Meus Caros Luís e Carlos,
Para o que der e vier, aqui vai alho!
Abraços
JD
Servi na Guiné durante o período decorrido de FEV70 a DEZ71, portanto, sob o comando do General Spínola. Estive integrado numa companhia que durante 7 meses fez intervenção no Sector de Piche, a cujo Batalhão ficou agregada. Assim, só sobre ele poderei emitir alguma opinião, estribada apenas na minha experiência e observação, opinião que pode transparecer alguma subjectividade na interpretação dos factos.
Aquele general foi uma figura controversa, e para ilustrar tal ilação, vou referir alguns aspectos que me sensibilizaram.
Enquanto estratega, houve situações que me confundiram, como algumas retiradas ou reocupações de aquartelamentos (ou pelos riscos, ou pela falta de sedimentação de relações com a população); a interpretação da passividade imposta como modelo de mera reacção às actividades do IN, por vezes com bases próximas do nosso TO. Mas o maior erro estratégico, por força da má execução operacional, relaciona-se com a invasão a Conakry, já tão debatida e do conhecimento dos atabancados. A principal nota que retirei, foi que os danos resultantes da invasão que visava substituir o presidente local e neutralizar (pela captura?) a cabeça do PAIGC, foram mínimos e sem oposição eficaz nos fóruns internacionais, e aparentemente mal avaliados para a prossecução da defesa dos nossos territórios, tendo em conta as limitações do país, o contexto internacional, e a certeza de que tal operação, depois de decidida, não poderia falhar. Falhou estrondosamente. Também podia ter sido desastrosa a ordem para tapar as valas de protecção em redor de Pirada, o que originou uma invasão e assalto à localidade, felizmente sem outras consequências. Recordo que, na época, o PAIGC assaltava e destruía aldeias da orla fronteiriça, obrigando à deslocação de pessoas e bens para o Senegal. Pirada já tina recebido o reforço de 2 companhias (1 de Páras), e Bajocunda recebeu a 1.ª (ainda única) Companhia de Comandos Africanos e o meu pelotão. O Senhor General entendeu que devia facilitar o relacionamento das relações com as autoridades senegalesas, tendo em vista o regresso da população deslocada, o que não se verificou. Foram 3 meses de intensa actividade, uma espécie de perseguição entre gato e rato, mas sem resultados para as NT.
Disciplinarmente, o Senhor General também é recordado, ora por razões de tolerância, como a imagem do alferes em tronco nu prova, como de inclemência, de que são conhecidos casos de agressão, ou de despromoção na parada, situações demasiado judiciosas e com prováveis resultados preversos. Tenho dois amigos que foram despromovidos, mas um deles recorreu, passado muito tempo ganhou, e foi reconduzido ao posto anterior, tendo sido abonado das diferenças salariais, o que deixa indiciar que o Com-Chefe podia ser mal assessorado, e que seria demasiado emotivo para inculcar sentido de obediência ou servilismo, mais do que fazer pela compreensão e aceitação da disciplina, tão necessária no ambiente de clarividência necessário à guerra. Ainda no que respeita à disciplina só por razões corporativistas não houve responsabilização séria no caso do acidente com a jangada que atravessava o rio Corubal, aquando da retirada de Madina. Uma operação delicada, parece, não pode ser condicionada pela pressa e pela incomodidade de passar uma noite no mato. E seria fácil articular um esquema de protecção.
Sobre a sensibilidade e as estratégias do IN em confronto com as nossas, Spínola deu mostras de credulidade e falta de previsão, no caso das "negociações" que vitimaram 5 militares, cilada que parecia destinada ao próprio Com-Chefe, conforme algumas opiniões expressas. Ora, no meu entender, um bom comandante não arrisca a vida dos seus subordinados, antes planeia com base na segurança do pessoal envolvido - refiro-me àquela guerra designada de baixa-intensidade.
Carlos Sousa e o Gen Spínola no destacamento de Antotinha
Foto : © Carlos Sousa (2015). Todos os direitos reservados.
Outro aspecto muito importante e descurado pelos altos comandos, e que ganhava foros de fartar vilanagem, relacionava-se com a logística. Só refiro o que sei da minha Companhia, cujo capitão e sargentos não inventaram nada. Quando a Companhia ficou responsável pelo sector de Bajocunda com um efectivo numeroso (1 ou 2 companhias, ou 1 companhia e 1/2 grupos de outra, 1 pel caç nat, 1 pelotão de artilharia, e com 2 destacamentos e 1 aldeia em autodefesa com 2 grupos de milícias), tomei conhecimento de um próspero negócio de gasolinas, que consistia na aquisição continuada na Casa Gouveia em Nova Lamego, de apenas uma parte (metade) dos tambores requisitados. No parque automóvel amontoavam-se viaturas inúteis, que serviam apenas para eventuais substituições de peças. Porém, nos mapas mensais para Bissau eram indicadas a funcionar e com altos consumos de carburante. Chegámos a não ter qualquer viatura operacional, e a socorrer-nos de viaturas emprestadas. Não sei se o COT-1, de que dependíamos, tinha conhecimento ou responsabilidade, mas as colunas de um ou dois pelotões ficavam condicionadas, era tudo ao monte, e podemos imaginar o resultado do rebentamento de uma mina, com cerca de 20 militares por viatura, que deviam deslocar-se em duas ou três. Mas o negócio não contemplava segurança. Manifestei logo que sob o meu comando de colunas, a Companhia só receberia as quantidades de gasolina requisitadas, pelo que nunca tive o encargo a transportar. Estes aspectos e os relacionados com alimentação e bebidas, talvez sejam bons casos ilustrativos de saques sobre o erário.
Assim, para obviar a tais tentações, e acautelar as melhores condições de segurança, do corpo, e do espírito do pessoal operacional e de todos os deslocados em quadricula, o Com-Chefe deveria ter criado um eficaz serviço de controle e fiscalização, uma auditoria que teria como principais funções a defesa do interesse público, bem como o esforço necessário à preservação do moral elevado. Spínola falhou rotundamente por não o ter feito.
O General, porém era arrojado, e aparecia em circunstâncias difíceis e na proximidade de combates, como em Buruntuma em FEV70. E criou-se o mito spinolista, que ia do herói, ao grande comandante. Quando passei à disponibilidade em Janeiro de 1972, permaneci na metrópole até princípio de Maio de 1971, e tive ocasião para apreciar a máquina de propaganda que trabalhava em benefício do General, com o evidente propósito de o levar à Presidência da República, o que só conseguiu por uma estouvada aliança, meios e ambientes que não correspondiam ao seu pensamento, mas a ambição concretizou-a.
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Nota do editor
Último poste da série de 13 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15245: Inquérito "on line" (7): Estava em Bissau quando em 7 de maio de 1974 chegou o TCor graduado em Brigadeiro, Carlos Fabião, esse sim o último Com-Chefe. Conheci também o Schulz, o Spínola e o Bettencourt Rodrigues (António Dâmaso, SMor PQ ref, BCP 12, BA 12, Bissalanca, 1972/74)
4 comentários:
Zé a criação de mitos.Mito Spinolista, Últimamente mito Aníbal. e presentemente mito Sousa.
Caro Zé Dinis
A tua apreciação do desempenho do Brigadeiro/General António de Spínola, Governador-Geral e Comandante-Chefe do CTIG não se afasta muito da realidade, sendo certo que é o resultado das tuas vivências que em primeiro lugar determinam o sentido dessa apreciação.
Outros haverá que dão mais importância à sua aparente, ou real, aproximação à 'tropa no terreno'. Haverá então para todos os gostos.
Dizes que foi uma 'figura controversa'. Sem dúvida. E totalmente incontornável. São do tipo de pessoas de que se faz a História. Goste-se ou não.
Dizes também que andava a preparar a sua intervenção política. Sentiste isso quando voltaste e por cá, no tempo antes de voltares a África, te apercebeste dos 'apoios' que tinha.
Verdade, sim senhor. Já tive ocasião de relatar parte do seu discurso aquando da inauguração das instalações do Agrupamento de Transmissões em Janeiro de 1972 onde dizia: ".... aqueles... que dizem... que o Exército... é uma máquina acéfala.... em breve irão ver que assim não é!"... Nesse dia isto soou-me como prenunciador de algo que ainda não conseguia verbalizar mas que tive a oportunidade de comentar com outros camaradas que 'estava na forja alguma coisa de sério'. Quando saiu o livro "Portugal e o Futuro" as coisas ficaram mais claras.
E pronto, Zé, já se sabe que, naturalmente, o Gen. Spínola é, para ti, a figura a mencionar. E que por sinal não a tens em grande conceito.
Mas pronto, o que conta é a 'visibilidade', não é saber quem foi 'o melhor', pois isso também seria muito relativo.
Hélder S.
Caros Camaradas,
Quando no último período do texto me refiro à máquina de propaganda que favorecia o General Spínola, recordo bem que quase quotidianamente saíam peças na RTP, na rádio, e nos jornais, reportagens, artigos de opinião, imagens do ComChefe idolatrado pelas populações e com grande estima junto da tropa. A guerra como um meio para alguma finalidade. E a finalidade acabou por ter sido a acção psicológica exercida sobre os metropolitanos, que se questionavam para que servia a Guiné, uma provincia que nas suas conjecturas, por falta de conhecimento mais circunstanciado e abrangente (de Angola e Moçambique as notícias dos residentes eram bem auspiciosas) causava trauma, tendo em conta o impacto das notícias de mortos e feridos, degradação de material, despesa inútil, anseios familiares, e imagem de inferno. Spínola aproveitou e ampliou essas ideias na comunidade metropolitana, posicionando-se como salvador da Pátria, o homem do conhecimento, prestigiado, que saberia tomar decisões.
Em Fevereiro/73 deu à estampa o seu livro "Portugal e o Futuro" que provocou reedições com êxito, onde propunha a negociação como solução para a guerra, e a alteração de estatuto das provincias, passando Portugal a estado federal repartido por 4 continentes. Cautelosamente, não terá sugerido a futura capital da federação.
Estas acções foram germen para a reivindicação dos capitães do QP, e o sinal para avançar não tardaria. De facto, após a publicação, Caetano quiz entregar o poder às chefias militares, que não aceitaram; poucos dias depois, apresentou a renúncia ao Presidente, que também não aceitou. E viria o vexame em 14 de Março com a convocatória da chamada "Brigada do Reumático", a que Costa Gomes e Spínola não compareceram. Acendia-se a luz que tão despreocupadamente desejara. O MFA trocava com Spínola impressões de conveniência sobre o golpe, e logo se destacaram dois ou mais caminhos para a revolução, o que prenunciava falta de objectividade e de controle na assumpção das acções a empreender.
Caro Zé, de facto fabricou-se um mito. Mas não devemos ser sectários, pois a história contemporânea revela-nos mais mitos, tanto de direita, como de esquerda, escroques que se fazem ao poder nas tintas para o interesse público e o bem comum.
Helder, quero dizer que concordo com o teu comentário, todavia acho que a população de antigos combatentes tende a contemporizar com a construção do mito. Por exemplo, a Mar Verde foi anunciada como um sucesso, mas a libertação dos prisioneiros foi dos últimos objectivos, e ainda bem que deram esse encargo ao Marcelino. No entanto, foi anunciada como um grande êxito, e o seu comandante não deixou de se imortalizar com a publicação de um livro onde a relatá-la, nem se escusou a responsabilizar um camarada do exército sobre qualquer coizinha que não tivesse corrido bem. Questão de ética.
JD, há portugueses que se distinguem, e este General distinguiu-se e distingue-se de outros generais, tanto como militar como português.
A maior diferença consiste em não ter sido nem procedido como "velho-do-restelo".
Isto é, atirou-se, não ficou na casca, não se encolheu, perdendo ou ganhando arriscou sempre, tinha iniciativas, era original, não copiava,a não ser o livro, Portugal e o Futuro que imitou um de Norton de Matos que li e nunca mais o re-encontrei. (era proibido pelo Homem de Santa Comba)
Arriscou ao ponto de ter que se refugiar no Brasil, quando tentou parar uma tal baderna terceiro-mundista.
Mas o que lhe correu pior foi o caso dos Majores.
JD, os portugueses somos muito diferentes uns dos outros, e o Spínola não foi um português com um comportamento muito vulgar no nosso povo.
Não sou racista, sou pluriracial, e Spínola é de origem ultramarina, é de origem Madeirense.
Quando falo em "velhos-do-restelo" é de gente que se encontra mais no «rectângulo», onde somos mais acomodados.
Mas claro que abordas-te umas coisas bem pertinentes, principalmente nas ambições do homem.
Cumprimentos
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