1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Dezembro de 2014:
Queridos amigos,
É a versatilidade de abordagens que enriquece a nossa literatura de guerra, com tantas peças na penumbra.
A mexericar num caixote lá na Feira da Ladra deparou-se um livrinho com capa insólita, pus-me a remexer, lá dentro vinha uma folha falando de livros bíblicos de ambos os testamentos. Sentei-me a ler o que nunca me fora dado ler, o testemunho de um cristão evangélico, tudo escrito com enorme simplicidade e indiscutível sinceridade, uma escrita amena onde a glorificação a Deus é permanente. A esvoaçar para o Divino fora me dado a conhecer o testemunho de alguns capelões, mas nada, nem por sombras, com o vigor desta fé.
Um abraço do
Mário
Como Deus me guardou:
O testemunho de um cristão evangélico na guerra colonial
Beja Santos
Isto de vasculhar sem desânimo nos caixotes da Feira da Ladra acarreta sempre resultados imprevistos, e alguns dão que pensar. É o caso de “Como Deus me guardou”, por Agostinho Soares dos Santos, Edição de autor, Porto, 1990. O autor tem obra feita, indica nesta edição de 1990 sete títulos: “Bíblia, ciência e vida”; “Maravilhas do Criador”; “Ufologia à luz da Bíblia”; “Tudo nos mostra que Deus existe”; “Onde está, evolução a tua ciência?”; “Falsas ciências do nosso tempo”; “Profecias, acontecimentos probabilidades”; “Nuclear apocalíptico”. O autor explica-se: “Este livro é um testemunho da misericórdia de Deus para comigo durante a guerra colonial”.
Dá o seu testemunho para glorificar o nome do Senhor. É poeta e verseja assim:
“Ó Angola, negro diamante multifacetado
Como deves ser feliz e bela em tempo de bonança
Quisera eu conhecer-te noutras épocas diferentes
Mas entregaram-me uma arma automática FN
E uma seção de morteiros 81!”.
Embarcou em 24 de Julho de 1965. De imediato escreve: “Já li alguns capítulos da Bíblia e acabei de escrever à minha namorada”. E no dia seguinte, desabafa: “Que loucura! Um tempo maravilhoso e os homens a pensarem a matarem-se uns aos outros! Não foi para isso que Deus criou o ser humano”. Agostinho é furriel num pelotão de morteiros, viaja enfastiado e a 28 esclarece os seus leitores: “Hoje passei em revista a minha despedida na Igreja Evangélica de Picoutos. O irmão André Artur da Rocha era o servo escalado para o culto em causa e resolveu chamar-me. Durante a reunião, os irmãos estiveram a animar-me. Alguém leu o Salmo 91, onde diz que mil cairão ao teu lado e dez mil à tua direita, mas tu não serás atingido. Glória a Deus por tudo!”. Já se adaptou à rotina. Converteu-se em 9 de Dezembro de 1962, aos 19 anos de idade. Foi mobilizado para Angola em Abril de 1965. E assim chegam frente a Luanda, cidade a quem ele dedica uma ode. Desembarcam e vão para o Grafanil. Já sabe o itinerário: Caxito, Piri, Úcua e Vista Alegre. Vai descrevendo as povoações por onde passaram. E assim chegam à parada de Zemba, a sua futura casa. Está aqui o batalhão 770, o Agostinho faz parte do Pelotão Independente de Morteiros n.º 1021. Em Zemba escreve à namorada: “Saí hoje para dar proteção aos negros sapadores que efetuaram a colheita do café numa fazenda abandonada desde 1961”. Em 23 de Agosto dá a saber à sua Cindinha que vai para a sua primeira operação, escolta a artilharia, escreve. E temos a primeira nota do seu comportamento face à crueldade: “Em Mucondo deram-nos dois turras para transportamos até ao Zemba. Havia um soldado que queria cortar a orelha a um deles. À cautela fui dizendo que ninguém tocava nos prisioneiros”. Assisto a um sinistro e depois a outro: “Um soldado ao saltar de uma camioneta bateu com a coronha da arma no chão a qual disparou, matando-o quase instantaneamente. Recentemente, um soldado deu um pontapé numa espingarda que estava pousada no chão e ela disparou também atingindo mortalmente um outro soldado. O autor do chuto ficou afetado psicologicamente, coitado, não voltou a sair para a mata. Anda aqui a trabalhar na messe dos sargentos, quase só se ri e mais nada". De Zemba vão até um lugar próximo do rio Dange. À distância ouvem-se tiros. E em 15 de Outubro este acampamento é atacado. Voltam para Zemba. Refere as caçadas que se realizam nas redondezas e apresenta-nos o soldado “Terrinas”, assim designado por ser comilão, não sabia ler nem escrever, o Agostinho escrevia por vezes as cartas. Numa dessas missivas à mãe, Agostinho teve o devaneio de meter uma bucha dizendo que ele era conhecido por “Terrinas”. A mãe respondeu: “Olha, filho, fartámo-nos de rir! É assim mesmo! Olha pela tua vida, não te importes com o que dizem. Come e segue em diante!”. Agostinho arrependeu-se pela imprudência e cita a Bíblia. Anda por vários destacamentos onde há obras de Engenharia. Não gosta da expressão batismo de fogo e recorda o batismo de Jesus. Assim se passou o Natal e o Ano Novo. Critica as enormes colunas militares: “As picadas serpenteiam em volta das colinas. Às vezes acaba-se por passar bem perto do local onde já se passou anteriormente. É fácil nesses pontos a própria coluna envolver-se em tiroteio”.
Segue para Onzo, destacamento próximo de Nambuangongo, queixa-se dos tiros e dos mosquitos e de situações que podiam ter descambado numa tragédia como aquela companhia que ficara cercada num morro e cuja evacuação foi um verdadeiro ato de heroísmo. Os acidentes de viação sucedem-se, Agostinho é cada vez mais envolvido nas operações apeadas. Chegou a hora do batalhão 770 abandonar Zemba, o Pelotão 1021 fica, Agostinho vem passar férias à metrópole. Em Luanda encontra Levi que conhecera em Mafra, ambos estudavam a Bíblia, Levi pertencia à Igreja dos Irmãos de S. João da Madeira e Arrifana, Agostinho era membro da Assembleia de Deus do Porto. Em férias, foi à inauguração de uma Casa de Oração em Serralves. O regresso é muito doloroso e de Luanda até Zemba é uma verdadeira odisseia. Escreve de Cova das Pacaças, em 17 de Agosto de 1966: “Mais uma vez estamos a dar proteção à Engenharia. Desta vez, é de castigo. Os meus soldados embriagaram-se ontem”. No fim de Agosto escreve à sua amada dizendo que vai para um lugar mais pacífico, Portugália, no Nordeste de Angola, anda a ler o "Quo Vadis". Nova viagem e nova odisseia, rumam para o Grafanil, seguirão pela estrada de Catete, depois o Dundo, depois Nova Lisboa. O comboio prossegue a sua marcha interminável, passam por Silva Porto, finalmente Henrique de Carvalho. É daqui que se inicia a marcha para Portugália em território onde pontificam os interesses da Diamang. Agostinho gosta muito de Portugália, uma pequena vila antigamente conhecida por Chitato, a estrada que dá acesso à vila está ladeada por longos canaviais. Explica o porquê da presença da tropa: “As nossas instalações em Portugália já pertenceram às milícias da Companhia dos Diamantes. A certa altura, a população local exigiu a presença do exército português. Foi-me dito que houve problemas junto à fronteira em determinada altura e um dos elementos das milícias disparou uma rajada de metralhadora para os pneus da única viatura que possuíam. Os civis não queriam tropa daquela”. Agostinho descreve as redondezas, estão perto do Congo. Depois é despachado para Cassanguidi, a 80 quilómetros de Portugália e do Dundo, o pelotão vai repartindo. Mais incidentes, mais mortes. A comissão avança para o fim. Em Luanda descobre uma igreja evangélica. E regressa no paquete Vera Cruz. No regresso, descobre que já existe a ponte Salazar. A família e namorada estão à espera dele no Cais da Rocha do Conde de Óbidos. Em Julho de 1990, concluiu a passagem a limpo das suas memórias: “Deus tem-me dado tudo aquilo que necessito. Tem-me abençoado no lar, no emprego e nos estudos. Em toda a minha estada na guerra colonial eu pude ver a mão de Deus a proteger-me. Aqui neste livro contei somente a verdade, porque só a verdade glorifica o nome do Senhor”.
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Nota do editor
Último poste da série de 12 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15241: Notas de leitura (766): "Botânica", por Vasco Araújo, editado pela Sistema Solar, 2014 (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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3 comentários:
"Alguém leu o Salmo 91, onde diz que mil cairão ao teu lado e dez mil à tua direita, mas tu não serás atingido. Glória a Deus por tudo!"
Caso para dizer que o meu Deus é mais poderoso do que o dos outros, ou que me safe eu e outros que se... lixem.
A Religião às vezes tem destas coisas.
Carlos Vinhal
Leça da Palmeira
Meu caro Amigo e Camarada Carlos Vinhal
Será "A Religiäo (às vezes) tem destas coisas" ou antes..."A Religiäo (SEMPRE) tem destas coisas"?
Um grande abraco do José Belo
Olá Camaradas
Lembro-me de que no meu (tempo fins de 1972), contava-se que, durante uma emboscada às forças de Cutia para Mansoa houve uma emboscada. O operador de rádio tinha uma daquelas religiões "raras e estranhas" e sentou-se no chão, puxou da bíblia, que sempre o acompanhava e abrindo-a ao acaso esteve a ler enquanto a emboscada durou.
Deus esteve com ele. Ao que parece...
Pergunto-me se os outros, tantos e em tantas situações, se não teriam salvo se tivessem tido tempo de se sentarem confortavelmente e sacar da bíblia mergulhando na leitura.
Desígnios do Senhor... insondáveis, como sabemos...
Um Ab.
António J. P. Costa
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