quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P18022: Os nossos seres, saberes e lazeres (242): Em Vila de Rei, à procura de José Cardoso Pires (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 23 de Agosto de 2017:

Queridos amigos,
Entramos numa localidade com o objetivo e tudo se vira de pernas para o ar quando sentimos um acicate na curiosidade. Estava com a garganta a arder na naquele dia de canícula, esquecera a medida cautelar de andar com uma garrafinha de água no bolso, em desespero parei num café-restaurante de Vila de Rei. Vi a menção à biblioteca municipal de nome José Cardoso Pires, de cuja obra sou aficionado e que dele tive o privilégio de saborear pilhérias e jocosidades. Foi uma visita surpreendente que a todos recomendo, sem qualquer hesitação.

Um abraço do
Mário


Em Vila de Rei, à procura de José Cardoso Pires (1)

Beja Santos

Quis o acaso que naquela tarde de canícula, a caminho de Pedrógão Pequeno, o viandante sentisse a garganta a arder, a clamar por uma água refrescante. Entrou-se em Vila de Rei e súbito se deu por uma indicação da Biblioteca Municipal José Cardoso Pires. Dessedentado, o viandante pôs-se ao caminho, intrigado e feliz. Intrigado, por o autor de “O Delfim” ter o seu nome consagrado numa biblioteca, houve o acicate de saber se por ali pairavam memórias do grandessíssimo escritor; e feliz, na justa medida em que o viandante com ele privou e dele guarda as melhores recordações do seu espírito faceto, das suas pilhérias, da imensidade de comentários por vezes acervos, dentro e fora do olimpo de artistas e escritores.
É um belo edifício, tem alguém de muito acolhedor na receção, chama colega para ali ficar, será ele o guia por tal deambulação.




A primeira surpresa é encontrar ali um recanto de homenagem a um poeta e crítico literário hoje injustamente esquecido, João Maia, natural de aqui perto, da Fundada, a sua crítica literária foi das melhores do seu tempo. Ainda bem que a biblioteca aqui fixou a sua imagem de homem sereno, lhe editou até uma obra tocante de memórias de infância, recordações afetuosas do seu lugarejo, e lhe consagra um centro de estudos, deixou obra imensa em diferentes publicações, particularmente na revista Brotéria, da Companhia de Jesus, a que pertencia. Foi muito bom vê-lo presente e dignificado neste nosso mundo que funciona como uma passerelle de ídolos efémeros.


Entrevistado por Artur Portela, José Cardoso Pires falou do seu nascimento espúrio em São João de Peso, aldeia de Vila de Rei. Fez uma apreciação mazinha, um tanto cáustica, do evento: “Naturalmente que vir ao mundo num estabulozinho sem ser por milagre mariano é uma maldição que fica para o resto da vida. Miséria extrema, daquela que só é possível imaginar nos povoados esquecidos do mapa. À falta de melhor, o meu avô repartiu o nome de filhos por padrinhos que os pudessem proteger, como aconteceu com o meu pai. Com a exceção do meu pai, todos os filhos do meu avô tiveram de emigrar para os Estados Unidos depois de terem servido de mão-de-obra infantil nas ceifas do Alentejo. Foram pastores, foram marçanos, foram tudo, até conseguirem juntar dinheiro par a viagem”. E, mais adiante: “Eu só nasci no campo porque a minha mãe, que era das Beiras, tinha a obsessão das origens. Quando estava grávida deixava Lisboa e fazia como os salmões: subia a contracorrente para ir ter os filhos lá na terra das origens”.

José Cardoso Pires fez amizades com os maiores artistas do seu tempo, Júlio Pomar deixou dele este belíssimo quadro.



A biblioteca é um foco de atração, o autor de “Cartilha do Marialva” está sempre à mão de semear qualquer leitor. Segue-se para o espaço a ele dedicado e é com imenso prazer que se para diante do óleo que lhe consagrou Victor Palla, arquiteto, pintor, designer, fotógrafo e editor, entre algo mais. Ainda hoje o viandante procura os seus trabalhos, não há bibliófilo que não revolva o céu e a terra à procura das suas fotografias e das capas dos livros que ele concebeu.




Os herdeiros de José Cardoso Pires ofereceram alguns dos seus bens preciosos, a sua máquina de escrever, livros autografados de outros escritores, traduções dos seus livros, condecorações, fotografias, recordações inolvidáveis.

Fortuito ou não o nascimento deste grande escritor em São João do Peso, permitiu que estes bens estejam aqui ao alcance de quem vive em Vila de Rei ou visita a biblioteca. Estão aqui todos os seus livros. Em jeito de despedida, apetece recordar o louvor que dele teceu outro magnífico das letras e seu companheiro de paródias, António Lobo Antunes:
“Quando anoitece, José Cardoso Pires começa a ganhar consistência no interior da roupa, íntimo de barmen e do labirinto estranho em que Lisboa se transforma, balizada de chafarizes e polícias que perderam, desde há séculos, o costume de sorrir. As árvores pingam trevas em cima de nós, os prédios aproximam-se, como as ovelhas, para adormecerem, encostando umas às outras os quadris das varandas (…) Às duas da manhã, quando as rugas, piedosamente apagadas pela ausência de sol, fazem de nós um grupo de adolescentes à espera da primeira comunhão e de uma nova garrafa, e os empregados dos bares circulam entre as mesas com a diligência das senhoras que procedem à recolha das esmolas no ofertório das missas, saímos para o ressonar a estores soltos dos bairros de Lisboa”.
Em Vila de Rei e pelo país fora ele convida quem quer que seja a pegar nas suas obras, dá gosto ler praticamente tudo quanto escreveu, para poder sentir a sinceridade de uma das suas muito apuradas reflexões: “O derrotismo assenta na negação, o ceticismo assenta na dúvida, e duvidar é um apelo à revisão, um princípio de análise”.

Continua
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18001: Os nossos seres, saberes e lazeres (241): As aldeias serranas da Serra da Lousã (Mário Beja Santos)

terça-feira, 28 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P18021: Manuscrito(s) (Luís Graça) (130): Lisboa com suas casas, de Álvaro de Campos / Fernando Pessoa













Lisboa, vista do nº 1 da Travessa do Ferragial, 13 de novembro de 2017. O edifício é o da famosa "Cantina das Freiras", da ACISJF - Associação Católica Internacional ao Serviço da Juventude Feminina.  É um dos sítios mágicos de Lisboa, com um "self-service" no último andar, com uma vista sublime sobre Lisboa e o Tejo, enquanto se almoça por meia dúzia de euros!,,, Nos primórdios, há 40 anos atrás, era uma espaço exclusivamente reservado a raparigas que trabalhavam na zona e vinham aqui aquecer a comida da sua lancheira num 
pequeno fogão a gás.  Hoje, a "cantina das freiras", como é carinhosamente conhecido,  é um serviço aberto a toda a população, incluindo turistas...  De 2ª a 6ª feira, das 12h00 às 15h00. É uma das últimas "cantinas sociais" de Lisboa: ir lá almoçar é também "ser solidário" e ajudar a missão da ACISJF. A comida, caseira, é uma delícia. E há bastante mesas, dentro e fora (terraço).

Fotos (e legenda): © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Lisboa com suas casas

Lisboa com suas casas
De várias cores,
Lisboa com suas casas
De várias cores,
Lisboa com suas casas
De várias cores ...
À força de diferente, isto é monótono,
Como à força de sentir, fico só a pensar.

Se, de noite, deitado mas desperto,
Na lucidez inútil de não poder dormir,
Quero imaginar qualquer coisa
E surge sempre outra (porque há sono,
E, porque há sono, um bocado de sonho),
Quero alongar a vista com que imagino
Por grandes palmares fantásticos,
Mas não vejo mais,
Contra uma espécie de lado de dentro de pálpebras,
Que Lisboa com suas casas
De várias cores.

Sorrio, porque, aqui, deitado, é outra coisa.
À força de monótono, é diferente.
E, à força de ser eu, durmo e esqueço que existo.
Fica só, sem mim, que esqueci porque durmo,
Lisboa com suas casas
De várias cores.

Álvaro de Campos [1934]


In: Fernando Pessoa: Poesia de Álvaro de Campos
Edição de Teresa Rita Lopes
Assírio & Alvim,

Lisboa, 2002
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Nota do editor:

Último poste da série > 13 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17964: Manuscritos(s) (Luís Graça) (129): o deus-sol ou... quem disse que uma imagem vale mil palavras ?...

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P18020: (Ex)citações (327): MiG russos e pilotos do PAIGC: mitos e realidades (José Matos / C. Martins / Cherno Baldé / Luís Graça)


O MiG 17, de origem russa, que felizmente ninguém viu na Guiné, durante a guerra colonial...

Fonte: Cortesia de Wikipedia  (Foto: copyleft).


Seleção de comentários ao poste P18006 (*)


1. Tabanca Grande / Luís Graça
O mítico e saudoso comandanet Pombo, de seu nome compleeto
José Luís Pomo Rodrigues (1934-2017).
Foto de Álvaro Basto (2008)


A notícia do "Daily Telegraph", de 2 de agosto de 1973, da autoria do correspondente em Lisboa, o jornalista Bruce Loudon (, segundo a qual a guerrilha estava "apenas a seis meses de atingir uma capacidade de ataque aéreo com caças MiG russos”) nunca a vi confirmada...

Pergunta-se: (i) onde é que estavam esses 40 guerrilheiros do PAIGC a receber cursos de pilotagem na Rússia?; (ii)  quem foram eles?; (iii) como se chamavam?; (iv) como é que foram (se é que foram...) aproveitados depois da independência?; (v) por que é que o Luís Cabral foi buscar um camarada nosso, o nosso saudoso José Luís Pombo Rodrigues (1934-2017), para pilotar o seu "jacto" presidencial, o Falcon, oferta dos suecos (salvo erro...)?

Recorde-se o que ele nos confidenciou tempos antes de morrer:

(...) "O comandante Pombo privou com os dois, o Luís Cabral e o 'Nino' Vieira. Dos dois era inclusive 'amigo'. Ao ‘Nino’ Vieira tratava-o mesmo por tu. E o Pombo continuou a ser o comandante Pombo, depois da independência da Guiné-Bissau. Terá havido um acordo entre as novas autoridades de Bissau e o governo português para que ele ficasse na Guiné... O PAIGC não tinha pilotos (muito menos MiG ou outros aviões). O comandante Pombo pilotava o pequeno Falcon que fora oferecido ao Luís Cabral, já não sei por quem. Este gostava muito dele, cmdt Pombo, e sempre que viajava com ele trazia-lhe uma garrafa de... champagne." (...)

O Luís Cabral, se tivesse os tais 40 pilotos, acabados de treinar pelos russos, não precisava de nenhum "tuga" para pilotar o seu Falcon!... A menos que não tivesse confiança nenhuma na competência deles e dos seus instrutores russos...

2. Caria Martins:

Vários mitos sobre os MiG:

(i) o PAIGC não tinha dinheiro para comprar e manter os ditos;

(ii)  a URSS não iria vender porque iria internacionalizar o conflito (não esquecer que a Guiné estava sob administração portuguesa, reconhecida pela ONU);

(iii) o  Sekou Touré não iria permitir que o PAIGC os tivesse, se não confiava no seu próprio exército muito menos confiava no PAIGC;

(iv) não era verdade que o PAIGC tivesse alguém a ter instrução para piloto.

(v) onde ficaria a base aérea para operarem?

3. Cherno Baldé:

Tudo isso que vocês dizem é pura verdade: que o PAIGC não tinha dinheiro para comprar e manter os ditos MiG; que a URSS não os iria vender porque iria internacionalizar o conflito, etc.

Mas, "n'empêche que",

(i) o PAIGC já tinha armas anti-aéreas das mais modernas (Strela) que limitavam seriamente as actividades operacionais dos aviões no CTIG;

(ii) tinham conseguido colocar todas as guarnições (quartéis) situadas ao longo das duas fronteiras em situação de perigo permanente e de quase estado de sítio;

(iii) no campo diplomático, tinham conseguido colocar Portugal numa situação insustentável e de permanente pressão internacional...

E, ainda vocês conseguem manter essa atitude de eterno menosprezo pelas suas capacidades de acção e de adaptação as diferentes situações.

Sobre a operação "Mar-Verde", Amílcar Cabral escreveu na sua mensagem de novo ano de 1971, sobre as causas do falhanço da operação:

(...) Primeiro, devido à pronta resposta do povo irmão da Guiné e das suas forças armadas";  (...)  "mas, também, é preciso descobrir, no próprio seio da mentalidade portuguesa, a causa interna, que motivou a sua ventura e, consequentemente a sua derrota. Ela reside, profundamente, no desprezo secular que sempre manifestaram pelo Homem africano. Esse desprezo, que se traduziu eloquentemente na célebre frase de Salazar - "a África não existe".

(...) Como é de vosso conhecimento, também eu (bem como toda a minha comunidade que se aliou e apostou em Portugal) perdi (perdemos) aquela guerra e não adianta questionar se militar ou politicamente. Desde os meus 14/15 anos que jurei a mim mesmo que, custasse o que custasse, nunca faria parte do PAIGC. Detestei-o pelo que fez e pelo que representava na sua essência.

4. José Matos:

Sobre os pilotos guineenses é óbvio que a preparação deles acabaria por ser semelhante aos da Guiné-Conacri, ou seja, sabiam levantar e aterrar o MiG, pouco mais que isso. Portanto, nunca seriam grande ameaça para as forças portuguesas. Nem se sabe se teriam depois MiG para pilotar, portanto, tudo isso foi inflacionado…

Quando se deu a independência os que estavam na URSS devem ter voltado sem acabar o curso de MiG e portanto não tinham qualquer competência para pilotar um Falcon. Não admira que tenham contratado o Pombo Rodrigues…

Meu caro Cherno, a questão dos pilotos guineenses e mesmo outros africanos, nada tem a ver com ser africano. O problema tem a ver com a formação de pilotagem que era dada a estes candidatos a piloto na URSS e depois com a própria capacidade para sustentar as aeronaves. O caso que conheço bem era o da Guiné-Conacri que era uma desgraça e que eu faço referência neste artigo:
https://www.revistamilitar.pt/artigo/1017 (***)

Portanto, o problema era a curta formação que tinham na URSS que fazia com que as aptidões de pilotagem e a experiência de voo fossem muito baixas e não permitissem tirar grande rendimento das aeronaves. (**)

Além disso, os próprios MiG estavam muitas vezes inoperacionais por deficiências de manutenção e falta de capacidade em sustentar a frota, o que piorava ainda mais as qualificações dos poucos pilotos para pilotar os aviões. Portanto, não vejo que fosse muito viável o PAIGC ter uma força aérea operacional na Guiné-Conacri e acho que toda essa questão foi inflacionada na época como estratégia de propaganda…(***)
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Notas do editor:


(*) Vd. poste de 23 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18006 José Matos: As negociações secretas do acordo dos Açores em 1974: o caso da central nuclear. "Revista Militar", nºs 2581/2582, fevereiro / março 2017

(**) Último poste da série > 29 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17913: (Ex)citações (326): CCAÇ 17, uma companhia da "nova força africana", baseada em pessoal manjaco


15 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15114: Inquérito online: num total de 86 votos apurados, mais de metade (53,5%) diz que que no seu tempo "já se falava da existência de aviões inimigos nos céus [do CTIG]"... Mário Gaspar, ex-fur mil, da CART 1659, garante que viu 3 MiG no cruzamento de Gadamael/Guileje, no final da comissão, em meados de 1968... Ao Jorge Canhão (3ª C/BCAÇ 4612/72, Mansoa e Gadamael, 1972/74) mostraram-lhe, na secretaria, fotos de MiG 15 e MiG 17 para comparar com os nossos Fiat G-91

11 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15103: FAP (89): Op Mar Verde: e se os MiG, que existiam de facto, mesmo que pouco operacionais, tivessem sido localizados e destruídos ? (José Matos)

10 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15100: FAP (88): A propósito da Op Mar Verde, dos MiG e do artigo do José Matos: Labé ainda hoje não tem uma pista capaz de receber MiG, se eles existiam mesmo só podiam estar em Conacri...Será que a malta foi mesmo ao aeroporto ? (António Martins de Matos, ex-ten pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74)

9 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15092: FAP (87): a ameaça dos MiG na guerra da Guiné (José Matos, Revista Militar, nº 2559, abril de 2015) - IV (e última) parte

Guiné 61/74 - P18019: Blogpoesia (540): Tempos duros em que as saudades apertavam (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor Auto do BCAÇ 3872)



1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 25 de Novembro de 2017:

No mês de Novembro de 1972 morre numa mina, entre Galomaro e Saltinho, o 1.º Cabo PELREC Teixeira; são transferidos para o hospital de Bissau o Carlos Filipe e o seu comandante de pelotão, alferes Mota, que vem a falecer dois dias depois.
Foi um tempo duro em que as saudades apertavam e, em sentido figurado, também se morria de amor.

Um abraço
Juvenal Amado


Meu amor morro de saudades

O papel fino
Letra redonda tão harmoniosa,
Feminina sem segredos
Água fonte dos meus sentidos
Cheirava a ti o papel
Lá estavam os iis com corações
A tua escrita tinha aroma de pêssego
Sabia onde tinhas colado a tua boca
O teu sabor a maçã
Perfume dos nossos lugares
Erva fresca pinheiro e eucalipto
Relia o cabeçalho 
- Meu querido... Morro de saudades 
meus olhos perdiam-se nos iis com corações 
Como sobrevivemos longe 
Como suportamos a longa espera 
Guardava as tuas palavras 
Enquanto aguardava o regresso a ti
Doía-me a ausência de nós
Na solidão da noite tudo parecia irreal
Fustigavam-me todas a dúvidas
Os meus fantasmas ganhavam formas
Vagueavam entre o suor e o calor
Voltava a ler a magia nas tuas palavras
- Meu querido… morro de saudades
Guardava-te junto ao peito
Nunca te amei tanto
e…
Também eu morria de saudades
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de Novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18015: Blogpoesia (539): "As rampas...", "Apanágio de poucos..." e "Arame farpado...", poemas de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P18018: Notas de leitura (1018): "40 anos de impunidade na Guiné-Bissau", relatório da responsabilidade da Liga Guineense dos Direitos Humanos, publicado em 2013 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Março de 2016:

Queridos amigos,

Aqui se dá conta das restantes matérias versadas no relatório "40 anos de impunidade na Guiné-Bissau", da responsabilidade da Liga Guineense dos Direitos Humanos, arrisco a considerar tal relatório como um dos documentos de leitura obrigatória para o melhor entendimento do período mais recente da história da Guiné-Bissau.

O leitor tem tudo a ganhar em procurar o site desta organização não governamental que presta um relevantíssimo trabalho aos direitos cívicos e à denúncia dos contínuos atropelos ao normal funcionamento das instituições democráticas.

Um abraço do
Mário


40 anos de impunidade na Guiné-Bissau: uma leitura do relatório da Liga Guineense dos Direitos Humanos datado de 2013 (2)

Beja Santos

Trata-se, não é de mais insistir, dum relatório de elevadíssima qualidade que carreia dados que são obrigatórios conhecer para a história mais recente da Guiné-Bissau. No texto anterior, encontramos a definição de impunidade, uma tipologia alargada para formas de impunidade, o nexo entre verdade, memória e reparação, uma análise de uma questão aparentemente inesgotável e que tem a ver se são os militares o os civis os principais responsáveis pela sociedade sem regras em que se transformou a Guiné-Bissau.

No presente texto far-se-á uma abreviada digressão sobre o uso abusivo das iniciativas de amnistia, a inoperância do poder judicial, a incapacidade do Estado exigir boas contas aos cidadãos, encontraremos referências ao narcotráfico e aos assassínios na cúpula do Estado.

Não é incomum haver atos de banditismo praticados pelos militares, o que obriga os populares a reagirem, constituindo forças paralelas. São imensas as áreas da Guiné que não dispõem de forças de segurança, nessas regiões a impunidade é total. Noutras localidades,  e dado o disfuncionamento do setor judicial, são os polícias que atribuem a si competências para administrar a justiça sem ter preparação para tal.

Periodicamente, surgem iniciativas de amnistia geral, que são mais que formas desvalorizadas e equívocas de reconciliação nacional. Em 10 de Outubro de 2004, o General Veríssimo Seabra e o seu adjunto foram assassinados. Dias depois assinou-se um memorando de entendimento onde, entre outras medidas, se propunha promover diligências junto do Presidente da República para um indulto ou comutação de penas em militares envolvidos noutros atos de insubordinação, é o cúmulo do desafogo.

A fragilidade do Estado revela-se noutras formas de impunidade: a aceitação das mulheres em serem espancadas pelos maridos ultrapassa os 50%, é como se a violência com base no género fosse algo natural, como natural parece ser a violação e o casamento forçado. A mutilação genital, mesmo sendo alvo de profunda condenação, continua a ser praticada e muitas vezes às escondidas. 57% das crianças com idade entre 5 e 14 anos estão envolvidas no trabalho infantil, a situação é mais grave em meios rurais.



Passando para o tema da má gestão até chegar aos crimes económicos, o relatório chama a atenção para instituições inoperantes. Veja-se o Tribunal de Contas, criado há mais de 20 anos, entre as suas principais competências está a de responsabilizar as pessoas que são gestoras das coisas públicas mas que se aproveitam para seu aproveito próprio. O tribunal nunca aplicou qualquer medida, nunca emitiu uma nota de pagamento de multas, não pode sancionar.

Referindo-se ao narcotráfico na culpa do Estado, o relatório lembra vários casos de impunidade como o de António Indjai e o caso das aeronaves retidas no aeroporto Osvaldo Vieira em Abril de 2008. A situação conta-se em breves palavras. O governo fora avisado da presença de duas aeronaves no aeroporto. Do relatório oficial produzido pelo ministério público sobre o caso era claramente indicado que as chefias militares tinham desautorizado as autoridades aeroportuárias. Descarregaram-se de uma das aeronaves mais de 400 caixas que, segundo o comandante Ibraima Papa Camará, continham “medicamentos” para os militares. No descarregamento esteve envolvido um criminoso venezuelano procurado pelas autoridades mexicanas que pediram a sua extradição, em vão.

Estamos perante um caso ilustrativo da violação do espaço aéreo guineense e do desrespeito da soberania da Guiné-Bissau com a conivência do Estado-Maior das Forças Armadas.

O relatório espraia-se sobre a multiplicidade de formas de violência manifestadas antes, durante e após a luta de libertação, é um historial de torturas, denuncias, golpes inventados, julgamentos fantoches, conspirações inexistentes. Assim se chegou ao país desmantelado após o conflito político militar de 1998-1999 e ao caos subsequente. Escreve-se no relatório:

“O pós-guerra não trouxe a consolidação da paz. Pelo contrário, na década entre a deposição de Nino Vieira em 1999 e o seu assassínio em 2009, registaram-se pelo menos dois golpes de Estado, a eliminação de um presidente da República e de três Chefes do Estado-Maior das Forças Armadas, tendo a Guiné-Bissau conhecido 5 Chefes de Estado, 11 governos e outros tantos primeiros-ministros sem que nenhum deles tenha concluído o mandato”.

Também o relatório recorda a vaga de assassinatos de 2009, seria uma nova estratégia de liquidação física dos adversários políticos ou abertura de novo círculo de vingança cujas causas e alvos eram desconhecidos até à consumação do ato. A 26 de Dezembro de 2011 tornou-se pública mais uma tentativa de golpe de Estado durante a qual dois agentes das forças de segurança foram assassinados sem motivos plausíveis. Um grupo constituído para mais de 2 militares, incluindo praças, oficiais subalternos e superiores, foi ilegalmente preso nos calabouços da base aérea de Bissau e no aquartelamento militar de Mansoa. Muitos destes detidos apresentavam sinais de espancamento e ferimentos de pequena gravidade. Também em resultado desta alegada tentativa de golpe desapareceu Roberto Ferreira Cacheu, antigo Secretário de Estado da Cooperação e deputado. Nunca se descobriu o seu paradeiro. Três meses depois do alegado golpe de Dezembro de 2011, o Coronel Samba Djalo, antigo chefe da Contra-Inteligência Militar, foi atingido mortalmente por um grupo de indivíduos na sua residência.

Não há processos, desaparecem os inquéritos, ninguém é considerado culpado ou responsabilizado. Reina a arbitrariedade, veja-se este caso descrito no relatório: “A política de interferência e intimidação de outros órgãos do Estado, do poder judicial ou simplesmente de fações rivais no seio de militares ficou patente no decurso da alegada sublevação militar de 1 de Abril de 2010. O antigo Chefe do Estado-Maior, Vice-Almirante José Zamora Induta, e o ex-Chefe dos Serviços da Contra-Inteligência Militar foram presos arbitrariamente nas instalações prisionais militares em Bissau e Mansoa, a mando do Estado-Maior General das Forças Armadas. Posteriormente, o processo contra aqueles oficiais foi formalmente transferido para o Tribunal Superior Militar mas, na prática, as visitas dos familiares, dos médicos e mesmo dos advogados eram admitidas sob prévia autorização do Chefe do Estado-Maior”.

E assim se chegou ao golpe de Estado de 12 de Abril de 2012 em que um autointitulado comando militar justificou o golpe como uma medida de defesa legítima face às tropas angolanas no país que teriam um plano para destruir as Forças Armadas guineenses em conluio com Carlos Gomes Júnior.

Este golpe de Estado constituiu mais um retrocesso na vida do país. Até às eleições de 2014 esta ditadura militar ilegalizou a liberdade de expressão, de manifestação e de reunião. É por demais conhecido o contexto em que ocorreu o golpe. Houvera eleições presidenciais antecipadas em 18 de Março de 2012, por morte de Malam Bacai Sanhá. As Forças Armadas não escondiam o seu profundo descontentamento pela candidatura do Primeiro-Ministro Carlos Gomes Júnior à presidência da República. No decorrer deste golpe a residência do primeiro-ministro foi totalmente vandalizada.

O Secretário de Estado dos Combatentes da Liberdade da Pátria, Brigadeiro-General Fodé Cassamá, foi sequestrado e espancado em Farim por ser infundadamente acusado de estar a mobilizar os rebeldes de Casamansa para um eventual contragolpe. Estes três políticos foram libertados dias depois graças à intervenção da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CDAO). Entretanto, vários dirigentes procuravam refúgio nas instalações diplomáticas, tanto governantes como dirigentes do PAIGC.

No final do relatório cujo título é “Quarenta anos a matar Cabral” exprime-se que ainda se acredita na luz ao fundo do túnel: 

  “A República da Guiné-Bissau existe porque os guineenses quiseram. Há um elemento forte de memória da dignidade dessa luta na esperança que a maior parte dos entrevistados no estudo sobre a impunidade colocam na possibilidade de resolução da crise estrutural que atravessamos. Essa esperança é formulada de formas diferentes mas que convergem num sentido: ainda não é demasiado tarde mas começa a ser tarde para escolher outro caminho, outro modelo, outro futuro”.
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Nota do editor

Vd. poste anterior de 20 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17991: Notas de leitura (1016): "40 anos de impunidade na Guiné-Bissau", relatório da responsabilidade da Liga Guineense dos Direitos Humanos, publicado em 2013 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 24 de novembro de 2017 >
Guiné 61/74 - P18009: Notas de leitura (1017): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (10) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P18017: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 9 e 10: Bissau: da coca-cola (bebida proibida na metrópole) a uma desastrada ida ao Pilão...



Guiné > Bissaau > Av República > Postal ilustrado >: Av da República  (Hoje, Av Amílcar Cabral) > Ao fundo, o Palácio do Governador, e a Praça do Império; do lado direito, a Catedral de Bissau (O postal era uma Edição Comer, Trav do Alecrim, 1 - Telef. 329775, Lisboa).

Fotos e texto: © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Foto ( esquerda) e hoje (à direita, em baixo):  o José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74.

Nascido em Penafiel, em 1950, criado pela avó materna, reside hoje em Amarante. Está reformado como bate-chapas. Tem o 12º ano de escolaridade. Foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor, com dois livros publicados (um de poesia e outro de ficção).  Tem página no Facebook. É membro nº 756 da nossa Tabanca Grande . [Foto atual, a seguir, à direita].


1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva:


Sinopse (*):

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;

(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da Via Norte à Rua Escura.

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;

(v) no dia  2 de julho de 1972, domingo,  tem licença para ir visitar Bissau...


9º Capítulo > COCA-COLA


Bissau. Capital da Guiné. Fiquei admirado com a cidade. Até ao escrever sobre ela, disse! “É uma cidade pequena mas engraçada”.

Mencionei vários dos produtos que ali estavam à venda nas lojas: “O que tem aqui mais à venda são tapetes, obras em madeira, porcelanas, colares e pulseiras mais alguns artigos como rádios máquinas de tirar fotografias e outras coisas”.

Recordo-me que uma das primeiras coisas que comprei foi um colar para a minha namorada e um postal com a Avenida da República, o Palácio do Governador (Na altura o General António Sebastião Ribeiro de Spínola) e a Catedral.

Nos bares havia bebidas frescas. Tive muito receio de beber Coca-Cola. Embora já tivesse ouvido falar nela, na metrópole era proibida e eu desconhecia o sabor dessa bebida. Nos primeiros dias, só bebia Fanta.

Podem considerar estúpido, o que vos digo neste capítulo. Não fui só eu a ter receio de beber Coca-Cola. Por certo, reparam numa certa subserviência que eu sentia, perante a ordem vigente. Se algo era proibido por lei, cumpria a lei. Asseguro-lhes, sem vergonha de o dizer, que era um autêntico ignorante do mundo, que ultrapassava os seus limitados horizontes. Lia muitos livros, mas nenhum era proibido e embora, às vezes, as dúvidas me assaltassem, ainda não tinha a noção nem o conceito de democracia ou liberdade. Mais para diante, vão perceber onde altero o paradigma. Entretanto, obedecia ao que me era ordenado e é claro, precisei de ir para a Guiné, para me ser permitido beber Coca-Cola. Não admira que muitos outros partissem para outros países, para lhes ser permitido ter outras coisas. Também foi lá que eu, e muitos outros, aprendemos que sem luta não há liberdade para os povos.

Logicamente, quando fiz uma encomenda para mandar o colar à namorada, incluí algumas latas dessa bebida. Creio que ela as bebeu, porque um irmão, que na época tinha regressado da sua comissão em Moçambique, lhe afirmou que não era uma bebida perigosa.

O obscurantismo sempre foi a principal premissa, para que os ditadores se prolongassem à frente dos destinos do povo; mesmo um produto corriqueiro intimidava. Ter um povo culto é o Maior receio de quem manda e a Maior ameaça para o nepotismo.

O interessante é que, após todos estes anos, ainda se diz que a Coca-Cola é prejudicial à saúde. Ironias!

Socorro-me do que escrevi naqueles dias, estupidamente perdidos, em que misturei algum drama com comédia, para que estes meus relatos, perdurem na memória. Não sendo um erudito, tento dar-lhes o meu testemunho com palavras simples, com a certeza de que tudo o que lhes relato aconteceu na realidade. Agora não mostrem isto à minha família. Vamos até ao Pilão.


10º Capítulo > O PILÃO? QUE SUSTO!

Parecia uma autêntica carraça, aquele meu amigo de armas. Por uma mera casualidade, encontrámo-nos sucessivamente. No CICA 1, no Regimento de Cavalaria nº 6, no Regimento de Transmissões, RAL 5 e, por fim, em Cumeré. O engraçado é que não pertencíamos à mesma Companhia, ou Batalhão. Pois bem, fomos os dois. Imberbes soldados com meia dúzia de dias de experiência em África, armados em conquistadores das “Bajudas” (Raparigas) guineenses, para o Pilão.

O Pilão é um instrumento usado para múltiplos usos na culinária africana desde descascar arroz ao moer milho, café, etc. Neste caso, porém, era um bairro onde se procuravam, a troco de alguns pesos, favores sexuais. (A moeda na Guiné, embora fosse o escudo local, era mais conhecida por Peso).

Correu muito mal a nossa incursão por entre as tabancas e, se não fosse termos encontrado dois camaradas da “velhice”, podia ter sido pior.

Logo no primeiro assalto da primeira que apareceu, aconteceu que perdemos todo o entusiasmo. A senhora exalava um cheiro horrível a catinga e exigia 200 pesos, quando nós tínhamos informação de que não era tanto, por isso recusámos. Ao segundo assalto, entrámos na tabanca e só se ouvia bebés a chorar, o que por certo não ia tornar o ato em si, muito entusiasmante. Mais uma vez recusámos, só que um velho negro desdentado, que se encontrava à porta, em tom ameaçador, queria à força que pagássemos na mesma. Saímos dali rapidamente e fomos mais um pouco para o interior do bairro. Perdemo-nos por entre o emaranhado de ruas de terra lamacenta, pois tinha acabado de cair um enorme aguaceiro.

Só escutávamos falar em crioulo e não percebíamos nada do que diziam. Encharcados até aos ossos, já temíamos até pela nossa segurança, e veio-me à memória o que já alguém me dissera antes. Tinham sido mortos alguns soldados, por terroristas do PAIGC que se ocultavam entre a população civil. Arranjavam uma confusão por causa das mulheres, e tinham a desculpa de que nós as provocávamos. Testemunhas não lhes faltavam.

Foi um enorme alívio encontrar outros brancos naquela altura: o 1º Cabo cozinheiro Castro e um amigo, que como ele, estava colocado no quartel-general. Tinham ido buscar as suas roupas à lavadeira que lhas preparava semanalmente. Tiraram-nos de lá sem comentar que estávamos quase borrados de medo.

Do Castro ainda vos falarei novamente. Quanto ao meu amigo carraça, ainda nos encontrámos mais uma ou duas vezes. Marcámos encontrar-nos na Metrópole, se sobrevivêssemos, em agosto de 1974, mas isso não sucedeu; só guardei o número de ordem [, nº mecanográfico,]  dele que acabei por perder. De certeza que agora tem um nome. Esse, não sei.

(Continua)

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Nota do editor

(*) Último poste da série > 22 de novembro de  2017 > Guiné 61/74 - P18002: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 7 e 8: O Cumeré, os mosquitos, o patacão, a correspondência, os preservativos...

domingo, 26 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P18016: Blogues da nossa blogosfera (81): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (2): "Botão-flor da primeira folha verde" e "Venho de um jardim distante"



Do Blogue Jardim das Delícias, do nosso camarada Adão Cruz, médico, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos dois textos e duas imagens da sua autoria.




Botão-flor da primeira folha verde

Adão Cruz

© Adão Cruz

Há uma mulher de alvor azul, com um fio de azeite nos lábios finos e uma gota de água no canto dos olhos secos.

Os lábios foram carnudos e vermelhos de sangue, e os olhos eram verdes como o sol, quando o sol era verde.

Tem o rosto sumido na sombra descaída ao longo dos braços, como vela despregada de navegar.

Outrora, o mar encapelado e nu brilhava nos seus olhos, cobrindo de espuma branca as alamedas do desejo.

Havia uma cidade entre os lábios, envolta em lagos de montanha, com peixes verdes voando entre os pinheiros.

Não havia pombas brancas caídas no chão da cidade morta.

Nas ruínas da ilusão, um edifício muito alto erguia-se nas paredes do deserto e rompia o céu de nuvens negras.

No vão da noite que acolhe os sonhos, o botão-flor da primeira folha verde inverteu a vida entre o real e o imaginário nas dobras do tempo em universal dilema.

Há uma mulher de alvor azul com um fio de azeite nos lábios roxos e uma gota de água gelada no canto dos olhos, mas cedo se fez tarde a madrugada sem tempo para morrer na vida de um poema.

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Venho de um jardim distante

Adão Cruz

© Adão Cruz

Venho de um jardim distante florido de memórias ou de um sonho qualquer entre risos e lágrimas caindo de um céu de chumbo ou de um céu de magnólias.

Venho do seio do orvalho da madrugada num punhado de vida libertada em qualquer rumor de passos brincando nos telhados acesos pela luz do dia....

Venho de um jardim distante onde grinaldas de flores abrilhantam a festa do azul dos tempos no incêndio do crepúsculo ou no ardor da manhã do meu berço de mistério e universo.

Venho das esquinas do tempo em recordações avulsas ao sabor das pontes da vida cavalgando o vento que assobia nas ruas estreitas ou mordendo as pedras com punhais de silêncio.

De onde venho ninguém sabe.

Venho talvez da intimidade salgada do mar ou de um jardim distante com um rio de passos e palavras e pedaços de sol num rosário de pérolas abrindo a neblina do nascer da vida.

Venho… quem sabe da nudez adormecida no silêncio do tempo destinado à simplicidade da morte pelo sinuoso caminho das recordações perdidas no chão fundo das angústias ou nos retalhos da esperança.

Venho talvez das sombrias entranhas prenhes de fulvos e ilusórios tesouros que emergem do fundo do mar sublimados de cor e luz à superfície traiçoeira das águas bordadas de espuma. Ou então…

Ou então serei filho de um mundo sem resposta sujeito a ventos e marés que enrugam o latejar das veias e quebram o voo das artérias com lugar no corpo rompendo o fluir da vida no interior do sonho.

Não.

Eu não venho de lugar algum fora da mente nem trago comigo a erva daninha.

Eu venho de um jardim distante entre o sonho e a razão onde o pensamento se agiganta contra as trevas e a ilusão.
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17989: Blogues da nossa blogosfera (80): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547

Guiné 61/74 - P18015: Blogpoesia (539): "As rampas...", "Apanágio de poucos..." e "Arame farpado...", poemas de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

Gaia ao Pôr-do-sol
© Carlos Vinhal


1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) três belíssimos poemas, da sua autoria, enviados entre outros, durante a semana, ao nosso blogue, que publicamos com prazer:


As rampas…

Aqueles caminhos estreitos,
Por vezes alcantilados,
Que abreviam distâncias
E economizam o tempo,
São o recurso expedito,
Cheio de sabedoria
Que a engenharia natural engendra,
Desde sempre
E em todos espaços da terra.
Dão acesso aos altos cumes,
Onde há, sempre, uma ermida ou um miradouro,
Enriquecedores do espírito
E os telescópios de ver perto o longe e à volta.
Descem ao mar, através de escarpas, inacessíveis e transitáveis.
São promontórios longos a perfurarem o mar, por onde passam os pescadores e suas redes até aos barcos.
São os magníficos escadórios longos,
engalanados de estátuas esbeltas,
que irrompem cá de baixo,
desde o centro da cidade,
numa alameda, frondosa e larga, aos zigue-zagues,
até à cerca do Santuário.
E, com saudade a lembro,
aquela rampinha ensolarada,
rodeada de latadas de uvas,
na estrada antiga de Lisboa ao Porto,
que levava a um restaurante,
“A Rampinha”
em Gaia,
onde o rei era o bacalhau,
de todo o jeito,
como nunca mais provei…

Ouvindo Brahms por Hélène Grimaud ao piano
Berlim, 20 de Novembro de 2017
6h29m
Jlmg

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Apanágio de poucos…

Escrever poemas ou pintar belos quadros de beleza é apanágio de poucos.
É um talento que poisa onde quer.
Seu sustento é de além.
Como a chuva que cai na hora,
Regando a seca,
Fermenta o solo.
Reverdece a cor. Define a luz.
Ressalta os tons.
Como nuvens do céu, prenhes de cores,
As ideias bailam na mente como o sopra o vento.
Desenham figuras. Narram de cor,
Lamentos da noite.
Suspiros de paz.
A meditação contemplativa, essa, está ao dispor de cada pessoa.
Acessível a todos.
Com talento ou não…

Ouvindo Albinoni na despedida da tarde
Berlim, 23 de Novembro de 2017
16h33m
Jlmg

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Arame farpado...

Cúmulo do medo pelo seu igual,
na selva em que o mundo se tornou.
Vivem livres as feras na selva.
Convivem em harmonia.
Basta-lhes a lei natural.
Os privilegiados da inteligência,
aterrorizados por perderem seu trono fraco,
amordaçam-se com cinturões de arame, cravejado de espetos.
Levantam longos muros,
guardados por metralha,
à volta das fronteiras.
Supõe-nos de ferro,
na verdade são de palha.
Acautelam as suas vidas,
cercados de seguranças
que se traficam a quem der mais.
Ostentam um poderio de majestade,
como uma armada invencível,
na realidade, basta um kamikase,
e, tudo rebenta como um balão...

ouvindo Adágio de Albinoni
Berlim, 21 de Novembro de 2017
8h18m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17988: Blogpoesia (538): "Um escadório...", "Os astros..." e "A idolatria das pedras e do metal...", poemas de J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P18014: Parabéns a você (1347): Jorge Teixeira, ex-Fur Mil Art da CART 2412 (Guiné, 1968/70) e Manuel Lima Santos, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3476 (Guiné, 1971/73)


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Nota do editor

Último poste da série de 24 de Novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18008: Parabéns a você (1346): Abel Santos (ex-Soldado Atirador Art da CART 1742 (Guiné, 1967/69) e António Levezinho, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 12 (Guiné, 1969/71)

sábado, 25 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P18013: Bibliografia (42): “Mário Pinto de Andrade, Uma entrevista dada a Michel Laban”, Edições João Sá da Costa, 1997 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Novembro de 2017:

Queridos amigos,
Em 1954, descrente da formação universitária a que se propusera vir fazer a Lisboa, e já atraído pela causa nacionalista, Mário Pinto de Andrade parte para Paris onde terá o privilégio de se encontrar e corresponder com os principais intelectuais negros contestatários de vários continentes. Trabalha numa prestigiada revista, acompanha o que se passa no seu país, reúne regularmente com Marcelino dos Santos e Aquino de Bragança, tem uma relação fraterna com Amílcar Cabral. Foi assim que germinou e se veio a criar em 1957 o Movimento Anticolonialista, é o primeiro gérmen da cooperação entre os movimentos de libertação das colónias portuguesas africanas.
Os dados estão lançados.

Um abraço do
Mário


Uma importante entrevista de Mário Pinto de Andrade (2)

Beja Santos

Não se pode estudar em toda a sua amplitude o movimento anticolonial em Portugal sem conhecer o pensamento e ação de Mário Pinto de Andrade, um angolano que veio estudar Filologia Clássica em Lisboa e constituiu amizades com futuros líderes, caso de Marcelino dos Santos, Agostinho Neto e Amílcar Cabral. “Mário Pinto de Andrade, Uma entrevista dada a Michel Laban”, Edições João Sá da Costa, 1997, encerra dez sessões de trabalho que vão de Março de 1954 a Junho de 1957. Este grupo de amigos constitui o Centro de Estudos Africanos, na Rua Ator Vale, ao Bairro dos Atores em Lisboa, ali se reuniam Alda e Julieta do Espírito Santo, Francisco Tenreiro, Agostinho Neto e Amílcar Cabral. Encontravam-se igualmente na Casa dos Estudantes do Império e no Clube Marítimo, na Graça, tinna sido uma escolha do Agostinho Neto.

Pinto de Andrade não perde o contacto com os jovens nacionalistas angolanos, trocam muita correspondência. Dá-nos conta da atividade desenvolvida nesse grupo de reflexão que foi o Centro de Estudos Africanos, a partir da primeira reunião que se realizou em Outubro de 1951. Pouco estimulado pelos estudos da Filologia Clássica, desperta o seu interesse pela literatura africana, começa pelo Kimbundu, amplia as suas leituras, lê autores antilhanos, norte-americanos e africanos, tais como Nicolás Guillén, Richard Wright, Aimé Césaire, Léopold Senghor. Pôs-se em marcha uma antologia: o Caderno de Poesia Negra de Dispersão Portuguesa. Depois, o Centro dispersou-se, Amílcar Cabral foi trabalhar para a Guiné, Tenreiro ficou em Lisboa, a família Espírito Santo ficou sob suspeita na PIDE, supunham que estavam implicados, visto que um dos tios de Alda Espírito Santo era acusado de conluio do protesto contra o trabalho forçado no massacre de Batepá. A última reunião deste grupo de reflexão realizou-se em Abril de 1954. E rememora duas figuras hoje injustamente esquecidas: o pintor António Domingues e o escritor António Mário Domingues, pai do primeiro. Domingues era um artista muito próximo dos comunistas, estava muito atraído pela pintura mural mexicana e pela arte negra, fez desenhos de toda esta gente do grupo. Mário Domingues pertencia à geração dos anos 20, foi colega de jornalista de Ferreira de Castro. Para ganhar a vida escrevia obras históricas publicadas por Edições Romano Torres, traduzia muito e escrevia sobre pseudónimo romances policiais. Era um português nascido na Ilha do Príncipe que escreveu um romance sobre a sua experiência, O Menino entre Gigantes. Distinguiu-se por ter enviado uma mensagem para o Congresso dos Escritores e Artistas Negros que se realizou em Paris.

Estes jovens africanos reuniam com gente do MUD Juvenil, explica a organização manobrada pelos comunistas e as causas que defendiam. Mas os jovens africanos sentiam-se dececionados porque a questão africana era um tema marginal para o MUD e faz o seguinte comentário: “A ideia que os comunistas tinham na altura era a de uma especificidade – a especificidade colonial portuguesa – muito diferente da colonização francesa ou inglesa. Recordo-me de uma conversa com Aboim Inglês quando eu lhe disse que não queria militar no MUD juvenil porque a minha atenção estava fixada no Centro de Estudos Africanos. Ele chamava a isto uma posição racista e, sobretudo, considerava que nós não tínhamos em conta a especificidade da colonização portuguesa pelas ações de outros colonizados, justamente os colonizados do domínio francês e do domínio inglês, que a questão não devia colocar-se nesses termos porque o que era necessário – do seu ponto de vista, era criar um vasto movimento antifascista. Era o derrube do fascismo que ia abrir perspetivas à libertação das colónias”.

Amílcar Cabral e Mário Pinto de Andrade

Refere a vida efémera do Partido Comunista Angolano, em 1954 Pinto de Andrade parte para Paris, quer especializar-se em assuntos africanos. Vai trabalhar com Alioune Diop na revista Présence Africaine, graças a este trabalho vai conhecer algumas das mais pertinentes figuras intelectuais francesas e escritores negros de todo mundo. Estuda na École Pratique des Hautes Études, seguia as aulas de Roger Bastile. Dá-se muito com Marcelino dos Santos e Aquino de Bragança. As lutas de libertação e as independências das antigas colónias são um tema da agenda política mundial. Há a guerra da Argélia, os preparativos para as independências de Marrocos e da Tunísia, em 1955 realizou-se a Conferência de Bandung, onde nasceu o movimento dos não-alinhados, a conferência teve consequência na Ásia e em África. É nesse contexto que se prepara o congresso dos escritores africanos onde as teses de Aimé Césaire saíram vencedores, derrotando as teses conciliadoras de Senghor. Este congresso teve repercussões, foi o caso da American Society of African Culture dos Estados Unidos, que reunia os escritores negros americanos. Em Paris, Pinto de Andrade continuava a trocar muita correspondência: com Lúcio Lara, com Amílcar Cabral, com Viriato da Cruz. Em meados de 1957 chega Viriato da Cruz fugido à polícia. A visita foi seguida quase imediatamente pela de Amílcar Cabral, este tinha participado no conjunto das formações que em seguida levaram à criação do MPLA. Pinto de Andrade atribui a Viriato da Cruz um papel charneira, por ter participado no nascimento de todas as organizações importantes de Angola, colaborar na redação do manifesto do MPLA. Viriato veio para ficar, o mesmo não ocorreu com Amílcar que trabalhava em Angola, Amílcar reuniu em Paris com a comunidade africana lusófona na diáspora.

Em Novembro de 1957, em Paris ocorre uma reunião de consulta e estudo para o desenvolvimento da luta das colónias portuguesas, participam Amílcar Cabral, Viriato da Cruz, Marcelino dos Santos, Guilhermo do Espírito Santo e Pinto de Andrade. “Foi talvez a primeira pequena assembleia a fazer o ponto da situação do movimento geral das organizações em luta nos cinco países africanos, do estado do que se chamava as forças vivas da nação e da capacidade de mobilização das forças sociais nessa altura”. E tomou-se uma decisão importante: criar uma organização unitária. “Nós tínhamos visto que cada organização por si própria, tomada isoladamente, em cada um dos nossos países, não era suficientemente forte para que nos concentrássemos. Era preciso encorajar essas organizações, mas elas eram frágeis. Foi a origem do Movimento Anticolonialista que se criou em Lisboa, mas tinha um outro nome na altura, um nome muito mais amplo: Movimento de Libertação Nacional das Colónias Portuguesas, e tinha mesmo estatutos”.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17984: Bibliografia (41): “Mário Pinto de Andrade, Uma entrevista dada a Michel Laban”, Edições João Sá da Costa, 1997 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P18012: Efemérides (265): 25/26 de novembro de 1967: a notícia da tragédia diluviana na Região de Lisboa que chegou a Gadamael pelas ondas hertzianas (Mário Gaspar, ex-fur mil at art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)


1ª  página do Diário de Lisboa, 2ª edição, domingo, 26 de novembro de 1967 (Ano 47, nº 16143; diretor: António Ruella Ramos). Cortesia da Fundação Mário Soares > Casa Comum > Arquivo Diário de Lisboa / Ruella Ramos.

Fonte:

(1967), "Diário de Lisboa", nº 16143, Ano 47, Domingo, 26 de Novembro de 1967, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_11918 (2017-11-23)

O maior desastre natural ocorrido em Portugal depois o terramoto de 1755... Nem os senhores coronéis da censura conseguiram apagar os títulos de caixa alta dos jornais, fizeram  tudo  no entanto para impedir que os diretores dos jornais  dessem o número exato dos mortos... Ainda hoje não sabemos quantos portugueses morreram: nos [atuais] concelhos de Lisboa, Loures, Odivelas, Vila Franca de Xira e Alenquer.


1. Mensagem de Mário Vitorino Gaspar [ foto atual à direita; ex-fur mil at art, minas e armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68; e, como ele gosta de lembrar, Lapidador Principal de Primeira de Diamantes, reformado; e ainda cofundador e dirigente da associação APOIAR]

Data: 25 de novembro de 2017

Assunto: FAZ HOJE 50 ANOS

Camaradas Luís,

Lembrei-me e disparei. Este tiro. Levei com diversos estilhaços a 25 de Novembro de 1967. 

Atravesso um péssimo período da minha vida. Ambos os filhos (42 e 47 anos foram vítimas de Síncopes Cardíacas), o mais novo a 14 de Maio, só há um mês saiu do Hospital de Santa Maria. O mais velho foi a 14 de Outubro, só fez o cateterismo, não foi à Cirurgia de Bypass como o pai a 12 de Março de 2002 e o mais novo que com três entupimentos só fez um Bypass, mas teve de seguida uma gravíssima inflamação, ou vírus como lhe chamaram.

Simultaneamente, por insistência da minha parte, fiz Exames necessários para saber se tinha ou não a Doença de Parkinson. Tive a novidade que sim. Outro estilhaço. Sempre a verdade, custa escutá-la. Sei ser doloroso para todos, a verdade é essencial na minha vida, detesto os mentirosos. Mentem tanto que eles próprios acreditam que a sua mentira, é a verdade. "Verdade dos mentirosos", bom chavão e título para um Romance, Peça de Teatro, Filme – por que não de um filme – e nessa Guerra Colonial tantos são os mentirosos…

Pois há 50 anos "passei as passas do Algarve" e, na cama, mesmo ao meu lado, estava o meu Camarada Algarvio (Loulé) o Furriel Miliciano José Manuel Guerreiro Justo, dono do aparelho de Rádio. Armadilhei a sua cama até se convencer. Camas duras como os cornos e os mosquitos até comiam os mosquiteiros da cama.

Os camaradas de que falo estão todos vivos, incluindo o Capitão e Sargento Barreira que rondam os 84 anos e mantenho-me em contacto com todos.

Vou-me esquecendo de acontecimentos próximos, motivado pelo Parkinson, a memória arquivada decerto com falhas, mas viva ainda. Por vezes é difícil recordar um nome, aborreço-me. Teimoso como sou, recordo.

Ando há anos com as rodas avariadas, o problema é não ter um mecânico à altura, e talvez quinze dias rebentaram as pernas, sangue e pus a escorrer para os sapatos. Pernas inchadas e ardem, mais parece o Nosso Portugal a Arder. Há muito que ardemos… Matas e casas a arder? Calamidade.

Pois se considerarem serem textos a publicar no Blogue, façam-no. Nasceram agora, não são plagiados…

Um abraço para a Tabanca.

NOTA: Quando me for embora posso ser embrulhado em papel de jornal, no "Correio da Manhã" não quero…

Mário Vitorino Gaspar

2. Efemérides > Faz Hoje 50 Anos > Grandes Cheias de 25 de Novembro de 1967 (*)

A 25 de Novembro de 1967, estava eu em Gadamael Porto no sul da Guiné, numa guerra que não era minha. A minha Companhia era a CART 1659, com o lema "Os Homens não Morrem".

Os aparelhos Rádios comprados através de alguém que se deslocava a Bissau, normalmente de evacuados por ferimentos ou doenças, serviam para ouvirmos de Batuque, Mornas e Coladeiras da Ex Guiné Francesa (Conacri). Insistia no aparelho de Rádio comprado pelo Furriel Miliciano Mecânico José Manuel Guerreiro Justo (Loulé). Procurava com insistência alguém que falasse, de música estávamos fartos. 

De botão em botão, até que apanho um posto de Portugal. Milagre, autêntico milagre. Dormiam a meu lado os Sargentos Abílio Seabra de Oliveira Barreira (área da cidade do Porto); Manuel da Silva Pereira (Massamá) e António Martins Reis Dores (Elvas) e os Furriéis Milicianos Augusto Varandas Casimiro (área do Porto), Manuel Ferreira Jorge (Massamá), Joaquim Fernandes Alves (área do Porto), José Nicolau Silveira Santos (Açoriano a viver há 47 anos no Canadá) e Manuel Adelino Alves de Campos (vive no Faial).

Gritei para o pessoal. Sucede o inacreditável e assustador. Percebi estarem as populações de Alhandra e povoações próximas a serem vítimas de Inundações. Entendi o nome da vila de Alhandra. Terra para onde fora aos 3 anos era lá a terra onde viviam meus Pais; um dos meus Irmãos, o José, Fernanda minha cunhada, meu sobrinho Luís Filipe que nascera em Abril e todo um mundo de Amigos.

As notícias iam chegando, sabia bem que o Tejo galgava para a terra e estendia os braços pelas ruas mais próximas.

Pior que um ataque do PAIGC que lutava pela libertação. Longa a angústia. Nada poderia fazer. O rádio, aquele aparelho de mornas e coladeiras era já um amigo. Gosto dessa música, pudera… Comecei por ter pormenores das cheias e resolvi falar com o Capitão Miliciano de Infantaria Manuel Francisco Fernandes de Mansilha sobre o assunto. Estranhou apanhar uma Rádio Portuguesa. Eu próprio nem acreditava. Um milagre, talvez pela calamidade da situação as Rádios tivessem colocado a funcionar outros meios que projectaram as emissões para outras distâncias.

Pois o Capitão enviou via Bissau um telegrama para os meus Pais. Ao fim de pouco tempo recebi a resposta da minha Mãe. Nunca cheguei a saber como conseguiu fazer chegar esse telegrama aos Correios da terra que ficavam bem perto do rio Tejo. As águas atingiram, no denominado pela população Largo da Praça, 2,20 metros de altura. Ainda hoje nas paredes da Junta de Freguesia existe a marcação dessas águas. O povo sofre, Alhandra recebe ajuda e o Povo mais prejudicado pouco ou nada recebe.

Este Portugal que Ardeu e Arde e as terras inundadas pelas chamas receberão todo o material e dinheiro vindo do País e Estrangeiro?

Em 1967, em Alhandra, colchões, cobertores fugiram para as mãos de quem não teve danos. Alguns Amigos meus que ficaram sem nada foram habitar para outros ares.

Nunca mais apanhámos uma emissão de Rádio de Lisboa.

Batuque, Mornas e Coladeiras. Gostava e gosto de Mornas e Coladeiras. (**)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de  20 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14905: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (10): Não, nunca percebi para que serviam os CTT no CTIG... Notícias de Alhandra, da minha família, por ocasião da tragédia, as grandes inundações, de 25 para 26 de novembro de 1967, que atingiram a Grande Lisboa, recebi-as através de telegrama militar... (Mário Gaspar, ex-fur mil at art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)

(**) Último poste da série > 29 de agosto de 2017 > Guiné 61/74 - P17711: Efemérides (264): O antropólogo e professor doutor Mesquitela Lima, natural do Mindelo, São Vicente, que eu conheci na Academia Sénior de Lisboa... Morreu há 10 anos (Mário Gaspar, ex-fur mil at art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P18011: (In)citações (112): A Tabanca Grande, a Guerra “de libertação”, que tarda em acabar para os bissau-guineenses e a marca dela nos ex-combatentes do continente (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav da CCAV 703)

Guiné > Região de Tombali > Guileje > 22 de Maio de 1973 > A população e os militares abandonaram Guileje, às 5,30h, a caminho de Gadamael. Esta foto, dramática, é da presumível autoria do Fur Mil Carlos Santos, da CCAV 8350 (1972/74), segundo informação do seu e nosso camarada e amigo José Casimiro Carvalho, também ele da mesma unidade ("Os Piratas de Guileje") mas que nesse dia estava em Cacine. Faz parte do parte do acervo fotográfico do Projecto Guiledje. Foto: AD - Acção para o Desenvolvimento (2007). Direitos reservados. [ Editada por C.V.]


1. Em mensagem datada de 22 de Novembro de 2017, o nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705, BissauCufar e Buruntuma, 1964/66) enviou-nos este artigo de opinião para publicação:


A Tabanca Grande, a Guerra “de libertação”, que tarda em acabar para os bissau-guineenses e a marca dela nos ex-combatentes do continente

Alegram-me os 10 milhões de visualizações do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, a Tabanca Grande tornou-se numa espécie de país virtual, com população superior à da Catalunha, uma nação sem exército e uma promessa de “libertação”, segundo os métodos de Gandhi ou de Mandela, com a consciente exclusão dos de Lenine, de Mao ou… de Amílcar Cabral.

Louvores ao seu “Homem grande” Luís Graça, ao seu mouro de trabalho Carlos Vinhal, extensivos aos co-editores Virgínio Briote e Magalhães Ribeiro. Um caso especial de sucesso do voluntarismo, de entranhada camaradagem, de pluralismo e do “dever de memória”.

No tocante a ex-combatentes expedicionários nos seus teatros, invoco os testemunhos do Dr. Albuquerque, especialista do setresse pós-traumático, de que a guerra ultramarina ficou colada à vida dos seus combatentes; do escritor Lobo Antunes “Não sei explicar, mas a maior parte do que sou, continua lá”; e do Coronel-Comando José Manuel Belchior, Presidente do Núcleo do Porto da Liga dos Combatentes, de que, como participante em várias tertúlias, nenhuma outra se mantém tão ligada à terra e à sua gente como as dos ex-combatentes da Guiné.

As emoções que vivemos foram tantas e tais, que se cristalizaram em sentimentos – digo eu.
Em suma: Não há cura para a guerra da Guiné, enquanto maleita nossa; e a “guerra de libertação” da Guiné tarda a acabar, para mal dos bissau-guineenses.
E quanto à sua história, sou recorrente na metáfora da prédica do Padre António Vieira, referida à relação da substância com a forma.

Em rigor histórico, o PAIGC nem conquistou nem ocupou Guileje. Mas no entender do historiador Fernando Rosas, esse acontecimento foi uma derrota militar portuguesa e uma ocupação vitoriosa do PAIGC; para o historiador Rui Ramos, por exemplo, seria fruto de uma desobediência e de uma retirada do Major Coutinho e Lima, aliás bem comandada e sucedida. Algo susceptível de acontecer cá por casa, com o mesmo que entra pelo “orifício” do pensar do António Graça Abreu e do pensar do A. J. Pereira da Costa – aproveito e protesto a ambos a minha mais elevada consideração.

Em rigor histórico, Madina do Boé e Guileje, duas tabancas fronteiriças e as únicas tabancas “libertadas” da Guiné, não o foram nem por conquista nem por ocupação: o PAIGC limitou-se a explorar o sucesso do seu abandono pelos portugueses. Uma oferta do General Spínola, rumo à sua vitória – digo eu.

A guerra de libertação dos bissau-guineenses só terminará quando forem superadas a sua orfandade de Amílcar Cabral e da administração portuguesa.
Amílcar Cabral foi responsável pela quimera do “absolutismo despótico” da Guiné (sob o nome de Socialismo), pela quimera da unidade com Cabo Verde, por recusar, pela violência, o pluralismo político aos seus concidadãos, por ter antecipado a fundação da sua nacionalidade, sem sustentação na nação, mas num exército desproporcional – o mesmo que a independência transformará de simples guerrilheiros em casta de oficiais superiores… sem soldados.

Portugal é responsável por ter enformado a Guiné, por a ter conservado contra ventos e marés, mas, sobretudo, por os seus militares a terem abandonado, consciente de que cediam a uma solução imposta do exterior, extemporânea e não adequada à sua consolidação como nação, tendo apenas como atenuante as tentativas de uma força de guerrilha, com o efectivo de menos de 10% da sua guarnição militar e com o apoio de cerca de 10% da sua população de 600 000 mil almas, porfiada em os correr a tiro.
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17765: (In)citações (111): Lembrando Setembro, o mês comemorável da Guiné, a sua Libertação, que intrujou todo o mundo e todo o mundo se deixou intrujar e os seus improváveis heróis (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav da CCAV 703)