sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Guiné 63/74 - P13858: Memórias de Mansabá (34): As amêndoas da Páscoa de 1969 (Francisco Henriques da Silva)

Vista aérea do quartel de Mansabá
Foto: © Carlos Vinhal


1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, , Mansabá e Olossato, 1968/70; ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999), com data de 1 de Novembro de 2014:

Meu caros camaradas e amigos,
Por razões várias, tenho prestado uma colaboração muito irregular a este blogue (mea culpa!) que, aliás, leio sempre com interesse e debato os “posts” aí publicados com os meus amigos e ex-camaradas de armas Mário Beja Santos e Raul Albino.
Junto vos envio uma descrição de um grande ataque a Mansabá, em 3 de Abril de 1969, poucas semanas depois da minha companhia se ter instalado naquela localidade, para participar na protecção aos trabalhos da construção da estrada Mansabá-K3-Farim.
Não disponho de qualquer fotografia de Mansabá no meu arquivo e muito menos do ataque em questão.

 Com um abraço cordial e amigo
Francisco Henriques da Silva
Ex- alferes miliciano de infantaria, C. Caç. 2402 (Có, Mansabé e Olossato), 1968-1970
Ex- embaixador de Portugal em Bissau (1997-1999)


MEMÓRIAS DE MANSABÁ

34 - As amêndoas da Páscoa

A 3 de Abril de 1969, Quinta-feira Santa, pelas 11 da noite, dá-se o grande ataque ao quartel de Mansabá, em que o grupo de combatentes inimigos devia ser superior a 120 elementos, armado com canhões sem recuo, morteiros de 82mm, metralhadoras pesadas, para além do armamento ligeiro habitual (Kalashnikovs, “costureirinhas”, RPG-2 e RPG-7, morteiro de 60mm, etc).(1)

A intensidade de fogo nos primeiros minutos, para além do efeito surpresa, impediu toda e qualquer reacção da nossa parte. Os rebentamentos incessantes faziam-se ouvir por todo o lado e percebia-se que tinham atingido a maioria das instalações militares.

No que me respeita, tinha acabado de fechar a luz, depois de passar os olhos, como era meu hábito, por um livro qualquer, porque no dia seguinte era dia de trabalho (ou seja, de protecção aos trabalhos em curso na estrada Mansabá-Farim), quando começou o fogachal. Encontrava-me num edifício constituído por um renque de pequenos apartamentos térreos, no enfiamento da pista de aviação, portanto num local completamente aberto e exposto ao fogo do inimigo, que estava, na prática, a fazer tiro de pontaria ao casario com, pelo menos, um ou dois canhões sem recuo e duas metralhadoras pesadas, para já não falar dos lança-rockets e das armas ligeiras que disparavam ininterruptamente. A cadência de fogo era, pois, de uma enorme violência. As coisas complicavam-se. As balas sibilavam em várias direcções. Os rebentamentos persistiam. Agarrei na G-3 e nas cartucheiras, vesti apenas a camisa do camuflado. Creio que uma bala terá trespassado a rede de mosquiteiro da janela indo alojar-se na parede. As coisas estavam a ficar feias. De xanatos e, em cuecas, corri para o quarto de banho, uma pequena dependência, nas traseiras, com uma parede de separação. Preparei-me para o pior, porque a violência do tiroteio e das explosões não abrandava. No quarto propriamente dito eu estaria demasiado exposto e o fogo vinha precisamente do fundo da pista, mesmo em frente. As balas de uma “pesada” iam quebrando as telhas do meu quarto mesmo por cima da minha cabeça. Um rebentamento muito próximo – fiquei momentaneamente surdo - dava-me a entender que uma canhoada ou morteirada devia ter destruído um dos apartamentos vizinhos. Se acaso os guerrilheiros tentassem entrar nas instalações, eu dispunha pelo menos da G-3 e de 5 carregadores para me defender. Tive a nítida sensação de que podiam tentá-lo. Não se atreveriam a tanto, ficava para a próxima... Quem sabe?

 Quartel de Mansabá - 1-Quartos dos Oficiais; 2-Edifífo do Comando: 3-Messe dos Oficiais

Será que tive medo? Não, creio que não tive, ou seja, o medo emocionalmente paralisante e que inibe o raciocínio, a decisão e a acção, mas também não podia iludir o sentimento de espanto, bem como, a veemência inicial do ataque, que atingiu proporções inusitadas. Por outro lado, também não terei tido aquela sensação habitual da entrada em combate, aquele nó na garganta, a boca seca com um gosto amargo, aquela sensação indizível de que ia começar um jogo incerto, mas que de algum modo o podia controlar, pelo menos na parte que me tocava Aqui não, estava só, literalmente só. Valia apenas por mim. Era tudo.

Entretanto, o fogo inimigo abrandou, enquanto se encetava a resposta do nosso lado, tímida e lenta, primeiro na base de morteiro 81 e uns largos minutos depois com as peças de artilharia. O tempo de reacção da nossa parte foi demasiado arrastado, o que permitiu ao IN actuar com total à-vontade. Tendo o fogo do exterior abrandado, corri para um abrigo situado na extremidade da fiada de apartamentos. Ouvi uma mulher a chorar e também o que me parecia ser o choro de uma criança. Devia ser família de algum dos engenheiros civis. Passei em corrida. Trazer mulheres e crianças para a guerra!?! Francamente...

Bati à porta, energicamente e com alguma impaciência.

- Oh, minha senhora, saia daí. É melhor refugiar-se no abrigo. É mais seguro – gritei-lhe cá de fora, agachado junto a um pequeno muro de resguardo, que a bem dizer não protegia nada, porque choviam balas tracejantes por todos os lados que iam iluminando o céu estrelado.

Noutro apartamento ao lado, alguém acendeu uma luz. Crispado, já com os nervos à flor da pele, vociferei não sei muito bem para quem:

- Desligue lá essa m... imediatamente, senão ficamos aqui todos! Não vê que isso chama a atenção?

No final da fiada de casas, lá estava o abrigo. Entro e ponho logo os pés numa quantidade infinda de fezes humanas, os meus xanatos de quarto para nada serviram. Fiquei sujo quase até aos joelhos. Os nossos bravos soldados, jamais prevendo que pudessem ser alvo de um ataque, tinham transformado o abrigo em retrete colectiva!

Não estava ali viv’alma. Enfim, para que é serviam os abrigos? Boa pergunta. Uma metralhadora lá para o fundo da pista ainda estava activa. Disparei inutilmente três ou quatro tiros, naquela direcção, porém sem qualquer convicção. O certo é que não estava a fazer nada e, entretanto, o fogo tinha amainado consideravelmente, ouvindo-se apenas tiros isolados e uma ou outra rajada. Passei pelo quarto, vesti uns calções, corri então para a parada em direcção a um dos barracões onde estavam instalados os meus homens. De caminho, vi 3 ou 4 feridos, de outras unidades, um jazia numa poça de sangue a contorcer-se com dores, um outro coxeava e tinha um braço ensanguentado, mais longe perto do abrigo do morteiro 81 alguém jazia prostrado no solo, sem dar sinal de vida (Morto? Ferido? Sei lá...). Enfim, não parei. Havia gente a correr por todos os lados e ainda se respondia ao fogo.

Entro no barracão, onde estariam os meus homens e gente da minha companhia. Pergunto de chofre:
- Temos muitos mortos e feridos?

Não era um dos meus soldados, mas pertencia à C.Caç. Respondeu-me:
- Feridos há alguns, meu alferes. Mortos creio que não, mas nas outras companhias parece que morreu gente.

Os enfermeiros e maqueiros corriam de um lado para o outro. Alguns feridos pareciam necessitar de evacuação urgente, porque aparentavam ferimentos graves. Com grande parte dos edifícios atingidos (quase todos), foi um milagre não se terem verificado mais vítimas. Para tal bastaria uma canhoada em cheio numa das casernas. Procurei o nosso capitão. Estava de serviço, mas não o encontrei.

Num abrigo de pequenas dimensões, perto da messe de oficiais e da torre de transmissões, vi o comandante de batalhão, deitado numa cama a olhar para o tecto, com um ar inquieto.

- Há muitos feridos e mortos? – perguntou-me.
- Alguns, meu comandante, alguns, ainda não se sabe ao certo quantos.
- Então, têm de ser evacuados – concluiu
- A esta hora e nestas condições não creio que seja possível - repliquei.
- Você está todo enlameado – interrompeu ele, mudando de assunto e olhando para as minhas pernas.
- Não é bem lama, meu comandante. Como sabe, estamos na estação seca. É outra coisa. Com sua licença...

Dei meia volta. Creio que não se apercebeu, nem sequer pelo olfacto, do meu estado real de sujidade, nem, tão-pouco, das razões para tal.

Foto 1 > Mansabá > Alguns dos feridos esperando evacuação para Bissau

O capitão que encontrei um pouco mais tarde disse-me que o comandante de batalhão havia solicitado apoio aéreo, o que era uma asneira, pois a aviação já nada podia fazer àquela hora, uma vez que a “guerra” tinha, de facto, acabado, nem actuava em plena escuridão. Seguiu-se uma noite sem pregar olho a cuidar dos feridos, a contabilizar os homens, a verificar os estragos e à espera de ordens. A população civil da tabanca e os trabalhadores da obra tinham sido duramente atingidos, mais do que a própria tropa, e registavam-se vários mortos e feridos entre eles, para além de inúmeras moranças incendiadas.

Os comandos lá conferenciaram entre si e deram-me por missão, bem como a outros grupos de combate da minha companhia, de efectuar um reconhecimento, logo ao raiar do dia, pelos presumíveis locais de instalação do inimigo, designadamente pela pista de aviação e região circunvizinha. Verificámos dois ou três factos curiosos: antes do mais, era extremamente difícil, à primeira vista, determinar os ditos locais, uma vez que, contrariamente ao que era usual, não se viam invólucros pelo chão; em segundo lugar, os trilhos de aproximação tinham sido apagados com ramos de árvores, que nos impediam de determinar com algum grau de certeza os rodados das armas pesadas (muitas, como viemos a saber mais tarde, foram previamente desmontadas e transportadas a ombro por carregadores – técnica que era também utilizada, como se sabe, na guerra do Vietname) e as próprias pegadas do grupo inimigo; em terceiro lugar, as posições dos canhões sem recuo e dos lança-rockets só se conseguiam detectar pelas ervas queimadas ou pelos vestígios de pólvora no solo; finalmente, o terreno, vasculhado a pente fino, não estava minado, o que, felizmente, contrariava as nossas piores expectativas.

Na Sexta-feira Santa, pouco depois de terminado o nosso reconhecimento no terreno, desembarcado do helicóptero para se inteirar do que se havia passado e dar algum alento às tropas, lá estava o inefável “Caco” Baldé. Uma das alcunhas porque era conhecido, à época, António de Spínola, Governador e Comandante-Chefe da Guiné. Baldé é um nome comum entre as etnias fula e mandinga e “caco” pelo facto de usar monóculo. Mostrou-se insatisfeito com o comportamento do comandante de batalhão.

Foto 3 > Mansabá > Um dos edifícios atingidos
Fotos: © Raul Albino

Uns dias mais tarde, por ordem do “hómi garandi da Bissau”, é lançada uma grande operação de retaliação na mata do Morés com pára-quedistas que, para além de terem infligido algumas baixas ao inimigo e de capturarem numeroso material de guerra, descobriram um mapa com a localização exacta das instalações militares e civis de Mansabá, com as medições em passos aferidos da localização das diferentes construções existentes e com indicação precisa das actividades que ali se desenvolviam. Ora, aí estava uma das explicações para a constante fuga de capinadores e de trabalhadores que, aliás, continuavam a circular, como sempre, sem quaisquer restrições, dentro do quartel. As deficiências da nossa intelligence foram mais que notórias, sem falar, evidentemente, das patentes falhas da segurança, que carecem de adjectivação adicional e que, aliás, continuavam.

Depois disto, Spínola, incumbiu-nos de nova missão: o Olossato, do outro lado da mata do Morés, onde iríamos terminar a nossa comissão de serviço.
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Notas do editor:

(1) Vd. poste de 24 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3146: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (12): Ataque a Mansabá

Vd. último poste da série de 2 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13457: Memórias de Mansabá (33): No dia em que morri (Carlos Vinhal, ex-Fur Mil Art MA)

Guiné 63/74 - P13857: Notas de leitura (648): “Triângulo de Guerra”, de António Garcia Barreto, Edição de Maria Simão, 1988 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Março de 2014:

Queridos amigos,
“Triângulo de Guerra” tem toda a legitimidade para merecer a nossa atenção. Todos aqueles três palcos da guerra de África tinham pontos afins e a sua especificidade. Moçambique tinha os milhares de quilómetros, as zonas de retinta paz e os vespeiros bem referenciados.
António Garcia Barreto não diz que faz a guerra, não se macaqueia em herói, não entoa exemplaridades, o que torna todo este seu relato num acontecimento literário genuíno e que mais uma vez nos leva a perguntar como é que é possível que belos romances permaneçam ignorados.

 Um abraço do
Mário


Triângulo de guerra: Um livro soberbo, injustamente esquecido (2)

Beja Santos

António Garcia Barreto tem ganho notoriedade na escrita pelas suas incursões na literatura infanto-juvenil, na ficção e no ensaio. Este seu romance “Triângulo de Guerra”, Edição de Maria Simão, 1988, não aparece mencionado no que mais significativamente se escreveu na literatura de guerra de Moçambique. O que não me surpreende, se pensarmos que nenhum crítico se pronunciou, no que toca à Guiné, sobre o esplêndido “Estranha Noiva de Guerra”, de Armor Pires Mota, não vi até hoje uma palavra de apreço e de admiração pelo fabuloso diário do soldado Inácio Maria Góis. Os críticos agarram-se a vários ícones, as edições discretas parecem condenadas a ficar à margem, ao esquecimento perpétuo.

Em “Triângulo de Guerra” não há equívocos sobre a matéria autobiográfica, o alferes, algures num porto, responde pelo reabastecimento, leva vitualhas até aos confins do território. Descreve ambientes, superiores e colaboradores. Aqui e acolá, há reencontros, como aquele que ocorreu com Carlos, companheiro da infância e da juventude, falaram das aulas de admissão ao liceu, de filmes e livros, do acontecimento que foi tirarem a fotografia com a farda número um. Nesse ponto fundamental para a logística da guerra, há uma crescente atmosfera de tédio, nervos em franja, chegam aerogramas a noticiar a morte de ente queridos, mas a rotina é inexorável. Uma tragédia pode deslizar para uma comédia ou para o grotesco. O tenente denominado Cabeça de Tuba, um desgraçado moral, a maldade personificada, recusa férias a um soldado a quem lhe morreu a mãe, o Rapa-Malgas. Este vingou-se, na primeira oportunidade: “Com o Rapa-Malgas enfarpelado num casaco branco, a servir no bar da unidade as bebidas do convívio, o tenente pediu que lhe fossem buscar um uísque com muito gelo, tinha uma secura astral. Colaço achou que era altura de agradecer toda a boa vontade do Cabeça de Tuba para consigo. Enxotou o ordenança dizendo-lhe que ele próprio levaria a bebida. Num espaço de segundos foi à retrete e urinou para dentro de um garrafa de cerveja, voltou ao bar e adicionou um dedal de mijo a uma boa dose de uísque, mais duas pedras de gelo, já está! Foi levar ao tenente essa bebida preparada por um barman imaginativo e sem escrúpulos e o oficial bebeu-a de um trago, estranhando, porém, o sabor amoniacal. É Old Par, velhíssimo, meu tenente, um lote acabado de chegar! Apressou-se Colaço a responde, tão sério que lhe doíam os malares com a força que fazia para não estrebuchar a rir. O Cabeço de Tuba elevou o copo no ar, à altura dos olhos, intrigado, procurando na memória gustativa o verdadeiro sabor de um uísque velho. Como não chegasse a qualquer conclusão, encolheu os ombros e disse: Traz-me outro, mas com mais gelo, é muito forte. E Colaço saiu do gabinete transportando o corpo arredondado e balofo, irmãos gémeo do leão-marinho a viver fora do seu ecossistema, e foi preparar outro uísque que saiu igualzinho ao primeiro: um mijuísque”.

Há gatos-pingados de ocasião que jogam às cartas em cima das urnas, há festanças que levam a engates, nosso alferes foi capturado pela mulher do médico veterinário, andava esfaimada de sexo, fez dele um garanhão. E porque se vive na vizinhança da guerra, o nosso alferes põe-se à frente de uma coluna para ir abastecer uma unidade, no regresso estoirou uma tragédia. Nessa viagem de retorno foram surpreendidos por bátegas de água violentas que reduziam a picada a um caudal de lama. “Quando a chuva se esgotou e parecia que a terra ressequida sorvia aqueles caudais, recomeçou o trajeto até ao aquartelamento. Assim se percorreram cinquenta quilómetros. Aqui e acolá interrompia-se a marcha, seguia-se com prudência para não quebrar os eixos dos rodados, os carros não queriam deixar de estar próximos uns dos outros. O carro que seguia à frente na coluna foi tragado, num segundo, pela boca camuflada de uma cova abissal, enfiando-se pela terra dentro que nem brinquedo de criança, matando nessa voragem inaudita o condutor e o cabo-contador-de-anedotas que seguia a seu lado com um furriel e nos alegrara a existência desfiando o seu chorrilho de histórias curtas. No rescaldo desta armadilha montada pelos guerrilheiros ficaram feridos outros soldados. A desolação era geral e contagiante”.

Como vive o essencial da guerra à distância, o narrador dá-se ao direito de ter rebates de alma: “O que me angustia não é tanto sentir o tempo escoar-se com a lentidão basculante das caravelas a navegar no mar liso e sem vento, mas constatar que a guerra se refugia na mata, um pouco como os duendes nas casas assombradas, e aí concretiza as suas aflitivas travessuras, belisca-nos o corpo até à morte mais horrível, amedronta, dilacera, envelhece, rasteira-nos ao mais leve descuido. As pessoas vivem um quotidiano quase feliz, sobre o qual paira, veladamente, uma ameaça por esclarecer”. E na cidadezinha também se vive a psicose do inimigo, anda-se à caça dos passadores de informações. A certa altura a desconfiança caiu num soldado negro, de nome Manhiça, a quem o furriel apelidara de Gulliver Negro, homem de temperamento cordato. Vendo-se perseguido, apertado numa rede que parecia não entender, afastou-se dos outros, tornou-se num homem acossado. E reagiu, o autor dá-nos um episódio eloquente: “Num desses dias, precisou de ir à cidade, vestiu-se à pressa, a camisa do avesso e os submarinos dos sapatos de encomenda, iguaizinhos aos do palhaço do pobre de qualquer circo, desabotoados, meteu-se num jipe de supetão para agarrar a boleia, tentando encaixar as pernas longas dentro da viatura, ante o olhar gozão do condutor que não deixou de exprimir o seu gozo: Corta as pernas, pá, vais ver que depois é canja! O Gulliver Negro desta vez não achou graça, colocou a manápula de garrote em cima do ombro do motorista e começou a apertá-lo, os dedos espetavam-se na carne como arpões, quase trilhando os ossos: Ripete lá os brincadeira, disse o Gulliver, senhor de si, mas o soldado não teve força para retorquir”. Mas o ressentimento continuou: “À falta de qualquer prova concreta, o Gulliver Negro foi transferido de unidade e a sua falta deixou um vazio na caserna, entre os camaradas, conforme deu a entender o Rapa-Malgas. A tropa já se havia habituada ao gigante indefeso, ao seu ressonar diabólico que não andava longe do rugir de uma cratera vulcânica em atividade, abalando os frágeis alicerces da caserna. A verdade é que os ataques às colunas prosseguiram mesmo despois do afastamento do Gulliver Negro. Não seria de estranhar, porém, a existência de informadores dos guerrilheiros entre os elementos que compunham o corpo de guias negros. A guerra também passava por aí”.

Há sempre surpresas na cidadezinha, Elisa, a lavadeira de alferes, e sua amásia na conjuntura da comissão, é presa como informadora, nosso alferes entra em pânico, chegou o Natal e o Cabeça de Tuba anda feliz, faz a peregrinação dos armazéns para se abastecer e levar o bem-estar às famílias dos oficiais da unidade. O Rapa-Malgas irá morrer nos confins do mato, vai chegar um soldado conhecido por Miss Katy, travesti de profissão, traz na sua bagagem um vestido vermelho-vivo, Miss Katy foi apedrada no charco, vai acabar tudo à bordoada, Miss Katy ou o soldado Alberto, recebeu guia de marcha, arrumou o baú da arte e foi representar para outro público.

E finda a comissão, o eco da guerra chega trazido pelos que demandavam a cidade. “Os homens, na caserna, despejavam a tensão nervosa sobre os armários, esmurrando-os, pontapeando-os, destruindo-os aos poucos. O alferes que me veio substituir recordou-me a minha figura, dois anos atrás, como se eu me olhasse frente a um espelho. Acabei por concluir que nada aprendi em todo este tempo perdido, exceto a solidariedade no infortúnio das vidas apanhadas na malha de um conflito cada vez mais difícil de justificar nas razões que o mantinham”.
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de Novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13841: Notas de leitura (647): “Triângulo de Guerra”, de António Garcia Barreto, Edição de Maria Simão, 1988 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P13856 Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (35): O Manuel Simões, de Judgudul, e os Africanistas à portuguesa... Ser africanista é um estado de espírito, e não precisa de andar com "os pretinhos ao colo".

1. Mensagem de Antº Rosinha (o único grã-tabanqueiro que tem direito a abreviatura do nome, Antº, é um traço de distinção por, à boa maneira africana, ele um dos nossos "mais velhos", quer dizer, com mais experiência, mundo e sabedoria; na nossa Tabanca Grande, respeitam-se os mais velhos, mesmo quando aqui e ali podemos discordar das suas opiniões e conselhos; pessoalmente, é um camarada por quem nutro afeto e respeito, embora só o tenha encontrado uma vez, no II Encontro Nacional da Tabanca Grande, em Pombal, em 2007) [, foto à esquerda, tirada por LG]



Data: 5 de Novembro de 2014 às 14:24
Assunto: Manuel Simões de Judgudul e os Africanistas à portuguesa (*)


Amigo Luís Graça, sobre o poste em referência [P13821] (*)  penso que devo um pequeno  esclarecimento.

Em primeiro lugar, queria dizer que as dúvidas quanto à construção da estrada Jugudul- Bambadinca, actual, não é do tempo colonial, é de 1982/3, com uma empresa, lembro-me que seria  francesa, com financiamentos habituais daquele tempo, Banco Mundial, Árabes, CEE,  etc.

Sobre o que o Luís Graça comenta sobre a minha «boca» ao chamar " africanista à portuguesa" a Manuel Simões, que representa a imagem de muitos milhares que durante séculos embarcaram para África e esqueceram  a terra deles ou dos pais e avós, penso com toda a sinceridade que não há palavra mais apropriada para eles do que chamar-lhe «africanistas».

Há aquela ideia dos exploradores ingleses, portugueses como Serpa Pinto ou Cecil Rodes, (Brancos) enviados como estudiosos para o  interior de África, ou militares para expandir fronteiras, e regressavam às metrópoles com a imagem,  aquela imagem vestidos à safari, caqui e capacete de cortiça, atribuindo-se a eles  vagamente essa palavra «africanistas».

Também a missionários ou estudiosos (brancos) de línguas e costumes africanos também se lhes atribui o nome de africanistas.

Porque não se deveria ter chamado a estes geógrafos uns, geólogos outros, missionários que estudavam dialectos, simplesmente, chamarem-se «africanólogos»?

Também  serão africanistas aqueles funcionários que fazem comissões atraz de comissões em África, através de ONG e ONU, ajudando "aquele pobre povo", como dizem,  comovidos, que os colonialistas exploraram.

(E nessa ordem de ideias ainda teremos um dia  que chamar «europeistas» aos inúmeros africanos que "estudam" muitíssimo bem todos os europeus e estudam e praticam todos os seus hábitos e suas línguas.? E num momento em que os africanos avançam para a «Europa e em força» por Melila e Lampedusa, qualquer dia até lhe chamaremos  de colonialistas  e invasores? Quem sabe, um dia?)

Alguém  considerar-se africanista, ou colonialista, ou emigrante em África, penso que é mais um estado de espírito, do que aquilo que alguém o queira classificar.

Para um branco ser um grande africanista à portuguesa  não era obrigatório dormir numa esteira, (quirintim) e encher a casa de crianças mulatas,  mas também ajudava.

Os milhões de brancos que emigraram ou nasceram em África durante séculos, e optaram por qualquer circunstância  adoptar África como sua terra (forçados pela família em criança, deportação,  dificuldades económicas para regressar, boa  adaptabilidade climática ou vida social muito bonita e fácil) se esqueceram das terras de origem, jamais será correto dizer que se trata de um colonialista, ou mesmo emigrante.

Sejam portugueses, boers da África do Sul ou rodesianos (Zimbabué), esses brancos, não podem ser considerados simples colonialistas, antes pelo contrário, eram antes, grandes africanistas.

Casos como na Guiné, Manuel Simões, Luandino Vieira em Luanda, Mia Couto em Moçambique, para vincar bem a minha ideia,  mais do que guineense, ou angolano ou moçambicano, intimamente estes brancos sentem-se africanos.

Ora quem se sente africano e não tem carapinha,  não pode deixar de ser um perfeito  africanista, mesmo que os " Mugabes"  não os considerem  africanos.

E quem é europeísta? Será que pelo facto de os turcos e israelitas insulares como os gregos e cipriotas e peninsulares como  íberos e ítalos, pelo facto de entrarmos na taça dos campeões europeus, somos europeus? Ou europeístas apenas?

Ora quem se sente europeu tem que ser europeísta, mesmo que os Napoleões e os Hitleres não  considerem como europeus muito loiros, os insulares  peninsulares do sul e outros vizinhos.

No entanto há brancos que viveram a vida em África e nunca tiveram o mínimo sentimento de africanista, e outros brancos que em menos de um ano se tornam, ainda hoje, genuínos africanistas.

Ser africanista é um estado de espírito, e não precisa de andar com "os pretinhos ao colo".  Nem deve!

Quando no 25 de Abril vieram para Portugal os retornados,  poucos  tínhamos espírito  africanista, mesmo os que estávamos há muitos anos em África, porque a maioria era funcionário público, mais tarde "trabalhador da Função Pública", e estávamos só à espera da reforma para regressar para a terra dos brancos, «a minha terrinha»

Aqueles que na realidade se sentiam africanistas, não aceitavam um dia repor a gravata e as ceroulas  e tornar a "enclausurar-se" nestes pequenos e limitados espaços da idade média, as nossas aldeias,  e largar aqueles espaços abertos, embora  da idade do ferro.

Infelizmente a maioria destes africanistas perderam a vez na terra que tinham adoptado como sua.

No caso dos portugueses, os genuínos africanistas e seus descendentes foram muito incomodados em África e recebidos com muitas reservas em Portugal, quando vieram com os retornados.

A maioria dos africanistas,  em idade de reprodução, desapareceram para o Brasil, EUA, Canadá e França.

Falam muito mal dos portugueses, e têm, tal como os actuais dirigentes africanos das nossas ex-colónias,  que tomaram conta "dos seus destinos", pouca consideração por nós.

Claro que têm motivos diferentes para criticarem o tuga, mas de qualquer maneira, sempre que tenham que fugir de onde estão,  recebemo-los  de braços abertos.

Uma curiosidade sobre os africanistas à portuguesa, não foi só nas ex-colónias portuguesas que se instalaram inúmeros portugueses.

No ex-Congo Belga foram tantos os portugueses que permaneceram após a fuga total dos Belgas em 1960, que protegidos pelas populações e que se foram entendendo com aqueles que tomaram "conta dos seus destinos", que foi possível o comércio de distribuição não desaparecer completamente, e evitar alguma fome.

Os africanistas à portuguesa levaram séculos a ajudar a construir os PALOP que sobraram.

Acontece que alguns dirigentes desses países não escondem grande desgosto por esses africanistas não tenham sido outros um pouco mais "loiros".

Os dirigentes africanos,  em geral,  não gostam de africanistas, detestam.

Isto é uma regra, e com todas as regras têm uma excepção, apareceu Mandela.

Como português, tenho a maior admiração pelos africanistas como Manuel Simões.(**)

Cumprimentos,

Antº Rosinha

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(...) Luís Graça disse...

Confesso que tenho um certo fascínio por homens como este, "africanistas", como diz o Rosinha... Não sei se o termo não será pejorativo e sobretudo inapropriado...

Segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, o/a africanista (substantivo com 2 géneros) é “a pessoa que se dedica à exploração ou estudo da África”.

Presume-se que venha de outras paragens, de outros continentes, a Europa, por exemplo, que foi a grande potência “colonizadora” desde os finais do séc. XIX até à emergência dos nossos estados africanos.

Nesse sentido, o “africanismo” antecederia o “colonialismo”: como se costuma dizer, primeiro vem o explorador, depois o antropólogo, depois o missionário, e depois a tropa, o administrador, o cobrador do imposto de palhota e, por fim, o o comerciante (porque sem dinheiro não há economia monetarizada)...

Mas talvez o Rosinha queira dizer, com o termo africanista (não confundir com panafricanista. que tem um outro sentido, mais filosófico e político…) aquele (em geral branco…) que se considera nascido e crescido em África, ou que tenha vivido e trabalhado em África, ou que muito simplesmente ama a África, as suas paisagens, as suas gentes, as suas culturas… sem ter que ser um “colon”.

Nesta acepção, mais lata, somos todos, aqui, "africanistas"...

Manuel Simões, africanista ? Antes de mais, era português e guineense, nascido em Bolama, com costela beirã, do lado do pai, e provavelmente caboverdiana, do lado da mãe...  E, não menos importante, sobreviveu quer ao “colonialismo” quer ao “paigecismo” (, nas suas várias versões cabralismo, ninismo, etc.)…

Deixou muitos amigos e conhecidos, lá e cá, a começar pela nossa Tabanca Grande.  Tenho pena que não tenha deixado escrito um "manual de sobrevivência"... Ele atravessou dois séculos (1941-2014), "prenhes” de história e de histórias... LG

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Guiné 63/74 - P13855: Efemérides (177): A guerra, a água e o nosso 1.º de Novembro de há 50 anos… (Manuel Luís Lomba)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66), com data de 28 de Outubro de 2014:

Olá, Carlos Vinhal:
A faculdade de mudança será um atributo da idade, incluindo a de esquecer e eu entrei numa estratégia de embargo à ameaça do aparecimento da "doença do alemão", como lhe chama o Luís Graça, com as abatises das actividades mentais.
Assim, sujeito mais um texto evocativo à tua paciência beneditina, para lhe dares o destino que melhor entenderes.

Com um grande abraço,
Manuel Luís Lomba


A guerra, a água e o nosso 1.º de Novembro de há 50 anos…

Na mais remota antiguidade, a água e o leite materno eram mobilizados como bens estratégicos de guerra: aquela, porque a água é a vida; este, porque havia mais vida, para além da guerra. Na segunda quinzena de Outubro de 1964, a nossa CCav 703 recebeu a missão de desimpedir a estrada Mansabá-Farim, obstruída há mais de um ano pela malta do PAIGC do Oio e do Morés, logo na primeira onda da subversão no Norte da Guiné. A tropa invejava o livre-trânsito do médico Dr. Maurício, incansável combatente, mas contra lepra dos guineenses, e dizia-se que os guerrilheiros apareciam a desimpedi-la de minas e abatises, logo que a sua carrinha Peugeot 403 era avistada. O Dr. Maurício era avesso às colunas militares e a tropa “lerpava”…

Saímos da Amura, atravessámos Bissau adormecida, fizemos a cambança do Geba na vetusta jangada de João Landim, rodámos em velocidade de cruzeiro e o asfalto terminou em Mansoa, (era exemplar único, na Guiné!), onde nos dividimos em “coluna, vanguarda de segurança e guardas de flanco”, no sentido de Mansabá.

O Estado-Maior determinara a nomadização em Bironque, onde levantámos as tendas cónicas de lona, modelo dito de colonial. Nos tempos em que as guerras eram feitas por homens e bestas, os chefes determinavam os bivaques em locais com água; como aquela era feita por homens com amparo de máquinas, tal preocupação foi negligenciada.

Troço da estrda Mansabá-Farim. Vd. Carta de Farim 1:50.000

Em Bironque, os patrulhamentos sucediam-se mas não contactavam – nem água, nem IN; e os ”sintrep” chegavam ao QG em conformidade. Até que o Brigadeiro Sá Carneiro, Comandante do CTIG, veio pelo ar num Allouete II de evacuações sanitárias, característico pelas duas macas acopladas no exterior, a simular uma inspecção ao bivaque e a prevenir o capitão da iminência de um ataque; e, ao apressar-se de regresso o zingarelho, não teve como se furtar às queixas gerais, não da falta de guerra, mas da falta de água para beber, cozinhar, lavar as marmitas… Aquele segundo soldado da Guiné (o primeiro era o General Schulz) providenciou apenas a última:

- Na guerra, as marmitas lavam-se com terra e não com água! - retribuído com a “boca”, dirigida ao piloto:
- Não precisávamos de um brigadeiro; precisamos de gerricans de água!

Na Frente Norte do IN pontificava o comandante Osvaldo Vieira, ex-furriel do Exército Português e, duas noites depois, dirigiu-nos prolongada flagelação; teremos sido a primeira tropa a levar com morteiradas de 82. E sem dispor de abrigos cobertos, do nosso equivalente (de 81) e sem água.

Eu fora escalado para substituir o vaguemestre, de baixa ao então HM 241. Chegámos ao dia 1 de Novembro, o capitão mandou-me formar uma patrulha com o pessoal da cozinha e voluntários, constituída por 10 atiradores, um condutor e um apontador de morteiro de 60 e ir buscar água a Mansabá. Esfalfámo-nos a fazer parapeitos de sacos de areia na caixa de carga do camião Mercedes novinho em folha e fizemo-nos ao caminho, que havíamos desimpedido, levantando uma nuvem de pó. Os “Águias Negras” de Mansabá foram malta fixe: atestaram-nos o atrelado-tanque, facultaram-nos os chuveiros e as suas toalhas de banho, partilharam comida e bebida fresca. A minha já longa vida jamais experimentará satisfação idêntica à daquele banho, daquela cerveja gelada e daquela conserva de perdiz, da marca Brandão!

Fazia-se tarde, o comandante deles ajuizou-nos de temerários e mandou um pelotão num Unimog escoltar-nos até certo ponto do caminho, que avariou, e o tempo gasto a removê-lo da estreita via, colocou-me perante um dilema: retroceder para Mansabá ou prosseguir para Bironque. A nossa malta veio em meu auxílio:
- P´ra frente é que é o caminho! - expressão em voga, atribuída ao capitão Henrique Galvão, quando do assalto ao paquete Santa Maria.

Fizemo-nos ao caminho, mas o malvado do ex-camarada Osvaldo Vieira continuava por ali, aprontou-nos uma emboscada na margem direita, a misturar insultos às nossas mães com rajadas de metralhadoras, a cravejar os sacos de areia, a cabine do camião e as granadas de mão a explodir, afortunadamente, do lado oposto da estrada. O condutor Pardal (Domingos, estou a corrigir o erro do livro!), estirou-se sobre os bancos, cabeça de fora da porta, uma mão no volante, outra no acelerador e saiu da zona de morte, enquanto 5 dos nossos reagíamos à sua retaguarda e outros 5 à sua frente. Pude acompanhar todo o filme, a cabeça de encontro a um providencial poste telefónico, que eles deixaram derrubado na valeta, quase a sentir a respiração do IN e tive a noção do momento da sua manobra de retirada.

Corremos em zigue-zague até todos subirmos para o camião, que se aguentou até Bironque, com o motor a verter os seus líquidos e os sacos a espalhar a sua areia.

Fomos protagonista de duplo “ronco”: regressamos ilesos, nós e o atrelado-tanque; e, com metade do pessoal que pegara pela primeira vez numa G3, demos troco e escorraçamos o ex-furriel Osvaldo Vieira e os seus turras, que tinha dois anos do Exército Português, mais dois anos de especialização na Academia Militar de Pequim, ao passo que eu fizera a recruta e saíra “especializado” em guerra convencional, revolucionária e no seu comando em apenas 4 meses – de Agosto a Dezembro de 1963, no CISMI, em Tavira!

Novembro é o tempo de toda a Cristandade evocar os fiéis defuntos.

Evocamos a memória dos únicos derrotados da guerra da Guiné - os seus mortos, porque a(s) pátria(s) não os mereceu…
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Nota de editor

Último poste da série de 15 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13739: Efemérides (176): A primeira Operação da CART 494 foi em 11 de Outubto de 1963 (Coutinho e Lima)

Guiné 63/74 - P13854: Histórias da CCAÇ 2533 (Canjambari e Farim, 1969/71) (Luís Nascimento / Joaquim Lessa): Parte XXV: (i) o final da comissão em Farim, com os últimos mortos e feridos na zona de Lamel;: (ii) humilhados e ofendidos: regressados á Pátria, somos obrigados a ir a Chaves, num comboio ronceiro, entregar meia dúzia de trapos desfeitos, os restos das nossas fardas ! (Agostinho Evangelista, 1º pelotão)


1º encontro do pessoal da CCAÇ 2533, depois do regresso da Guiné... Foi em 1986...  Foto da página do Facebook do Agostinho Gomes Evangelista, um rapaz que eu já convidei para integrar a Tabanca Grande: (i) ndou na escola Escola Industrial e Comercial de Viana do Castelo; (ii) vive em Viana do Castelo; (iii) é natural da Ponte da Barca; e (iv) é Casado. (Foto reproduzida com a devida vénia; edição de LG).

Talvez o Luís Nascimento nos possa identificar estes bravos da CCAÇ 2533. Já se passaram quase 3 dezenas de anos...



Foto de perfil do Agostinho Gomes Evangelista, na sua página do Facebook. (Editado por LG; reproduzida com a devida vénia...)











1. Continuação da publicação das "histórias da CCAÇ 2533", a partir  do documento editado pelo ex-1º cabo quarteleiro, Joaquim Lessa, e impresso na Tipografia Lessa, na Maia (115 pp. + 30 pp, inumeradas, de fotografias). (*)

Desta vez  ex-sold Agostinho Gomes Evangelista, do 1º pelotão, descreve-nos as emboscadas que sofreu já em Farim,  perto do fim da comissão, na famigerada zona de Lamel, Um dos mortos  companhia foi o alf mil Ambrósio (pp. 86/87)..

O Evangelista foi, apesar de tudo um dos felizardos que voltou, vivo, mas ainda teve que ir a Chaves, fazer a entrega do material, num comboio ronceiro... Material ?  Meia dúzia  de trapos desfeitos, os restos das fardas destes heróis, humilhados e ofendidos... LG

Guiné 63/74 - P13853: Da Suécia com saudade (43): A ajuda sueca ao PAIGC, de 1969 a 1973, foi de 5,8 milhões de euros (Parte IV): Rússia e Suécia, vizinhos e inimigos fidalgais, foram os dois países que mais auxiliaram o partido de Amílcar Cabral (José Belo)


Guiné-Bissau > PAIGC > s/l> Novembro de 1970 > Algures, nas "áreas libertadas", foto do norueguês Knut Andreasson, com um grupo de homens, jovens adultos, possivelmente balantas e guerrilheiros, a maioria deles descalços, ostentando todos eles o livrinho de leitura da 1ª classe, o primeiro em uso nas escolas do PAIGC (e que, se não erro, foi oferecido por estudantes noruegueses e impresso na Suécia, num total de 20 mil exemplares).

Fonte: Nordic Documentation on the Liberation Struggle on Southern Africa  [Com a devida vénia]

[As fotos podem ser usadas, devendo ser informado o Nordic Africa Institute (NAI)  e o fotógrafo, quando for caso disso. Este espólio fotográfico  de Knut Andreasson (, relativo à visita ao PAIGC  e, alegadamente,  às áreas sob o seu controlo, em novembro de 1970,  de uma delegação sueca) foi doado pela viúva ao NAI.]


Imagens da capa de "O NOsso Livro Livro da 1ª Classe", o primeiro livro de leitura, usado nas escolas do do PAIGC... Exemplar capturado pelo nosso camarada Manuel Maia no Cantanhez, possivelmente em finais de 1972 ou princípios de 1973. Vê-se que esse exemplar tinha uso. A capa teve de ser reforçada com uns improvisados adesivos (aparentemente autocolantes, que acompanhavam embalagens de apoio humanitário, vindas do exterior).

Foto: © Manuel Maia (2009). Todos os direitos reservados

José Belo

1. Continuação de alguns dados e notas de contextualização sobre a ajuda sueca ao PAIGC, a partir de 1969, e depois à Guiné-Bissau, a seguir à independência (*):


Data: 3 de Novembro de 2014
Assunto:   O exemplo sueco é seguido por outros países


Resumo: 

Durante a guerra o governo sueco enviou para o PAIGC um total de 53,5 milhöes de coroas, ao valor actual [c. 5,8 milhões de euros]. Destinaram-se a financiar a maioria das actvidades civis do partido: alimentacäo, transportes, educação, saúde, incluindo um vasto número de avultados fornecimentos às Lojas do Povo. 

A Guiné foi posteriormente incluída (como único país da África Ocidental) nos chamados "países programados" para a distribuicäo da assistência sueca ao desenvolvimento. Recebeu durante o período de 74/75 a 94/95, um total de  2,5 mil milhões de coroas suecas [c. 270 milhões de euros], colocando a Suécia entre os 3 maiores assistentes económicos da Guiné-Bissau. 

A Suécia nunca deu nenhum cheque em branco ao PAiIGC, tanto mais que Portugal era um dos seus importantes parceiros comerciais no âmbito da EFTA - Associação Europeia do Comércio Livre, a que ambos os países pertenciam, e de que foram membros fundadores. Ainda em vida de Cabral, em abril de 1972 o Comité ds Nações Unidas para a Descolonizacäo tinha adoptado uma resolução reconhecendo o PAIGC como o único e legítimo representante do território da Guiné-Bissau. Foi um tremendo sucesso político-diplomático para o PAIGC. Isso em nada alterou o pragamtismo da diplomacia sueca. A Suécia só irá reconhecer a Guiné-Bissau como país independente, em 9 de agosto de 1974, ano e meio depois da  morte de Amílcar Cabral (que também era um político pragmático).


1. O auxílio sueco ao PAIGC abriu caminho a um cada vez maior número de apoios de outros países ocidentais.

A Noruega estabeleceu em 1972 uma assistência oficial e directa,semelhante ao modelo sueco, que veio a ter grande repercussão política internacional pelo facto de ser um país membro da NATO.

Neste período eram a Suécia e a Uniäo Soviética  (URSS) os países que mais apoiavam o PAIGC.

Um apoio de modo algum coordenado mas... real, numa divisäo "de facto" de funções entre os dois países, que mais tarde se veio a manter em relação aos outros movimentos de libertação africanos.

Apesar de tanto os Estados Unidos como outros países ocidentais acusarem a Suécia de fazer causa comum com o bloco comunista, isto não veio impedir que o Parlamento Sueco e o Governo Social Democrata continuassem a aumentar gradualmente a assistência não militar.

Deve-se no entanto ter o cuidado de colocar estas acusações dentro de uma perspectiva realista da história local.

O "inimigo histórico tradicional" da Suécia é a Russia,  e para tal basta abrir um qualquer livro de 
história da instrução primária sueca.

Isto independentemente de ser a Rússia do séc XVII, a Rússia dos comunistas ou...a Rússi actual.

José Belo

(continua)
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Nota do editor


Guiné 63/74 - P13852: Agenda cultural (350): Apresentação do livro "O 25 de Abril e o Conselho de Estado, a questão das actas", de Maria José Tiscar Santiago, dia 13 de Novembro de 2014, pelas 15h00, na Messe dos Oficiais, Praça da Batalha, Porto (Manuel Barão da Cunha)

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Nota do editor

Último poste da série de 31 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13830: Agenda cultural (349): Primeira sessão de divulgação da Colecção Literária "Fim do Império", dia 5 de Novembro de 2014, pelas 15h00, na Fundação Marquês de Pombal, Palácio dos Ciprestes, Linda-a-Velha (Manuel Barão da Cunha)

Guiné 63/74 - P13851: Parabéns a você (811): Jorge Cabral, ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 63 (Guiné, 1969/71)

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Nota do editor

Último poste da série de 3 de Novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13840: Parabéns a você (810): TGen António Martins de Matos, ex-Tenente Pilav, BA 12 (Guiné, 1972/74)

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Guiné 63/74 - P13850: (Ex)citações (246): Ainda o rebentamento de uma granada no meio da população de Ganturé, durante um batuque (Mário Vitorino Gaspar)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), com data de 31 de Outubro de 2014:

Camarada Luís Graça e Carlos Vinhal,
Não fui, não sou, nem nunca serei uma pessoa de guardar rancores. Não tenho, felizmente, inimigos, mas sim amigos, alguns a quem costumo designar “amigos à distância”, isto porque vivem longe. Eles estão bem presentes no dia-a-dia na minha vida. Recordo-os sempre.

Como exemplo dou o Lançamento do meu Livro, num dia chuvoso, no Forte do Bom Sucesso, local lindo mas distante, e a um horário (17H30) não convidativo. A sala estava repleta de amigos que vieram até do Porto.

Sucede que no Livro “O Corredor da Morte” – no Capítulo 9, com o título “O Rebentamento durante o Batuque”, descrevo esse acontecimento. Sucedeu que foram poucos os camaradas do Blogue que leram o Livro. Em Monte Real vendi 24 exemplares, e fizeram-me mais umas 12 encomendas. Vendi portanto 36 livros aos Camaradas.

[Capa do  livro "O Corredor da Morte", edição de autor, Lisboa, 2014; encomendas através do endereço: 
mariovitorinogaspar@gmail.com ].


Esse capítulo foi um dos mais difíceis que tive quando pensei passar para o papel esse drama, iniciado pelas 20h00 do dia 4 de Julho de 1967, até às 09H00 do dia 5. Minutos antes abandonei o batuque e fui jogar poker.

Foi um dos dias mais terríveis da minha Comissão.

Segundo consta na História da Unidade: “Trata-se do atentado cometido em Ganturé, contra a população, em 4 JUL67, através do lançamento de uma granada que explodiu durante um batuque de que resultaram dez mortos e cerca de vinte feridos”.

Quanto a mim o número é superior. Disseram-me que o Tenente de 2.ª Linha, o Régulo Abibo Injasso, afirmou que eu tinha planeado esse atentado em reuniões com os meus camaradas do Pelotão e uma Secção, junto ao cemitério de Ganturé. Íamos para esse  local de vez em quando onde dava instrução. Nem sequer tínhamos conhecimento tratar-se de um cemitério.

Respondi a dois Processos:  um Processo Civil, executado pela PIDE (eram uns três Agentes), e outro Militar a cargo do Comandante da Companhia de Sangonhá, penso que Capitão Cardoso.
Nos dois casos afirmaram logo no início do inquérito que sabiam que eu estava inocente.

Depois deste atentado fomos substituídos e destacados para Gadamael Porto. Devido às mortes que assisti nessa longa noite, e às mortes de camaradas – estou em guerra com a sociedade e comigo – e costumo dizer: “A Guerra Continua Dentro de Mim”.

Fui à Torre do Tombo, ao Arquivo do Salazar e da PIDE, quatro vezes, e nada, embora possua Processos que nada têm a ver com o caso. Fui ao Arquivo Geral do Exército, até solicitei o meu Processo Individual, onde nada consta, e o próprio Arquivo informou-me não existir sequer indicações de ter respondido a um Processo Militar. Fui ao Arquivo Histórico-Militar e coisa nenhuma e ao Balcão Único da Defesa e continuei na mesma.

Mas no meu Processo Individual vem algo que me intriga. Onde consta: “As Condições para o Posto Imediato”, julgo que a 28 de Junho de 1967 está escrito que reúno as condições para a promoção a 2.º Sargento Miliciano. Isto devido a ter sido Monitor no RI 14, em Viseu, e ter dado várias recrutas e uma Especialidade igualmente como Monitor e inclusive ter dado uma pequena Instrução de Minas e Armadilhas a uma CART que foi para a Guiné. O Oficial e três Cabos Milicianos por terem chumbado no XX Curso de Minas e Armadilhas recusaram fazê-lo.

Foi pena que o Carlos Vinhal não me tivesse enviado um mail a contar-me esta situação, porque gostaria muito de ter o contacto do Camarada Luís Guerreiro. (1)

Sucede que podem ver,  no Blogue, num dos textos em falo desse atentado. E mais não avancei na conversa porque é um capítulo grande do Livro “O Corredor da Morte”.

O Abibo também era uma bela peça, “jogava com um pau de dois bicos”. Controlava os informadores que eram pagos (é verdade que essas informações eram verdadeiras, exceptuando um caso ou outro). Parecia mais a guerra do Raul Solnado: “Fiz um prisioneiro mas ele não quis vir!”.... Quando íamos ao “corredor da morte”, depois da informação que o PAIGC passaria pelas tantas horas, seguíamos para Guileje, dormíamos um pouco e seguíamos para a zona indicada pelo informador.

E lá estava o PAIGC a passar à nossa frente, e nós a deixarmos passar os primeiros, e depois de estar a maioria à frente era carregar em força. Todos os anos o Régulo Abibo Injasso, Tenente de 2.ª Linha ia a Meca pago pelo nosso Exército. Conheci-o bem, e no caso do rebentamento da granada no batuque ele tem toda a razão, em denunciá-lo.

Como era Atirador e Especialista de Minas e Armadilhas, ia quase sempre com as Praças “U” e Caçadores Nativos montar minas e armadilhas. Depois de montadas e ao fim de pouco tempo já o PAIGC sabia a sua localização. Cheguei a dizer o que deveríamos fazer mas não me ouviram, dei uma solução. Sucede que nos casos em que montei armadilhas, por exemplo nas imediações de Gadamael nem as Praças “U” nem os Caçadores Nativos conheciam a localização e o PAIGC, nunca lá foi.

Em Mejo o PAIGC chegou ao ponto de levantar as minas “bailarinas” da NT na zona onde iam à água, que conheci bem, e montarem-nas noutro local.

Camarada Luís Guerreiro, segundo dizes o Abibo focou a gravidade do rebentamento da granada durante o batuque, nisso com toda a razão. Mas essa de “Segundo o régulo, um ataque ao destacamento foi simulado por esse grupo de combate, e uma granada de mão”, nem sequer tive conhecimento dessa afirmação, que me acusou disseram-me, mas também não sei se é verdade.

Não existe uma simulação, porque nesse caso eu sabia-o. Quem cometeu o atentado fê-lo sozinho ou acompanhado por um ou outro. O 2.º Pelotão, e uma Sessão da CART 1659 não o fez, fique claro. Que a granada foi “lançada para o meio da população”, antes dizia batuque, é verdade. Mas quem foi o causador do atentado? Considero que houve um atentado, gostava de saber quem foi, e é isso mesmo que me leva a viver nessa dúvida. “Faleceram algumas bajudas, ferindo outras que foram evacuadas para Bissau devido à gravidade”. Essa da “cavilha da granada foi encontrada no local do Batuque”, é mentira, andámos a vasculhar tudo. Não tenho conhecimento de tal. O que se encontrava no solo eram estilhaços.

Espero que o camarada Luís Guerreiro, até porque pertenceu a uma Companhia que rendeu a CART 1659, entre em contacto comigo. Nos mails que ontem enviei indirectamente falei desta catástrofe.

Não posso ficar calado, e conheço outros casos graves. Aliás, na manhã das evacuações apareceu um suspeito negro, não conhecido que foi apanhado, e o que se passou a seguir, o Régulo Abibo sabia de certeza. Eu queria muito conhecer a verdade.


A granada rebentou à esquerda, continuando em frente havia um abrigo e uma “barraca” onde eu dormia. Ao fundo, à direita o palácio do régulo Abibo. Quando lá estava à esquerda era a “tasca” e a seguir do mesmo lado a Messe


Recordo estas bajudas

Fotos: © Jorge Guerreiro

Cumprimentos do Ex-Furriel Miliciano de MA da CART 1659, Mário Vitorino Gaspar
Mail: mariovitorinogaspar@gmail.com


2. Aqui vai um cheiro de parte do Capítulo 9 – "O Rebentamento Durante o Batuque” do meu Livro “O Corredor da Morte”.

(…) Sacudi o copo e lancei os dados…

- Uma sequência!

E era uma sequência que via sobre a mesa quando os dados estremecem, ouvindo-se um forte rebentamento.

- São eles…

- Disseram todos, quando saltámos dos bancos, cada um na direcção do abrigo do qual era responsável. Ouviam-se gritos angustiantes acompanhados por gemidos. Em corrida, passei junto do local donde há pouco se dançava.

Nem um tiro escutara. As nossas armas estavam caladas quando cheguei ao meu abrigo. Alinhadas as camas do lado direito e esquerdo, com quatro paus do mesmo tamanho, dois à cabeceira e dois nos pés que seguravam um mosquiteiro cada.
Ninguém estava nas camas, todos estavam junto da vigia do abrigo, empunhando as G3. Só o apontador de armas pesadas se encostava à “sua menina”, como ele lhe chamava.

- O que é que se passa, meu furriel?

Ouvi, não respondendo, quando me aproximava da vigia. Não conseguia entender o que realmente se estava a passar quando chega o corpo de uma mulher grande, que gritava, nas mãos de um civil negro, com algumas dificuldades em transportá-la.

Três militares seguraram-na e o vermelhão do sangue tingia as cores também garridas do vestido. As vísceras soltavam-se-lhe do corpo quando a colocaram sobre uma cama. Via-se o sangue brotar cada vez mais abundantemente, fugindo do corpo, como numa correria. Cobria já os lençóis brancos para a terra batida do abrigo, aumentando a mancha do líquido viscoso que mais parecia uma nascente. Sem querer pisei aquela poça e, sem pensar nascem pensamentos.

- Está morta!

Estava mesmo morta. Tudo continuava na mesma, não existindo o mínimo sinal físico do PAIGC, quando o soldado que transportara aquela mulher se afastava, gritei para os onze elementos da minha secção. 

- Só fazem fogo se virem algo de anormal! Ouviram?

Chegam mais dois corpos, uma mulher e uma criança que são levados para as primeiras camas. Saber o que realmente se passava era difícil se não desse uma volta. Alguém com uma voz angustiante, olhando a miúda que ainda há pouco dançava, diz:
- Esta miúda está morta!

- Ponham os dois corpos fora do abrigo, junto da enfermaria! Se é que aquilo era alguma enfermaria, era antes uma barraca.

Disse tão baixinho que julgava ter falado para mim, mas ouviram-me. Só depois, olhei a outra mulher grande e corri para o exterior, sem estar convicto se ela estaria ou não com ferimentos graves. O enfermeiro não parava…
Escutava vozes de todo o lado, súplicas que me afundavam. Uma amálgama de sofrimento e angústia. Um mar de sangue a meus pés à saída do abrigo, empurrou-me para o centro do aquartelamento para obter as respostas, e apoio.
Deparei junto da enfermaria, após ter ultrapassado a zona do batuque, com uma velha preta e, na linguagem que não entendia, mas mirando a depois de parar, percebi. Segurava com ambas as mãos os intestinos, que escorriam do corpo, pretendendo nada perder daquele corpo que era o seu. A vida bem segura nas mãos e eu quase a vomitar tudo o que tinha no estômago.

Presa à vida, quando a via morta, ou quase morta, amparo-a e noto estar pior ainda que julgava. O sangue colou-se-me às mãos sentindo o cheiro e a presença da morte. Necessitava de algo que lhe acalmasse as dores. Um comprimido?

Os gritos, qual buzina das fábricas, a chamarem pelos operários, rompiam daquele ser. Eu não estava preparado para tal missão. Comecei então a ver negros saídos de vários pontos do aquartelamento, nascidos de abrigos e da paliçada onde se haviam escondido. Um civil segurava a negra. Ajudámos a transportá-la para a enfermaria.

– Temos aqui um caso! – Temos aqui mais um caso.

O enfermeiro, cansado, deve ter pensado não ser um caso, mas mais um caso.
Apercebi-me entretanto ser a situação mais complicada ainda, quando olhei para o enfermeiro, e a enfermaria com muito más condições, e vejo umas sete macas improvisadas, com uns tantos feridos. Os mortos à parte.

- Meu furriel, retirei dois corpos!

- A miúda está morta!

- Ponham-na junto da outra mulher que já morreu! – Disse-lhes afastando-me para fora do abrigo.

Cá fora ouvia os gritos de todo o lado. Uma amálgama de sofrimento e de angústia, era um mar de sangue que se enfiava numa fresta de terra batida. Era sangue de vida, sangue que cheirava a morte. E interroguei-me, enquanto corria para a enfermaria: 
- O que se teria passado realmente?

Uma mulher velha mirou-me e falou-me. Não entendi o que dizia mas senti o sofrimento.

Vi uma imagem que jamais vou esquecer. Uma “mulher grande”, muito velhinha, segurava com ambas as mãos as vísceras que escorriam do corpo. Pretendia não perder nada daquilo que segurava. Pregava-se à vida, e a vida estava presa em ambas as mãos. Encostou-se a mim. Segurei-a e vi a morte e senti-lhe o cheiro. Ela necessitava de muito mais, de algo que a aliviasse das dores. Comprimidos? Dei-lhe vários LM’s (Laboratório Militar), que aliviam todas as dores. Sou um estúpido, dar um comprimido, não serve de nada! Os indivíduos da “banha da cobra”, que tão bem conhecia, diziam nas Praças Públicas: – “Não estou aqui para enganar ninguém, estou aqui porque a casa quer e a casa manda”. E a casa, a Pátria mandava, e nós obedecíamos. Os gritos saídos daquelas goelas, misturavam-se com os choros convulsivos de mulheres e crianças. Aquilo mordia-me o corpo. O enfermeiro disse-me havia feito bem em dar à velhinha os comprimidos.

Alguma população civil ia surgido, assim como alguns militares. Encolhiam os ombros, como que a perguntarem o que se passara. Segurei a velha, já muito velha, ajudando a transportá-la para uma maca. 
- Temos mais aqui um caso! – Ouviu-se.

Olhei para o interior daquela barraca a que denominavam de enfermaria. Estavam seis ou sete pessoas. Foi algo que aprendera naquela guerra, surgia o número na mente sem contar. Um outro sentido. O enfermeiro contara, eu tinha razão.

-  Isto é uma calamidade. Ainda há bem pouco, que dançavam.

Fui dar uma espreitadela ao local onde se efectuara o batuque, perguntando a mim próprio: – O que se teria passado?

Alguém fez a mesma pergunta novamente.

- No meu abrigo também há mortes e feridos.

O enfermeiro mirou-me com os seus olhos de 21 anos, enquanto chegavam mais corpos. Entre eles, um já sem vida.

(Continua no Livro “O Corredor da Morte”)

No final do Capítulo 9 – “O Rebentamento Durante o Batuque”

Na História da Unidade consta:

“Não queremos também deixar de assinalar neste Relatório um facto que nos causou profunda impressão e desgosto, já pelas consequências que dele resultaram, já porque apesar de todos os esforços desenvolvidos pelas autoridades militares e civis, não lográmos vê-lo esclarecido inteiramente para apuramento das responsabilidades e aplicação da Justiça. Trata-se do atentado cometido em Ganturé, contra a população, em 4 JUL 67, através do lançamento de uma granada que explodiu durante um batuque de que resultaram dez mortos e cerca de vinte feridos”.
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Notas do editor

(1) Vd. poste de 21 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13777: Em busca de... (249): A verdade sobre um ataque simulado por um Grupo de Combate da CART 1659 a Ganturé (Luís Guerreiro)

Último poste da série de 1 de Novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13835: (Ex)citações (245): Dia dos Fieis Defuntos: o povo sabe que nas campas no final fica só terra sobre terra mas para ele essa terra é sagrada (Francisco Baptista, Brunhoso, Mogadouro)

Guiné 63/74 - P13849: Da Suécia com saudade (42): A ajuda sueca ao PAIGC, de 1969 a 1973, foi de 5,8 milhões de euros (Parte III)... Pragmatismos de Amílcar Cabral e do Governo Sueco, de Olaf Palme, que só reconheceu a Guiné-Bissau em 9 de agosto de 1974 (José Belo)


Guiné-Bissau > PAIGC > Novembro de 1970 > Um bigrupo (em geral, constituído por 30/40 elementos).  Repare-se que na sua generalidade os guerrilheiros usam sandálias de plástico e há uma grande indisciplina no vestuário.  Imagem do fotógrafo norueguês Knut Andreasson (com a devida autorização do Nordic Africa Institute, Upsala, Suécia). A fotografia não traz legenda. São alegadamente tiradas em "regiões libertadas" (sic) (*).

Fonte: Nordic Africa Institute (NAI) / Foto: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a autorização do NAI)



José Belo

1. Continuação de alguns dados e notas de contextualização sobre a ajuda sueca ao PAIGC, a partir de 1969, e depois à Guiné-Bissau, a seguir à independência (**):



Data: 3 de Novembro de 2014
Assunto:  Pragmatismos de Cabral e do Governo Sueco


Resumo: 

Durante a guerra o governo sueco enviou para o PAIGC um total de 53,5 milhöes de coroas,ao valor actual [c. 5,8 milhões de euros].  Destinaram-se a financiar a maioria das actvidades civis do partido: alimentacäo, transportes, educação, saúde,  incluindo  um vasto número de avultados fornecimentos às Lojas do Povo. 

A Guiné foi posteriormente incluída (como único país da África Ocidental) nos chamados "países programados" para a distribuicäo da assistência sueca ao desenvolvimento. Recebeu  durante o período de 74/75 a 94/95  2,5 mil milhões  de coroas suecas [c. 270 milhões de euros], colocando a Suécia entre os 3 maiores assistentes económicos da Guiné-Bissau.

A Suécai nunca deu nenhum cheque em branco ao PAiIGC, tanto mais que Portugal era um dos seus importantes parceiros comerciais no âmbito da EFTA - Associação Europeia do Comércio Livre, a que ambos os países pertenciam, e de que foram membros fundadores. A Suécia só irá reconhecer a Guiné-Bissau como país independente... em 9 de agosto de 1974. 


Em Abril de 1972 o Comité ds Nações Unidas para a Descolonizacäo adoptou uma resolução reconhecendo o PAIGC como o único e autêntico representante do território da Guiné-Bissau. Para o PAIGC foi um enorme sucesso político-diplomático.´

Baseando-se neste documento o Comité podia agora sugerir o reconhecimento dos movimentos de libertação, näo como peticionários, mas antes numa situacäo de observadores. Havia pela primeira vez na história das Nacöes Unidas a possibilidade de um representante de um movimento de libertação discurssar perante a Assembleia Geral da ONU, isto em Novembro de 1972.

Esta honra deveria caber a Amílcar Cabral. Este foi informado pelo Secretário do Comité da Descolonizacäo das Nações Unidas (Salim Ahmed Salim) de que tanto a Suécia como os restantes países nórdicos näo estavam satisfeitos quanto às implicacöes legais deste tipo de intervenção (sem precedência na Assembleia Geral) por parte de um representante de um movimento de libertação.

Salientou existirem mais do que suficientes votos e apoios de países africanos, asiáticos e sul americanos,  caso ele estivesse disposto a discurssar, independentemente da opinião dos nórdicos.

A diplomacia de Cabral era caracterizada por um pragmatismo realista que foi entäo amplamente demonstrado. Cabral näo discurssou,  afirmando: "Os países nórdicos têm sempre demonstrado serem nossos amigos.Recebemos o seu apoio em todas as situacöes. Não desejo de modo algum causar quaisquer problemas de ordem político-legal".

Já em 1971,   durante visita ao Ministério dos Negócios Estrangeiros,  em Estocolmo,  Cabral apresentou a hipótese de um reconhecimento "de jure" da independência da Guiné.

Tanto nesta ocasiäo como mais tarde em 1973,  aquando da proclamação da Independência da Guiné-Bissau como Estado dentro das fronteiras da entäo Guiné Portuguesa, a Suécia mostrou-se relutante a reconhecer o novo Estado.

Mesmo depois da Guiné-Bissau já ter sido reconhecida por mais de sessenta países...."inter allia" , o governo sueco  aplicou o princípio da necessidade de o PAIGC controlar TODO o território,  não reconhecendo assim a independência.

Esta atitude provocou fortes reacções nos partidos da esquerda sueca. nos inúmeros grupos de de suporte às lutas de África, e mesmo no seio do próprio partido governamental (Social Democrata).

O golpe militar de Abril de 74 veio facilitar o problema político-legal ao governo sueco.

Foi só 10 dias depois da publicacäo por parte de Portugal de uma "declaracäo de intencöes" quanto ás independências das colónias que o governo sueco reconheceu a Guiné-Bissau como Estado independente (9 de Agosto de 1974).

Portugal reconheceu a independência da Guiné em setembro de 74.

José Belo

(continua)
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Notas do editor:

(*) Vd. a página, em inglês,  sobre a Guiné-Bissau (não do  Nordic Africa Institute, Upsala, Suécia,  mas sim da Nordic Documentation on the Liberation Struggle on Southern Africa / Documentação dos Países Nórdicos sobre a Luta de Libertação na África do Sul):

Aqui vão traduzidos alguns excertos:

(...) Guiné-Bissau > Knut Andreasson eBirgitta Dahl em viisita a  zonas libertadas da Guiné-Bissau, no mês de novembro de 1970  

(...) O fotógrafo norueguês Knut Andreasson  e a ex-presidente do parlamento sueco Birgitta Dahl , juntamente com uma delegação sueca,  visitaram as regiões libertadas da Guiné-Bissau, em novembro de 1970. Esta visita deu-lhes a oportunidade de falar com Amílcar Cabral no seu próprio ambiente e ter uma compreensão mais profunda da luta pela independência, contra  Portugal.. Andreasson e Dahl depois fizeram um livro * em sueco  a partir das  suas impressões e observações  no ªambito desta viagem. 

Andreasson também organizou uma exposição de fotografia com o objetivo de informar o público dos países nórdicos sobre o PAIGC e  a Guiné colonizada . Não só a exposição, como também a maioria das fotos deste período foram posteriormente doadqs ao Instituto Nórdico de África pela viúva de Andreasson . A exposição, por sua vez,  foi oferecida à Fundação Amílcar Cabral pelo Instituto  e apresentada por Birgitta Dahl  por ocasião das celebrações do 80º aniversário do nascimento de Amílcar Cabral, em setembro de 2004.

As imagens que o Instituto disponibiliza mostram como era a vida nas zonas libertadas . Como é que a população fazia a sua sua vida diária, mas também mostram o lado militar, os guerrilheiros com as suas armas.. Como a Guiné-Bissau tem muita rios,  a canoa era   um importante meio de transporte, tanto mais que os portugueses fizeram explodir a maior parte das pontes.  Mais de 99 % da população era analfabeta quando a luta começou em 1963, por isso a educação era importante e o PAIGC montou escolas no mato para crianças e adultos,  Existiam cerca de 75 dessas escolas, uma das primeiras foi a Escola Piloto em Conacri . O primeiro livro de leitura foi financiado por estudantes noruegueses e impresso na Suécia. As fotos mostram também eventos culturais e serviços de saúde do PAIGC.

Algumas das imagens seguintes estão publicados no livro* de  Knut Andreasson e Birgitta Dahl, onde é possível ler mais sobre a situação na Guiné-Bissau naquela época