Ao reler o poste, demos conta que uma das personagens era a arquiteta Milanka Lima Gomes, uma jugoslava casada com o então Ministro das Obras Públicas, 'Tino' Lima Gomes, e também a autora do projeto (1976/78) da casa de férias de Luís Cabral em Bubaque (em parceria com outro arquiteto, jugoslavo, cooperante, Nikola Arsenic). A casa, dizem os entendidos, é uma referência da arquitetura pós-colonial: infelizmente, ficou amaldiçoada, com a queda política, a prisão e o exílio do seu dono. Hoje é uma confrangedora ruína, engolida pelo mato, na "ilha paradisíaca" de Bubaque que já teve muitos "donos e senhores"...
Pelo seu bom senso, sensibilidade, perspicácia, inteligência emocional, história de vida, cultura e memória de "africanista", o Rosinha, um dos nossos veteranos, é merecedor do apreço e elogio de muitos camaradas nossos, é profundamente estimado e respeitado na nossa Tabanca Grande, mesmo quando as nossas opiniões podem divergir.
A ele poderá aplicar-se inteiramente o provérbio africano, há tempos aqui citado pelo Cherno Baldé, o "menino e moço de Fajonquito": "Aquilo que uma criança consegue ver de longe, empoleirado em cima de um poilão, o velho já o sabia, sentado em baixo da árvore a fumar o seu cachimbo".
Esse provérbio veio mesmo a propósito desta pequena história "pícara", que não é "nenhum segredo de Estado", mas queremos "repescar" e preservar, agora na série "O segredo de...". (**).
É uma história com piada, com chiste, com humor, típico dos velhos africanistas, e é também uma lição sob o "sic transit gloria mundi", a vaidade e a transitoriedade do poder e da glória...
Que fique claro: não é intenção do Rosinha (nem dos editores do blogue) achincalhar ninguém nem muito menos bater nos mortos ou ajustar contas. Simplesmente o picaresco, o burlesco, a ironia, o riso, o humor, etc., fazem parte da nossa "caserna" de velhos combatentes. Uma boa piada, uma boa história sobre os "nossos homens grandes", seja o Spínola ou seja o Amílcar Cabral, são a prova de que aqui somos plurais e defendemos a todo o custo a liberdade de expressão, pedra basilar da democracia que recuperámos há 50 anos.
Guiné > Bissau > s/d [meados dos anos 60] > Aspecto parcial do centro histórico, Câmara Municipal à direita, Palácio do Governador ao fundo à esquerda, Praça do Império, monumento "Ao Esforço da Raça", telhados de outros edifícios públicos, etc... Bilhete postal, nº 133, Edição "Foto Serra" (Colecção Guiné Portuguesa")...
O António Rosinha pede-nos para "enriquecer o poste com esta lindíssima foto onde se vê a casa que o Luís Cabral queria que a Tecnil lhe adaptasse, antes de ser deposto em 1980 (...). Essa foto (tirada de helicóptero, penso eu) é das mais bonitas sobre Bissau (...): uma lindíssima residência, r/c e 1º andar com um Jeep Willys da nossa tropa junto à entrada de casa (...). Foi essa casa que o Luís Cabral queria adaptar para sua residência, e que o Ramiro Sobral, o patrão da Tecnil (***), lhe agoirou o destino."
Colecção: Agostinho Gaspar / Digitalizações e edição: Bogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2010)
O segredo de... (41): António Rosinha (ex-fur ml, Angola, 1961/62; topógrafo da TECNIL, Bissau, 1987/1993):
Luís Cabral, a camarada Milanka, eu e o "mau agoiro" do meu patrão
Luís Cabral pretendia reformular uma residência bastante moderna que foi propriedade de um antigo 'colón', que eu não conheci, para sua residência, penso eu. Essa residência ficava atrás do gabinete do primeiro ministro, e tinha uma portaria que era preciso adaptar, na cabeça de Luís Cabral, para receber o Volvo presidencial, bem junto à porta da casa.
Só que havia um pedaço de jardim e duas colunas à entrada do edifício que era preciso derrubar, construir noutra disposição, e isso Luís Cabral não queria.
E, agora, vou falar em nomes de gente muito simpática e não quero de maneira nenhuma fazer «politiquice» nem com as pessoas nem com a atitude das mesmas nem do momento. O ministro das Obras Públicas era 'Tino' Lima Gomes que era arquitecto e ainda chegou a dar uma vista de olhos na portaria mas sem adiantar qualquer solução.
A esposa dele, a camarada Milanka, de nacionalidade jugoslava, arquitecta nas Obras Públicas, é que foi encarregue de descalçar a bota, e eu no campo [como topógrafo] para executar o impossível.
Só que a camarada Milanka não tinha coragem de dizer ao presidente que era impossível executar como ele queria, e eu descarreguei o meu fardo para o meu patrão Ramiro Sobral [engenheiro, dono da TECNIL], velho "africanista que se encontrava em Bissau, onde ia, mês sim, mês não.
E o velho, de 75 anos, e muitos anos de África, habituado a resolver casos bicudos, analisou e solucionou:
– Senhora Dona Milanka (toda a gente dizia "camarada Milanka"), sabe porque ando nesta vida com esta saúde aos 75 anos? Porque a porta da minha casa em Viseu tem 3 degraus. E subir e descer esses 3 degraus dão-me imensa saúde. Convença o senhor presidente que com 3 degraus resolve o problema e dá-lhe imensa saúde para daqui a muitos anos continuar com o meu dinamismo.
Passados uns instantes, já só comigo no automóvel, Ramiro Sobral, como que a falar para os próprios botões, previa:
– Com degraus ou sem degraus, não vais envelhecer aqui, não.
Talvez uns 15 dias depois, dá-se o golpe a 14 de Novembro de 1980 que derruba Luís Cabral.
Adenda:
Pessoalmente conheci um desertor guineense, ou que ficou para a história da Guiné como desertor, e que levou com ele uma avioneta de Bissau para Conacri.
Tinha o seguinte currículo popularmente conhecido na sociedade de Bissau:
(i) era furriel da Força Aérea, guineense, da minha idade, portanto foi para a Força aérea antes da Guerra do Ultramar;
(ii) era guineense de uma família antiga, "colonialista", que se foi "amestiçando";
(iii) como era menino bonito e inteligente, era um desperdício ir lutar para o mato como os indígenas. (Isto o povo pensava em crioulo, mas eu traduzo.)
Foi de armas e bagagens estudar com bolsa para a Jugoslávia e regressou com bagagem pesada, canudo de engenheiro/arquitecto, após a independência.
O PAIGC, reconhecido, atribui-lhe mais que uma pasta governamental, e também agradecido o governo português concedeu-lhe bolsas de estudo para os filhos nos Pupilos do Exército em Lisboa.
Já faleceu. em acidente com arma de caça.
Chamava-se 'Tino', Alberto 'Tino' Lima Gomes, foi ministro das obras públicas de Luís Cabral. Era um português como milhares de transmontanos, açorianos, angolanos, etc., nunca foi indígena, nasceu «assimilado». (*)
António Rosinha
(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos: LG)
Guiné-Bissau > Arquipélagos dos Bijagós > Ilha de Bubaque > 2013 > A antiga casa de Luís Cabral, projeto dos arquitetos de origem jugoslava (1976/1978) Milanka Lima Gomes e Nicola Arsenic. Foto do nosso camarada José Martins Rodrigues (ex-1.º Cabo Aux Enf.º da CART 2716/BART 2917, Xitole, 1970/72) (****)
Guiné-Bissau > Arquipélago dos Bijagós > Ilha de Bubaque > 2016 > Casa de Luís Cabral. Construída com financiamento público, projeto dos arquitetos Milanka Lima Gomes (1976) e Nikola Arsenic (1978). Fotograma do filme "The Vanished Dream" (2016), reproduzida no artigo de Lucas Rehnman (2023), a seguir citado. (Com a devida vénia...)
Curiosamente, o poste do Rosinha, P16701 (*), tem honras de citação num artigo sobre a arquitetura pós-colonial da Guiné-Bissau, da autoria do brasileiro Lucas Rehnman (n. 1988, S. Paulo), investigador, artista e curador (vive em Berlim), e donde extraímos com a devida vénia esta outra imagem da casa, em ruínas, do Luís Cabral. O título do artigo, em inglês, pode ser traduzido por: "Acabado de construir, e logo em ruinas: descolonização e dis-conectividade na Guiné-Bissau pós-colonial, 1973-1983":