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terça-feira, 10 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23252: 18º aniversário do nosso blogue (14): até meados de 1971, o Serviço de Reordenamentos do BENG 447, com o apoio das unidades militares e as populações locais, construiram 8 mil casas cobertas a colmo e 3880 cobertas a zinco


Capa do livro "A Engenharia Militar na Guiné - O Batalhão de Engenharia". Coord. Gabinete de Estudos Arqueológicos da Engenharia Militar. Lisboa : Direcção de Infraestruturas do Exército, 2014, 166 p. : il. ; 23 cm. PT 378364/14 ISBN 978-972-99877-8-6. Cortesia de Nuno Nazareth Fernandes.


Guiné > Região do Cacheu > Bissássema > c. 1971/73 > Construção de uma casa no reordenamento de Bissássema. Na foto: 1.º Cabo José Leonardo e os Soldados João Ventura e Idalmiro Melo da CCAÇ 3327 (Teixeira Pinto e Bissássema, 1971/73).. Foto de José Leonardo, cedida por José da Câmara.

Foto (e legenda): © José Leonardo / José da Câmara (2013). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Na celebração do 18º aniversário do nosso blogue (*), vamos também repescar postes que, por um razão ou outra, não tiveram a devida divulgação, ou têm informação relevante para os nossos leitores mais recentes. 

É o caso, por exemplo, deste poste, sobre os reordenamentos populacionais (**). Merece ser reeditado, pela quantidade e qualidade da informação técnica, para mais sendo  da autoria do então cap mil art, Fernando Valente (Magro), que chefiava os competentes serviços, no BENG 447 (Brá, 1970/72). 

Foi mobilizado para o CTIG aos 33 anos, sendo já na vida civil engenheiro
técnico. Hoje está reformado, e é, além disso, escritor. Faz também hoje 86 anos de idade, sendo o mais velho dos elementos do Núcleo de Combatentes da Família Magro: foram ao todo seis os manos Magro que fizeram o serviço militar ao tempo da guerra do ultramar / guerra colonial, tendo estado  três na Guiné, um em Angola, outro em Moçambique e outro ficou por cá, como suplente.  Três dos manos Magro integram a Tabanca Grande, o Fernando,o Abílio e o Álvaro.

O Fernando Vicente (Magro) é membro da Tabanca Grande desde 5/7/2013, tem 36 referências no nosso blogue, é autor do livro (e da série) "Memórias da Guiné" (Lisboa: Edições Polvo, 2005, 86 pp.). Viveu na Guiné, em 1970/72, com a esposa e o filho.

Os reordenamentos populacionais

por Fernando Magro (**)


Fui colocado nos Serviços de Reordenamentos Populacionais. Inicialmente, e durante cerca de dois meses, trabalhei no Planeamento, no Comando-Chefe, na Amura. E depois chefiei os Serviços no Batalhão de Engenharia 447, em Brá.

Tratava-se de um serviço dirigido por militares destinado essencialmente às populações civis. Tinha em vista proceder ao agrupamento de diversas pequenas "tabancas" com o fim de constituir médios aldeamentos onde fosse rentável dotá-los com algumas infra-estruturas, tais como: escolas, postos sanitários, fontanários, tanques de lavar, cercados para gado, mesquitas ou capelas.

Além disso tinha-se também em vista, com a execução do Reordenamento, a defesa e controlo da população.

Na Amura estava à frente dos Serviços o major Matos Guerra, indivíduo muito instável e nervoso. Foi substituído, passados alguns meses, pelo major Carlos Azeredo que mais tarde foi chefe da Casa Militar do Presidente Mário Soares, comandante da Região Militar Norte, Governador da Madeira...

No Comando-Chefe eram decididos os trabalhos a realizar e de lá chegavam ao Batalhão de Engenharia ordens da natureza desta que a seguir transcrevo:

"From: Comchefe POP
To: Batengenharia

Mande comprar materiais para construir um Pool de: 1.550 casas zn; 50 T2; 40 escolas; 10.000 m de arame farpado. Deve indicar urgentemente a este necessidade aquisição ferramentas."


No Batalhão de Engenharia 447 foi organizado um mapa de medições para os vários tipos de construção e de acordo com essas medições assim eram quantificados os volumes de materiais a adquirir bem como colecções de ferramentas necessárias para a execução dos trabalhos.

Para, por exemplo, 60 casas T2, havia necessidade de adquirir:

  • 11.700 ripas; 
  • 780 kg de pregos n.º 15; 
  • 600 kg de pregos n.º 7; 
  • 480 kg de pregos zincados; 
  • 420 anilhas de chumbo 6/8";
  • e 8.520 chapas de zinco.

As paredes das construções eram em adobe, que os beneficiários eram incumbidos de executar, o que faziam bem, amassando terra argilosa com palha e secando os adobes ao sol.


A armação das coberturas das construções era em rachas de cibe (árvore da família das palmeiras). Um tronco dessa árvore aberto em duas partes e cada uma dessas metades aberta de novo ao meio dava origem a quatro rachas de cibe.

Os cibes eram adquiridos pelo Batalhão de Engenharia. Tinham de respeitar normas específicas: 
  • terem determinados metros de comprimento;
  • serem secos;
  • possuírem uma certa secção; 
  • e não fazerem qualquer curvatura, de modo que, quando aplicados, não apresentassem flecha.

As unidades militares em cuja área se executavam reordenamentos tinham interesse em adjudicar o fornecimento das rachas de cibe aos indí­genas da região. Dessa maneira, estando ocupados, deixavam de fazer a guerrilha, além de materialmente poderem beneficiar de modo a satisfazerem algumas das suas aspirações.

As obras eram geridas e supervisionadas pelo pessoal da Unidade Militar da área. Geralmente era nomeado um alferes, um furriel e dois cabos (um carpiteiro e o outro pedreiro nas suas vidas civis) para fazerem um estágio de alguns dias no Batalhão de Engenharia da Guiné onde praticavam na construção de algumas casas.

Havia pelo menos:
  •  uma casa no início de construção, na fase das fundações; 
  • outra com as paredes exteriores em execução; 
  • outra ainda com as paredes interiores e a armação do telhado a serem realizadas;
  •  e finalmente uma outra em fase de acabamento. 


Essa equipa, depois de ficar devidamente elucidada sobre o modo de construção das casas, regressava às suas unidades e ficava responsável pela execução dos trabalhos na sua área.

Como já referi, os materiais eram fornecidos pelo Batalhão de Engenharia à exepção dos adobes que eram executados pelos nativos. Quanto às rachas de cibe, ou eram obtidas na própria área das construções ou fornecidas pelo Batalhão de Engenharia.




Construção de uma casa no reordenamento de Bissássema. Na foto: 1.º Cabo José Leonardo e os Soldados João Ventura e Idalmiro Melo da CCAÇ 3327

Foto: © José Leonardo, cedida por José da Câmara


No Comando-Chefe era elaborado um plano de urbanização (se assim se podia chamar) com a planta dos arruamentos e a disposição das casas e a localização das várias infra-estruturas.

O local dos reordenamentos também era escolhido pelo pessoal do Comando-Chefe e naturalmente tinha em linha de conta a possibilidade de as terras próximas serem agricultáveis e a defesa das populações poder ser viabilizada.

No decurso das obras sempre que havia qualquer problema de ordem técnica,  o Batalhão de Engenharia dava o respectivo apoio.

Fiz, por isso, algumas viagens para o interior da Guiné em helicóptero ou de avião (Dornier) a que chamávamos DO. Fiquei, então, com uma visão geral da Guiné. Desloquei-me para o sul. Estive em Cufar, Catió e Cacine. No norte estive em Binta e Farim. Para leste fui a Bafatá, Bambadinca, Nhabijões, Nova Lamego e Buruntuma.

Nas férias da Páscoa de 1971 passei alguns dias na Ilha de Bubaque, no Arquipélago de Bijagós.

Mais perto de Bissau desloquei-me de automóvel diversas vezes a Nhacra, Safim, João Landim e ao Cumeré.

Na minha actividade, integrado no Batalhão de Engenharia, estive sempre atento para que nunca faltasse material nem ferramentas nos locais dos reordenamentos, pois o General Spí­nola fazia muitas viagens para o interior de helicóptero e sempre que via do ar um reordenamento em execução ordenava que o piloto aterrasse para poder visitar as obras.

O meu receio era que alguém, alguma vez, se queixasse da demora do envio de materiais por parte do Batalhão de Engenharia para justificar um possível atraso na execução dos trabalhos. Isso, porém, que eu saiba, nunca aconteceu.

Por outro lado era absolutamente necessário que na proximidade da época das chuvas as casas estivessem com a cobertura executada, cobertura essa que se prolongava para além das paredes exteriores mais de um metro, formando um terraço coberto à volta das casas, pois se assim não fosse as paredes de abobe, sem qualquer protecção, eram destruí­das pelas chuvas.

Desta minha actividade houve um facto que me poderia ter trazido graves consequências se não tivesse procedido com firmeza imediatamente após ter dele conhecimento.

Um coronel foi um dia oferecer-se ao meu Comandante (Tenente-Coronel Lopes da Conceição, já falecido com o posto de General) para promover o corte de rachas de cibe na área do seu Batalhão e posterior fornecimento à Engenharia das mesmas.

O meu Comandante chamou-me ao seu gabinete. Apresentou-me o Coronel e disse-me o que ele pretendia.A ideia do Coronel era pôr os nativos da região da sua Unidade militar a trabalhar na floresta, dando-lhes oportunidade de auferirem algum rendimento.

Uma vez que se tratava de um material imprescindí­vel para as obras que tinha em curso, e embora na área do Batalhão que o Coronel Comandava não houvesse qualquer reordenamento, aceitei imediatamente a proposta e indiquei as condições em que se teria de fazer o fornecimento: o custo e as normas específicas que as rachas de cibe tinham de respeitar.

Dei-lhe mesmo um pequeno caderno de encargos-tipo que teria de ser seguido.

Passados uns tempos o Primeiro Sargento que comigo colaborava apresentou-se no meu gabinete e, depois da continência militar, bradou:

- O meu Capitão já viu os cibes que estão a ser depositados à volta do campo de futebol?
- Não.
- Se o meu Capitão tivesse alguns minutos disponí­veis propunha-lhe que os visse.

Levantei-me e fui com o Primeiro Sargento até ao local onde estavam depositados os cibes. Tinham vindo da área do Batalhão do tal Coronel. As rachas de cibe eram verdes, arqueadas e com secção inferior à das normas.

Fiquei furioso. Encaminhei-me imediatamente para a Central Rádio e lá redigi uma mensagem que mandei emitir, que dizia mais ou menos isto:

"As rachas de cibe recebidas no Batalhão de Engenharia não respeitam as normas específicas de que lhe foi dado conhecimento. Não serão aceites nem pagas por este Batalhão pelo que deverá mandar retirá-las do local onde foram depositadas."

Esta guerra das rachas de cibe para mim tinha acabado, julgava eu. Mas não. Volvidos alguns dias sobre este acontecimento, o meu Comandante mandou-me chamar ao seu gabinete. Muito sisudo, disse-me que o Coronel (não pretendo mencionar o seu nome) se tinha queixado de mim ao General Spí­nola por causa de uma mensagem rádio que eu lhe tinha enviado.

Contei-lhe a história e convidei o Comandante a deslocar-se ao campo de futebol onde ainda estavam depositadas as rachas de cibe. Pegou no pinguelim, pôs a sua boina e para lá nos dirigimos.

Depois de ter constatado no local em que condições foram fornecidas as rachas de cibe, disse-me:
- Tem toda a razão. Não se preocupe mais com isso. Eu tratarei do assunto com o nosso General.

Na mensagem que enviou poderia ter sido menos duro, mas não tenho dúvidas que fez o que devia.

Soube mais tarde que o General Spí­nola apreciou a minha atitude e, evidentemente, não concordou com a maneira de agir do Coronel nessa sua iniciativa.

Em Julho de 1971 deslocou-se à Guiné uma delegação da ONU. Como dessa visita constava a sua passagem pelo Batalhão de Engenharia 447, os Serviços de Reordenamentos Populacionais tiveram de redigir um pequeno memorando, a fim de elucidar os elementos dessa delegação sobre as suas actividades, memorando que transcrevo adiante:

Serviço de Reordenamentos Populacionais
 
ActividadesApoio técnico e de materiais às obras de reordenamentos.

Cada reordenamento é constituído por:

  • um número determinado de casas de adobe destinadas à população; 
  • uma ou duas casas de adobe também, mas com melhor acabamento destinadas aos chefes; 
  • uma ou duas escolas em blocos de cimento; 
  • um posto sanitário em blocos de cimento; 
  • um ou dois cercados para gado; 
  • fontanários; 
  • bebedouros e lavadouros.

Prevê-se futuramente uma construção destinada ao culto religioso.

O Serviço de Reordenamentos do Batalhão de Engenharia elaborou as Instruções de Reordenamentos, onde constam normas e pormenores das construções, desenhos, sequência de trabalhos, medições, orçamento e quadro resumo dos materiais necessários.

Tem o Serviço de Reordenamentos do Batalhão de Engenharia habilitado inúmeros oficiais, sargentos e cabos com o estágio de reordenamentos. Esses elementos, formando equipas constituídas por um oficial (alferes), um encarregado de obras (furriel),  um pedreiro (cabo) e um carpinteiro (cabo) executaram no interior da província com a colaboração das populações, cerca de 8.000 casas cobertas a colmo e 3.880 cobertas a zinco nos últimos anos.

O Serviço de Reordenamentos do Batalhão de Engenharia 447 tem apoiado essas construções com material e, quando solicitado, tem prestado assistência ténica localmente.

A esse volume de trabalho correspondem as seguintes quantidades de materiais:

  • Rachas de cibe - 542.000
  • Chapas de zinco - 550.960
  • Ripas - 756.600 metros
  • Pregos - 120.280 kg
  • Anilhas de chumbo - 27.160 kg
  • Cimento - 19.400 sacos
[ Revisão / fixação de texto, para  efeitos de publicação deste poste no nosso blogue: LG ]

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Notas do editor


Guiné 61/74 - P23251: Antropologia (43): Os futa-fulas fazem cortes distintivos nos temporais, mas não são os únicos a fazé-lo na Guiné e na região (Cherno Baldé)

Crianças da Guiné-Bissau. Com a devida vénia a CNBB


1. Mensagem do nosso camarada Constantino Neves (mais conhecido por "Tino Neves", ex-1.º Cabo Escriturário da CCS/BCAÇ 2893 (Nova Lamego, 1969/71), com data de 2 de Maio de 2022, pondo uma questão que enviei para o nosso amigo e colaborador permanente para os assuntos Étnico-Linguísticos, se pronunciar:

Camarada Carlos Vinhal.
Vou contar não uma história mas sim um acontecimento que me aconteceu com um jovem Fula ou Futa-Fula.
Já se passaram mais ou menos 2 anos, no Fórum Almada (Centro Comercial de Almada).
Estava eu numa fila para almoçar, quando chegou perto de mim um jovem guineense, afirmo desde já que seria um guineense, pelo facto de ter nos temporais um corte, que é um sinal para distinguir os Fulas dos Futa-Fulas, mas como eu já não me recordo a diferença de um corte dos que têm dois cortes, tive a ousadia de lhe perguntar se era Fula, apontando para os meus temporais? Ele teve uma reação que eu não esperava, olhou-me dum modo que eu interpretei por ódio ou algo parecido, e desapareceu.
Não é meu hábito interrogar todos os negros que encontro, mas quando por algum facto acabo por entabular conversa com algum, acabo por perguntar sempre qual a sua origem.
Pensei agora contar esta história e pedir ao Cherno Baldé, que é a pessoa indicada para nos esclarecer, pois nem todos os ex-combatentes da Guiné têm conhecimento disso.

Abraços
Tino Neves
Almada

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2. Mensagem/resposta do Cherno Baldé em 4 de Maio:


Caro amigo Carlos,
Em resposta a questão colocada por Constantino Neves, tenho a dizer que a questão nao é assim tão simples de responder porque, para isso precisava de mais elementos (físicos sobretudo). O tempo que o Constantino fez em Gabu podia permitir-lhe reter algumas caracteristicas peculiares e distintivos dos fulas e/ou futa-fulas, todavia o que é obvio para um guineense pode ser complicado para um portugués (europeu). Os futa-fulas fazem cortes distintivos nos temporais, mas não são os únicos a fazé-lo na Guiné e na região. Também os balantas fazem cortes nos temporais e, às vezes, na testa, mas, geralmente, são mais pequenos e finos e também mais difíceis de enxergar.

Os futa-fulas, de cor de bronze, mais claros de pele, antigamente (agora sáo mais raros) traziam dois cortes ligeiros e pouco profundos mas bem visíveis nos temporais, enquanto que os fulas boencas (das colinas do Boé), por serem fulas assimilados, faziam dois cortes maiores, mais fundos e mais compridos (muito feios) para além de terem uma cor mais escura. Porque razão se faziam estes sinais nos corpos das pessoas em África?

Ainda não se fizeram estudos de investigação sobre estas marcas de distinção rácica em Africa e na nossa sub-região em particular, mas as razões podem ser várias, e entre as mais importantes, posso citar as guerras, as razias e as constantes movimentaçoes de uma zona para outra (nomadismo económico) a que estas populações estavam sujeitas em virtude das suas actividades económicas (criação de animais) e pela necessidade das frequentes mudanças de uma região para outra acompanhado do seu gado, atravessando regiões onde nem sempre eram bem vistos e recebidos.
O fenómeno de roubo de mulheres e crianças também era normal e bem conhecido em diferentes regiões de África, durante muito tempo e o aparecimento do comércio de escravos veio piorar esta situação em que famílias inteiras desapareciam na natureza sem deixar rastos.

Na Guiné, os fulas ainda acreditam que os seus vizinhos balantas, para além de bons "ladrões de gado", também eram bons "ladrões" de mulheres e crianças e não é em vão que temos (fulas e balantas) quase as mesmas características fisionómicas, exceptuando aquelas que fazem deles os mais exímios lutadores assim como os melhores trabalhadores da região.

Acho que o tal jovem não era fula, provavelmente o Tino confundiu um jovem balanta, com dois cortes ligeiros nos temporais, com um fula e daí a irritação do mesmo que não gostou daquela confusão que, na sua cabeça de balanta orgulhoso, não tolera ser tomado por um fulazinho (pequeno fula, como dizem) e pior ainda de um futa-fula da Guiné-Conacry (Nania - termo depreciativo). Na Guiné-Bissau, as etnias em geral são muito orgulhosas e bem ciosas da sua pertença étnica e da sua cultura, situação que começa a mudar ligeiramente nas cidades e sobretudo no meio das novas gerações, mas que a classe política e o aproveitamento político de cariz tribal, tende a perpetuar por mal da nossa Guiné.

Resumindo:
Se o corte fosse um só nos temporais e/ou no fronte (testa), de certeza que não era fula. Podia ser balanta, da mesma forma que poderia se tratar de uma outra etnia menos conhecida. Os futa-fulas faziam dois cortes nos temporais, podendo ser pequenos ou grandes.

PS: Carlos, ainda tenho na memória a interessante história do "menino" do Manel Joaquim, o Kunte, que era de uma família Balanta-Mané do Norte e quando foi confrontada com o aparecimento de um menino que procurava os seus familiares, a mãe só teve a certeza de que era seu filho após examinar e reconhecer os sinais no corpo da criança que tinha acontecido por um acidente, quando era criança, mas que, para eles serviu como uma marca de identificação para todo o sempre. As marcas serviam para casos como esses em que um dos familiares pudesse ser raptado ou se ter perdido e fosse necessário identificar suas origens étnicas e/ou clânicas.

Com um abraço amigo,
Cherno Baldé

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3. Mensagem de Tino Neves, reagindo à explicação do nosso especialista antropólogo, Cherno Baldé:

Amigo Cherno.
Os meus agradecimentos pelos seus esclarecimentos.
De facto, desconhecia que havia outras etnias com essa prática.
Eu pensei, que o jovem fosse futa-fula, pelo facto de eu saber que o termo significava de algum modo "Fula de segunda", mas não tinha a certeza, dai o meu pedido, que agradeço mais uma vez. Para esclarecer mais um pormenor de que expõe: O jovem era bem negro e só tinha um corte, que julgo ser dos profundos.

Abraços
Tino Neves
Almada
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Nota do editor

Último poste da série de 7 DE ABRIL DE 2021 > Guiné 61/74 - P22076: Antropologia (42): "Grandeza Africana, Lendas da Guiné Portuguesa", por Manuel Belchior (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23250: Parabéns a você (2063): Fernando Valente (Magro), ex-Cap Mil Art do BENG 447 (Bissau, 1970/72) e Henrique Matos, ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52 (Enxalé, 1966/68)


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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23241: Parabéns a você (2062): Arsénio Puim, ex-Alf Mil Capelão da CCS/BART 2927 (Bambadinca, 1970/72)

segunda-feira, 9 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23249: Tabanca Grande (534): António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2884 (Bissau, Bula e Pelundo, 1969/71). Senta-se à sombra do nosso poilão no lugar n.º 861

1. Mensagem de António Sebastião Figuinha, enviada ao Blogue a 4 de Maio através do Formulário de Contacto:

Já lá vão vários anos desde que o meu amigo Tunes, leitor deste blogue, me dava na cabeça para eu nele escrever sobre a minha passagem pela Guiné onde fiz parte do mesmo Batalhão.
Posso enviar para o vosso mail em pdf já que o texto é longo?

Cumprimentos,
Figuinha António Sebastião


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2. Mensagem enviada no mesmo dia ao António Figuinha:

Boa tarde.
Claro que sim. Utilize o endereço luis.graca.prof@gmail.com e, se quiser, também carlos.vinhal@gmail.com.

Ao dispor
Carlos Vinhal


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3. Ainda no mesmo dia recebemos esta mensagem com o PDF do António Figuinha:

Para poder dar o meu pequeno contributo sobre a nossa passagem pela Guiné, resolvi escrever com o meu pequeno jeito para a escrita o que desde já peço desculpas por algo que não possa estar com o português correto.
Como Furriel Miliciano Enfermeiro, o meu dia a dia não foi de emboscadas ou patrulhamento. O meu dia a dia foi dedicado aos nossos militares e à população. Acrescento o meu apoio à agricultura no Pelundo.
Fiz parte da CCS do Batalhão 2884 de 1969/1971.

Com um grande abraço.
António Figuinha


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4. Mensagem enviada pelo coeditor em 5 de Maio ao nosso camarada de armas António Fuiguinha:

Caríssimo António Figuinha
Como camaradas de armas, tu armado de seringa e eu armado de G3, permite que nos tratemos por tu.

Ficamos gratos pelo envio do teu texto que vai merecer a publicação de alguns postes no nosso Blogue.
Já dei uma vista de olhos rápida às tuas memórias, e para já, aquela cena com o sargento Nunes não me é estranha. Na verdade eram mais os sargentos do QP que nos desrrespeitavam do que o contrário.
Na minha Companhia os dois Sargentos que estiveram connosco de princípio ao fim, eram excelentes pessoas e excelentes camaradas. Tivemos temporariamente um primeiro sargento também chamado Nunes (S. Nunes P.) que não era flor que se cheirasse mas felizmente esteve pouco tempo connosco.

A minha mensagem tem também a nobre missão de te convidar a fazeres parte da nossa família (tertúlia) de antigos combatentes da Guiné. Tu tens já muito caminho feito pelo que só te peço que me envies uma foto actual, tipo passe ou não, cá me arranjarei, e me digas as datas exectas de ida e volta da Guiné, unidade (Companhia e Batalhão) e os locais, também da Guiné, onde tiveste os melhores dias da tua vida.
Fico à espera das tuas notícias indo desde já adiantando serviço, começando a editar os textos para publicação. Por favor, se me puderes enviar futuros textos em Word, em vez de PDF, facilitavas-me a vida.
Muito obrigado.

Segue um fraterno abraço do camarada e amigo
Carlos


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5. Mensagem enviada pelo nosso novo tertuliano António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2884 (Bissau, Buba e Pelundo, 1969/71) com data de 6 de Maio de 2022:


Boa tarde caro amigo e ex-Combatente na Guiné.
[...]
Bem, saí de Lisboa para a Guiné em 7 de Maio de 1969 e cheguei a Bissau a 12 do mesmo mês.
Em Bissau permaneci até Setembro desse ano interrompido em Junho com uma ida de pouco mais de 15 dias até ao Sul em Buba.
Durante estes meses de permanência em Bissau e a convite do Quartel General fui fazer um Estágio na Granja Agrícola de Bissau ocupando as tardes úteis de cada dia. As manhãs eram dedicadas no Seiscentos à saúde.
Estive de férias em Outubro na Metrópole e no regresso a Bissau fui-me finalmente juntar à CCS do Batalhão 2884 no Pelundo. Parte desta Companhia permaneceu em Bissau enquanto eu lá estive. Conforme as instalações do Quartel se construíam assim foram para lá os vários serviços que a componham.
Em Novembro de 1970, fui destacado para uma nossa Companhia Operacional dado ter ficado desde há muito sem Médico como depois sem Furriel Enfermeiro e, o meu Comandante do Batalhão achou que eu era o mais bem preparado para dar assistência aos nossos militares bem com à população local.
Voltei ao Pelundo antes do fim da Comissão por causa duma inauguração do novo Posto Médico do Quartel que não chegou a acontecer por falta de mobiliário que eu havia a devido tempo requisitado para Bissau e que até àquele dia não havia chegado. Como resultado, o General recusou-se a inaugurar paredes e, tive que lhe dar todas as explicações sobre o sucedido. Isto deu bronca em Bissau nos Serviços de Saúde Militares. Acabei por regressar definitivamente ao Pelundo depois de passar a pasta ao Furriel periquito no começo de Fevereiro.
Embarquei para Lisboa onde cheguei com o Batalhão em 3 de Março de 1971.

O Fur Mil Enfermeiro António Figuinha

Espero ter dado os meus dados necessário e por isso me despeço com um grande abraço.
António S. Figuinha

António Figuinha actualmente

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6. Comentário do coeditor CV:

Caro António Figuinha,
Depois das mensagens que trocámos, uma delas trazendo as memórias que escreveste e que vão fazer parte do teu legado, não só para os teus descendentes como também para o espólio deste Blogue, tenho um particular prazer em te receber nesta tertúlia, assumindo desde já o papel de teu "padrinho".

O que li deu para perceber a tua versatilidade, és o exemplo de que a guerra não se fez só aos tiros. Além da tua nobre missão ao serviço da saúde dos teus (nossos) camaradas, ainda participaste num Estágio na Granja Agrícola de Bissau, acho que como monitor, já que está ligado à tua formação académica.
Se tiveres fotos que possam ilustrar os textos à medida que os for publicando, vai enviando para as inserir.

Renovo o nosso abraço de boas-vindas com votos de saúde.
CV

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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23202: Tabanca Grande (533): João da Silva Alves, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 5 (Canjadude, 1970/72). Senta-se à sombra do nosso poilão no lugar n.º 860

Guiné 61/74 - P23248: Notas de leitura (1444): "Histórias da História da Guiné-Bissau", por Manuel Grilo, obra financiada pela Fundação do BCP para o Comissariado-Geral da Guiné-Bissau da Expo 98, 1998 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Agosto de 2019:

Queridos amigos,
Mais uma agradável surpresa, a consultar os escritores da Guiné-Bissau na Biblioteca Nacional, suscitou-me a curiosidade este título, aqui se procura compendiar o que de essencial versa uma obra que terá sido distribuída na Expo 98, no pavilhão da Guiné-Bissau, com o apoio da então Fundação do BCP. Desconheço inteiramente se este autor é o mesmo que escreveu vários livros policiais de uma coleção que fez história na Editorial Caminho, não há dados biográficos na obra. O importante é que é uma obra muito bem organizada, útil e apelativa a quem tem curiosidade pela aventura guineense. Das pesquisas feitas, constatei que o livro não está à venda em nenhum alfarrabista. Mais uma vez somos levados a questionar porque é que obras tão úteis não são reeditadas e atualizadas. Coisas da vida.

Um abraço do
Mário



Histórias da História da Guiné-Bissau, por Manuel Grilo

Beja Santos

Esta obra de Manuel Grilo foi financiada pela Fundação do Banco Comercial Português para o Comissariado-Geral da Guiné-Bissau da Expo 98, 1998. Obra sumamente didática, recorre a uma trama engenhosa em que um português, João, que vem dos tempos da conquista de Ceuta, se encontra e faz profunda amizade com Mamadu, que vê chegar as caravelas portuguesas à Senegâmbia, em meados do século XV.

Tudo começa com a descrição de uma caravana que avança para Bilad-Ghâná, na costa do Senegal, nos confins da Blede-es-Sudan (parte do continente africano que se estende depois do Sara). A caravana tinha trazido sal, panos de algodão, sabão, cavalgaduras, recebera um estupendo carregamento de malagueta, marfim, cera e ouro. E também escravos. Estamos num ponto indefinido do que fora o império do Mali, já em gradual desagregação, dividido em reinos, o Mandimansa é já uma figura quase lendária.

E temos o maravilhamento dos navegadores que depois de avistarem uma costa árida dão com um extenso arvoredo, enseadas, chegara-se à Terra dos Negros que para muitos é interpretado como o termo Guiné. Os relatos de viagem irão referir estes novos povos, até então desconhecidos, os Azenegues, os Jalofos, lá nos confins da Guinahua, é assim que João começara a sua história na aventura de Ceuta e agora era navegador, faz o ponto da situação, como se estivesse a escrever literatura de viagens. Mamadu entra em cena, vê chegar esta gente desconhecida. Irão conversar os dois, João explicará que já não vive em Ceuta, que veio de Lagos, que passara o Cabo Branco, depois Arguim, o Cabo Verde e o rio Gâmbia. Fala-se do imperador do Mali, a presença portuguesa situa-se na foz do rio, talvez o rio de S. Domingos, começam as trocas, ao sabor dos interesses recíprocos: os portugueses entregam sal, panos de algodão, sabões, cavalos e burros, recebem escravos, malagueta, marfim, seda, couros e algum ouro.

João transforma-se em lançado ou tangomau. Fica-se a saber que D. Afonso V deu o monopólio da exploração e comércio de todo o território da Guiné aos habitantes de Cabo Verde, ilhas que pertencem ao infante D. Fernando, sobrinho e herdeiro do infante D. Henrique. A história prossegue, o Império do Cabo fez surgir os Farins, na região a presença portuguesa é alvo de intensa concorrência com ingleses, franceses e holandeses, os espanhóis estarão mais presentes no período filipino. É criada a Companhia de Cacheu, Rios e Comércio da Guiné, a quem foi entregue o monopólio do comércio e resgate de escravos.

Tenta-se a aproximação da Coroa e os reinos locais. Incinha Té, filho de Bacompolo Có, que era o rei de Bissau, considerava-se cristão e familiar de Pedro II de Portugal, no entanto, irá revoltar-se contra os abusos praticados pelo capitão-mor de Bissau, José Pinheiro. O comércio de Bissau passa a ser intenso. Em 1707, é demolido o forte de Nossa Senhora da Conceição de Bissau, muito tempo depois aparecerá, a custo de muito suor e sangue, o que é hoje a fortaleza da Amura.

Estas histórias sobre a presença portuguesa dão-nos agora conta da criação de Bolama, por onde passaram franceses e se instalou uma colónia britânica chefiada por Philip Beaver, acabou num verdadeiro cemitério. Nos longínquos primórdios do século XVII, conta este livrinho didático, Geba era uma das mais importantes povoações da Guiné, com quase 3 milhares de cristãos e assimilados.

Estamos agora já no século XIX, a batalha de Kansala marca a chegada do predomínio fula sobre os Mandingas. Tudo começara quando os Fulas-Pretos do Gabu apelaram a Almany Soriya, rei do Futa-Djalon, para os libertar do jugo mandinga, o rei reuniu mais de trinta mil guerreiros, o rei Mandinga suicidou-se.

As relações entre os portugueses e os régulos guineenses eram extremamente difíceis. As negociações de paz, os protocolos e os acordos, eram rápida e unilateralmente rasgados. Devido à importância de Bissau tentam-se as negociações entre os portugueses e os régulos de Intim, Bandim e Antula, incluindo os aliados Balantas e Beafadas, processo que começou em dezembro de 1844, e que se prolongou com muitos altos e baixos até às operações de pacificação de Teixeira Pinto.

Mamadu e João recordam Honório Pereira Barreto, figura primordial que deu coesão territorial à colónia, ele negociou habilmente com diferentes régulos, comprou territórios que ofereceu à Coroa.

Com a queda do Império do Cabo (ou Kaabu), os Fulas aspiraram a tomar posse do Forreá. Só que a aliança dos Fula-Forros e os seus antigos escravos, os Fula-Pretos, rapidamente se desmoronou, tudo irá descambar numa sanguinária guerra civil. Ora o Forreá era o centro comercial e agrícola de toda a Guiné, nestes finais do século XIX.

Em Geba, reinava Mussá Molo, um déspota que granjeou inúmeros inimigos. Nos finais de 1886, mais de quatro mil Fulas e Mandingas, cerca de duzentos Beafadas, soldados portugueses e uma centena de Grumetes atacaram a tabanca de Fancá, Mussá Molo foi derrotado e refugiou-se no Casamansa – assim se desintegrou o reino de Fuladu.

A conversa entre os amigos retorna ao Forreá. A região é fertilíssima, como se disse. E o comércio de amendoim, algum ouro, marfim, couros, ceras e panos é de tal maneira intenso que se pensou mesmo em que Buba deveria ser a capital da Guiné. Instalaram-se numerosas pontas que se dedicavam sobretudo ao cultivo da mancarra. Com a sanguinolenta guerra entre os Fulas, o comércio paralisou. Então Portugal resolve apoiar a revolta dos Fulas-Pretos. Com o auxílio dos Mandingas, as forças conjuntas conseguem derrotar Mamadu Paté.

Os amigos falam também do contencioso felupe: os de Jufunco atacam Bolor, destroem a povoação e o régulo proclama-se rei Bolor. As forças portuguesas intervêm, aproximam-se com um elevado contingente de tropa cabo-verdiana. Dá-se o chamado Massacre de Bolor que irá levar à desafetação da Guiné de Cabo Verde. A situação em geral deteriorou-se na colónia e o governo de Lisboa respondeu com a criação de um Distrito Militar Autónomo para a Guiné.

Estamos já no século XX, as revoltas, insurreições, insubordinações e escaramuças não param. Foi necessário constituir uma grande força para reprimir a revolta de Infali Soncó, régulo do Cuor que ameaçava paralisar a navegação do Geba. Mais tarde, em plena I Guerra Mundial, ocorrerão campanhas decisivas de pacificação lideradas por João Teixeira Pinto. Vem depois o tempo em que a Guiné passa a ser uma potência exportadora de arroz.

E este primoroso livro didático termina com a ascensão nacionalista, cujo prenúncio foi a criação do MING, em 1954. Com discrição, aqui acabam estas engenhosas Histórias da História da Guiné-Bissau, cuja capa recorda a belíssima panaria manjaca. É de lamentar que este livro seja praticamente desconhecido.

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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23236: Notas de leitura (1443): Comandante Hussi, por Jorge Araújo e ilustrações de Pedro Sousa Pereira, a história do menino-soldado que não perdeu a capacidade de sonhar, é edição do Clube do Autor, 2011 (Mário Beja Santos)

domingo, 8 de maio de 2022

Guiné 61/74 – P23247: (Ex)citações (407): Pedaços da vida militar. A tropa e o caminho rumo à Guiné. (José Saúde)



1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem:

Guiné: Pedaços da vida militar

Camaradas,

Sim, há pedaços da vida militar que recrudescem enquadrados com os nossos tempos idos. Tempos que se enquadram, na plenitude, com as nossas comissões numa Guiné a ferro e fogo. E é neste constante vaguear pelas fronteiras da liberdade, que ouso trazer à estampa mais um texto, embora resumido, inserido no meu livro intitulado “Um Ranger na Guerra Colonial Guiné/Bissau 1973/1974 Memórias de Gabu”, Edições Colibri, Lisboa.

Trata-se, no essencial, partilhar com os camaradas experiências comuns que ditaram situações pelas quais todos nós passámos.

A tropa e o caminho rumo à Guiné


“… A tropa assumia-se, para todos nós, como um beco sem saída. A necessidade premente ao recurso de seres humanos que engrossavam as fileiras do exército, impunham colaterais apuramentos dos mancebos. Não olhassem ao aspeto físico da criatura e nem tão-pouco a pequenos defeitos congénitos que o rapaz, com 20 anos, apresentava. O apuramento da rapaziada era transversal. Os livres foram chãos que já tinham dado uvas.

Aportei em solo guineense cerca das 14 horas locais no dia 2 de agosto de 1973. Ao descer do avião deparei-me, de imediato, com um bafo deveras incomodativo. Faltava-me o ar e o suor escorria-me pelo rosto abaixo. A minha respiração parecia ávida dos ares lusitanos. O cheiro a África era-me uma realidade completamente desconhecida. O clima parecia de todo adverso. Confesso que o calor sempre me fascinou, todavia, este apresentava-se com contornos adversos e literalmente sufocante, assim sendo o meu ego de pronto interiorizou o que lhe ia na alma: “eis-me num território agreste onde a guerra se apresentava como uma irreversível realidade”.

Os primeiros contactos com os nativos transmitiam odores natos de gentes que se predispunham a contemplar aqueles tímidos jovens que chegavam. Na pista do aeroporto de Bissalanca, e com o Boeing 727 que nos transportara a preparar-se para efetuar a viagem de regresso a Lisboa, deparei-me com uma verdade diametralmente diferente daquela que dantes havia idealizado.

Lembro de sobrevoar o deserto do Saara e olhar as dunas lá do alto, os oásis e as pequenas aldeias isoladas num extenso areal. Tudo observado a uma distância que minusculamente não contemporizava uma visão autêntica com o espaço visualizado. Ficava a imaginação de um jovem que cruzava fronteiras aéreas a caminho da guerra.

Todas as histórias têm um vínculo que nos transporta a vidas dispersas ao cimo deste imenso globo universal chamado Terra. Nesta obra relato factos verídicos por mim vividos enquanto prestei serviço militar obrigatório, sendo o fim uma comissão numa fase em que a luta atormentava o mais incauto comum dos mortais. Felizmente tive, aliás, tivemos a sorte que nos instantes finais do conflito nos deparássemos com dois tempos diametralmente oposto: a guerra e a paz.

A guerrilha na Guiné tinha contornos buliçosos. As condições do terreno, o clima e a forma como o PAIGC atuava, formava um tridente que não dava tréguas ao mais astuto militar da metrópole. É verdade que o exército português jamais se apresentou como uma arma maleável para o IN (inimigo). Comprovámos, sempre, que as nossas capacidades de reação foram evidentes nos campos de batalhas.

Do conflito da Guiné há retratos que ao longo dos anos têm chegado ao nosso conhecimento, com testemunhos verídicos, que relatam de como foi dura a peleja guerrilheira. Sabendo nós, principalmente aqueles que conviveram o dia-a-dia com os problemas da escaramuça, que o contingente luso na Guiné registava cerca de 45 mil efetivos nos três ramos das Forças Armadas – Marinha, Força Aérea e Exército -, enquanto o PAIGC dispunha nos tempos finais perto de 10 mil, logo, numa análise feita à pressuposta quantidade de operacionais que cada exército dispunha, o cenário parecia favorável às forças lusitanas.

Teoricamente seria essa a intenção dos homens de Comando, indivíduos que instalados nos seus gabinetes estudavam o conflito, mas… ao longe. Examinavam os mapas de cada região ao pormenor e idealizavam ações no palanque operacional, mas no interior de quatro paredes. Era, quiçá, a guerra operacional dos galões amarelos.

Porém, a prática dizia-nos uma verdade oposta. As condições deparadas na frente de batalha, essencialmente a forma como a guerrilha atuava a que acresce a maneira como o IN conhecia o palco real e a forma como os seus movimentos no mato se desenhavam, deixavam a nossa tropa perplexa diante a imprevisibilidade de um eventual contacto direto.

Hoje, e com a distância do tempo a prevalecer, faço uma visita aos corredores da minha já apertada memória e vergo-me perante a coragem de antigos companheiros que, de uma ou de outra forma, conseguiram dissuadir as intenções do IN no momento em que o ziguezague das balas se cruzavam no infinito do horizonte. Neste contexto, é justo enaltecer o valor individual de cada combatente no instante em que o confronto se pautava pela dureza.

Sabe-se que foram muitos os que morreram no palco da peleja, outros que ficaram estropiados e outros que regressaram, felizmente, sem nenhuma beliscadura. Há, igualmente, aqueles que ainda hoje padecem de distúrbios mentais que o conflito lhes proporcionou.

O stress de guerra é há muito uma patologia aguda que tem levado muitos dos ex-combatentes a um pasmo de dificuldades que conduzem o potencial portador da doença a situações variadas. Conflitos a nível do emprego e familiares, designadamente, traduzem que os valores herdados da guerra têm transformado intelectos que evidenciam quebras memoriais, resultantes de hostis ensejos deparados perante ocasionais instantes de autêntico desespero”.…

Adiante:


… “Cresci como homem, não o escondo, e descobri que todos temos uma listagem imensa de ferramentas no nosso interior e que só a elas recorremos a partir do momento em que precisemos de uma milagrosa ajuda.

De Lamego para Nova Lamego – Gabu – foi o azimute invariavelmente atingido. Na região de Gabu conheci os meandros da guerra. Aprendi a conviver com realidades trágicas. A mata adensada escondia o imprevisto. Em incursões feitas ao mato um simples mexer do capim provocava um momentâneo alvoroço. “Não é nada” comentava-se de seguida. “Furriel, olhe que vale mais um cobarde vivo que um herói morto” comentava o nosso cabo Martins, um homem do Norte, bem formado, e que ostentava um bigode farfalhudo.

Recordo as dolorosas noites passadas no mato ao depararmo-nos com o patente breu noturno. Sair do quartel, na época do cacimbo, ainda com o sol muito brilhante e com uma temperatura que rondava os 35º, e de repente a sua vertiginosa descida a meio da noite, era francamente um martírio. Valia o aconchego do camarada ponche.

Em épocas de chuvas eram as trovoadas intensas que teimavam romper o silêncio da escuridão. O soldado, acomodado em buracos das árvores de grande porte, lançava de vez em quando pequenos desabafos que lhe aliviavam a alma e a razão do seu sofrimento: “bolas, que padecimento furriel?”. Ao lado, um soldado aparentando uma maior calma, aconselhava: “fala baixo porque isto aqui é perigoso!”. Tinha razão.

Um abraço, camaradas,
José Saúde
Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: 

7 DE ABRIL DE 2021 > Guiné 61/74 – P22079: (Ex)citações (383): Os conflitos e a dedicação do povo. Gratidão. (José Saúde)

Guiné 61/74 - P23246: Convívios (925): 50.º Convívio do pessoal da CCAÇ 414 (Cabo Verde, 1963/64 e Guiné, 1964/65), a levar a efeito no próximo dia 29 de Maio em Aveiro (Manuel Barros Castro, ex-Fur Mil Enfermeiro)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Barros Castro, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCAÇ 414, Catió (1963/64) e Cabo Verde (1964/65), com data de 7 de Maio de 2022 anunciando mais um convívio dos Combatentes da sua 414, que se vai realizar no próximo dia 29 de Maio:

Camarada e amigo,
No próximo dia 29 a Companhia de Caçadores 414 recomeçará os convívios anuais que o COVID 19 suspendeu.
Junto o repectivo convite para que, se assim entenderem, conste no nosso blogue.

Reconhcido, um grande abraço para todos os bloquistas
Manuel Barros Castro

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Nota do editor

Último poste da série de 8 de Maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23243: Convívios (924): A Tabanca de Matosinhos, que tem um historial de convívio entre combatentes, está vivinha da costa como a sardinha. Está a comemorar 17 anos de vida (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro)

Guiné 61/74 - P23245: Agenda cultural (811): Tabanca dos Melros, Fânzeres, Gondomar, 11 de junho de 2022, sábado, 11h00: Luís Graça apresenta o livro do Joaquim Costa, "Memórias de Guerra de um Tigre Azul"


Convite do autor, Joaquim Costa, para apresentação do seu livro "Memórias de Guerra de um Tigre Azul - O Furriel Pequenina", no próximo dia 11 de junho de 2022, sábado, pelas 11h00, na Tabanca dos Melros, Quinta do Choupal dos Melros, ria de Cabanas, 175, 4510-506 Fânzeres. Apresentação a cargo do editor do nosso blogue, Luís Graça. (*)


O livro  "Memórias de Guerra de um Tigre Azul: O Furriel Pequenina, Guiné: 1972/74". Rio Tinto, Gondomar, Lugar da Palavra Editora, 2021, 180 pp., pode ser pedido diretamente ao autor, através do email jscosta68@gmail.com

O valor é de 10 € (livro + custas de envio), a transferir para o seu NIB que será enviado juntamente com o livro. Não esquecer de indicar o endereço postal.

Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, Os Tigres do Cumbijã (Cumbijã, 1972/74) é natural de V. N. Famalicão. Engenheiro ténico e professor reformado, vive em Fânzeres, Gondomar.

E numa primeira "nota de leitura" deste livro, o Luís Graça já aqui repoduziu o que escreveu nas pp. 177/178.

Nota final, por Luís Graça (pp. 177/178) (**)

Em boa hora o Joaquim Costa decidiu, no princípio do ano de 2021, deixar de ser um “consumidor  passivo”, um simples leitor,  do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, para se tornar um “elemento ativo”, um “autor”…  E começou logo,  ainda em plena pandemia de Covid-19, a pré-publicar alguns excertos (cerca de  2 dezenas) do livro que agora deu à estampa. Todos ficámos a ganhar, a começar por ele, que, ao  expor-se-à crítica dos leitores, muitos deles antigos combatentes, receberia em troca  cerca de 170 comentários “a quente”.

O que seguramente ajudou a melhorar a versão final deste livro que eu saúdo e agradeço: vem enriquecer o património literário e documental da Tabanca Grande, que é uma tertúlia virtual centrada na experiência de uma guerra, a guerra colonial (1961/74),  e em particular a da Guiné, sendo porventura  a maior tertúlia do género, em português, quer pelo número de visualizações do blogue (cerca de 13,2 milhões, desde 2004) quer pelo número dos seus membros registados (N=854) e ainda pelo volume de memórias partilhadas. Memórias mas também afetos. E este livro é sobretudo  um livro de afetos.

O Joaquim Costa é mais um talento literário que o nosso blogue veio revelar,  com a particularidade de, sendo um bom minhoto, a sua  prosa ter também belos nacos do português camiliano, a começar pela ironia,  o humor e até o sarcasmo, tão bem patentes na reconstituição de algumas das suas memórias de infância e na evocação da sua família, bem como na descrição de cenas da vida castrense.

Já tive ocasião de lho dizer, e agora  passo a  partilhá-lo com os seus futuros leitores: Joaquim, quisestes escrever um livro com uma parte da tua história de vida,  que é também a de muitos de nós, e que quiseste dedicá-lo aos que te amam e estimam.  A tua narrativa  tem momentos portentosos sobre a epopeia de Cumbijã e de Nhacobá, os seus bravos e as suas vítimas.  Um dia, quando fizermos uma antologia dos nossos melhores textos, o teu testemunho, na 1ª pessoa, sobre a Op Balanço Final (17-23 maio 1973), por exemplo,  terá que lá figurar, com toda a justiça.

A historiografia militar pode, em  meia dúzia de linhas secas, telegráficas, resumir aquela “guerra de baixa intensidade”, num contexto geopolítico marcado pela guerra fria e o fim dos impérios, mas que não foi feita   para “meninos de coro”, como todas as guerras... Mas faltar-lhe-á, por certo, à escrita do historiador, o nosso "sangue, suor e lágrimas", que na Guiné, no meu e no teu tempo,  não foi uma figura de retórica. E é bom que os nossos filhos e netos saibam, por fim,  que ali não fizemos só a guerra mas também a paz.

Joaquim Costa, ex-fur mil,
CCAV 8351, Os Tigres do Cumbijã,
Cumbijã, 1972/74


Obrigado, Joaquim,  também por dares voz a muitos combatentes, de um  lado e do outro,  que nunca tiveram nem terão  oportunidade de escrever,  e muito menos de publicar, sob  chancela editorial,  as suas “vivências” sobre aquela guerra e aquela terra (que, estranhamente, acabou por ficar no nosso coração, contagiando até os nossos filhos). E muitas memórias vão morrer connosco...

Não quero acabar esta nota sem referir os sucessivos murros no estômago que, metaforicamente falando, recebeste, a começar pelo batismo de fogo, as primeiras minas e emboscadas, o primeiro morto...   Na realidade, aqueles de nós (e fomos muitos) que passámos por essa dura, trágica, traumática experiência, sabe dar valor às tuas palavras onde há raiva e impotência mas também coragem e dignidade, quando falas do primeiro camarada que morre ao teu lado.

O batismo de fogo era sempre uma situação-limite... O coração ficava a bater à velocidade Match 1...Depois, era como tudo: a guerra (e a morte) banalizava-se, tornava-se uma certa rotina... 

Mas os "embrulhanços" eram sempre temidos, de um lado e do outro... As balas eos estilhaços das granada ou o sopro das minas (antipessoais e anticarro) não tinham código postal... Era a roleta russa...

Mesmo sem quereres fazer juízos de valor sobre a legitimidade, a condução e o desfecho daquela guerra, acabas por nos mostrar, com fino mas cáustico humor, que às vezes acontecia sentirmo-nos como um bando de cegos, comandados por outros cegos, à beira de um precipício. Felizmente voltaste, “são e salvo”,  para escrever este livro e dares mais valor e força à liberdade, à justiça, à paz e à solidariedade.

Luís Graça, sociólogo, 

editor do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.

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(**) Vd,. poste de 31 de dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22861: Notas de leitura (1404): Joaquim Costa, "Memórias de guerra de um Tigre Azul: O Furriel Pequenina. Guiné: 1972/74", Rio Tinto, Gondomar, Lugar da Palavra Editora, 2021, 180 pp. - Parte I: "E tudo isto, a guerra,para quê ? Não sei"...

Guiné 61/74 - P23244: Manuscrito(s) (Luís Graça) (213): Memória dos lugares: a rua da tua infância...

 Luís Graça, Candoz, 13 de abril de 2022


Foto (e legenda): © Luís Graça (2022). Todos os direitos reservados. [Edição  : Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1/100. Domingo à tarde!… Um dia, algures na tua infância, começaste a detestar os domingos à tarde: ou chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Sobretudo nada acontecia, no domingo à tarde. E até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da igreja da tua terra, a que chamarás doravante a tua aldeia.

Só não sabes exatamente quando começaste a detestar os domingos à tarde. De manhã havia a missa, e à tarde jogava-se à bola no campo pelado do largo do convento. Talvez tenha sido num final de verão, depois das vindimas, quando a miudagem ia ao rabisco [1]… E passou a ser desoladora, descarnada, esquálida, a vinha do Senhor, depois da vindima e depois do rabisco 

Seguramente foi algures, no fim da tua infância. No campo pelado da bola. Três paus a servirem de baliza. Uma baliza sem rede. Daí a ideia, tão nostálgica quanto tardia,  desta “viagem na tua terra”,  desta “viagem ao fundo da rua da tua infância”, a rua dos Valados

A infância é, metaforicamente falando,  uma rua. Labiríntica. E, como todas as ruas, tem um começo e tem um fim. E é atravessada por ruelas e becos. E,  como todos os labirintos , tem um fio de Ariadne. Pode ser uma rua mais ou menos comprida, ou até ter uma praça, um largo, um chafariz. Com casas de um lado e do outro. Mas toda a rua tem um princípio e um fim,  tem um cabo, tem um fundo. E a infância também. Ou se calhar não tem, porque se prolonga sob a forma de saudade. Ou nostalgia. Ou memória. Ou do exercício da memória,  como lhe queiras chamar. Ou até da recusa em sair dela, da magia e da segurança da infância. Estás mais inclinado a pensar que as ruas da infância não têm cabo nem fundo nem  fim, são circulares. O que fica na memória é uma espécie de caleidoscópio ou um “puzzle” onde faltam peças. Ou  ainda mais exasperante, no fim, há peças que não encaixam. Há umas a mais, e outras a menos. E, pior, não encontras mais a ponta do fio de Ariadne.

Não sabias quantos números de polícia tinha a tua rua. Pouco mais de meia centena, sessenta e tal, confirmarás mais tarde. Ia do Castelo às Aravessas. Era comprida naquele tempo. A  tua casa era o nº 47. E, talvez por estranha coincidência ou não,  tu tinhas nascido em 1947, no pós-guerra de todas as guerras. A que deveria ser a última, ouvirás muito mais tarde ao teu pai. Não herdaste dele o seu saudável otimismo e a genuína crença na bondade humana. Afinal, nasceste e cresceste em plena guerra fria, dois anos depois de Hiroshima. Ouvirás falar de Hiroshima. Muito mais tarde. E perceber então todo o horror de Hiroshima. E o que era o “mal absoluto”.

Sabias lá tu o que se passava pelo mundo, largo e profundo… Nem muitos menos onde ficava Hiroshima. Não vinha no mapa-múndi da tua escola. O mundo era a tua rua e pouco mais. A tua aldeia. E tinha princípio, meio e fim. Mais tarde arrancar-se-ão vinhas e pomares, na periferia da tua aldeia. E abrir-se-ão novas ruas. E construir-se-ão prédios altos como na cidade grande. De cimento armado. Com elevador. E mais tarde rotundas. Para parecer a cidade grande. Tudo em nome da ordem e do progresso, e segundo um qualquer plano de urbanização.  Mas essa já não era a tua aldeia, quando a revisitaste.


2/100. Nada acontecia no domingo à tarde… Ao domingo folgavam os corpos, era o dia do Senhor. Por isso era bom que nada acontecesse no domingo à tarde. Nada que te tirasse da pasmaceira dos dias, semanas, meses e anos.

Podias escutar a boa nova do padre vigário, no largo do Convento, ora sombrio ora soalheiro, mas a vida ia, sem alarde, no sentido inexorável dos ponteiros do relógio: “dextrorsum” (que “palavra cara”, aprendê-la-ás, mais tarde,  na escola).

Ou, por palavras,  mais simples, “do berço à cova, donde ninguém escapava”, os novos sucedendo-se aos velhos na fila da morte. “E quem acabava, sua cova tapava”.

Não podias queixar-te do destino (se é que ele já existia nesse tempo, mas já devia existir). E  muito menos dizer que “mais valia a morte que tal sorte”… Felizardo, não sabias ainda o que era a morte. A morte dos  que te eram próximos. A morte à tua volta.  A morte dos corpos, que das almas ainda sabias muito pouco ou nada. Muito menos a morte em massa. Dos alinhados contra os muros, e fuzilados de olhos vendados. Dos esmagados sob os escombros dos bombardeamentos das cidades. Dos empilhados nas carroças da morte nos campos de concentração. Eras filho do pós-guerra. E essa, a guerra, não chegara, felizmente, à tua aldeia. "Da peste, da fome e da guerra... e do bispo da nossa terra, libera nos, Domine".

Quanto à tua morte, essa,  também não a podias vivenciar. Nem sequer a imaginar. Não tinhas consciência da morte. Não te lembravas sequer de fingir de morto, nem por brincadeira,  dentro de um caixão, a tampa aberta, num velório, com toda a família e vizinhos à tua volta, uns a rir, outros a chorar, outros a contar anedotas ou a comer pevides e tremoços. Ou um pires de arroz doce com delicados desenhos feitos, a dedo, por um fio de canela em pó. Ou a abrir a boca de sono e de enfado. Ou uma velha desdentada, carpideira, a enxotar as moscas da tua cara esverdeada, picada das bexigas, da varíola. Ou o Brutamontes de sobrepeliz branca e cornos negros como os do diabo, a encomendar a tua alma.

Não, não se brincava com a morte, quando eras menino. A não ser nas brincadeiras de guerra (não se dizia brincar mas reinar), no alto do Castelo, nas escadinhas da rua do Cemitério ou no largo do Convento. Nunca querias ser índio, porque tinhas que fingir de morto, um olho aberto, outro fechado. E usar arco e flecha. Os cobóis, esses,  nunca morriam. Eram os heróis gregos dos tempos modernos. Mas nenhum se chamava Ulisses. E tinham revólveres e espingardas. E todos queriam ser o xerife. Tu querias imitar  o Cary Cooper ou o John Wayne que chegarás a ver  no cinema do Clube, um casarão que começava na tua rua e ia até à outra  rua abaixo da tua. (Infelizmente, nada resta do edifício, nem sequer uma placa, foi mais uma vítima do camartelo camarário, e do tsunami que varreu a memória coletiva da tua aldeia.)

Enfim, essa era a vantagem de seres menino e moço e de ainda não teres uma imaginação mórbida nem seres masoquista. Sê-lo-ás mais tarde, ao desejares ser órfão!... Aos onze ou doze anos, quando já fores um ser híbrido, um púbere, uma amostra de gente, mas eleito de Deus. Enfim, tudo fruto das dores do crescimento, dir-te-ão mais tarde, prosaicamente. Mas é quando se deseja ser órfão, que acaba a infância e desaparece a rua onde foste menino. A rua da tua infância. Até então os teus pais eram os teus heróis. E a tua rua era o teu palco de brincadeiras, a extensão da tua casa, o centro do teu pequeno mundo.

Se algum bebé morria na vizinhança, era logo metido num pequeno caixão branco, com pegas de latão amarelo. A morte vestia-se de branco, naquele tempo. Da cor das asas e dos fatos dos anjinhos e das colchas das procissões, das noivas e das flores da laranjeira. Não havia grandes choros. “Deus o deu, Deus o levou”. Tão simples quanto isso.

Não podes hoje jurar que te lembravas de algum  anjinho, na tua rua. Aliás, era feio jurar, dizia a tua mãe. A memória hoje prega-te partidas, é seletiva, tantos anos depois. Por certo deves ter apanhado no ar bocados de  conversas da tua mãe ou das vizinhas, a bichanar entre elas para que as crianças não ouvissem e não se perturbassem e não fizessem xixi na cama à noite.  A morte perturbava os vivos, que se vestiam de preto quando morria algum adulto. Nunca se falava da morte e dos mortos à mesa. Muito menos dos que lançavam uma corda por cima do barrote da adega e se enforcavam. Nunca se falava da morte e dos mortos à  frente das crianças. Nem da morte nem do sexo. Eram tabu, o sexo, a morte, Deus, a Pátria e a Família.

Mas, se não foi na tua rua, terá sido  na rua abaixo. Ou no largo da Bica. Anjinho não tinha nome próprio,  muito menos sexo, nem morada. Tinha direito apenas a uma cova, pouco funda. E um número em chapa de ferro. Era apenas isso, um  anjinho.  A não ser que a parteira ainda fosse a tempo de o batizar, “in extremis”, e na ausência do padre… Davam-lhe então nome, cristão, que seria o mesmo da próxima criança a nascer, no seio da mesma família, se fosse do mesmo sexo.  Mas deve ter havido algum anjinho na tua rua, que a mortalidade infantil era alta nos anos quarenta e tal do pós-guerra em que nasceste[2].   

Se algum bebé morria,  ou nascia já morto, na tua rua ou na rua abaixo, ou ruelas e travessas perpendiculares, metiam-no logo no caixão branco, de tábuas de pinho,  e levavam-no para o talhão dos anjinhos no cemitério que ficava logo ali, a 100, 200 ou 500 metros. Acompanhado de meninos de sobrepeliz branca.  Não tinha direito a padre, como os suicidas ou os infiéis ou as mulheres públicas. Nem caldeirinha de água benta.  E muito menos a uma lápide tumular com o RIP dos romanos,  o requiescat in pace. E lá ia direitinho, coitadinho, para o “limbo”. Nunca te explicaram o que era o “limbo”: uma nuvem muito grande que funcionava como depósito dos “anjinhos” que não tiveram tempo de ser batizados como cristãos. Por quanto tempo ficavam lá ? Não sabias, nunca te souberam explicar isso, direito. Mas a tua curiosidade também era limitada, naquele tempo.

A rua dos Valados era também a rua do Cemitério. Para ti era a mesma rua, com o mesmo empedrado, não fazias distinção. E era comprida. Ia do Castelo às Aravessas. Para os enterros poderem levar muita gente. Sobretudo os enterros dos ricos. Isto é, dos importantes. Na tua terra confundia-se por vezes os ricos com os que mandavam e eram importantes. Os ricos não precisavam de mandar. Tinham os criados e os feitores que mandavam por eles, em nome deles. E as demais “forças vivas”, que estavam sempre do seu lado. E tinham charretes e cavalos e galgos e podengos para correr atrás nas lebres e das perdizes no Cercal do Alentejo. E mastins para açular os amigos do alheio.  

Aliás,  mandar era uma chatice, um incómodo, uma boldreguice.  Às vezes era precisar calçar as botas de cano alto e  afogar em sangue os que não queriam ser mandados e alçavam a cabeça, como os burros, os machos e os cavalos, quando se lhe punha o cabresto. Era para isso que servia o chicote que deixava o corpo do recalcitrante em carne viva no tempo em que ainda havia escravos. Já não te lembras desses tempos, só dos criados de lavoura e das criadas de servir. 

Que a importância social do habitante da tua aldeia,  media-se,  quando morto, pelo número de acompanhantes do seu féretro e pela riqueza ou grandeza do jazigo da família. Ou pelo número de padres de fora que abrilhantavam as cerimónias fúnebres… E pelo número de vozes no coro que cantavam  o Requiem. Havia vozes lindas no coro da igreja da tua aldeia. E uma delas era a da Branca de Neve, a tua catequista.

Ao longo da ruela principal do cemitério velho, alinhavam-se os jazigos de família, em estilos revivalistas. Cobertos de  musgo e líquenes, os jazigos das famílias importantes datavam do virar do século XIX e da 1ª primeira metade do século XX. Parte da história recente da tua aldeia estava lá inscrita nas lápides dos jazigos, desde que se construíra o cemitério na segunda metade do século XIX [3]. E, depois, havia o talhão dos Anjinhos e o dos Combatentes da Grande Guerra, de quem já ninguém se lembrava nada, a não ser o nome de rua de algum coronel de bigode façanhudo, sobrevivente das "campanhas de pacificação" em África ou das trincheiras na Flandres. Anjinhos e antigos combatentes não se misturavam com o povo das catacumbas. Nunca vistes ninguém rezar por eles. Ninguém rezava aos heróis que tinham morrido pela Pátria, e muito menos aos anjinhos que iam parar ao limbo.

Se algum velho morria, os putos da tua rua não davam conta. Os putos só queriam era reinação.  Os filhos, sim, esses é que se preocupavam com os velhos que morriam. Porque passavam, os filhos, a dar um passo em frente na fila da morte. E depois dos filhos, eram os netos. 

Era tudo muito mais simples aos teus  olhos de menino e moço. Simplesmente, deixavam, os velhos,  de estar à janela, o nariz esborrachado contra o vidro embaciado, o olhar vidrado, a respiração rouca. Horas a fio, como as múmias do Egito que nunca viste. Ou então como os bonecos de palha que se punham nos campos de trigo, a servir de espanta-pardais.

Era uma terra, então, de searas de trigo e de vinhas e de moinhos, a tua aldeia, estendendo-se por montes e vales, até às arribas do mar. E todas tinham dono, até as arribas. Só mar, não, porque era livre e selvagem com um potro. Estava tudo cadastrado. Até as Berlengas tinham dono. Com nome registado nas finanças e na conservatória do registo predial.

Ou então ficavam sentados à porta da tasca, os velhos, a fumar a sua beata, entre dedos enrugados, trémulos e amarelecidos. Como o teu avô paterno, Domingos Henriques, natural do Mont’oito. Casou três vezes, teve três famílias, contava-te o teu pai. E “tinha três pinhais e sete fazendas”…

Não te lembras da sua morte. Nem da sua vida. Só das suas muletas de pau, almofadadas na extremidade superior,  e do seu barrete preto onde guardava as beatas e os tostões para o “copo de três”.  E da sua farfalheira. A última vez que o viste, coitado, foi sentado à porta da taberna do Macaco (ou ainda era a do Maneta ?).

Não te lembras de ir ao funeral do teu avô. Nem de alguma vez de ele te ter afagado o rosto. “Ficou entrevado dos resfriados do mar”, dizia o teu pai. Delapidou o património com a “filharada” e os “amigos do petisco”, contar-te-á mais tarde, quando fores mais crescido e tiveres o entendimento das coisas comezinhas da vida. O teu pai resumia muito bem, e com humor negro, a história de vida do seu pai, e teu avô, que do segundo e terceiro casamentos “tivera 11 filhos e um suplente", ou seja, "uma equipa de futebol”.

Aliás, havia poucos velhos na tua aldeia. “Na era de trinta e um, poucos moços, velhos nenhum”. O teu pai nunca esqueceria a morte da mãe, tinha ele dois anos. Morreria jovem,  aos vinte e tal anos, a tua avó. Tuberculosa. “Tísica”, como  então se dizia. Nunca lhe deu um beijo, ao teu pai. Punha-lhe a mão em cima da cabeça, num gesto derradeiro de despedida,  sabendo que iria partir em breve para  a viagem sem retorno. Depois de ter cumprido o seu curto papel na terra, que era parir.

Essa imagem ficou gravada a ferro e fogo na pele da memória do teu pai. De todo improvável, aos dois anos de idade, dirão todavia os psicólogos. Mas tu acreditavas mais no teu pai do que nos psicólogos. Nesse tempo ainda não existiam. Ou, se existiam,  tu nunca tinhas visto nenhum.

Sabias lá tu o que era a doença, a pneumónica, a tuberculose,  a tísica, a morte, a dor lancinante da perda de uma mãe ou de um pai. Ou a tragédia da perda de um filho. E muito menos sabias o que era a sorte. “Até  à morte, dura a sorte”,  assegurava-te o teu pai, sempre com uma “fezada” (o termo era dele)  na “sorte grande”, a lotaria em que ele jogava (ainda não havia o totoloto) e que lhe saía sempre “em branco”… Pelo menos, foi feliz, em vida, o teu pai, contrariando o rifão: “A felicidade é como a sorte grande: só sai aos outros”. (...)

(Excertos)

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[1] Noutras terras, diz-se rebusco, respigo…

Guiné 61/74 - P23243: Convívios (924): A Tabanca de Matosinhos, que tem um historial de convívio entre combatentes, está vivinha da costa como a sardinha. Está a comemorar 17 anos de vida (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro)

1. Mensagem do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, QueboMampatá e Empada, 1968/70) com data de 6 de Maio de 2022, trazendo-nos notícias da Tabanca de Matosinhos:

Meus caros amigos editores.

A Tabanca de Matosinhos está vivinha da costa como a sardinha. 
Está a comemorar 17 anos de vida.
Tem um historial de convívio entre combatentes que merece ser lembrado.

No seu seio nasceu a Associação Tabanca Pequena - Grupo de amigos da Guiné-Bissau, que tem desenvolvido um trabalho de ajuda às populações na Guiné. Num próximo poste daremos informações sobre o trabalho desenvolvido nos últimos temos.

Abraço fraterno
José Teixeira



A Tabanca de Matosinhos comemora 17 anos de vida

Como os combatentes leitores do nosso Blogue sabem, todas as Quartas-Feiras do ano, quer chova, haja ventania ou faça sol (e nem o Covid nos assustou), marcamos encontro para almoçar e conviver no Restaurante O Espigueiro em Matosinhos.

Uma fonte inesgotável para criar laços de amizade, ou estreitar os laços que já existiam; falar das nossas aventuras, desventuras, alegrias e tristezas vividas na Guiné em tempo de guerra; falar das terras por onde passamos, das pessoas que se cruzaram connosco na vida militar; falar daquela gente que tão simpaticamente nos acolhiam nas suas tabancas, nas suas casas. Contar estórias que nos marcaram para a vida toda; mazelas que em alguns de nós ficaram para sempre; viver a saudade de tempos que não voltam mais...

Outras tabancas foram aparecendo, e ainda bem, depois da Tabanca de Matosinhos ter surgido muito naturalmente, sem qualquer plano ou projeto. Simplesmente porque três carolas tinham voltado à Guiné por terra, atravessando meia África em romagem de saudade e quiseram encontrar-se com os pés debaixo da mesa da Casa Teresa em Matosinhos para saborear uma sardinhada em jeito de festejar e avaliar a sua aventura. A necessidade de se reencontrarem mais vezes falou alto e marcaram novo encontro para a semana seguinte, mas já não vierem sós… e marcaram novo encontro para a semana seguinte. Depois deixaram de marcar, simplesmente apareciam à quarta-feira e já eram tantos que até o dono do restaurante não tinha mesas para tanta gente. Mudamos de poiso e continuamos pelo tempo fora, até hoje.

Mudamos para o Milho Rei, que se transformou em Espigueiro, mas lá está à espera dos combatentes da Guiné e porque não toda a gente que goste de comunicar, conviver e apreciar um bom petisco, sobretudo se passou pelas terras da África que foi portuguesa.

Muitos dos nossos tabanqueiros já voltaram à Guiné e alguns mais que uma vez, em romagem de saudade, ao encontro dos lugares por onde passaram, onde sofreram e lutaram para sobreviverem e regressarem a casa e porque não, aos lugares onde se sentiram felizes, porque também os houve. Foram à procura de pessoas africanas com quem conviveram e em muitos casas a sorte foi-lhe madrinha. (Pessoalmente sinto-me um felizardo, pois não só reencontrei amigos como fiz mais amigos – os filhos, os netos e muitos mais.)

Através do convívio, das conversas e das vivências em grupo; através do regresso aos locais que mais nos marcaram na dura luta que travamos na flor da idade, fomos fazendo a catarse. O nosso estado de espírito mudou, tornou-se mais aberto, correram-se os fantasmas que nos atrancavam a mente

Sentimos que a velhice continua a ser um posto, mas agora está a tornar-se um empecilho que nos assusta. Alguns camaradas já partiram para o eterno aquartelamento contra a sua vontade; outros há que a doença os marcou e sofremos com eles a dua dor e o seu afastamento.

… E há sempre gente que vem pela primeira vez, trazidos por um camarada amigo ou da Companhia a que pertenceram. Outros vêm por simples curiosidade, porque ouviram falar e…voltam. Às vezes vêm em magotes e há sempre lugar para mais um.

É assim a vida na Tabanca de Matosinhos.

Ainda na última quarta-feira éramos 21 convivas. Talvez porque chegou a bela e saborosa sardinha de Matosinhos.

Esta é a história da Tabanca de Matosinhos de que muito nos orgulhamos.

Mas, se a necessidade de nos reencontrarmos foi um fator de união, outro fator nos uniu – a solidariedade.

No seio da Tabanca de Matosinhos nasceu A TABANCA PEQUENA DE MATOSINHOS – Grupo de Amigos da Guiné-Bissau.

Sobre a sua ação nos últimos tempos falaremos no próximo poste.

José Teixeira


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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23192: Convívios (923): XII Almoço/Convívio do pessoal do BCAÇ 2893 (Nova Lamego, 1969/71), dia 28 de Maio de 2022 em Venda da Serra-Mouronho-Tábua (Constantino Neves, ex-1.º Cabo Escriturário)