Galeria dos meus heróis > A Rosemarie e os seus dois maridos...
Parte I
por Luís Graça
− Não, não foi o
coração que me levou a fugir para França, a
salto, escondida na mala do carro de um passador…
Foi assim que a Rosemarie começou o seu relato de vida: um passador que será depois seu amante, companheiro e, já no fim da vida, marido, de papel passado na mairie.
− A salto !... Como se dizia então em
francês ?!... Le saute, até há um
filme que passou na televisão de cá…
− Ah!, oui?!... Nunca vi.
− E no
entanto a Rosemarie já não era nenhuma jeune
fille…
− Une balzacienne, uma mulher de 30 anos
já feitos!...Nasci em 1937, mon chérie.
− Ah!, sim, uma
balzaquiana, como dizemos nós…
Morto o
Antoine [lê-se: "antu-ane"], há uns largos anos atrás, no virar do milénio, a Rosemarie ter-se-á libertado de algumas grilhetas
que a manietavam, a começar pela incerteza quanto ao seu futuro… Afinal, por
decisão dos tribunais, acabou por ficar com o património do seu segundo marido,
de quem fora uma cuidadora inexcedível no seu doloroso final de vida. Houve um
processo litigioso com outros herdeiros. os filhos do primeiro casamento.
Libertou-se
sobretudo de uma estranha relação de amor-ódio que manteve com o Antoine, e que
só se apazigou ou atenuou depois da decisão transitada em julgado, favorável aos direitos
e interesses da Rosemarie.
− Passei a
ser uma viúva francesa rica em Portugal, ou remediada em França… Enfim, tenho o
meu pé-de-meia.
Só nessa
altura é que passou a tratá-lo por “gajo”, com sentido jocoso e sarcástico ao mesmo tempo, sempre que se
referia ao falecido segundo marido. Foi uma vida atribulada, a da Rosemarie,
uma drôle de vie, como ela repetia
amiudadas vezes, com humor, sem azedume, quase sem rancor. E, no entanto, foi
uma típica vítima de violência doméstica, nos seus dois casamentos…
Curiosamente, com dois homens mais velhos que ela.
Foi uma vida
passada entre o Portugal dos sombrios
anos 30, 40, 50, e a França gloriosa, da V República.
− Voltei à
minha terra natal, para morrer… mas só aos 100 anos. E agora tratam-me por Madame. Dantes, quando era nova, não
passava da Maria, nem sequer Rosa, muito menos Rosinha.
Conheci a Madame Ben Oliel, como ela gostava de ser tratada, numa festa do 14 Juillet, o Dia Nacional da França. Ben Oliel era o apelido materno do seu segundo marido, de origem portuguesa e judia sefardita, que esteve na guerras da Indochina e da Argélio, como légionnaire.
Maria Rosa era o seu nome de batismo, de que trocou a ordem e afrancesou: Rosemarie, soava-lhe muito melhor, fazia-lhe oublier (esquecer) e até talvez cacher (esconder) a sua origem portuguesa e a sua condição de imigrante em França. O que, na realidade, nunca conseguiu por causa do seu "accent": não carregava suficientemente os "erres"...
− L’important c´est la rose!... Ah, o meu querido Gilbert Bécaud ! − desviava ela a conversa quando se tocava numa tecla mais sensível.Eu havia-a
conhecido, há já uns bons anos, quando ela andava perto dos 75, conservando alguns traços da sua beleza e jovialidade de juventude, com uns fatais olhos verdes.
− Quando
tinha quinze anos, mon chéri, eu já era uma moçoila vistosa, espigada, nutrida de carnes… Mas
era filha de rendeiros pobres, com um bando de filhos para alimentar. E, nessa
altura, criada de servir em Chaves.
Adorava bavarder, falava pelos cotovelos, e às vezes despudoradamente, tendo-me autorizado a publicar a sua história de vida que "até dava um filme” (sic), com uma única
ressalva:
− Só depois
de ser chamada ao Reino dos Céus!... (Como ela queria viver até aos 100, perdi
a esperança de poder publicar a sua história em tempo útil!... Charmosa, tratava-me por mon chéri.)
Era “crente
sem ser beata”… E agora que “Deus a chamou ao seu reino”, fica o caminho aberto
para partilhar as suas confidências. De facto, acabou de morrer,
estupidamente, de Covid-19, logo no
início da pandemia. Constou-me que foi por infeção hospitalar… Ia fazer 83
anos.
Sinto-me, de
qualquer modo, à vontade para evocar (e de certo modo homenagear) a sua figura.
Infelizmente, não foi cumprida a sua última vontade, a de ser enterrada na
terra que a viu nascer. Foi cremada num cemitério dos arredores de Paris, “por
razões de Estado” (ou seja, de saúde pública…). Desconheço se deixou herdeiros,
mas deve ter pelo menos sobrinhos algures, em parte incerta.
Resta-me
dizer onde a conheci. Foi na casa de praia de uns amigos comuns, parisienses,
que vinham há muito a Portugal, nas férias de verão. Agora, professores reformados, passavam cá mais tempo. A Rosemarie era visita frequente da sua casa, perto da lagoa de Óbidos.
Nunca soube
exatamente quais eram as suas afinidades mas, pelo que me apercebi das nossas
conversas, haviam-se tornado amigos
desde o tempo em que a Rosemarie cantava o fado no bistrot do Antoine.
Sem ter uma
voz de eleição, a Rosemarie não imitava nada mal a Amália e até dava uma certa
parecença de corpo, com dezassete anos de diferença em termos de idade… Não sem
uma incontida vaidade, acrescentava:
− A Amália
tinha a voz, aquela voz… E eu tinha os meus olhos, aqueles olhos verdes… '
Estes nossos
amigos franceses adoravam Portugal, o sol, os fruits de mer, e muito em especial as huîtres, as ostras, a que chamavam les portugaises.
E, claro, o fado, a Amália que tinham ainda conhecido, em vida, e aclamado no Olympia de Paris.
Nesse fim de semana do 14 Juillet, um sábado, em que conheci a Rosemarie, rapidamente ganhei a sua confiança e até afeição. Falávamos ora em francês, ora em português, mas longe da vista dos nossos anfitriões, entre duas ostras e um vinho branco das Gaeiras. Sentia-se mais à vontade para fazer confidências, estando só comigo.
Disse-lhe
que estava muito interessado em conhecer a
histoire de vie de mulheres
portuguesas, como ela, que tiveram a coragem de dar o salto, o duplo salto, o da emigração clandestina e o da
rutura com os usos e costumes do Portugal dos anos 50/60.
Acabámos por
criar laços afetivos, de empatia e até de amizade. Ainda nos encontrámos três
ou quatro vezes e falámos ao telefone. Com tristeza soube da sua morte,
vítima da pandemia do século. Tratava-me, carinhosamente, por mon chéri. meu querido ou meu jovem. Era muito maternal. Nunca
teve filhos, ao que eu saiba.
Era da
região de Basto, ou Terras de Basto, sendo os seus pais oriundos de uma aldeia da serra do Alvão.
− Sou a
filha mais velha das raparigas de uma família de rendeiros. Éramos um rancho, entre rapazes e raparigas, uma dúzia, fora os dois que terão morrido ainda anjinhos do céu.
E
acrescentava:
− Criada de
servir, femme de ménage, era o
destino que nos esperava, a nós, raparigas, jeunes
filles.
Naquele
tempo iam para Chaves para casa de algum militar, oficial de carreira. Ou para Cabeceiras de Basto, terra de brasileiros ricos. O
mais longe era para o Porto, para casa de "algum senhor doutor", médico ou magistrado, ou de algum comerciante abastado da
Baixa.
− Ganhava-se
uma miséria de 200 ou 300 mil réis, com cama, mesa e roupa lavada.
E mesmo
assim eram precisas referências, cartas de recomendação e sobretudo uma boa
cunha do abade da freguesia. Como as enfermeiras. Nesse tempo, era preciso
mostrar “boa robustez física” e comprovar a “conduta moral irrepreensível”…
As raparigas
não iam à escola, quando muito faziam o exame da 3ª classe, com explicações e bofetões de
uma mestra particular ou uma “regente escolar”.
No caso da
Rosemarie, já era uma moçoila quando abalou
para Chaves, em 1952, como “criadita de
servir” de uns senhores da família do fidalgo para quem os pais trabalhavam…
− Fidalgo ?! – indaguei eu, curioso.
− Só por se dizer que tinha uma casa apalaçada, com um brasão antigo do tempo do senhor Dom
João V, se não me engano, que eu da História de Portugal não sei nada ou muito
pouco.
Eu sabia que
tinha casado, já depois de atingida a maioridade, que naquela época era aos 21
anos.
− Foi a
minha desgraça, a minha sina, o meu fado! – comentou. com alguma amargura na voz.
Para fugir
da miséria da casa paterna e da ditadura dos patrões de Chaves, casou com "o primeiro fils de putain, o primeiro filho da puta", que conheceu num baile, já em Resende, em 1961. E que a “desonrou” (sic).
Tratava-o
sempre por “cabrão”, ao primeiro marido, para o distinguir do segundo, o
companheiro com que viveu maritalmente muitos anos em França, o Antoine, de quem voltaremos a falar, mais à frente.
A Rosemarie
era muito "desbocada", não se coibindo
de usar o palavrão nortenho, mesmo frente a pessoas estranhas. Adorava falar de algumas das suas aventuras e desventuras, não sem alguma falta de pudor. Para mim, era
a entrevistada ideal, se bem que depois fosse preciso separar o trigo do joio.
Perdia-se muitas vezes com histórias laterais, obrigando-me a reformular ou
repetir a pergunta…
Nascida em 1937, a Rosemarie casou aos 24, "com vestido branco de noiva, raminho de laranjeira, água benta"… "e a sua bênção, senhor meu pai!"...
− Pela santa
madre igreja, pois claro, de acordo com os usos e costumes da época.
− Já tinha
provado o 'fruto proibido'. Eu, que tinha sido catequista, só nessa altura é que percebi o sentido que os padres, no confessionário, davam à
expressão 'comer a maçã'.
O vestido de
branco fora-lhe oferecido pelos seus antigos patrões de Chaves a quem tinha servido durante
cerca de 7 anos e que fizeram questão de ser padrinhos da noiva.
Não se
atreveria naquele tempo, a casar pelo civil. Nem lhe passou sequer a ideia pela cabeça. Seria logo tratada de
“curta e comprida”. Eram tempos cruéis para as mulheres. Ai das raparigas que
rompessem o namoro, ou fossem rejeitadas! Ou, pior ainda, que tivessem a desdita de ser mães solteiras.
− Ninguém
mais te pegava!... Passavas a ter lepra… Com sorte, casarias com um velho, com
filhos ainda por criar, ou já com pouca força na 'verga' !
À medida que
se entusiasmava com a conversa,
Rosemarie usava o calão do seu tempo de “mulher do Norte com pêlo na
venta” (sic). O facto do interlocutor ser homem, não a inibia de todo. A sua história, as suas
confidências, mesmo as mais íntimas, não me deixavam todavia de surpreender, talvez por sermos de
gerações diferentes, eu já filho do pós-guerra e criado em ambiente urbano, ela bem mais velha do que eu.
Afinal, isto
passava-se no meu país, ainda nos anos 50 e 60. E eu não podia deixar de sentir
um certo amargo de boca, ao ouvi-la contar estas histórias de vida, bem duras.
− No meu
tempo, as moças repudiadas, ou fugiam para o Porto ou Lisboa, ou resignavam-se à
sua sorte, ficando solteironas, o que era o caso da maioria.
− A
liberdade paga-se sempre cara!... Não nos é dada, conquista-se
− Ah!, sim,
veja o meu caso. O meu primeiro homem foi obrigado a casar comigo, a tiro…
depois de os meus irmãos mais novos terem sabido que ele me tinha desonrado.
− A
sério?!... A tiro ?!... Agora percebo por que é que o seu primeiro casamento tinha tudo para
não dar certo…
− Não durou
mais de um ano de paixão efémera… Depois aguentei mais uns tempos, para salvar as aparências… E se eu tive uma paixão
por aquele cabrão. Oh!, se tive!... Hoje acho que foi feitiço, bruxaria, mau
olhado, qualquer coisa que ele me pôs no pirolito ou gasosa, uma daquelas garrafas de
refrigerante que se usavam na época, e que os rapazes ofereciam às raparigas no
intervalo dos bailes… Eram bailes mandados com mandadores que gritavam: “Damas,
ao bufete!”…
Os “bailes mandados” ? Explicou-me ela depois: os homens e os rapazes, de um lado, as mulheres e as raparigas, e um senhor, o 'mandador', no meio, a impor o respeito, a dirigir a coreografia e a dar a vez a cada um dos machos para ir buscar o seu par e dançar. Só "as comprometidas e as casadas" é que se podiam recusar a dançar com outro que não fosse o marido ou o namorado… Não poucas vezes, acabava tudo à paulada, com o álcool e as ciumeiras…
Mas os
feitios de ambos, e sobretudo “a miséria daqueles tempos” (sic), não
ajudaram em nada o casamento. Cedo a Rosemarie descobriu que o seu “príncipe
encantado” era, afinal, um 'chulo', um malandro e, pior ainda, um homem que de
bebedor social se tornara alcoólico e… violento.
Não
trabalhava, ou melhor, a oficina de carpintaria já não dava para um, quanto mais para dois.
Fazia um biscate ou outro, um conserto aqui ou acolá, a caixa de ferramenta numa mão, a bicicleta na outra, a maior parte
dos clientes eram gente pobre, das redondezas, o rol dos fiados ia até ao São Miguel, altura do ano em que se podia fazer algum dinheiro e
pagar as dívidas.
− Mas como é
que vocês se conheceram ? – quis eu saber, intrigado.
− Num baile,
tinha que ser a minha sina, o meu fado. Num desses tais bailes mandados…
− Em Chaves
?...
− Não, já em
Resende, na casa de um brasileiro rico, desses de torna-viagem… Tinha voltado à
terra com um bom pé de meia e quis
celebrar… Já não me lembro o nome, foi há tanto tempo… Todos o conheciam por 'O Brasileiro'… Resumindo: conheci o cabrão do meu primeiro homem nesse baile… Fazia parte da tuna…
− A tuna ?
− Um grupo de músicos que animava bailes, um que tocava viola amarantina, outro violão, outro
ferrinhos… E ele que tocava rabeca. Juntavam-se a outras tunas, ali da região
do Marão e Montemuro, de Baião a Cinfães, do Marco a Resende…
Chegavam a ir tocar a Viseu e Vila Real. Tinham mais fama que proveito, mas sempre
ganhavam uns tostões. O cabrão não tinha profissão certa, dizia que era carpinteiro, mas eu nunca lhe
vi obra feita, uma mesa ou armário de jeito.
− E tocava
bem, o seu homem ?
− Isso, sim, se
tocava!... Punha-nos 'atolambadas', o
cabrão… Olhe, fez-me lembrar aqueles encantadores de serpentes, indianos, que a
gente vê nos filmes. Tocava as modas da época, que já passavam na rádio, e
sobretudo as modas tradicionais, a valsa, a mazurca, a dança do fado, a
contradança… Já havia rádio, mas pouca gente
tinha rádio e telefone… E a televisão,
então, era ainda um luxo. Não havia sequer eletricidade … Ah!, mas quando ele
começava a tocar aquela valsa do Danúbio Azul… Houve até uma rapariga do Porto,
que estava nas termas, que desmaiou, de comoção... Só muito mais tarde, já em França, é que
ouvi falar da Sissi e de toda aquele luxo da corte imperial de Viena… Naquele
tempo éramos umas atrasadas…
− Era muito atrasado o interior do país, é verdade… mas pode falar-se de miséria,
miséria mesmo ?
− Oh! Mon Dieu de France!... Escreve aí no teu
cahier – começou-me a tutoyer,
a tratar por tu, a que eu não respondi do mesmo modo, continuando a ser
deferente e cerimonioso, para com ela, até como estratégia defensiva enquanto
entrevistador…
Miséria para
ela era o frio de rachar no inverno, as tamancas, a casa de granito, tosca, o interior com paredes de tabique, um quarto
para os pais, outro para as raparigas, com
os rapazes a dormir no palheiro do milho, e por debaixo ficava a corte dos
animais. E não melhorou muito quando a família se mudou de Cabeceiras para Resende.
Dois irmãos,
entretanto, tinham ido para a tropa, e sido mobilizados para Angola, o mais velho, e outro a seguir
para Cabo Verde e Guiné. Em Resende, nas termas das Caldas de Aregos, a
Rosemarie arranjara um emprego sazonal como auxiliar, graças a uma cunha do
patrão do seu pai que era oficial do exército, e pessoa infuente. A família,
que vivia no Porto, gostava de fazer termas nas Caldas de Aregos. E tinha lá
uma roda de amigos. Enfim, estava ligado à pequena nobreza rural, decadente, cujas origens remontavam ao tempo do liberalismo.
− E porquê
Resende, Rosemarie ? – perguntei-lhe eu.
Os pais
tinham-se mudado para lá, onde os antigos patrões tinham uma quinta e estavam a
precisar de um caseiro de confiança, iam-se fazer vinhas novas, etc. Com o plano de
construções de barragens no Rio Douro, havia boas perspetivas de valorização
dos terrenos cultivados que viessem a ser alagados com a subida das águas. As
condições eram melhores do que em Cabeceiras de Basto e os rapazes mais novos até tinham
arranjado emprego, ou promessa de emprego, numa empresa encarregue, já em 1964, dos trabalhos preparatórios da construção da
barragem do Carrapatelo (que só será inaugurada em 1971).
Mal sabia o pai que, passado uns anos, iria ficar sem casa nem terras, obrigando-o a voltar a Cabeceiras, "com uma mão à frente e outra atrás"… E, também com a barragem, as Caldas de Aregos começaram a entrar em decadência.
Depois da separação (de facto mas não de jure), a Rosemarie ainda irá trabalhar
para a Linha do Estoril, para casa de uns senhores importantes ligados à banca.
Foi ganhar o dobro que ganhava em Chaves e em Resende, 600 mil réis, e aí, sim, aprendeu
muito, como ajudante de cozinha. E, sobretudo, aprendeu a cantar o fado...
− Separação
?!... Como foi isso, Rosemarie ?
Ela
contou-me tudo tim-tim por tim-tim. Mas, abreviando, aqui vai o essencial dos
factos.
A Rosemarie
sempre foi, desde miúda, um grande dançarina. Não perdia bailes, desde que os
pais, e depois os patrões, a autorizassem a ir. A princípio, até aos 15 anos, ia acompanhada por um dos irmãos, “jogador de
varapau”.
− Varapau
?...
− Um pau de
lódão, rijo e comprido, com que os rapazes aprendiam a ser homens…Mas, coitado do meu mano, já morreu, um dia racharam-lhe a cabeça por minha causa.
− O seu
irmão ?!...
− Sim, um do meio. Era muito meu amigo, o meu guarda-costas. Por causa do meu primeiro marido, acabou por ter problemas com a justiça. ´
− Mas vamos
lá fazer o ponto da situação, que eu já estou perdido... Estávamos a falar do
baile…
− Ah!, sim,
o baile… os bailes!... Ficas a saber que pus a cabeça à roda de muitos rapazes
e até de homens casados. Hoje estou velha, e já sem muito tempo à minha frente,
mas naquela época eu era uma raparigaça
que metia muitas da cidade a um canto. Não é para me gabar…E, depois, como
também tinha jeito para a costura, que aprendi em Chaves, em casa, aos serões,
andava sempre bem produzida com os meus vestidos de chita… E já tinha algum jeito para as cantigas.
−…Até ao dia
em que...?
− Até ao dia
em que conheci... aquele cabrão!... A cigana que me lera as mãos em Chaves, no meio da ponte romana, tinha
razão!... Aquele cabrão, estava escrito que deveria ser a minha perdição!...
− Um amor de perdição!... Mas como assim
?!...
− Andávamos
os dois apaixonados. Apaixonados ? Qual quê, doidos!...Eu nunca tinha sentido
nada parecido!...Fazíamos amor… qual amor!, fazíamos sexo em qualquer sítio, em
qualquer hora… Tornei-me muito, como direi ?, 'desavergonhada'!...Desculpa a expressão, mas eu era
uma cadela com cio…
− Oh!,
Rosemarie, todos nos apaixonámos na juventude!... Não me parece que o termo desavergonhada seja
apropriado no seu caso...
− D’accord!, é uma maneira de dizer, às
vezes faltam-me as palavras em português… E mesmo em francês. Ninphomaniaque, era o que eu era nessa altura…
− Oh!
Rosemarie, nessa idade, com as hormonas à flor da pele!…
− Oh!, oui, éramos os dois animais de
sangue quente, na força da idade, se bem que ele fosse mais velho do que eu… E deixa-me dizer-te que ele na cama ainda era melhor do que com a maldita da rabeca… Era abonado, um garanhão, o cabrão.
− E a tuna, os
bailes, as tainadas?... –
perguntei-lhe eu.
− Pois, é, vinha o verão, as romarias, as festas… e aí trocava-me pela rabeca!... Comecei a ter ciúmes, primeiro dela, da rabeca, depois dele. Até um dia em que quis parti-la, na cabeça dele. Ameacei-o até de lhe pôr os cornos.,,, Uma ameaça, tola, a primeira coisa que me veio à cabeça: mesmo que o desejasse, não tinha com quem, naquela terra desgraçada...
− Ficou, portanto, o caldo entornado – comentei eu.
− Ele dava em
sair com o grupo dele, tudo gente de vida airada. Chegavam a ir tocar a Vila Real,
Amarante e até ao Porto. Só pelas tainadas.
− Mas também
ao pé de si, nas Caldas de Aregos, na época balnear, não ?!…
− Sim, e à
volta de Resende: Baião, Cinfães, Marco de Canaveses…
− Começaram
os problemas no casal, é isso ?!…
− Passaram-se
os seis meses da lua de mel, um ano… E nada!... Ele achava que eu não lhe dava
filhos, o que para um homem, na época, era uma vergonha, uma humilhação… Um
cabrão que não emprenhasse logo a mulher, não era macho, era um frouxo, ou até um mariconço…
− Portanto,
a culpa só podia ser "dela"!…
− Ah!, oui!...
Começou a bater-me. Começou a ficar ciumento, possesso, estúpido… Um animal!… E
eu recusava-me a abrir-lhe as pernas, para o cabrão 'despejar os colhões',
desculpa-me o termo.
E aqui
começa outra estação do calvário da Rosemarie.
− Fechava-me no quarto para não levar porrada… Ele fazia cenas, eu berrava para alvoroçar a vizinhança... Eu desculpava-me, que estava com a 'rabeca', a menstruação, quando ele queria 'servir-se' de mim... Enfim, uma vergonha para a minha família... Até um dia em que bati com a porta e voltei para casa dos meus pais. Tive a proteção dos meus irmãos, que lhe foram pedir satisfações. Houve porrada. Veio a GNR, mas ficou tudo em águas de bacalhau, que o cabrão tinha, na época, bons conhecimentos entre os senhores de Resende…
− E depois ?...
− Lá conseguiu arranjar
um passaporte, meteu-se um barco e fugiu para o Brasil… Nunca mais na vida lhe
pus a vista em cima… Houve quem o visse a sambar, a tocar rabeca, no carnaval
do Rio. Depois perderam-lhe o rasto. Deve ter tido um fim desgraçado, que Deus o perdoe. Mas, quando me
quis divorciar, foi o cabo dos trabalhos. Estava em parte incerta, ninguém sabia
se estava vivo ou morto. Divorciei-me já em França, com mais de 50 anos…
− Mas a fuga
para França é outra aventura da Rosemarie…
− Se foi!...
Dava para outro filme… Mas hoje já não to conto, fica para outro dia, estou trop fatiguée…
© Luís Graça (202o). Revisáo; 5/8/2023
Nota do editor: