Lisboa > 2008 > Primeira página do sítio do
Maxime, um cabaré de luxo dos anos 40, na Praça da Alegria, nº 58, que, na década de 60, também fazia parte do roteiro da noite dos
camaradas da Guiné, de regresso a Lisboa ou em trânsito por Lisboa (como era o caso dos
hóspedes do Hospital Militar Principal, à Estrela)... A par do Comodoro, do Bolero, do Ritz Club, e outros, e, claro, do Tosco, ali, ao Conde Redondo, do outro lado da Avenida da Liberdade...
Foto:
Cabaret Maxime (2008). (Com a devida vénia...)
1. Mensagem, enviada a 4/11/08, pelo Jorge Félix ao Carlos Vinhal, e que este por sua vez me remeteu, a mim, chefe da redacção, com a seguinte (seca):
"Luís:
Pareces mais dotado para publicar as poucas vergonhas.
Aí vai a continuação do Tosco, do Jorge Félix.
Ab
Carlos.
Morcão... eu?"...
Carlos: Afinal o Tosco também é Guiné. Segue segunda parte, que volta a ficar ao teu critério. (...).
2. O Tosco - segunda leva
por Jorge Félix
O Mário Fitas atesta que o Tosco existiu (*).
Se não encontras referências no Dicionário de Lisboa sobre o Tosco, é porque, e bem, os senhores da verdade consideravam o Tosco como espaço Africano.
Fiquei muito lisonjeado com tudo o que me imputaste sobre a memória do Tosco.
A noite de Lisboa , em 69, tinha como sabemos , o Maxime, o Galo, o Bolero, ... mas quando tentei falar do Tosco, foi com o intuito de continuar a falar da Guiné.
O Tosco era território africano onde rolavam escudos. Se aparecerem "paradores" daquelas noites, podes ter a certeza que vais escutar histórias imperdiveis.
Não era malta que tenha guardado os aerogramas das madrinhas. Talvez não se recordem de nada.
Se os poderes olhar, se algum te aparecer, vais perceber o que digo.
Mas então qual era a relação do Tosco com a Guiné? Em Junho de 69 já havia
bajudas a alternar no Tosco. Elas apareciam no Tosco porque os
evacuados estavam lá, e não o contrário.
A
malta ia para o Tosco porque havia um eléctrico que passava no Hospital da Estrela, e parava no Tosco. Era o único meio de transporte para aquela gentinha. O táxi não admitia passageiros como os clientes do Tosco. Se o eléctrico parasse no Comodoro, a história era outra.
Como muito bem recorda o Mário, "e lá desciam eles da Estrela". No Tosco paravam os combatentes mais sacrificados da guerra da Guiné.
A mancarra da Guiné era melhor que o amendoím de Angola
No Tosco ninguém discutia se a guerra estava perdida. Isso é que era bom !
Quem queria saber novidades da Guiné ia ao Tosco. E, Luis, naquele tempo, havia um ror de indivíduos que gostavam daquela gente.
Os gajos do Tosco gostavam de dizer, "ninguém ta tomar conta de nha bolanha", mas quando os "conchas contavam do Nelson Ned, " o que é que você vai fazer domingo á tarde", toda gente se calava e em uníssono, etilicamente temperados gritavam: VOU À BOLA!!!
Não se ia para o Tosco por causa das gajas.
Descia-se para o Tosco pelo convívio e pelas histórias que a África nos reservava.
"A mancarra da Guiné é melhor que o amendoim de Angola", "Em Bissau com uma cerveja vêm dois meios camarões grelhados, camarão de Moçambique, rijnho, estes gajos não tem nada disso", "Como perdeste as mãos ? - caga nisso e dá-me outro golo de cerveja!"...
Esperemos por
notas de quem andou pelo Tosco.
As noites quentes de Bissalanca..., as tardes quentes de Lisboa, com a Madame, a Princesa, a viúva de um piloto...
Para saltar do Tosco para Bissau tenho que falar na
noite de Bissalanca. Confidências que não foram lavrados nos aerogramas, por pudor.
No Tosco, e não só, eram aliciadas brancas para irem para Bissau. A história é simples e resume-se ao seguinte: as Senhoras contratadas iam passar por serem as esposas de oficiais, sargentos e praças que estavam no
mato, e que há muito tempo não viam o marido e passavam dificuldades financeiras.
O chorinho e lenga lenga batida sempre acabavam por adiantar umas massas em troca dos favores amorosos. Mas era diferente, não era prostituição. Era uma infidelidade guardada a sete chaves e selada com uns
pesos valentes. Quem não queria enganar um
cabrão que estava a bater com os costados no mato, e não enviava dinheiro à esposa ?
Aqueles que encheram o seu ego com o gesto glorioso de
papar a Dona Fulana nas tardes quentes de Bissau , não se esqueça que pode ter caído numa bem ardilada história de amor construída no Tosco.
Entretanto apareceu o Luís Sousa que trabalhou no Comodoro. Por aí já andava a
Madame, a
Princesa e uma que não recordo o nome, "viúva de um piloto","um desastre do caraças", pormenor para aumentar o valor da queca e o mistério da senhora. A história era parecida com as
Senhoras de Bissau mas com valores contrários. Talvez o Luís tenha conhecimento disto. (O
patrão do Comodoro era do Farense, veio-me à ideia esta
Julho de 69: Um mês de boémia em Lisboa por conta da Junta Médica...
Um pequeno reparo, ao que dizes sobre os meus exames em Julho de 69. Ninguém vinha fazer exames de medicina aeronáutica a Lisboa, (um luxo; como bem escreves). Aconteceu comigo, ter que embarcar de uma hora para a outra, sem nenhuma explicação, num avião com guia de marcha para o Hospital Militar. (Outra história a recuperar).
Perante a junta médica que me questionou, o que é que eu "tinha", a minha resposta não deve ter agradado aos doutos senhores pois esperavam um rol de maleitas habituais em tais situações e levaram com "Não tenho nada!". Este dito permitiu-me estar em Lisboa um mês onde aprendi a apanhar o eléctrico para o Tosco. Nunca soube porque fui evacuado. Na altura tudo "estava bem" e tudo acabou em bem.
Luis, vamos ficar à espera que apareçam os tertulianos que foram personagens destas guerras que não fez vítimas nem recalcou ninguém.
Li agora do Jorge Cabral, a referência ao Ritz Club e ao Bolero. Quem escuta uma história de um
veterano de 69, escuta todas as
estórias dos outros contemporâneos . Rapaz das noitadas, tinha que ir a estes sítios todos, e a todos no mesmo dia, se se aguentava das pernas.
Compreendo muito bem porque o Jorge Cabral falhou como empresário da noite (**). Naquele tempo não era fácil.
Ao Ritz levei o
Manuel dos Twistes, Furriel Manuel Ferreira, a cortar o cabelo, depois de termos passado numa livraria ali no Jardim da Parada, comprar um poster do
CHE [Guevara], para levar para Teixeira Pinto, com embarque ás duas da manhã .
O Bolero tinha a tal sala em cima, onde se comiam uns pregos, e se escutava a tal
orquestra; acordeonista cego, baterista coxo, e um empregado de Braga danado para a brincadeira. Quando a banda estava no seu merecido descanso , invariavelmente atirava com a bandeja para o chão a fim de imitar o som do prato da bateria, gesto este que punha imediatamente o Cego a tocar. Brincadeira repetida vezes sem conta, mas que todos achavam uma graça do carago.
No Bolero as gajas alternavam em baixo enquanto as "famílias comiam em cima".
O Tosco,como já tentei dizer, era diferente de tudo.
Esperemos por uma memória a valer e que nos fale das histórias do Tosco (***).
Um Abraço
Jorge Félix
3. Comentário de L.G.:
Carlos, "estas poucas vergonhas" também fazem parte do nosso cadastro... Temos que as assumir. Fazer batota era limpar, branquear o nosso cadastro, como o António Ferro, o ministro da propaganda de Salazar, fez ao fado,
canção maldita das putas e dos chulos de Lisboa... E, depois, que
poucas vergonhas eram essas, quando comparadas com as
grandes golpadas de que fomos, directa ou indirectamente, vítimas ?
Jorge: Nota máxima para o teu segundo apontamento sobre o nosso roteiro da noite... Por que era de noite que carregávamos as baterias para enfrentar os pesadelos dos dias... Infelizmente não há, até ao momento, imagens do Tosco, do Bolero, do Ritz Club com os veteranos de 69 (e do Vat 69, que a marca do uísque marado que a gente emborcava)... Talvez se perceba: ali não havia
glamour, nem lantejoulas, nem champanhe francês, nem meninas que tocavam piano e falavam francês... Por ali passava a fauna da Guiné, a nossa fauna, esfomeada de sexo, de calor humano, de ternura, de liberdade... Não é fácil falar destas
poucas vergonhas, como diz o Carlos na brincadeira... Por isso, obrigado, Jorge, por dares o exemplo, por nos mostrares o caminho no regresso ao passado, por seres nosso guia e nosso cúmplice...
____________
Notas de L.G.:
(*) Vd. postes de:
30 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3380: Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras (10): Quando a guerra era com os copos... ou o elogio do Tosco, em Lisboa (Jorge Félix)
(**) Vd. postes de:
4 de Novembro de 2008 Guiné 63/74 - P3399: Estórias cabralianas (40): O meu sonho de empresário (falhado): a construção de uma tabanca-bordel (Jorge Cabral)
5 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3025: Os nossos regressos (7): Perdido, com um sentimento de orfandade, pelos Ritz Club, Fontória, Maxime, Nina... (Jorge Cabral)
(***) Não sobre o Tosco (que eu não conheci, frequentei apenas o Maxime, na primavera de 1971, e onde cheguei a ter uma garrafa de uísque marado...) mas sobre Bissau, cidade-bordel dos anos de 1969/70, escrevi algumas notas, já aqui publicadas:
14 de Novembro de 2007 >Guiné 63/74 - P2264: Blogue-fora-nada: O melhor de... (3): Carta de Bissau, longe do Vietname: talvez apanhe o barco da Gouveia amanhã (Luís Graça)
(...) Bissau: cidade-caserna, cidade-bordel
Bissau revisitada… Devo, antes de mais, confessar-te que, se acaso fugi da Guiné por uns dias, nem por isso deixo de sentir-me perseguido pelo seu fantasma. Sabes como é (ou, pelo menos, deves imaginar): uma incómoda sensação de estado de sítio (que nada tem a ver com a insularidade – aliás, pouca gente sabe que Bissau fica numa ilha), agravada, para quem aqui vegeta, pelos fantasmas dos foguetões que ainda há tempos flagelaram Bolama, a antiga capital colonial…
Bissau, cidade-caserna, cidade-bordel!... Para quê falar-te do tráfego (e do tráfico!) de carne branca sem qualquer carga erótica para lá do fetiche da cor da pele ?! De qualquer modo, o contrabando do sexo é negócio que vai de vento em popa - aqui funcionam as leis do mercado, a procura é muita e a oferta é variável ! – a par da quinquilharia oriental e sobretudo dos produtos nipónicos que ultimamente invadiram os free-shops cá do sítio, desde os Gouveia aos Taufik Saad, para quem o amendoim, o coconote e os panos de chita já foram chão que deu uvas… Enfim, o comércio da guerra e a guerra do comércio, uma parelha que sempre se deu bem em toda a parte!
Para quê falar-te dessas prostitutas que naufragam em todos os portos onde cheire a merda, a morte e a soldadesca, fugidas da miséria das ilhas de Cabo Verde e dessas outras ilhas de Lisboa e do Porto ?! Ou ainda dessas fêmeas, balzaquianas, que os tropas do ar condicionado mandaram vir da Metrópole e que passam, sequestradas, nos Wolkswagen e nos Mercedes pretos, conduzidos por soldados africanos – insólita imagem de jovens eunucos negros, subsaarianos, guardando as velhas odaliscas nos haréns dos sultões das Arábias!...
Não suporto, aliás, a visão desse branco asséptico, dessa cor neutra das metropolitanas cujo tom de pele tem qualquer coisa de viscoso como as paredes dos hospitais… Receio até que esteja a tornar-me racista ao contrário ou a caminhar para a misogenia, como aquele prisioneiro que, ao sair de Auschwitz, não conseguiu sequer beijar a mulher porque tinha horror a tudo o que era humano…
Decididamente não queria falar-te de mulheres (e, muito menos, das brancas que, aqui, no cu do mundo, povoam os nossos delírios palúdicos)… Mas como não, se elas são o único antídoto contra a angústia da morte ?!... As paredes das nossas casernas no mato estão forradas de posters de gajas nuas, loiras, de olhos azuis, formas esculturais e pele acetinada, que é “para um gajo não se esquecer da carne branca” (sic)…
Em contrapartida, a pomada antivenéria (e, claro, a penicilina, em doses de milhões) é o que mais se gasta nos nossos postos de caserna. O bordel é talvez a única instituição castrense verdadeiramente respeitável… Mas se os franceses mandavam para a Argélia putas de campanha juntamente com os seus legionários, nós, tugas, não temos esse problema: fornicamos sem preconceitos raciais, ou não fossemos “um país, muitos povos, uma só Nação”!...
Imagina, pois, Bissau como estância de repouso do guerreiro. Há aqui, de certo, um equívoco, um tremendo equívoco por parte do médico miliciano, que até é um gajo porreiro, capaz de dar umas baixas aos operacionais, não obstante as ameaças veladas do comandante de sector… Mas eu estou farto dos gajos porreiros, como ele, que joga bridge com os cabrões dos oficiais superiores, apostados em ganhar a guerra (leia-se: os próximos galões) à custa de ti, de mim e da nossa tropa-macaca… É que Saigão, meu caro, é o último lugar do mundo onde eu poderia esquecer o Vietname!...
De qualquer modo, para além duns furtivos raides ao Pilão, as únicas operações que aqui se realizam ainda são do tipo gastronómico. Enfim, a nossa velha filosofia epicurista segundo a qual o melhor que se leva desta vida é ainda o que se come e o que bebe. Eis-nos, portanto, tristemente reduzidos ao ciclo vegetativo , ou seja, aos camarões, às ostras e às verdianas (sim, por que essas pretas de 1ª, na nossa linguagem machista e racista, também são coisas que se comem!) (...).