quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3380: Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras (10): Quanda a guerra era com os copos... ou o elogio do Tosco, em Lisboa (Jorge Félix)

Jorge Félix
Ex-Alf Pilav Helis,
BA 12, Bissalanca,
1968/70,
hoje residente em Vila Nova de Gaia



1. Mensagem do Jorge Félix, com data de 27 de Outubro corrente:

Caro Carlos:

Se achares que o texto que segue pode ser postado ficarei satisfeito. Parece que ainda ninguém falou nesta vertente da Guerra.


2. Aquelas noitadas...

por Jorge Félix

Em 1969 a noite de Lisboa, tinha que ser à noite, escondia uma guerra que vou tentar recordar. Destaco três nomes: O Comodoro, o Café Gelo e o Tosco.

O Comodoro tinha a particularidade de receber o que de melhor tinha a Política de então. Da parte da tarde recebia os Velhos e de noite recebia a malta mais nova. (ponto final). Nos meus 20 anos aprendi muito no ninho dos Ballets Rose.

O Gelo vendia whisky a cinco escudos. Frequentado por Colonialistas, era o local onde se emborcava até mais não, mas onde se tinha que ter muito cuidado com o que saía da boca. Encerrava muito cedo.

O Tosco, meus amigos, o Tosco... era o local que mais fazia lembrar a ZOPS [zonas operacionais] de qualquer colónia em guerra.

Não eram pedidas evacuações pois já tinham sido evacuados. Só não havia tiroteio porque todos já eram vítimas. Ali só se matavam as mágoas, os desgostos, as vergonhas, as incapacidades...

No Tosco ninguém era bonito, todos se sentiam desfigurados.O Tosco era uma casa com gajas, pretas, mulatas e brancas (haviam brancas ?), que faziam de conta que percebiam de emboscadas e quadrícula, para na primeira volta da picada cravarem uma Taça.

No Tosco, apesar das meninas, o ambiente era de guerra. Era a Guiné , era Angola, era Moçambique, num tosco local, reunidos num só , a mostrarem as suas entranhas. Estranho, era palavra que não existia no Tosco. Tudo era possível, até falar de Deus...

No Tosco, ria-se muito, às vezes chorava-se. Havia muito barulho, havia música, havia como que por artes mágicas, silêncios sepulcrais. Até parece que alguns, sem o admitirem, nestas alturas sentiam medo.

No Tosco, apareceram os primeiros apanhados pelo clima.

O Tosco era muito pequeno e recebia gente muito grande. Do Exército, da Marinha e da Força Aérea, mas ninguém reparava. Ninguém reparava que todos eram deficientes. O choque pós-traumático ainda não tinha sido inventado.

No Tosco não havia lugar para certos gajos que nos ficavam a espreitar à saída.

O Tosco ficava na rua Conde Redondo, a meio da subida, onde o eléctrico proveniente da Estrela descarregava a lotação esgotada de deficientes das FA. Uns em cadeiras de rodas, outros de canadianas, outros às cavalitas, outros ...

Aqueles que alguma vez assistiram a este desembarque nunca o poderão esquecer. Mas se a chegada ao Tosco era dantesca, imaginem como era a partida.

Vou ficar à espera de alguém que queira acrescentar algo que me tenha escapado. Testemunha viva é um dos Conchas, músico que na altura era o proprietário e contratava as piquenas que nos iam aturando.

O Tosco recebia todos os dias umas dezenas de estropiados que faziam tratamento no Hospital da Estrela e tinham um mínimo de mobilidade.

Assisti a estes encontros no mês de Julho de 1969, altura em que também estive a ser observado pela medicina aeronáutica em Lisboa.

Parecido com o Tosco não havia mais nada.

Na Avenida da Liberdade, ali a 400 metros, ninguém sabia que existiam estes antros.

Felizmente que já não há razão para manter o Tosco activo.

Jorge Félix

3. Comentário de L.G.:

Obrigado, Jorge, pelo teu texto que é simplesmente antológico. Quando o último dos bloguistas postar o último poste, e nós decidirmos (ou alguém por nós decidir...) fechar o blogue, eu guardarei religiosamente o teu escrito. Por que ele é um verdeiro hino, de glória, de ternura e de humanidade, à noite lisboeta dos anos 60 onde, apesar de tudo, havia pequenos e inusitados espaços de liberdade, de afecto, de camaradagem. Não conheci o Tosco. Fico, depois de te ler, com uma intolerável, insuportável pena de nunca ter entrado no Tosco, de nem sequer ter ouvido falar do Tosco. Voyeurismo de sociólogo...

Infelizmente, também não encontrei nenhuma referência ao Tosco no Dicionário da História de Lisboa ou no Dicionário de História de Portugal (vd. as entradas Cafés, Prostituição, Tabernas, Tertúlias..). Objectos menores de temas menores para historiadores e sociólogos...

Do Café Gelo, e das suas tertúlias, sabe-se alguma coisa, por que era frequentado por literatos e artistas ligados ao surrealismo, por exemplo, gentes de outras guerras que não eram as nossas. Acabou ingloriamente, como muitos outros cafés, tabernas, bares e outros espaços públicos de Lisboa, catedrais do convívio, do lazer e da boémia, engolidos pela gula dos especuladores imobiliários, pela voracidade da banca, pelo desamor dos autarcas, ou muito simplesmente pela modernização que impôs a segregação sócio-espacial. Fomos expulsos do centro para a tristes periferias, as Porcalhotas, os Barreiros, os Montes Abraão...

Do Comodoro, também tenho uma vaga lembrança. Dos bares e cabarés da Praça da Alegria, ainda conheci um poucochinho. Mas do Tosco, meu Deus, ali no Conde Redondo... não, nunca ouvira falar! Imperdoável, Jorge!!!

Talvez o outro Jorge, o Cabral (o único, o autêntico, o verdadeiro, o nacional,o nosso..., que era um alfacinha de gema e um noctívago inveterado depois do seu regresso a penates, em 1971), te possa dizer algo mais sobre a geografia, a sociologia, a anatomia e a fisiologia da vida nocturna de Lisboa, ou mais especificamente sobre portos de abrigo como o Tosco (*), ali no Conde Redondo.

A verdade é que a guerra produziu uma desvairada fauna humana. Lisboa, capital do império, era então a grande cidade do export-import: exportava, para África, carne para canhão, e acolhia depois gente sofrida, ferida no corpo e na alma, estropiada, cacimbada, apanhada do clima, doente, revoltada, inadaptada, abandonada... Antros como o Tosco (como tu o qualificas) tiveram o seu papel, a sua função, o seu lugar: tinha que haver um lugar qualquer na cidade para os perdidos & achados da noite...

Isto não é dito por um qualquer de nós, bloguistas: é dito por um dos nossos glorios malucos das máquinas voadoras, o nosso Alf Mil Pilav Jorge Félix, que pilotava helis Allouette III, e que um belo mês do ano de 1969 estava em Lisboa, no 'estaleiro', a fazer exames de medicina aeronáutica (um luxo que não era, como o nome indica, para todos).

Concordo, entretanto, com o teu veredicto. Se a guerra acabou (e acabou mesmo, Jorge ?), já não há razões válidas para manter o Tosco activo. Acabou a guerra. Morreu o Tosco. Viva, apesar de tudo, a memória do Tosco e dos camaradas por lá passaram! (Sem esquecer as piquenas que nos aturavam e cuja função era despejar, nas nossas e delas taças e copos, as garrafas de champagne do Poço do Bispo e de uísque de Sacavém).

PS - Não é verdade, Jorge, que a gente não tenha já feito (ou tentado fazer) incursões por estes lados mais ínvios, mais intimistas, mais delicados, da guerra: os copos, o sexo, as tainadas, as loucuras, a solidão, o vazio das férias, a inadaptação do regresso... A nossa história também está por aí espalhada (e espelhada) na noite, nos copos de uísque marado e nas noites de amor barato, a começar por Bissau (**).

____________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes de:

7 de Julho de 2008 >Guiné 63/74 - P3028: Eu, o Jorge Cabral, o António Graça de Abreu e... o Levezinho, no velho/novo Maxime, com os Melech Mechaya (Luís Graça)

5 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3025: Os nossos regressos (7): Perdido, com um sentimento de orfandade, pelos Ritz Club, Fontória, Maxime, Nina... (Jorge Cabral)

13 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCC: Estórias cabralianas (8): Fá Mandinga no Conde Redondo ou o meu Amigo Travesti

(...) Na década de 80, dava aulas nocturnas numa Escola na Duque de Loulé e costumava descer a Avenida para tomar o Metro. Eis que uma noite, me vejo perseguido por um Travesti que me grita:- Meu Alferes! Meu Alferes! Alferes Cabral!... Tomado de terror homofóbico parei, negando conhecer a criatura, de longas pernas e fartíssimos seios. (...)

(**) Vd. alguns dos postes desta série, Estórias de Bissau:

(11 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1266: Estórias de Bissau (1): Cabrito pé de rocha, manga di sabe (Vitor Junqueira)

11 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1267: Estórias de Bissau (2): A minha primeira máquina fotográfica (Humberto Reis); as minhas tainadas (A. Marques Lopes)

14 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1278: Estórias de Bissau (3): éramos todos bons rapazes (A.Marques Lopes / Torcato Mendonça)

17 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1286: Estórias de Bissau (4): A economia de guerra (Carlos Vinhal)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1288: Estórias de Bissau (5): saudosismos (Sousa de Castro)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1289: Estórias de Bissau (6): os prazeres... da memória (Torcato Mendonça)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1290: Estórias de Bissau (7): Pilão, os dez quartos (Jorge Cabral)

24 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1314: Estórias de Bissau (8): Roteiro da noite: Orion, Chez Toi, Pilão (Paulo Santiago)

22 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1391: Estórias de Bissau (9): Uma noite no Grande Hotel (José Casimiro Carvalho / Luís Graça

2 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1484: Estórias de Bissau (10): do Pilão a Guidaje... ou as (des)venturas de um periquito (Albano Costa)

10 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1512: Estórias de Bissau (11): Paras, Fuzos e...Parafuzos (Tino Neves)

31 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1639: Estórias de Bissau (12): uma cidade militarizada (Rui Alexandrino Ferreira)

19 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2281: Estórias de Bissau (13) : O Pilão, a Nônô e o chulo da Nônô (Torcato Mendonça)

21 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2290: Estórias de Bissau (14) : O Pilão, a menina, o Jesus e os pesos que tinha esquecido (Virgínio Briote)

6 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2509: Estórias de Bissau (15): Na esplanada do Pelicano, a ouvir embrulhar lá longe (Hélder Sousa)

19 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2556: Estórias de Bissau (16) : O Furriel Pechincha: apanhado ma non troppo (Hélder Sousa)

Vd. ainda:

31 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1475: A chacun, sa putain... Ou Fanta Baldé, a minha puta de estimação (Vitor Junqueira)

14 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2264: Blogue-fora-nada: O melhor de... (3): Carta de Bissau, longe do Vietname: talvez apanhe o barco da Gouveia amanhã (Luís Graça)

17 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2272: As nossas (in)confidências sobre o Cupelom, Cupilão ou Pilão (Helder Sousa / Luís Graça)

2 comentários:

Anónimo disse...

Tosco!
Meio recuperado,já era um trabalhador de bem, ali mesmo na velha TAP no Conde Redondo. A vida mudou! Sou outro. Mas não tenho problemas e assumo o que vi e vivi. Morei num quarto, mesmo ao cimo da Conde Redondo, entrava na TAP às 9h00 em ponto e aproveitava a hora de almoço para ir obrigatóriamente fazer a barba.
Não era só o Tosco. Ali no largo de Alcântara também cantava fado a Espadinha e lá desciam eles da Estrela. Hoje é muito doloroso falar nisto. Mas nessa altura falava-se e era uma forma de estar-mos juntos, embora cacimbados e encharcados, não havia matas nem bolanhas, os copos, as mulheres os fados, faziam esqecer que uns estavam inteiros e outros estropiados.
Valeu a pena jogar à moeda para ver quem engatava a gaja, e depois levar com a mala no trombil, pois a malta da guerra só trabalhava por amor.
É verdade Luís aquilo foi mal aproveitado. Ali qualquer psicólogo ou se Doutorava ou saía pior que a malta.
Um abraço p´ró PilAve e para toda a tabanca como sempre:

Do tamanho do Cumbijã

Mário Fitas

Luígi disse...

Só para manifestar a minha surpresa por ver aqui referido o Comodoro, onde trabalhei como "Barman" antes de me tornar Soldado da Guiné...
Agradável, de todo o modo.
César Moreira Batista, António Lopes Ribeiro, entre muitos outros
passavam regularmente por lá.
Luis de Sousa