quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25054: Historiografia da presença portuguesa em África (403): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Maio de 2023:

Queridos amigos,
Trata-se de um relato tão peculiar que bem merecia ser reproduzido, é uma narrativa que nos mostra a história da primeira comissão para a delimitação de fronteiras desde a sua chegada a Bolama e contra todas as peripécias havidas, os pontos por onde se passou, a indignidade nas instalações que lhes entregaram, a viagem por aquele sul da Guiné onde não havia portugueses e os régulos impunham as condições de viagem, o deslumbramento dos viajantes diante dos prodígios da natureza, tudo numa escrita elegante, rigorosa, credora da nossa atenção, este tenente da Armada Real apercebe-se que aquele sul da Guiné não tinha interesse nenhum para a França, irá desabafar amargamente como tínhamos sido espoliados do Casamansa, esse era o grande móbil do governo de Paris. Vamos acompanhar esta narrativa até ao seu desfecho e seguramente que o leitor não se irá sentir defraudado.

Um abraço do
Mário



Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (1)

Mário Beja Santos

O Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 8.ª série, números 11 e 12, 1888-1889, acolhem um documento de grande valor histórico intitulado “Viagem à Guiné Portugueza”, o seu autor é E. J. da Costa Oliveira, Oficial da Armada Real, comissário do governo para a delimitação das possessões franco-portuguesas da costa ocidental de África.

O Tenente Costa Oliveira e os seus pares deixam Lisboa a 6 de janeiro de 1888 e desembarcam a 23 em Bolama. Anota que esta ilha foi cedida a Portugal em 1607 pelo Rei de Guinala, território dos biafadas e reavida em 1 de outubro de 1870, depois de uma disputa com a Grã-Bretanha. E começa o seu rol de observações: “Bolama oeste é comparativamente em qualquer das duas estações do ano muito mais saudável e fresca do que a capital. A diferença de marés em toda a Guiné Portuguesa é pouco mais ou menos de doze pés ingleses, consequentemente na baixa-mar as praias, incluindo as de Bolama, formadas de vasa dormente e detritos de proveniências diversas, ficam a descoberto durante muitas horas, expelem odores pestíferos.” E não se esquece de mencionar as doenças que daí podem advir.

Já viu e passa a comentar: “Para o comércio e comodidade pública seria proveitosa a construção de uma ponte cais, os viajantes e outros indivíduos são forçados a exibir quotidianamente o grotesco espetáculo de atravessar uns cem metros da praia às costas dos pretos, vindos alguns de chapéu alto ou de grande uniforme. As ruas da vila, estreitas e sujas, não sendo empedradas nem macadamizadas, transformam-se na estação chuvosa em verdadeiros lodaçais. As praias imundas e malcheirosas, por se fazerem nelas todos os despejos, são, no dizer de muitos, uma das principais causas da insalubridade da ilha. Há em Bolama metade, se tanto, de um mercado principiado em 1879 e alguns candeeiros cem e duzentos metros! O interior de Bolama é pouco acidentado e ocupado por Brames, Fulas, Manjacos, etc. Produz milho, mancarra, arroz, feijão, batata-doce e outros géneros de menor valor.”

A equipa que veio fazer a delimitação de fronteiras já cumprimentou o sr. governador, salamaleques para lá, salamaleques para cá, é-nos indicado que tem uma casa onde vão ficar alojados e onde esta comissão de definição de fronteiras trabalhará com os franceses. O relato que ele faz a casa é implacável:
“Era um primeiro andar de aspeto pouco asseado. Entrava-se por um quintal pouco limpo, cheio de fardos e caixotes, barris vazios, arcos velhos de pipa, etc.; subiam-se uns toscos degraus de madeira que terminavam em um largo patim, aonde se viam em pitoresca promiscuidade colchões velhos, tinas velhíssimas, potes de barro, candeeiros partidos, etc.; aranhas enormes povoavam os tetos e as paredes. Abria-se uma porta e penetrava-se numa pequena sala alumiada por duas janelas sem portas de vidraça. À entrada, na parede aonde se abria a porta, alojava-se um móvel de madeira coberto de poeira e coisas tão extraordinárias que nunca atinámos com a sua verdadeira aplicação! Na parede esquerda um sofá com as molas partidas e o forro de carina rasgado em mais do que um sítio, algumas cadeiras sem pés, outras menos más, um armário de casquinha, uma mesa-redonda ao centro da casa e alguns quadros de gosto mais do que duvidoso completavam a mobília deste elegante salão.”

O tenente da Armada Real procede minuciosamente à descrição deste antro totalmente negligenciado para tornar bem claro como o acolhimento da comissão de delimitação de fronteiras foi da maior das indignidades: “Foi nesta casa tão própria e tão decentemente mobilidade que recebemos a comissão francesa! E não se culpe ninguém, porque não havia outra casa para alugar. A sorte é que estava contra nós e nós lho agradecêssemos quando alguma vez a encontrámos.”

Havia que completar o pessoal da expedição, foi o cabo dos trabalhos. As instruções autorizavam que se requisitasse um condutor de obras públicas para auxiliar a missão nos trabalhos de campo. Aproveitou-se o tempo a pedir informações, a angariar carregadores, parecia que só havia dificuldades: “Uns afirmavam que seríamos atacados à mão armada e roubados pelo gentio; outros diziam que o célebre potentado do Futa Djalon, Mudi-Yaiá, não consentiria que as duas comissões se intrometessem nos seus domínios sem lhe fazermos valiosos presentes ou pagarmos quantiosas taxas; outros ainda falavam das febres do país, nas dificuldades de marcha em virtude da natureza pantanosa dos terrenos que íamos atravessar, nos grande perigos que corríamos sermos mordidos pelas serpentes, devorados pelos crocodilos, etc.”

Foi um bico de obra arranjarem-se os carregadores, todos receavam internar-se no chão dos Fulas, bem procurámos gente interessada em acompanhar-nos, apenas se apresentaram 14 indígenas, número insuficientíssimo para conduzir as cento e tantas cargas em que estava dividido o material da expedição.

A solução foi requisitar ao governo os Angolas que quisessem servir na expedição. Foi este expediente que permitiu que a missão partisse para o mato no dia combinado. O Tenente Costa Oliveira apresenta para falar do contingente militar na Guiné, havia um único batalhão de caçadores, composto na sua grande totalidade de deportados e vadios de Angola e uma bateria de artilharia com quatro peças.

A 28 de janeiro chegou a Bolama a comissão francesa, acompanhava-a o Governador da Senegâmbia e o seu Estado-maior, cumprimentos para lá e cumprimentos para cá e abandonaram prontamente Bolama. O oficial dá-nos notícia da comissão de delimitação francesa, dirigida pelo Capitão H. Brosselard-Faidherbe. Em 10 de fevereiro fundeava a canhoneira Guadiana perto da ilha Tristão, só a 12 foi possível desembarcar toda a expedição. A primeira etapa seria a partida de Kaky para Kabo. Passaram pelo rio Quitafine em direção à ponta Cajé, ponto de partida combinado para a delimitação da fronteira sul da Guiné Portuguesa. O autor dá-nos a saber que este rio Quitafine é largo, cheio de ilhotas, inúmeros esteiros e canais. Há também o relato dos ataques perpetrados por Biafadas contra Nalus e Sossos. Apurou-se que para Kandiafará não havia caminhos transitáveis e conhecidos. Na tarde do dia 18 apresentaram-se no acampamento dois emissários do chefe do rio Cacine, eram portadores de uma atenciosa carta, convidando a missão portuguesa a seguir para Biquese, população importante dos Nalus, situada na margem esquerda do rio Cacine. Será uma viagem bem ingrata dentro da floresta, o prémio vem a seguir:
“Quando saímos da floresta, deparou-se-nos o espetáculo mais grandioso que observámos durante a nossa viagem. Uma vasta planície, um oceano de verdura povoado por centenas de antílopes, se estendia na nossa frente até onde a vista podia alcançar.”

Carta da Guiné Portuguesa, século XIX, Arquivo Histórico-Ultramarino
Carta da província da Guiné, 1912
Carta da colónia da Guiné, 1933
Antiga Sede do Banco Nacional Ultramarino em Bolama, posterior Hotel do Turismo, hoje completamente desaparecido
Atual edifício do Centro de Formação Pesqueira de Bolama. Imagem retirada do blogue Alma do Viajante, com a devida vénia
Imagem do antigo quartel de Bolama, retirada do blogue Alma do Viajante, com a devida vénia

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25031: Historiografia da presença portuguesa em África (402): Sarmento Rodrigues, o definidor da colónia guineense, pô-la no mapa (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

Este tenente era muito esquisitinho.