelo e apanhados do clima

Guiné 63/74 - P13847: Da Suécia com saudade (41): A ajuda sueca ao PAIGC, de 1969 a 1973, foi de 5,8 milhões de euros (Parte II)... Um apoio estritamente civil, humanitário, não-militar, apesar das pressões a que estavam sujeitos os sociais-democratas, então no poder (José Belo)

José Belo 
1. Mais alguns dados sobre a ajuda sueca ao PAIGC, a partir de 1969, e depois à Guiné-Bissau, a seguir à independência (*):

Data: 3 de Novembro de 2014 às 22:17
Assunto: Sobre a Guiné-I ( alguns números).


Resumo: Durante a guerra o governo sueco enviou para o PAIGC um total de 53,5 milhöes de coroas,ao valor actual.  Destinaram-se a financiar a maioria das actvidades civis do partido: a limentacäo, transportes, educacäo, saúde,  incluindo  um vasto número de avultados fornecimentos ás Lojas do Povo. 

A Guiné foi posteriormente incluída (como único país da África Ocidental) nos chamados "países programados" para a distribuicäo da assistência sueca ao desenvolvimento. Recebeu  durante o período de 74/75 a 94/95  2,5 mil milhões  de coroas suecas [c. 270 milhões de euros], colocando a Suécia entre os 3 maiores assistentes económicos da Guiné-Bissau.


O programa sueco de cooperacäo civil-humanitária foi, durante largo período, não igualado por qualquer outro país.


"Apoia o PAIGC" (em, sueco).
Cartaz de finais dos anos 60, 
Uppsala South Africa Committee 
(mais tarde, Africa Group).
Cortesia de  
.
A importância da colaboracäo com o PAIGC,  
quanto ao envolvimento futuro da assistência sueca aos movimentos de libertacäo da África Austral, 
näo pode ser subestimada.

Foi em relação ao PAIGC que a Suécia estabeleceu o primeiro programa de assistência directa e oficial a um movimento de libertação africano, estando este envolvido numa luta armada com uma nação europeia (Portugal) que mantinha formais ligações comerciais com a Suécia.

[Recorde-se que faziam ambos parte da EFTA - European Free Trade Association, Associação Europeia de Comércio Livre, fundada a 4 de Janeiro de 1960 na cidade de Estocolmo, por 6 países: Áustria,  Dinamarca,  Noruega, Portugal, Reino Unido, Suécia e Suíça; Portugal foi membro da EFTA até à sua entrada para a CEE, em 1986].

Este facto veio a determinar o carácter e os limites da assistência sueca, apesar dos contínuos apelos por parte dos movimentos de solidariedade não governamentais em conjunto com os partidos políticos da esquerda, e de um vasto número de membros do partido social democrata que então governava.

Todos eles exigiam um tipo de apoio incondicional, ou seja, que o PAIGC determinasse quais as aplicações dos auxílios económicos recebidos.

Apesar de todas estas pressões, foi mantida a decisão  de o apoio ter como base única o seu aspecto de assistência civil, humanitária....e não militar.

De qualquer modo,e de acordo com Stig Lövgren, responsável pelo programa de cooperação entre a Swedish International Development Authority (SIDA em Sueco) e o PAIGC, em encontro tido com Amilcar Cabral em 1969,  este lhe terá dito ser este  tipo de assistência civil o desejado pelo partido.

Na opiniäo de Cabral, os fornecimentos de armas e outros equipamentos militares por parte da União Soviética e outros países aliados  tornavam desnecessários qualquer apoio nesta área.

José Belo

(continua)
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Nota do editor:



Guiné 63/74 - P13846: X Encontro Nacional da Tabanca Grande (1): Foi já feita a reserva para a nossa festa de 18 de Abril de 2015 no Palace Hotel de Monte Real (Joaquim Mexia Alves / Carlos Vinhal)

Monte Real, 14 de Junho de 2014 > Foto da Grande Família do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné
Foto: © Manuel Resende  (2014). Todos os direitos reservados.


1. Mensagem da Organização à Tertúlia:

Uma pequena nota para comunicar que o nosso camarada Joaquim Mexia Alves já confirmou a reserva do Palace Hotel de Monte Real para o X Encontro Anual da Tabanca Grande que se realizará no próximo dia 18 de Abril de 2015.

Esta data foi escolhida para evitar a sobreposição do nosso Encontro com as dos Convívios das Unidades, normalmente a terem lugar a partir do mês de Maio.

Mais informamos que os preços dos anos anteriores se mantêm, tanto para o almoço, 30€ por pessoa, lanche ajantarado incluído, assim como para as dormidas, 55€ single e 60€ duplo.

As inscrições serão abertas oportunamente, talvez fins de Fevereiro, princípios de Março de 2015.

Os organizadores ficam ao dispor dos interessados para qualquer esclarecimento adicional.

Luís Graça
Joaquim Mexia Alves
Miguel Pessoa
Carlos Vinhal

Guiné 63/74 - P13845: In Memoriam (201): Coronel Piloto Aviador Manuel Bessa Rodrigues Azevedo (1938-2014): "Blé, eu sei que, lá por onde andas, estás em boa companhia, com os amigos pilotaços Brito, Moura Pinto, Mantovani, Gil e as enfermeiras Manuela e Piedade" (António NMartins de Matos, ten gen pilav). …


Cor pilav Manuel Bessa Rodrigues de Azevedo (1938-2014)


1. Mensagem do nosso camarada da FAP e membro da Tabanca Grande António Martins de Matos

Data: 3 de Novembro de 2014 às 23:42
Assunto: Coronel Piloto Aviador Manuel Bessa


A notícia apanhou-me de surpresa, … morreu o "Blé" [, no passado dia 30 de outubro; tinha 76 anos].

O "Blé" era o Coronel Piloto Aviador Manuel Bessa Rodrigues de Azevedo, amigo de longa data e companheiro de muitas das missões mais arriscadas que executei na Guiné.

Para a maior parte dos militares que combateram no Ultramar o seu nome não deve dizer nada de especial e no entanto alguns devem tê-lo visto em voos picados, alguns dos que regressaram à Metrópole sãos e salvos certamente a ele o devem.

Eis a sua história da Guiné:

Quando em Abril de 1973 o aparecimento repentino dos Strelas produziram os efeitos que são do conhecimento geral, constatou-se que apenas restavam 4 pilotos aptos a voar o FIAT-G91, 2 na Esquadra 121-Tigres e outros 2 com o estatuto de "adidos", o Comandante da Zona Aérea e o Comandante da Base, ambos Coronéis.

Pelas suas funções, estes últimos apenas podiam participar em voos pré-planeados, não assegurando as missões de pedidos de apoio aéreo.

Nesta situação de emergência, a solução encontrada pelo Estado Maior para minorar a escassez de pessoal foi nomear 2 pilotos da Base de Monte Real para um destacamento imediato e de 2 meses.
O então Cap Pilav Bessa foi um dos escolhidos, tinha regressado de uma comissão em Moçambique, estava qualificado em FIAT G-91 mas nunca tinha estado na Guiné.

Um segundo piloto foi igualmente nomeado mas …. nunca chegou a aparecer.

No meio de toda aquela situação crítica em que nos encontrávamos,  ainda havia um pouco de "humor" que nos fazia sorrir e avançar no dia-a-dia, os 2 pilotos da Esquadra (o Pipoca e o Batata) foram esperar o "Blé" ao aeroporto de Bissau mesmo à porta do Boeing da FAP:  eu levava um "braço ao peito", o outro piloto tinha a "cabeça entrapada", logo lhe dissemos que a guerra não podia esperar, havia um alerta imediato para sair e naquele momento nós estávamos inoperacionais, tinha que ser ele a efectuar a missão.

Completamente atrapalhado,  ainda balbuciou algumas desculpas, não conhecia o terreno, logo lhe aprontei um mapa, a missão era lá para o Leste, "vais sempre a direito, não há nada que enganar", não tinha capacete, demos-lhe um (que nem lhe servia…), …..

Passado o efeito desta praxadela com muitas risadas e palavrões à mistura, logo nos dias seguintes o "Blé" passou a acompanhar-nos em todas as missões, sempre a número 2 não fosse o caso de se perder, ainda estávamos na época seca e de visibilidade reduzida, depois de largarmos o nosso armamento era só dizer-lhe onde ele devia largar a sua carga, mais à frente, atrás, direita, esquerda, aos poucos lá se foi começando a ambientar com o território, com as manobras anti-míssil e com o armamento (bem diferente do que tinha usado em Moçambique).

Foi assim que, apenas chegado a terras da Guiné, logo o "Blé" executou missões em todos os locais onde a intervenção dos FIAT-G91 foi solicitada, no Guidaje, Cufeu, Choquemone, Cantanhês, Guileje, Gadamael,…

Foi ele que inúmeras vezes me protegeu a retaguarda…

Foi ele que me alertou de 2 dos mísseis com que o PAIGC me quis presentear…

Foi ele um dos que presenciou (ao vivo) os acontecimentos de Guileje, até ficou registado num livro que escreveram sob o tema.

Foi ele que, com o seu espírito alegre e brincalhão, transformou os nossos jantares até então tristes e monótonos,  em alegres cavaqueiras, capazes de nos fazer esquecer todos os maus momentos daquela época.

- Blé, eu sei que, lá por onde andas, estás em boa companhia, com os amigos pilotaços Brito, Moura Pinto, Mantovani, Gil e as enfermeiras Manuela e Piedade. … Um dia, os do grupo que ainda estamos cá "em baixo", vamos visitar-te. Vamos recordar todas aquelas aventuras, desventuras e travessuras que fizemos! Prepara-te, vai ser uma festa de arromba!!!! (*)

Até sempre,  companheiro! (**)

António Martins de Matos [ex-ten pilav, BA 12, Bisslanca, 1972/74]

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 28 de outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13815: In Memoriam (201): Bruna Durães (26/3/2003 - 28/10/2014), a neta mais velha do nosso querido amigo e camarada Benjamim Durães, ex-fur mil op esp. CCS/BART 2917 (Bambadinca, 1970/72)... O corpo estará ao fim da tarde em câmara ardente, na capela do Socorro, junto ao Mosteiro de Jesus, em Setúbal. O funeral será amanhã às 11h.

(**) Vd. aqui a sua biografia na página da Associação de Combatentes de Avintes > 31 de Outubro de 2014 > BLÉ - aqueles que da lei da morte se vão libertando

(i) Nasceu no lugar de Montes, freguesia de Olalhas, concelho de Tomar, distrito de Santarém, a 21 de Junho de 1938:

(ii) O "nickbname" Blé foi-lhe pela mana, ligeiramente mais velha;.

(iii) Por volta dos cinco anos, os pais, professores do ensino primário, mudaram-se para Avintes, concelho de Vila Nova de Gaia;

(iv) Depois do liceu no Porto, frequentoui a Academia Milita em Lisboa onde tirou o curso de aeronáutica;

(v) Foi escolhido para integrar o grupo dos Falcões, elite dos pilotos da FAP,  localizado na Base Aérea de Monte Real, voando então no F-86 Sabre, caça supersónico, monolugar e monomotor, avião da Nato;

(vi) Com a giuerra do do Ultramar, teve de mudar para o Fiat G 91, "similar ao Sabre mas não tão bom":

(vii) A sua primeira comissão foi no Norte de Moçambique, seguindo-se a Guiné e depois Angola; estava destacado em Cabinda quando ocorreu o 25 de Abril.

Para saber mais clicar aqui


Guiné 63/74 - P13844: (Ex)citações (246): Encontros imediatos do 3º grau... Eu e o roqueteiro, cubano, de Ponta Varela, na véspera de ir de férias para Lisboa... (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp, CART 3494, Xime, 1972/74)


Guiné > Bissau > Aeroporto de Bissalanca > 5 de fevereiro de 1973 > O Jorge, depois de um encontro imediato do 3º grau... "Momento de descontração, antes do embarque na TAP para gozo do segundo período de trinta e cinco dias de férias. A mala vermelha, outra companheira que me acompanhou durante o serviço militar de três anos, está hoje cheia de histórias e de memórias". (JA)

Foto: © Jorge Araújo (2010). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]

1. No dia 30 de outubro passado, mandei ao Jorge Araújo a seguinte mensagem:


Jorge: Antes de mais, e falando do futuro: boa continuação dos teus altos estudos...

Voltando ao passado, dá uma vista de olhos a este poste com mais um capítulo da história do BART 3873 (*)... Onde se fala em: (i) "desmoralização" da CART 3494, explorada pelo IN em Mansambo; e ainda de (ii) cubanos na Ponta Varela...

Ouvi dizer (, o Espírito Santo de orelha,) que tiveste um encontro imediato do 3º grau com um destes "revolucionários internacionalistas"... Es verdad ?

Bj para  tua senhora doutora. Um abraço fraterno para ti, Luis

PS - Vou abrir uma série "Postos Escolares Militares"... Excelente o teu álbum... Dei um "retoque" às fotos, como deves ter reparado... Ob


2. Resposta imediata do Jorge:


Caro Luís; Quanto aos estudos (actividade académica), estou a precisar de reforma (...)

Relativamente ao assunto mais polémico... si, es verdad...

O último texto que te enviei (...), com o título «A Actividade Operacional da CART 3494...» (**), relata a minha última missão no Xime [, antes de irmos para Mansambio] , ocorrida em 3 de fevereiro de 1973.

Como podes confirmar, refiro que estive frente a frente com um elemento IN. Não está explicito (não podia estar) o desenvolvimento da "coisa", mas de certo modo está implícito. Quando dei de caras com ele, hesitei, pois a cor da pele era semelhante à minha. Deixei de ter dúvidas quando tomei consciência do modelo de camuflado e da arma (RPG7). Depois... aconteceu!

Deste episódio, decidiu o cmdt do BART [3873] dar-me um louvor, que consta na minha caderneta  militar, com todos os detalhes, mas sem fazer referência às origens do IN, nem tampouco me informaram ou consultaram, uma vez que estava de férias em Lisboa. Depois, o meu louvor foi atribuído pelo Brigadeiro, comandante militar.

Por isso, quando na HU, do mês de abril, se refere a presença de cubanos em Ponta Varela, já eu tinha confirmado tal... em 3 de fevereiro de 1973. Mais detalhes... é só pedires. (...)



Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Xime >  CART 3494 (1972/73) > Os segredos das matas...

Foto: © Jorge Araújoi (2010). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]


 3. Transcrição do relato desse encontro imediato do 3º grau (**)

(...) A Acção Guarida 18 –– Xime, 3 de fevereiro de 1973: a minha última missão, entre a Ponta Varela e Lisboa

Reza o documento dactilografado da História da Unidade [BART 3873], no 10.º fascículo, fevereiro de 1973, ponto 74 (...) o seguinte:

(...) “Acção Guarida 18,  de 030500 a 031130 com patrulhamento, emboscada e montagem de armadilhas na região de Pta Varela. Intervieram 03 Gr Comb da CCAÇ 12 e 03 (-) da CART 3494. O IN teve 02 mortos e 01 ferido confirmados e as NT 01 ferido ligeiro” (...)

O que seguidamente se relata traduz a verdade dos factos vividos na primeira pessoa, e é nessa qualidade que tomei a iniciativa de os tornar públicos, com o objectivo de ampliar os elementos historiográficos da minha CART 3494 / BART 3873.

Tomei conhecimento desta (...) operação na véspera, dia 2 de fevereiro de 1973, 6.ª feira, de modo informal (...), directamente do meu  Cmdt de Companhia. Registei a informação e,  na sequência do diálogo que estabelecemos,  recordei-lhe que tinha sido combinado entre nós que pela manhã do dia seguinte, sábado, seguiria para Bafatá com o objectivo de apanhar transporte aéreo para Bissau e depois para Lisboa, esta viagem agendada para o dia 5 (...) , data do início do meu segundo período de férias.

Entretanto, para minimizar eventuais prejuízos que pudessem vir a ocorrer por redução do tempo útil até ao embarque para Lisboa, foi acertado novo compromisso. Este sugeria que antes do início da operação, deixasse tudo preparado com “mala feita” para que, após a sua conclusão, seguisse de imediato para Bafatá ainda a tempo de se concretizar o plano anterior. E foi isto o que veio a acontecer.

No sábado de madrugada, dia 3 (...), do aquartelamento do Xime saiu uma força mista de cerca de cento e trinta militares, entre guineenses e continentais, operacionais da CCAÇ 12 e CART 3494 (,,,)

(...) Em determinado momento do itinerário utilizado pelas NT, na zona da Ponta Varela, na parte inferior (sopé) de um terreno com declive acentuado, avistei um elemento do PAIGC, com farda escura, vagueando por ali aleatoriamente. Ainda lhe fiz sinal do cimo do declive mas não sei se me viu, uma vez que a progressão continuava o seu curso… e ele por lá ficou.

Com este facto na memória, e sem certezas quanto ao que deveria ter feito e não fizera, eis que,  percorrida uma vintena de metros (. mais ou menos), ao contornar uma zona de vegetação com passagem por uma clareira, aqui fiquei diante de um outro vulto humano, de camuflado amarelado e portador de um RPG7. 

Ficámos frente a frente a uma distância a rondar os dez metros, havendo ainda tempo para trocarmos olhares, num lapso de tempo que não é possível contabilizar, mas que impunha uma decisão pronta. Ao meu primeiro sinal [tiro] iniciou-se o «jogo de sobrevivência» que caracteriza estes contextos, e de que o episódio anterior me tinha servido de alerta.

Ao ficar sem munições naquela situação [na clareira] ou devido à arma ter-se encravado (?!) [não houve oportunidade para saber a verdadeira razão], procurei proteger-me atrás de uma árvore ali próxima para trocar de carregador, tendo-me caído nas costas, alguns segundos depois, um pequeno tronco dessa árvore, mas sem consequências físicas para além do natural susto. À minha frente, mas próximo da vegetação, o cabo Miranda, especialista de dilagramas, contemplava os acontecimentos em perfeito estado hipnótico [?], pois não saiu da sua posição vertical enquanto decorreu o combate.

A vida na guerra tem destas coisas. Chegado ao aquartelamento, são e salvo, dei cumprimento ao plano pré-definido, seguindo para Bafatá e depois para Bissau, onde pernoitei.  No dia 5 de fevereiro de 1973, lá estava eu no Aeroporto de Bissalanca (...), aguardando, ansiosamente, por outro momento pleno de significado: gozar o segundo período de férias em Lisboa, até ao dia 10 de março de 1973, em família. Era a última etapa do itinerário iniciado na Ponta Varela (Xime) e concluído em Lisboa, quarenta e oito horas depois. (...). (***)



segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Guiné 63/74 - P13843: Convívios (640): No almoço da Tertúlia da Tabanca de Matosinhos da próxima quarta-feira, dia 5 de Novembro, será exibido o filme/documentário "Pabia di aos", de Catarina Laranjeiro, feito recentemente na Guiné-Bissau (José Teixeira)

1. Mensagem do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux. Enf.º da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), com data de hoje, 3 de Novembro de 2014:

Olá Carlos

Na próxima quarta-feira dia 5, vai ser projetado na Tabanca Pequena- Restaurante Milho Rei, em Matosinhos, o documentário "Pabia di aos" (Por causa de hoje) feito recentemente na Guiné-Bissau pela Catarina Laranjeiro.
O filme/documentário centra-se em diversas entrevistas que a autora fez a ex-combatentes guineenses de ambas as frentes, conforme sinpose que junta e algumas fotos.

Convido-te desde já a estares presente pelo valor do conteúdo e pela possibilidade de vos abraçar e peço que coloques no nosso blogue para que os ex-combatentes possam ter conhecimento.

Abraço do
José Teixeira






Sinopse 

No documentário PABIA DI AOS é nos mostrado o que ainda resta da guerra colonial quarenta anos depois, num país onde essa memória não é pacífica.
De facto, aqueles que aderiram ao movimento de libertação e aqueles que lutaram no exército colonial põem em cena uma multiplicidade de discursos e memórias irreconciliáveis.
Somos assim conduzidos a uma viagem que problematiza a herança colonial na Guiné-Bissau, problematizando o que ainda hoje permanece por se contar sobre os contornos desta guerra.
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13811: Convívios (639): No almoço da Tertúlia da Tabanca de Matosinhos da próxima quarta-feira, dia 29, vai poder ouvir-se fados (José Teixeira)

Guiné 63/74 - P13842: Da Suécia com saudade (40): A ajuda sueca ao PAIGC, de 1969 a 1973, foi de 5,8 milhões de euros (Parte I)... à Guiné-Bissau, de 1974 a 1995, foi de quase 270 milhões de euros... Depois os suecos fecharam a torneira... (José Belo)


Suécia > s/l > s/d > Visita de uma delegação de um país africano ou de um movimento nacionalista africano (parece-me mais provável ser do ANC do que do PAIGC...). Pelo vestuário e pelo fenótipo, os africanos devem ser originários da Africa do Sul... Provavelmente ainda no tempo do "apartheid"... [O Cherno Baldé veio depois corrigir-me: pelas vestes e traços fisionómicos, são representantes do povo massai, seminómadas; são menos de um milhão, e vivem no Quénia e no norte da Tanzânia] 

Foto do arquivo de José Belo (sem indicação da fonte).


1. Mandei  ontem a seguinte mensagem ao José Belo, o nosso régulo da Tabanca da Lapónia:

 José: 

Bom dia!.. Ainda não nos roubaram o sol, que é a única coisa (de Portugal) que deve fazer inveja aos teus suecos...

Olha, diz-me se sabes algo mais sobre estes rapazes, que também ajudaram os guineenses a aprender a falar e a escrever a nossa língua... (uma das poucas boas que lá deixámos).

Esta tipografia (e editora ?) de Upsala imprimiu dezenas de milhares de manuais escolares para o PAIGC... Quem é que pagava ? O meu sueco do Google não dá para perceber tudo...

Um abração. Luis


PS -  Vd. poste P13837: (...) "Wretmans Boktryckeri AB era um tipografia, fundada em 1889, por Harald Wretmans, tipógrafo com formação alemã, e que faliu em 1973, depois de ter passado por várias mãos, e de ter 40 funcionários na década de 1940. Tinha fama de apresentar boas encadernações." (...)

2. Resposta do Jose[ph] Belo, na volta do correio:

Quem pagava era o Departamento Estatal "Swedish International Development Autority".

Com um início modesto em 1969, o governo sueco acabaria por enviar para o PAIGC,  durante a guerra, um total de 53,5 milhöes de coroas suecas (ao valor actual). [cerca de 5, 8 milhões de euros;  1 euro = 9,2761 SEK, à taxa de câmbio em 31/10/2014].

Assistência que, em crescendo rápido, acabou por vir a financiar a maioria das actividades näo militares do PAIGC,s alientando-se o sector alimentar, transportes, educacäo e saúde.

A isto somavam-se vastos e constantes fornecimentos para as chamadas "Lojas do Povo".

Posteriormente à independência,  a Guiné-Bissau foi o único país da África Ocidental a ser incluída nos denominados países programados para a distribuicão da assistência sueca ao desenvolvimento.

Com resultados muito díspares(!), a assistência total à Guiné independente, durante o período de 1974/75-1994/95,  foi de 2,5 mil millhões (!) de coroas suecas [, c. 269,5 milhões de euros,], colocando então a Suécia entre os 3 maiores assistentes económicos do país.

Hoje?....A história é outra.

José Belo
Tanto as ajudas estatais como particulares, o interesse, e os sentimentos de solidariedade foram destruídos na quase totalidade pela corrupção de políticos e militares, e näo menos pelo narco-tráfego.

Um abraço do José Belo.

PS - São alguns números do Nordiska Afrikainstitutet,  de Uppsala.

Entre documentos antigos encontrei algumas curiosidades relacionadas com Amílcar Cabral e a Suécia que creio serem menos conhecidos por muitos.

Vou traduzir no meu melhor português de 40 anos de assuecamento e enviar para aí.

Um abraço.
Literalmente...Tabanca da Lapónia!,
agora como http://laplandnearkeywest.blogspot.pt [Lapland Near Key West / A Lapónia ao pé de Key West, Flórida, EUA]



Blogue do José Belo, há cerca de 40 anos na Suécia: "Lappland near Key West" [A Lapónia ao pé de Key West, Florida, EUA]. Ao cimo, do lado esquerdo, abaixo do título, há uma frase muito didática e certeira, antietnocêntrica, prevenindo-nos contra a tentação de ver o mundo através do nosso umbigo: "We dont see the things as they are, we see them as we are"... Traduzindo: "Nós não vemos as coisas como elas são, vemo-las como nós somos"... [A frase é atribuída à escritora Anïs Nin (1903-1977)] (LG).

Guiné 63/74 - P13841: Notas de leitura (647): “Triângulo de Guerra”, de António Garcia Barreto, Edição de Maria Simão, 1988 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Março de 2014:

Queridos amigos,
Ainda hoje é operacional a máxima de Ortega e Gasset “Eu sou eu e a minha circunstância”. A nossa circunstância na guerra de África foi aquele tempo, aquele local, aquela missão.

Chamou-me a atenção este livro de António Garcia Barreto, que fez comissão em Moçambique. O seu romance assenta numa sólida arquitetura, num domínio soberbo da linguagem, numa manipulação bem doseada entre bares, sexo pago e a tempestade na vizinhança da guerrilha. Um romance que é um bom termo de comparação com a nossa guerra na Guiné: no universo de Garcia Barreto há milhares de quilómetros, há colunas de reabastecimento intermináveis e a atmosfera do Índico.

Para ler, para saborear boa literatura, e poder comparar.

Um abraço do
Mário


Triângulo de guerra: Um livro soberbo, injustamente esquecido (1)

Beja Santos

“A guerra é o vértice de uma geometria especial, em que os outros dois são a bebidas e as mulheres do acaso, envolvendo-nos como uma tempestade da qual não sabemos como vamos escapar, obrigando-nos a ir de um vértice para outro, ora de encontro à dureza dos dias no confronto com a guerrilha, ora à procura do apaziguamento momentâneo e fogaz que nos faz esquecer a ansiedade e o medo que muitas vezes se veste de um despreendimento insensato perante o perigo, de um desprezo pelo que nos possa vir a acontecer”.

“Triângulo de Guerra”, de António Garcia Barreto, Edição de Maria Simão, 1988, é uma obra de um autor com créditos firmados tanto na literatura infanto-juvenil, ensaio e ficção, é uma narrativa muitíssimo bem urdida de alguém que faz uma comissão militar numa região portuária, aparentemente vital (Nacala?), tempo missão reabastecer quartéis no território da guerrilha.

Por uso e costume, confino-me à literatura da guerra da Guiné, abro-me exceção quando leio relatos poderosos e primorosos que não devemos ignorar. O escritor António Garcia Barreto traça perfis admiráveis (direi inultrapassáveis), trata o tédio com cor, forma, razão e desrazão, é capaz de descrições de cortar o fôlego como aquela em que apresenta a localidade onde tem a sua faina ao serviço dos reabastecimentos: 

  “Já lá vão longos meses, tantos que lhes perdi o conto na voragem dos dias sem sono, desde que aportei a este enclave de casario baixo de adobe e pedra de entre o qual sobressai um ou outro casarão de matriz colonial e desponta a velha igreja caiada de novo, onde cheira ao incenso que o padre missionário queimou na última cerimónia litúrgica. Batidos pela água do mar verde-azulado há restos da antiga fortaleza guardiã de impérios da pimenta, defendida por meia dúzia de canhões adormecidos, conservados numa grossa capa de ferrugem e verdete, postados entre as ameias como velhos à janela, desconsolados da vida, sonhando glórias passadas”.

Há um tenente tarimbeiro, que ele designa por Cabeça de Tuba, pertence, por inerência àqueles recortes militares dignos da galeria da estilística: 

“A estética do seu porte e a eficácia do seu gesto assumiam o valor de um arcabuz na guerra moderna. Conseguiu os galões após vinte anos de tarimba a comer feijão com massa, a remoer desditas e a decorar o código de disciplina militar. Foram anos difíceis, é de crer, marcando passo ao som de clarins roufenhos tocados por músicos de coreto distraídos da função e recebendo ordens sobranceiras de superiores atacados por crises de bílis que sonhavam com campanhas napoleónicas. Pavoneava os galões com o orgulho tosco de quem chegou no fim da jornada e recebeu um prémio de consolação. Mas isso era o menos, o pior é que era mau ou fazia por sê-lo. Os negros fugiam dele como da encarnação de um espírito maligno, não se atrevendo a enfrentar aquele buldózer de carne e músculos que, se fosse preciso, levantava a mão da pandeireta e estatelava-a na face amedrontada do tarefeiro. Com a tropa era mais brando, mas o sorriso escasseava e os soldados evitavam-no, escapando aos seus temperos cíclicos que se manifestavam como borrascas tropicais”.

Há sexo automático, desanuviador, há as operações de carga e descarga, apresentam-se os colaboradores deste oficial de reabastecimento: 

“O gordo que ali vai transportando o corpo com a elegância de um pato-marreco, é o Colaço, mas os camaradas tratam-no por Rapa-Malgas, cognome nascido no refeitório da recruta quando o viram comer com gula maior, sem ligar à qualidade nem à substância. O outro que o acompanha chama-se Rodolfo, é citadino de bairro limítrofe, com muita astucia no trato e um tanto gozão. Podia ainda falar-vos de um outro elemento que com aqueles faz um trio que irão conhecer melhor. Chama-se Belarmino, mas como é prematuramente calvo, todos o referenciam por Venerável Careca”

Temos autor mordaz, perscrutante, fazendo águas-fortes destes seus colaboradores: o Rapa-Malgas tem uma figura grotesca, um quase hipopótamo, o pessoal às vezes abusa do álcool, há cenas pancadaria, é depois necessário negociar com a polícia militar.

É um autor que sabe arrancar com mestria qualquer capítulo, não nos deixa capitular a atenção: 

“É domingo e cheira a pó. Pássaros compõem no arame farpado uma coreografia de pequenos saltos, pios e bateres de asas, indiferentes aos espigões de arame. Ao longe, por um trilho inclinado, vem a lavadeira trazer-me a roupa lavada e engomada com um esmero de ferro a carvão, de que há inelidíveis sinais: vejam-se estas pequeninas marcas de fagulhas rebeldes que pousaram na minha camisa”

Sabe-se que estamos num espaço amplíssimo, Moçambique, daí a naturalidade com que o autor escreve: 

“Recebo notícias de fortes ataques a 200 quilómetros desta cidadezinha costeira onde reparto as angústias por dias incertos”

De vez em quando, ele integra colunas de reabastecimento e vai relatando as experiências, especifica a carga de tensão, nunca deixando de conferir lucidez à vida que leva nessa retaguarda, mesmo a aturar o Cabeça de Tuba, o pandemónio da logística. África espanta-o, deixa-o pequeno perante uma natureza que se debate entre o colossal e o medonho: 

“Uma trovoada esparsa nasceu por detrás do morro a norte da cidade a avançou sobre a baía numa medonha alegoria de clarões e raios caldeado de chumbo e ocre, logo seguida por uma bátega de água intensa e pesada que tudo lavou e alagou nos breves minutos da sua passagem. Sob os telheiros de chapa ondulada ficou a ressoar, no silêncio da manhã uma música de cristais de chuva. Assusta-me e fascina-me esta grandeza tão própria de África. As distâncias não contemporizam com desejos de apressadas viagens, são longas rotas de milhares de quilómetros que se medem pela paciência em percorrê-las ao sabor do imprevisto. São extensos os principais rios e lagos, a dar com o tamanho do continente, como são grandes e descarnados os imbondeiros, esqueletos desiludidos no meio da chana”.

E a morte entra em cena, o alferes vai perder dois soldados que morreram e outro que desapareceu quando o posto avançado de reabastecimento onde estavam deslocados sofreu um ataque inesperado, era a primeira vez que tal acontecia a um apoio logístico, quem sobrou estava em estado de choque, vagabundeava por ali sem tino nem destino. A narrativa começa a ensopar-se pela exaustão, torna-se mole, escrevem-se aerogramas com fingimentos, há que disfarçar que tudo parece correr bem dentro daquele triângulo em que o autor apascenta o tédio. O Cabeça de Tuba é omnipresente, vociferante, inquisitorial, untuoso com os superiores e com os fornecedores, afinal ele é um senhor todo-poderoso no reino dos comes e bebes. E há um restaurante, um oásis entre os bares do cais, algo importante, o Galo Dourado com receitas portuguesas, a começar pela caldeirada à pescador. A guerra corre, o tempo escorre.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13824: Notas de leitura (646): “Os congressos da FRELIMO, do PAIGC e do MPLA: Uma análise comparativa”, por Luís Moita, CIDAC/ULMEIRO, 1979, e "Aprender português na Guiné-Bissau": Um manual do aluno datado de 1994 (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P13840: Parabéns a você (810): TGen António Martins de Matos, ex-Tenente Pilav, BA 12 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 2 de Novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13836: Parabéns a você (809): Abílio Magro, ex-Fur Mil Amanuense do CSJD/QG/CTIG (Guiné, 1973/74)

domingo, 2 de novembro de 2014

Guiné 63/734 - P13839: História da CART 3494 (1): A ACTIVIDADE OPERACIONAL DA CART 3494. A OPERAÇÃO «GUARIDA 18» -XIME-03FEV1973 (Jorge Araújo)

1. Mensagem do nosso camarada Jorge Araújo (ex-Fur Mil Op Esp / Ranger, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/1974), com data de 27 de Outubro de 2014:


Caríssimos Camarada Luís Graça,

Os meus melhores cumprimentos.

Durante os treze meses em que o contingente da CART 3494 marcou presença no Xime, permitiram-nos quantificar um vasto leque de ocorrências, em muitas delas colocando o universo do seu efectivo em situação difícil, como é possível conferir pelas sucessivas narrativas que produzi e já publicadas anteriormente (ver postes).

Os factos a que me reporto no presente texto, sendo específicos à participação numa acção concreta – a Operação «Guarida 18», realizada em 03FEV1973 – eles pretendem sinalizar quão problemática sempre foi a Actividade Operacional naquela região, com destaque para a segurança terrestre e marítima, patrulhamentos, emboscadas e diferentes operações, reforçando os testemunhos incríveis de outras épocas.

Com efeito, para a minha história cronológica, a participação nesta operação coincidiu com a última missão em que estive envolvido nesse território – o XIME… e que missão. Este relato é ainda a resposta prometida aos camaradas João Silva e Hélder Valério que, a seu tempo [P12141], me questionaram sobre este tema. 

A ACTIVIDADE OPERACIONAL DA CART 3494
(A OPERAÇÃO «GUARIDA 18» –– XIME-03FEV1973)
A minha última missão… entre a Ponta Varela e Lisboa 

I– O XIME - DESTINO DA CART 3494 EM 1972

I.1 -ASPECTOS SOCIOGEOGRÁFICOS

ACART 3494, a terceira e última unidade operacional do contingente do BART 3873, chegou à localidade do Xime no dia 28JAN1972, 6.ª feira, um dia depois de ter concluído no C.I.M. [Centro de Instrução Militar], na Ilha de Bolama, o seu período de I.A.O., realizado entre 28DEC1971 e 27JAN1972. A deslocação da Companhia, bem como das restantes unidades do Batalhão, foi feita em L.D.G. [Lancha de Desembarque Grande] até ao seu Cais.Aí chegados, a CCS, a CART 3492 e a CART 3493 seguiram em coluna-auto para os seus respectivos Aquartelamentos, respectivamente, em Bambadinca, Xitole e Mansambo, enquanto os militares da CART 3494 apenas tiveram necessidade de percorrer [+/-] duzentos e cinquenta metros para se instalarem nos seus novos apartamentos no designado «Aquartelamento do Xime».

Mapa referente à distribuição geográfica do contingente do BART 3873

Foto 1 – Cais do Xime [Maio/1972]. Estrutura construída em troncos de palmeira, cravada no tarrafo do Rio Geba, encimada por um estrado de tábuas. Do lado esquerdo é a margem direita e do lado direito a margem esquerda. O guindaste era utilizado no transfere de madeiras, animais e outros objectos mais pesados, dos barcos para o cais ou vice-versa. A localidade imediatamente a seguir ao Xime, para leste, era Bambadinca, sede do BART.

I.2 -MISSÕES

De entre as diversas missões atribuídas diariamente à CART 3494, sobressaía a relacionada com o conceito «segurança», por efeito da sua situação sociogeográfica, merecendo destaque a rede hidrográfica, com a qual se estabelecia a fronteira terrestre, de que são exemplos os rios Geba e Corubal [mapa e foto 1].

Vinte e quatro sobre vinte e quatro horas, aquele que é o fundamento de qualquer missão militar em contexto de guerra, o efectivo da CART 3494 desenvolvia as suas missões/acções de modo a garantir a normal circulação no interface das duas principais vias de comunicação com a Zona Leste do território da Guiné: a marítima e a terrestre, assumindo, para o efeito, papel relevante não só a nível do que se considerava reabastecimento, como na protecção de pessoas e bens, quer fossem unidades militares ou elementos civis.

No contexto estritamente militar todos os Batalhões e/ou Companhias Independentes, vindos de Bissau, ou no seu regresso para a capital, tinham, nesta época, obrigatoriamente de passar pelo Xime, localidade situada na margem esquerda do Rio Geba e, por isso, considerada o “fim da linha”, uma vez que a via marítima era o meio mais exequível de ligar os dois pontos, em particular por razões operacionais. Desta relevância global, o Xime e consequentemente o contingente militar ali instalado, era considerado elemento estratégico por excelência nas suas dimensões política, militar e económica.

Foto 2 – Cais do Xime [Agosto/1972]. Vêm-se civis e militares. As cabras preparam-se para seguir viagem até Bissau.

Foto 3 – Cais do Xime [Julho/1972]. Quando da chegada de algum contingente militar ao Xime [de ou para Bissau], sempre que possível, elementos da CART 3494 estavam no Cais para os receber. Na foto, da esquerda para a direita, os ex-Alferes Maurício Viegas, CMDT do 20.º Pelotão de Artilharia; Manuel Carneiro e Manuel Gomes e o ex-Cap Pereira da Costa, CMDT da CART 3494 [de 22Jun1972 a 10Nov1972].

Estas actividades diárias que sempre foram consideradas de alto risco, principalmente porque visavam garantir a segurança possível ao tráfego rodoviário que circulava no troço que ligava o Xime a Bambadinca, e que deste se ramificava até ao extremo leste do território, de que são exemplos: Bafatá, Nova Lamego, Piche, Canquelifá, Galomaro, Mansambo, Xitole, Saltinho, entre outras localidades,influenciavam, e de que maneira, o nosso quotidiano, por atribuir-nos uma dupla responsabilidade, na justa medida em que fazia depende do nosso sucesso o sucesso dos outros.

Daí terem ocorrido nos primeiros dez meses dois combates com grupos de guerrilheiros do PAIGC, de que resultaram baixas para ambos os lados, entre mortos e feridos, na sequência de duas emboscadas na Ponta Coli, a primeira no dia 22Abr1972 e a segunda no dia 01Dec1972 [vd. P9698 + P9802 + P12232].

Para além desta missão importante, outras faziam parte da nossa “agenda” como sejam patrulhamentos, emboscadas, segurança a embarcações que navegavam no Rio Geba, com chegada ou saída do Xime. Acresce a tudo isto a realização de outras missões com objectivos mais específicos, denominadas «Operações/Acções», com recurso à mobilização de maior número de meios humanos e logísticos, algumas vezes fazendo apelo a apoios aéreos. É desta actividade mais problemática que vos dou conta no ponto seguinte.

II– A OPERAÇÃO «GUARIDA 18» –– XIME-03FEV1973 

- a minha última missão… entre a Ponta Varela e Lisboa -

Quarenta e um anos depois, revisitei a História do BART 3873, em particular as memórias [e as imagens!] das grandes experiências contabilizadas no contexto da actividade operacional da CART 3494, no Xime. Este recuo no tempo foi influenciado pela publicação dos diferentes fascículos que têm vindo a acontecer de modo faseado no blogue, documento do nosso camarada António Duarte [ex-Fur.Mil. da CART 3493/CCAÇ 12, que nos viria a substituir no Xime].Para o efeito, recuperámos os dois últimos [10.º/Fev1973-P13699 e 11.º/Mar1973-P13751], onde estão inventariados, entre outros, os principais factos e feitos das subunidades. 

Porque em alguns deles estive envolvido e porque a história nada nos conta em relação aos detalhes [não podia, porque o historiador/relator limitava-se a analisar o seu conteúdo e/ou a transcrever o que chegava ao seu gabinete de trabalho, provavelmente com censura pelo meio], aqui vos deixo o antes, durante e depois daquela que viria a ser a minha última missão no Xime e que, para além desse valor numérico, selou um espaço e um tempo carregado de muitíssimo significado pessoal, e também colectivo.

Reza o documento dactilografado da História da Unidade [BART 3873], no 10.º fascículo; Fevereiro de 1973, ponto 74. «NOSSAS TROPAS»; alínea a) Acções e Operações Mais Importantes; o seguinte:

- “Acção «GUARIDA 18» de 030500 a 031130 com patrulhamento, emboscada e montagem de armadilhas na região de PTA VARELA. Intervieram 03 Gr Comb da CCAÇ 12 e 03 (-) da CART 3494. O IN teve 02 mortos e 01 ferido confirmados e as NT 01 ferido ligeiro” (p.46).

O que seguidamente se relata traduz a verdade dos factos vividos na primeira pessoa, e é nessa qualidade que tomei a iniciativa de os tornar públicos, com o objectivo de ampliar os elementos historiográficos da minha CART 3494/BART 3873.

Tomei conhecimento desta Acção/Operação na véspera, dia 02Fev1973, 6.ª feira, de modo informal/formal [não sei como classificá-lo] directamente do meu CMDT de Companhia.Registei a informação e na sequência do diálogo que estabelecemos recordei-lhe que tinha sido combinado entre nós que pela manhã do dia seguinte, sábado, seguiria para Bafatá com o objectivo de apanhar transporte aéreo para Bissau e depois para Lisboa, esta viagem agendada para o dia 05Fev73, data do início do meu segundo período de férias.

Na impossibilidade de se poder cumprir com o acordado anteriormente, causa/efeito atribuído ao reduzido número de quadros de comando, naquele período, na Companhia, levou a quea minha presença fosse considerada imprescindível naquela missão, acabando por respeitar [obviamente] a decisão tomada. Entretanto, para minimizar eventuais prejuízos que pudessem vir a ocorrer por redução do tempo útil até ao embarque para Lisboa, foi acertado novo compromisso. Este sugeria que antes do início da operação, deixasse tudo preparado com “mala feita” para que, após a sua conclusão, seguisse de imediato para Bafatá ainda a tempo de se concretizar o plano anterior. E foi isto o que veio a acontecer.

No sábado de madrugada, dia 03FEV1973, do aquartelamento do Xime saiu uma força mista de cerca de cento e trinta militares, entre guineenses e continentais, operacionais da CCAÇ 12 e CART 3494, conforme referi anteriormente.

Sector L1 [Bambadinca] – XIME > Zona de intervenção da CART 3494, com particular destaque para o território à esquerda da linha vermelha

A missão estava a decorrer com normalidade, sem sinais no terreno que suscitassem alertas particulares, ainda que a atenção/concentração fossem, como sempre, conceitos a respeitar.Eis senão quando o que se considerava ser uma possibilidade meramente académica aconteceu mesmo.

Numa coluna mista, em que os diferentes grupos de africanos e europeus se encontravam intercalados na progressão, neste caso numa frente que podia, a espaços, atingir algumas centenas de metros, as dúvidas/incertezas eram maiores, desfeitas quase sempre a partir do equipamento e/ou do vestuário.

Em determinado momento do itinerário utilizado pelas NT, na zona da Ponta Varela, na parte inferior (sopé) de um terreno com declive acentuado, avistei um elemento do PAIGC, com farda escura, vagueando por ali aleatoriamente. Ainda lhe fiz sinal do cimo do declive mas não sei se me viu, uma vez que a progressão continuava o seu curso… e ele por lá ficou.

Com este facto na memória, e sem certezas quanto ao que deveria ter feito e não fizera, eis que percorrida uma vintena de metros (+/-), ao contornar uma zona de vegetação com passagem por uma clareira, aqui fiquei diante de um outro vulto humano, de camuflado amarelado e portador de um RPG7. Ficámos frente-a-frente a uma distância a rondar os dez metros, havendo ainda tempo para trocámos olhares, num lapso de tempo que não é possível contabilizar, mas que impunha uma decisão pronta. Ao meu primeiro sinal [tiro] iniciou-se o «jogo de sobrevivência» que caracteriza estes contextos, e que o episódio anterior me tinha servido de alerta.

[…] Ao ficar sem munições naquela situação [clareira] ou devido à arma ter-se encravado (?!) [não houve oportunidade para saber a verdadeira razão], procurei proteger-me atrás de uma árvore ali próxima para trocar de carregador, tendo-me caído nas costas, alguns segundos depois, um pequeno tronco dessa árvore, mas sem consequências físicas para além do natural susto. À minha frente, mas próximo da vegetação, o cabo Miranda, especialista de dilagramas, contemplava os acontecimentos em perfeito estado hipnótico [?], pois não saiu da sua posição vertical enquanto decorreu o combate.

A vida na guerra tem destas coisas.

Chegado ao aquartelamento, são e salvo, dei cumprimento ao plano pré-definido, seguindo para Bafatá e depois para Bissau, onde pernoitei.

No dia 05FEV1973, à hora marcada, lá estava eu no Aeroporto de Bissalanca [hoje Aeroporto Internacional Osvaldo Vieira], aguardando, ansiosamente, por outro momento pleno de significado: gozar o segundo período de férias em Lisboa, até ao dia 10Mar1973, em família. Era a última etapa do itinerário iniciado na Ponta Varela (Xime) e concluído em Lisboa, quarenta e oito horas depois.

Foto 5 – Aeroporto de Bissalanca [05FEV1973]. Momento de descontracção, antes do embarque na TAP para gozo do segundo período de trinta e cinco dias de férias. A mala vermelha, outra companheira que me acompanhou durante o serviço militar de três anos, está hoje cheia de histórias e de memórias.

III– O REGRESSO AO XIME 

III.1 - A viagem em sentido contrário ou o regresso às origens

De regresso a Bissau no dia previsto [10Mar1973], para cumprir a derradeira etapa [que seria superior a um ano], a expectativa era chegar ao Xime o mais rápido possível, uma vez que não era funcional andar com a bagagem de um lado para outro na capital, situação que dificultava, em muito, a nossa mobilidade.

De entre as várias hipóteses, a mais rápida e a mais barata era ir à boleia, por via marítima claro está, utilizando um dos barcos que diariamente sulcavam as águas do Geba até ao Xime, ou até Bambadinca.

E assim foi, basta observar a imagem abaixo.

Foto 6 – Bissau (Cais) [11MAR1973]. Preparação da saída da embarcação que nos levou até ao Xime, vendo-se à direita a mala vermelha transportando mais histórias, agora das férias, e uma caixa de “pilhas recarregadas” para ajudar a resistir às adversidades que certamente ainda teríamos de suportar, superando-as. Os militares que se vêm na foto são: o ex-furriel Faia (CCS/BART 3873) e o outro, em camuflado, um elemento da CART 3494.

III.2 - Chegada ao Xime

Chegados ao Xime, foi com espanto que soubemos da transferência da CART 3494 para Mansambo,no dia 06Mar1973, substituindo a CART 3493, que foi deslocada para Cobumba. Por sua vez, a CCAÇ 12, sediada em Bambadinca, e que era uma Companhia de Intervenção do CAOP 2, substituiria a CART 3494 no Xime.

III.3 - Chegada a Mansambo

Depois de uma viagem atribulada no regresso ao mato, com estadia de uma noite em Bambadinca, eis-nos a caminho de um novo aposento, ainda desconhecido para nós: Mansambo.O baptismo foi um refrescante banho na fonte, local de visita e de paragem obrigatória para o colectivo da CART 3494 (fotos abaixo). 



Um abraço,
Jorge Araújo.
Fur Mil Op Esp / Ranger, CART 3494