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segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27086: Humor de caserna (209): um "fermero" que em Empada ganhou fama de curandeiro, milagreiro e... abortadeiro (Zé Teixeira, Matosinhos)



1. Para animar o nosso querido (mas fugaz) mês de agosto de 2025, o Zé Teixeira mandou-nos algumas das suas histórias picarescas e brejeiras.  Ficam bem na série "Humor de caserna" (*).

Recorde-se que o José Teixeira 

(i) é régulo da Tabanca de Matosinhos;

(ii) ex-1.º cabo aux enfermeiro, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70; 

(iii) é um histórico da Tabanca Grande, que integrou a partir de 14/12/2005; 

(iv) tem c. quatro centenas e meia de referências no blogue; 

(v) vive em São Mamede de Infesta, Matosinhos; 

(vi) é gerente bancário reformado; 

(viii) escritor, poeta, contista, além de escutista...


A brincar, a brincar, o Zé Teixeira, que conhecia bem a população a quem prestava cuidados de enfermagem, levanta aqui neste microconto (com o título original, "As vitaminas abortivas") algumas questões sensíveis como a promiscuidade sexual, a violência sobre as mulheres (no seio da família patriarcal), a saúde reprodutiva,  a interrupção da gravidez, o acesso aos cuidados de saúde etc.,  nas regiões de Quínara e de Tombali, em plena guerra colonial.



Humor de caserna (209) >  Um "fermero" que em Empada ganhou fama de curandeiro,  milagreiro e... abortadeiro!

por Zé Teixeira
 


Em Empada uma das coisas mais gostosas que a tropa gostava de fazer era ir até à Fonte Frondosa  apreciar as bajudas no banho... 

À falta de melhor e com um bocadinho de sorte aparecia uma ou outra que vestia apenas o fato que a mãe lhe tinha dado ao nascer. Para alguns camaradas virgens aquilo era sopa da boa.

A Fátma, mais uma das muitas Fátmas que conheci na Guiné, abeirou-se de mim:

 
 Fermero, parte quinino pra matá minino que na tem na bariga !

 − Como ?

− Minha tio brinca e faz minino na bariga di mim. Tem pacensa, parte quinino !

− Quinino ká tem, vai na mudjer grandi, ele trata di ti.

− Nega mesmo, mudjer grandi ká na tem quinino. Tu tem quinino.

− Olha, vou pensar nisso, passa amanhã pela enfermaria.

− Tem de ser hodje. Parte quinino.

Seguiu-me até à enfermaria e eu, sem saber o que fazer para afastar a chata, que ainda por cima era daquelas poucas feias que por lá apareciam e de quem todos nós nos afastávamos.

Bem, para grandes males grandes remédios. Se estava grávida, nada como lhe dar uns comprimidos de vitaminas. Mal não faziam. Talvez o milagre se desse...

Quinze dias depois, lá fui eu até à fonte passar um pouco de tempo e treinar uns apalpos, nem sempre bem sucedidos, quando a Fátma aparece. 

− Estou tramado, aí vem a chata…

Qual quê !, ao ver-me, desata a correr para mim, toda contente.

− Fermero, minino na vai. “Coisa” (#) na tchega mesmo. Tu, bom pessoal.

Ganhei mais uma amiga e juntei à fama de curandeiro e milagreiro, mais uma: a de... abortadeiro!

Zé Teixeira

30 de julho de 2025

(#) Menstruação

3 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

"Minha tio brinca e faz minino na bariga di mim. Tem pacensa, parte quinino !"...

O Zé Teixeira, no diálogo com a Fátma,. usa aqui o vocábulo do crioulo da Guiné-Bissau, verbo "brincar" que tem um duplo sentido, dependendo do contexto, da entoação, dos interlocutores, etc.: (i) "jogar", "divertir-se" ou "brincar" no sentido infantil; (ii) "fazer sexo" ou envolver-se sexualmente com alguém... Ou seja, "brincar / brinkar tem também ou pode ter uma conotação sexual...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

... E em português europeu a palavra "brincar" também é... polissémica. Mas não tem a conotação sexual, a de "fazer sexo". No crioulo da GB, sim. E no portuguès falado no nosso tempo (influenciado pelo crioulo), havia uma contaminação semântica, a tropa usava o termo "brincar" com o duplo sentido que havia no crioulo, ou seja, queria dizer o mesmo que "partir catota", por exemplo... Mas aqui o mestre é o nosso..."fermero". O meu crioulo, infelizmente, era muito rudimentar.. Hoje tempo pena de não ter podido aprender mais...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Zé, apesar do tom picaresco e brejeiro do teu microconto, levantas o véu de uma realidade sociofamiliar, que era de Empada, em plena guerra colonial... Para além do "inocente assédio" das bajudas que iam à Fonte Frondosa / Sanjuna, há referências à "mulher grandeQ que fazia "desmanchos", e ao "tio", velhaco, pícaro, que "emprenhava" as miúdas da aldeia...

Portanto, havia também, como em qualquer comunidade, africana ou europeia, pedofilia, violações, abusos sexuais, "gravidez na adolescência", aborto, abortadeiras... Isto, nas nossas tabancas e, por certo, nas tabancas controladas pelo PAIGC, rapazes no vigor da idade que também não eram nenhuns meninos de coro...Sabemos alguma coisa sobre o que se passava nas lendárias "áreas libertadas", que faziam parte da "cantiga do bandido" (do seu reportório propangandístico) ....