terça-feira, 2 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1396: Feliz Natal, Próspero Ano Novo, Adeus e Até ao Meu Regresso (11): 1969, na Missão do Sono, em Bambadincazinho (Luís Graça)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Destacamento de Nhabijões > 1970 > O furriel miliciano Henriques, da CCAÇ 12. Ao fundo, o reordenamento de Nhabijões, a que na época chamei etnocídio (1) (LG).

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.





Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Vista aérea da tabanca de Bambadincazinha (D), a sudoeste de Bambadinca, a escassas centenas de metros do centro (A)...

Em primeiro plano, a estrada nova (C) para o Xime (posteriormente alcatroada) e, mais acima, a antiga estrada (B), paralela à pista de aviação.... Atravessando a tabanca de Bambadincazinho (D), seguia-se em estrada (picada...) até aos aquartelamentos de Mansambo, Xitole e Saltinho (E). Vê-se ao fundo a bolanha de Bambadinca...

Era em Bambadincazinho que ficava a antiga Missão do Sono, em cujas instalações estava de serviço, todas as noites, um Grupo de Combate para velar pelo bom sono dos seus senhores oficiais superiores do batalhão que dormiam no quartel, a menos de um quilómetro... (LG).


Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.



Bambadinca, 24/25 de Dezembro de 1969...

1. É o nosso primeiro Natal na Guiné (2). Estamos em guerra. Não há feriados. Não se respeitam calendários, religiosos ou civis. No dia de Natal haverá um almoço, condigno, na messe de sargentos. Para nos fazer esquecer o tempo (miserável) que é o nosso. O sacana do vagomestre irá esmerar-se para nos trazer algumas iguarias que nos façam lembrar o Natal das nossas casas.

Em 24 de Dezembro de 1969, nas vésperas de Natal, logo de manhãzinha, vou integrado num dos dois grupos de combate da CCAÇ 12, que vão realizar uma rusga com cerco à tabanca de Mero, uma aldeia balanta, junto ao Rio Geba. Em cooperação com a autoridade administrativa de Bambadinca, dizem-nos. Não dei conta da presença do chefe de posto, caboverdiano, e bem dos seus odiados polícias administrativos.

Guardo, na memória, a hostalidade passiva om que a população nos recebe, a nós, tugas, e aos soldados fulas… Que pensará esta pobre gente balanta que não tem outro remédio senão fazer o jogo duplo ? De dia, acatam (mal) a autoridade administrativa de Bambadinca; à noite, recebem os seus parentes que estão no mato...

Apesar de alguns indícios suspeitos aos olhos do comandante da força, não foram detectados elementos IN que habitualmente vinha de Madina/Belel abastecer-se aqui. Para efeitos de controlo populacional, completou-se e actualizou-se o recenseamento dos habitantes de Mero. Acção Guilotina foi o nome de código da operação.

Nas duas semanas anteriores, o IN tinha desencadeado várias acções de intimidação (para usar um chavão das NT) contra as populações de Canxicame, Nhabijão Bedinca e Bissaque, a última das quais levada a efeito por um grupo que teria sido enquadrado por brancos (!) e que retirou para a região de Bucol, cambando o Rio Geba (o que é estranho, nunca detectámos as canoas eventualmente utilizadas pela guerrilha ou as populações sob o seu controlo).

2. Por outro lado, prevendo-se a possibilidade de o IN atacar os aquartelamentos das NT durante a quadra festiva do Natal e Ano Novo, foi reforçado o dispositivo de defesa de Bambadinca.

Assim, além da emboscada diária até às 1 a 3 horas da noite, a nível de secção reforçada num raio de 3 a 5 km (segurança próxima), passou a ser destacado 1 Gr Comb para Bambadincazinho (então em fase de reordenamento), todas as noites até às 6h da manhã, constituindo uma força de intervenção com a missão de fazer malograr o eventual ataque ao aquartelamento e/ou às tabancas da periferia, actuando pela manobra e pelo fogo sobre as prováveis linhas de infiltração e locais de instalação das bases de fogo do IN, ou no mínimo detê-lo e repeli-lo pelo fogo (este paleio é retirado da história da CCAÇ 12...).

A 26 de Dezembro de 1969, forças da CART 2520 (a unidade de quadrícula do Xime), reforçadas por um 1 Gr Comb da CCAÇ 12, realizam um patrulhamento ofensivo na região do Xime, Madina Colhido, Chacali, Colicumbel e Amedalai, sem detectacterm vestígios do IN (Op Faca Húmida).

A 30, SEXA COM-CHEFE, o Comandante Chefe, General António de Spínola, visita Bambadinca para apresentar cumprimentos de Ano Novo a todos os oficiais, sargentos e praças do CMD e CCS/BCAÇ 2852, e sub-unidades adidas, incluindo a CCAÇ 12.


3. 24 de Dezembro: Hoje é noite de Natal... Natal nos trópicos! Não consigo imaginá-lo sem aquela ambiência mágica que me vem do fundo da memória. É que do cristianismo terei apenas captado o sentido encantatório do Natal e a sua antítese, que é o universo maniqueísta da Paixão. Mas decididamente não vou fazer flash-back. Cortei o cortão umbilical a frio e da infância resta-me apenas a sensação do salto mortal.

Há, porém, certas imagens poéticas, recalcadas no subconsciente ou guardadas no baú da memória, que hoje vêm ao de cima. Por um qualquer automatismo. Ou talvez por ser Natal algures, far from the Vietnam, longe da Guiné, e eu passar esta noite emboscado. O que não tem nada de insólito: é uma actividade de rotina.

Mas é terrivelmente cruel a solidão deste tempo em que os homens se esperam uns aos outros nas encruzilhadas da morte, os dentes cerrados e as armas aperradas, em contraste com o bando alegre de crianças cabo-verdianas que, não longe daqui, da Missão do Sono (uma estrutura sanitária, agora militarizada, transformada em local de emboscada!)(3), entoam alegres cânticos do Natal crioulo ao som do batuque pagão.

No aquartelamanto, de que vejo as luzes ao fundo, ninguém se desejou boas festas porque também ninguém tem sentido de humor. Nem por isso deixou de celebrar-se a Consoada da nossa terra: um pretexto para se comer (o tradicional prato de bacalhau com batatas e grelos.. desidratados) e sobretudo para se beber (muito)....

- Hoji, festa di brancu, noite di Natal, manga di sabe! - lembra-me um dos meus soldados africanos, enquanto ao longe a artilharia do Xime e de Massambo faz fogo de reconhecimento.

E eu fiquei a pensar neste tempo de silêncio, de cobardia e de cumplicidade. Mas também de raiva. Como o Manuel Alegre, eu gostaria de poder dizer neste dia, todos os dias:

Mesmo na noite mais triste
Em tempo de servidão
Há sempre alguém que resiste
Há sempre alguém que diz não
(4).


___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de post de 28 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXCIV: Nhabijões: quando um balanta a menos era um turra a menos

(...) "Nhabijões, 20 de Dezembro de 1969:

"Nhabijões: um conjunto de tabancas, ao longo do Rio Geba, habitadas por balantas (uma delas por mandingas), sob duplo controlo (a expressão é das NT) e agora em fase de reordenamento (outro eufemismo: para mim, trata-se de puro etnocídio sociocultural, o que se está aqui a fazer, obrigando os pobres dos balantas e mandingas de Nhabijões a transferir-se da beira rio para uma zona de planalto, sobranceira ao Geba, e a viver em casas desenhadas e construídas por europeus) (...)".

(2) Vd. post anterior, de 22 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1390: Feliz Natal, Próspero Ano Novo, Adeus e Até ao Meu Regresso (10): Os Maiorais de Empada, 1969 (Zé Teixeira)

(3) Vd. post de 5 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1047: Alá não passou por aqui (Luís Graça)

(...)

Senhores e senhoras,
respeitável público
do Circo de Imbecilburgo:
Simplesmente, neste caso,
este homem não é um homem
é um palhaço,
é um soldado,
fardado,
de camuflado,
verde oliva, desbotado,
um número mecanográfico,
uma peça da engrenagem,
que na sua essência
cumpre ordens,
às vezes com coragem,
outras com medo,
é isso que lhe dói,
neste cenário
que não é cinematográfico,
mas também pouco conforme
com o RDM:
não é um mercenário,
nem um caso psiquiátrico,
não é o homem-aranha
nem o super-homem,
não é nenhum deus do Olimpo,
nem nenhum herói
da resistência
nem muito menos do 10 de Junho:
saíu, de noite, (mal) armado,
com os pés descalços dos seus nharros,
para a impossível Missão do Sono,
em Bambadincazinh0,
guardar as costas
dos senhores
de Bambadinca,
que dormem na cama,
em lençóis lavados,
fazendo p’la sua vidinha
(...).


(4) Do poema Trova do Vento que Passa, de Manuel Alegre (Praça da Canção, 1965), musicado por Adriano Correia de Oliveira.

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