1. Mensagem do nosso camarada José M. Matos Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71, com data de 22 de Outubro de 2008, com mais uma colaboração para a História da sua Companhia (*).
Camarada Carlos
Antes do mais felicito a magnifica equipe que mantém o blogue. Não tenham pressa, pois, parece-me, ainda haverá muito para contar, novos tertulianos a apresentar-se na Tabanca Grande, já que este despertar de recordações e permuta de experiências, será diferentemente revelado por cada um dos que passaram pela terra guineense.
Parabéns pela vossa vontade em prosseguir.
Por último, solicito a indicação da localização do espaço Grandela (**).
Para essa equipe, e para todos os tertulianos, segue um grande abraço.
José Dinis
Aeroporto Internacional das Termas de Canquelifá. Distinguem-se, da esquerda para a direita: Morais, Dinis, Gonçalves (Corvo) e Azevedo, a furrielada dos 1.º e 2.º Pelotões.
2. Canquelifá - duas histórias e um ataque frustrado
Em Canquelifá, a localidade mais distante relativamente a Bissau, permanecemos com o 1.º Pelotão durante alguns dias. A estadia ali era muito agradável, apesar das fracas condições físicas do aquartelamento, em virtude da boa camaradagem com a Companhia local, participando o nosso pessoal nos serviços, e a divisão de tarefas incluía as actividades operacionais. Dormia-se bastante. As refeições tinham horas certas. O à-vontade era notório.
Contavam-se duas hitórias ali ocorridas, uma de desfecho trágico e ainda evidente, outra, verdadeiramente incrível.
A primeira, relacionava-se com um jovem furriel piloto aviador que ali se deslocou, aos comandos de um T-6, para eventual apoio aéreo, como era usual quando fazíamos determinadas saídas para o mato. Por vezes, até se prescindia da sua presença e o avião ia a Nova Lamego buscar géneros em falta. Havia, portanto, uma relação de amizade e cumplicidade com os pilotos. Pois nesse dia fatídico, serviu-se na messe um rancho melhorado, onde também afluiram wwiskies e cognaques, para festejar a condição aniversariante do piloto. Festa é festa e nos verdes vinte anos as festas costumam ser rijas. Com o fim da tarde a aproximar-se, o jovem foi acompanhado à pista pelos camaradas alegres e compinchas. Aos comandos da aeronave, deslizou, descolou do solo, fez movimentos de asas como quem acena na despedida e ainda quis brindar os amigos com um looping que, mal avaliado, acabou a trajectória contra uma árvore imensa dentro da localidade, do que resultou a fragmentação do aparelho e a morte do piloto.
A outra história teve origem durante uma flagelação. Uma mulher da população, seguramente de proeminente bunda, deslocava-se em busca de abrigo, quando foi apanhada por uma granada de morteiro que a atingiu sem rebentar e penetrou, alojando-se numa nádega. Foi evacuada e tratada em Bissau, cicatrizou a ferida e continuou a sua vida normal, milagrosamente conservada.
Mas não há duas sem três:
O Furriel Mecânico Auto-rodas de Canquelifá, gostava de fazer ralis, um tipo corpulento de S. Domingos de Rana cuja identidade não recordo. Essa veia para os carros transformados sublimou-a nos Unimogs da Companhia, que punha a preceito, montando as rodas com as jantes ao contrário, do que resultava um aumento da distância entre elas, tornando-se salientes em relação à carroceria e transformava os sistemas de escape nos chamados escapes livres, para que as fisionomias e os roncares dos motores fossem comparáveis com os dos cooper esses. Na picada era sempre a competir.
Uma ocasião, o 1.º Pelotão saíu para uma acção que terminava numa antiga morança a nordeste, onde foram recolhidos por viaturas expressamente deslocadas. Nós, do Foxtrot, ficámos no ripanço. Até que o capitão me chamou, explicou que uma viatura não tinha regressado, para eu reunir alguns homens e seguir para o local com um mecânico.
Lá chegados, deparei com uma GMC parada no meio das árvores, sem ter saído do local da recolha e, do meio do pessoal, surgiu o Corvo, com maus modos que só a ele é que aconteciam azares daqueles e nunca mais tomava o merecido banho. Rapidamente avaliou-se a situação. O semi-eixo da GMC partira. Disse então ao Corvo que mandasse o resto do meu pessoal, pois passaríamos a noite junto da viatura. E lá foi todo raivoso para o banho tardio.
Alguns minutos depois anunciava-se a chegada dos restantes elementos do Foxtrot, tal o banzé que as viaturas faziam através da savana densa. Com eles vinham os mecânicos que avaliaram a maleita, resolveram voltar a Canquelifá para desmontar a peça equivalente de outra viatura e, voltando ali, procederiam à substituição com facilidade. Que ainda iria dormir no aquartelamento, prometeram.
E seguiram, picada fora, ron-ron, derrapando, com as luzes acesas, que entretanto anoitecia.
Mais um bocado e... vrooom, a ruideira e as luzes que dançavam conforme os obstáculos da mata, anunciavam a aproximação dos técnicos. Montou-se o macaco, com os faróis de uma viatura iluminou-se o local de trabalho, ainda voltou a Canquelifá uma secção que troava na picada, para um lado como para o outro, em busca de qualquer coisa indispensável, até que a velha GMC, tratada da ferida, logrou deslocar-se pelos seus meios. Contentes da vida regressámos todos com a descontração da missão cumprida.
No dia seguinte recebemos a informação de que um bi-grupo IN preparava-se para atacar, mas desistiu da intenção, provavelmente, dissuadido por tanto movimento de viaturas, a indiciar deslocação de homens, cuja causa eles ignoravam ou ter-nos-iam apanhado à mão.
Alguns elementos do 2.º Pelotão - Foxtrot, de pé, da esquerda para a direita: Dinis, Abreu, Teresa e França. Em baixo: Lamarão (condutor), Rodrigues, Martins e Virgílio Sousa
O Abreu
Falar do Abreu não é tarefa fácil, porque o rapaz, quando arregimentado, apareceu no quartel como se não tivesse passado, vindo de nenhures, como um bébé, de tal modo se mostrava desenraízado e inadaptado às novidades. De facto, durante a recruta integrou outro pelotão e o António Abreu, um dos seus instrutores, referia-me a dificuldade que sentia relativamente ao instruendo. Dizia-me que o rapaz ouvia tudo, tentava proceder como os restantes, mas os seus movimentos eram tão desordenados, que geravam rizadas e chacota.E o pobre militar, que não falava com ninguém, numa mudez persistente, mesmo com os instrutores, mais se acabrunhava e metia-se consigo.
Era um problema, que, parecia-me, resultava de sempre ter vivido nos recônditos da Madeira, em alguma vala ou encosta perdida, num seio familiar restrito, humilde que trabalhava no campo e de alguma maneira isolado, dias e dias entregues a si próprios, tarefas a que o pequeno Abreu começou a ajudar desde que se conhecia. Não frequentou a escola que, embora vulgar na época, acentuou essa manifestação de bicho do mato, com um relacionamento tímido e muito limitado. Não saíra do lugar onde nascera, porque naquele tempo até as maleitas eram tratadas com mezinhas naturais.
Era uma fraca figura, mas rijo. Podiam dar-lhe pesos a carregar. A nada virava a cara. Sempre calado. Mas a ordem unida, essa era infinitamente mais difícil de articular do que pegar em pesos e carregá-los.
Às perguntas que lhe dirigiam, acenava com a cabeça em sinal negativo ou afirmativo e a cabeça baixa, revelava o seu desentendimento do que o envolvia. Nunca esboçou um sorriso. Assentava-lhe mal a farda por ser de baixa estatura, mas isso não o preocupava, nem ele queria usá-la assim para ridicularizar a tropa. Simplesmente não compreendia.
Pois bem, foi neste estado e com as dificuldades referidas que fez a recruta e a especialidade, jurou bandeira e integrou o 2.º Pelotão, mais tarde o Foxtrot.
Aprendeu rudimentos de ordem unida, nem sempre atinando com a apresentação de armas. Também aprendeu rudimentos na utilização da G-3, mas era manifestamente imprevisivel. No entanto a sua atitude era de constante disponibilidade. A sua expressão de jovem imberbe não se alterava, nem por alegria, nem por tristeza.
Durante a primeira deslocação para Canquelifá tomou contacto com as primeiras letras que, esforçadamente, alguns cabos tentavam transmitir aos companheiros analfabetos, durante as horas de repouso que ali desfrutávamos. E foi carregador de muita granada e pesos que os mais espertos lhe impingiam. Deixei que assim fosse, mas estimulava-o à revolta e raras vezes intervim, pois se por um lado abusavam, com limites claro, também o estimavam, puxavam por ele e eu esperava que se desinibisse e viesse a marcar posição.
Durante o período que passámos na Guiné, o Foxtrot tornou-se uma família e o Abreu passou a participar nas conversas, a ganhar um lugar e no final já sorria de gozo, quando rejeitava carga durante as saídas para o mato e rematava que já tinha carregado o sufuciente, agora, os restantes que trabalhassem para ele. Nada de mais justo e dava alegria geral verificar a sua evolução.
O Abreu bateu-se e venceu o desenraizamento. Por isso foi herói. E foi um bom produto do Foxtrot.
Fotos e legendas: © José M. Matos Dinis (2008). Direitos reservados
______________
Notas de CV:
(*) - Vd. postes da série de
31 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3157: História da CCAÇ 2679 (1): Apresentação (José Manuel Dinis)
13 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3203: História da CCAÇ 2679 (2): A caminho de Piche (José Manuel Dinis)
5 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3271: História da CCAÇ 2679 (3): Início da actividade operacional (José Manuel Dinis)
15 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3319: História da CCAÇ 2679 (4): 5.º dia, o meu baptismo de fogo (José Manuel Dinis)
(**) - Não só para o Matos Dinis, mas para quem interessar, o Espaço Grandela fica na Estrada de Benfica, 419, em São Domingos de Benfica, Lisboa.
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
Caro Matos Dinis
A minha Companhia, a CART 2732, era constituída maioritariamente por homens naturais da Ilha da Madeira. Na verdade, os de fora do Funchal, na altura conhecidos por "do campo", tinham alguma dificuldade de comunicação, fruto da sua pouca instrução escolar e por normalmente não conviverem com pessoas mais urbanas. A muitos deles a tropa proporcionou-lhes a primeira ida ao Funchal.
Eram excelentes camaradas, valentes e muito disciplinados.
Não vou esquecer mais aqueles valorosos companheiros que deram tudo o que puderam enquanto militares.
Carlos Vinhal
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