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Em mensagem do dia 9 de Outubro de 2015, o nosso camarada António
Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos a 24.ª página do seu Caderno de Memórias.
CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74
24 - De 14 de Novembro a 22 de Dezembro de 1973
Da História da Unidade do BCAÇ 4513:
(...)
NOV73/14 – (...) Pelas 20,30 horas deste dia foi comunicado a este Comando pelo Comandante do Pelotão de Milícias 231 que o Soldado Milícia MAMADÚ JALÓ, que se tinha deslocado na madrugada desse dia ao R. GUNOBA, para apanhar peixe, não tinha regressado.
NOV73/15 – Em face do desaparecimento do Soldado Milícia, foi destacado para um patrulhamento à região do R. GUNOBA, um grupo de combate, que encontrou vestígios de presença de um GR IN estimado em 30/40 elementos, que deviam ter retido o referido milícia. (...)
NOV73/20 – Pelas 08,30 horas chega a A. FORMOSA para uma visita a A. FORMOSA, MAMPATÁ E BUBA, Sua Excelência o Governador e Comandante-Chefe. (...).
(...)
NOV73/22 – Conforme notícias processadas, admite-se a passagem de coluna IN de INJASSANE-UNAL-INJASSANE, nos dias 22, 23 e 24. Com forças da 1.ª CCAÇ/4513, CCAV 8350, CCAV 8351, 2.ª CCAÇ/4513 e CART 6250 monta-se um dispositivo de contra-penetração nos corredores de passagem IN.
- Forças da 1.ª CCAÇ/4513, detectaram vestígios da passagem de grupo IN estimado em 20 elementos, no corredor de BUBA, no sentido SUL/NORTE, provavelmente na noite de 21 para 22 de NOV73.
(...)
Histórias marginais (4): Uma iguana de muitas vidas
Estávamos no regresso de mais um patrulhamento para protecção a uma coluna, na picada Nhala-Mampatá. Vejo lá à frente um soldado sair à direita para a mata, possivelmente para urinar e, quando regressa, diz qualquer coisa aos outros e eles entram também na mata. Parou todo o grupo. Quando me acerco estão a sair da mata muitos excitados e dizem-me: “Está ali um grande lagarto com uma lata enfiada na cabeça”. Eles sabiam bem que eu não perdia uma coisa destas, a menos que as circunstâncias não permitissem. Entrei na mata e vi o lagarto logo ali, separado da picada apenas por uma barreira densa de arbustos. Parecia um crocodilo pequeno mas com cabeça de sardanisca que, ainda por cima, não se via. Estava imóvel mas percebia-se bem que respirava e, sentindo a nossa presença, bufava dentro de uma lata ferrugenta de sumos ou chocolate das nossas rações, onde enfiara a cabeça sem remédio. Claro que ninguém reconheceu o lagarto. Até àquela data, o maior que vira na Guiné, era aquele que fazia flexões ao sol, indiferente à nossa presença. Calculei que tivesse um metro e meio da cabeça à ponta da cauda. A nossa primeira admiração: como é que um lagarto tão grande tem uma cabeça tão pequena? E mais: há quanto tempo estará sem comer e a respirar pelos poros da lata ferrugenta? Será perigoso? A minha primeira reacção foi abandoná-lo e seguir viagem, mas a curiosidade foi mais forte. Pensei: é simples, dou-lhe uma cacetada na cabeça enlatada e levámo-lo para ver se alguém nos ajuda a identificá-lo. Vai ser manga de ronco!
Ali a mata era de chão quase limpo e árvores ralas e pouco grossas. Não foi difícil arranjar um cajado. Dei-lhe uma cacetada tão forte na zona da cabeça, que a lata quase se espalmou. Para minha surpresa – e susto -, o réptil deu um salto descrevendo um arco, quase me batendo, e desata numa correria por entre as árvores até “atracar” de frente numa de maior porte. Ofegante, parecia uma bomba prestes a explodir, dando sacudidelas violentas com a cauda na árvore mais próxima, que vibrava até ao extremo da copa. Eu, incrédulo, mantive-me afastado, certo de que, se me atingisse uma perna, a partiria. De onde vinha tamanha energia? Que órgão comandaria os seus estertores? À distância, todos olhávamos perplexos aquela força da natureza que mais parecia algo de sobrenatural.
Quando o bicho parou de bater, aproximei-me e encostei-lhe o tapa-chamas da G-3 a meio da lata e disparei. Esperei então um momento e, vendo-o inanimado, fiz um laço de correr com uma ligadura que pedi ao enfermeiro. De longe, com a ajuda de um pau comprido, passei-lhe o laço pelo pescoço e dei um puxão. Não reagiu. Arrastei-o para a picada e um dos soldados levou-o de rojo até Nhala.
Arrancámos-lhe a lata da cabeça (uma massa) e, exposto à curiosidade de todos, ninguém, arriscou um nome para aquela espécie. Só no dia seguinte, através de um homem grande, indicado como a pessoa certa para o caso, ficámos a saber, por gestos e monossílabos, que se tratava de um, (ou uma) iguana africana. Isto na interpretação de um camarada que acompanhava a mímica do homem.
Ao fim da tarde, quase noite, vem-me dizer que a iguana, esticada frente à caserna do meu grupo, estava cheia de formigas. Deu-me vontade de a atirar logo para o bidon do lixo, mas tinham-me dito que o tal homem grande era especialista em curtir as peles dos répteis e que, a da iguana, era muito mais valiosa que a das grandes serpentes. Agarrei-a pela corda improvisada que tinha ainda ao pescoço e suspendi-a num barrote alto do abrigo da HK-21 ali mesmo ao lado. Pendurada e inerte, sacudimos-lhe as formigas. Já a noite ia alta quando se desencadeou uma tremenda trovoada acompanhada por chuva torrencial, como se os céus se quisessem livrar das últimas águas do ano. A seguir a um relâmpago potente, da minha cama ouvi, para os lados da caserna, pancadas violentas e repetidas em qualquer coisa de zinco. Pensei logo: é a iguana. Peguei na faca de mato e, debaixo do temporal, fui até ao abrigo da HK-21, que ia ficando sem telhado, e dei um golpe na corda aproveitando uma pausa na fúria louca do lagarto. Caiu-me aos pés e ficou estendido, quieto, na sua outra morte.
No dia seguinte foi-lhe retirada a pele (impressionou-me o volume da sua musculatura sobretudo nas patas) e, ao longo do tempo, o homem grande, vaidoso, chamava-me por vezes para me mostrar aquela preciosidade esticada com pregos numa tábua larga para secar. Até que um dia me veio entregar um rolo largo de pele e eu paguei-lhe o combinado. Era bonita a pele, embora um pouco escura. Pensava vendê-la em Bissau quando estivesse de passagem. Eu, que tenho um jeito danado para o negócio...
FOTOS 1 e 2: Nhala, 1973 – O homem grande exibe a iguana. Depois vai extrair-lhe a pele e curti-la.
Um dia, quando fazia preparativos para vir de férias, lembrei-me da pele e fui encontrá-la no fundo de um caixote, com as camadas interiores cheias de larvas: brancas e gordas. Peguei naquilo e atirei-o para o bidon do lixo com repugnância, muito alívio e a certeza de que, se não reagira às larvas, era porque a pele estava mesmo morta.
Foto 3: Iguana africana (Imagem extraída da Net)
22 de Dezembro de 1973 – (sábado) – Nhala: o regresso de férias.
Chegado no dia anterior de Bissau, ainda dormiria uma noite em Aldeia Formosa. Para meu contentamento e contra as expectativas mais pessimistas que trazia, soube que a actividade da guerrilha no Sector era quase inexistente, permitindo um bom avanço nas duas frentes de trabalho da estrada nova. Isto era bom porque todos nós tínhamos que lá estar, quer nas frentes de trabalho, quer ao longo do percurso já construído. Mas o que mais exigia de nós, paralelamente, eram as contra penetrações indispensáveis à segurança afastada e, também, para interceptar os grupos inimigos nos carreiros. Isso implicava a deslocação de muita tropa, normalmente para locais afastados. Verifico agora, pela História da Unidade que, só ao longo do mês de Dezembro, ocorreram cinco situações de movimentos desses, motivadas por informações recolhidas pelo Comando, dando conta da possível passagem de colunas de guerrilha nos carreiros. Em nenhum dos casos ocorreu intercepção, todavia, sendo a ameaça permanente, havia que repor o campo de minas no carreiro de Uane, lá para os lados do Corubal, que eu levantara antes de ir de férias. Eram as normas: levantar as minas antes de uma ausência prolongada e implantá-las de novo após o regresso.
A ida ao carreiro de Uane, ocorrida entre o Natal e o fim do ano, implicou que o meu grupo ficasse à responsabilidade dos dois furriéis em Buba, tendo em vista a protecção às obras de Engenharia nessa frente, aliás, já tinha sido assim durante o meu período de férias. Só após a instalação do campo de minas me juntaria ao grupo.
Natal de 1973
Foi o meu primeiro Natal passado longe da família. Para a maioria também. Mas o constrangimento que isso causasse, dependia em maior ou menor grau, da importância que cada um atribuía a essas festividades, - o Sr. de La Palice, não diria melhor... Daí que, a mim, afectasse pouco, quer por ter regressado recentemente, quer pelo hábito familiar de natais austeros e de pouca religiosidade. Em criança sim, os natais eram épocas de grande alegria e excitação e, todos os anos o meu pai fazia grandes presépios, pouco comuns, cheios de luz e cor e onde não faltavam os moinhos que giravam sem vento e nem as azenhas que rodavam com água a sério. E onde até o Menino Jesus tinha sempre aos pés um pires com moedinhas, antecipando as ofertas dos Reis Magos. Éramos muitos irmãos e precisávamos do imaginário efervescente. E o nosso presépio padrão colocava num nível muito alto as expectativas e as exigências de qualidade: era o presépio monumental da Igreja de Miranda do Corvo, cujas figuras tradicionais eram mais ou menos do nosso tamanho. Mas, antes da adolescência, já tinha acabado a tradição sem que isso nos traumatizasse. Não sonhava, nesses tempos, que voltaria a ver presépios animados (e trabalhosos), agora feitos por mim para extasiar as minhas duas netas.
Para a noite da consoada em Nhala, esmerou-se o Capitão Braga da Cruz, conseguindo atempadamente todos os ingredientes e produtos da tradição, para que nada faltasse na mesa. Ninguém ficou excluído da ceia condigna e do ambiente que atenuasse a dor da saudade. Mau grado o estado de alerta, orelhas no ar, porque, dizia-se, os turras aproveitam sempre estas ocasiões. Sempre, não, porque não aconteceu nada e tudo correu bem. Nessa noite todos se deitaram em paz (menos as sentinelas), cada um sonhando com Menino Jesus da sua preferência.
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Estava no fim o ano de 1973 sem grandes novidades operacionais neste derradeiro mês, para além das notícias de possíveis infiltrações da guerrilha através dos corredores de passagem; iniciou-se o reordenamento de Colibuia que bem precisava, pois aquilo que lá existia era uma nulidade; a estrada avança a bom ritmo (estando a frente de Buba a 6000 metros de Buba e a frente de A. Formosa a 5100 metros de A. Formosa). É sobretudo para esta obra que convergem as atenções e o entusiasmo de todos. Não é para menos: esta estrada vem revolucionar o modo, o tempo e a segurança (?) na ligação entre Aldeia Formosa, Mampatá, Nhala e Buba.
Foto 4: 1974, estrada Buba-Aldeia Formosa no troço Buba-Nhala, ainda antes de se completar todo o trajecto.
(continua)
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Nota do editor
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Guiné 63/74 - P15207: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (23): De 27 de Outubro a 12 de Novembro de 1973