sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22753: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (80): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Novembro de 2021

Queridos amigos,
É bem provável que este fim de comissão coincida com a concretização de trabalho de Paulo em Bruxelas, seria uma verdadeira revolução, os cinquentões apaixonados juntos no ninho. Esta carta com apontamentos do quase final da comissão também deixa transparecer que Paulo, num curto lapso de tempo, terá que tomar decisões, é funcionário público, terá que pedir licença registada, seguramente que será deferido, são casos tratados como conveniência de serviço; dois dos filhos singram na vida, mas há aquele Ricardo que sofre de Síndrome de Asperger, é muito agarrado ao pai, há que adotar um procedimento de o deixar bem acompanhado, talvez mesmo haverá a necessidade de ele ir para Bruxelas, tudo isso vai pesar nas decisões de Annette e Paulo. Acontece que Annette trouxe uma questão nova para o romance: será que a comissão do Paulo acabou exatamente no dia em que ele desembarcou no Cais da Rocha do Conde de Óbidos? É possível acabar uma ligação que teve afetos tão poderosos? Não houve um depois? Então o Paulo não voltou à Guiné? Não seria melhor a Rua do Eclipse prosseguir por esse mar fora, dado que é notório a relação inquebrantável? Paulo cisma, é preciso ser prudente, tudo vai do trabalho que lhe vão propor em Bruxelas, e, francamente, agora não há caderninhos viajantes, há escassas memórias, talvez Annette pudesse encontrar agora um remate inspirador para o fim do livro. Vamos esperar.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (80): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Ma chérie, aí estarei amanhã ao fim da tarde, como, infelizmente, tenho viagem marcada dois dias depois, permito-me fazer seguir pelo correio todo o restante material que guardei do final da minha comissão em Bambadinca. Entrego-te com muito carinho o caderninho viajante que andava sempre comigo, aquelas últimas viagens no período de sobreposição com o Nelson Reis, as últimas fotografias tiradas nas tabancas em autodefesa, comoveu-me profundamente os abraços recebidos por chefes de tabanca e mesmo do régulo de Badora, de nome Mamadu Sanhá, andava sempre com os seus galões de tenente e viajava até Bambadinca numa motoreta. Registei que estava a partir e chegou Dauda Bari, era um cabo Fula que viera de Gandembel. Registei um comentário de Sadjo Seidi que se queixava das aulas de ginástica da escola, achava que já não tinha idade para aprender mais letras. Irei reencontrá-lo décadas depois, não esquecera o seu comentário, e manifestava pesar por não ter estudado. Como te disse na última carta, fiz um telefonema a Cherno Suane, que tu conheces, ele trabalha num estabelecimento de eletrodomésticos de um senhor que se chama Adolfo Brilhante, perto do Largo de São Paulo, pedira-lhe se ele podia escrever umas notas sobre os episódios da nossa vida entre julho e agosto de 1970, sabendo eu de antemão que o Cherno depois do seu duplo traumatismo craniano tinha falhas de memória. Apareci na loja depois de ter feito ginástica e fomos os dois para um café-restaurante ali ao pé chamado Pérola de São Paulo, o papel do Cherno segue nesta carta, ele relata emboscadas em Samba Silate, a nossa permanência na ponte de Undunduma, patrulhamentos em direção a Taibatá, noites na Missão de Sono, os dois dias que passámos em Mansambo, a vigilância que fazíamos na estrada alcatroada do troço Amedalai – Ponta Coli – Xime.

O Cherno tem um curioso contrato com o senhor Adolfo, este cede-lhe uma casa ali no Largo de São Paulo que o Cherno enche de gente que vem ou vai para a Guiné, um dia fui lá visitá-lo com o Abudú Soncó, a certa altura pensei que estava num terminal de aeroporto. E sempre com a sua voz ciciante e com aqueles olhos que volteiam e revolteiam, penso sempre que é uma questão de timidez não me olhar fixamente, falou dos dois últimos dias que passei em Bambadinca, não sei porquê perguntou-me se eu me lembrava de Damba Trilene, fui sincero com ele e disse-lhe que não me lembrava, depois fiquei a saber que fora fuzilado depois da independência, gritara desalmadamente que não tinha feito mal nenhum. É nisto que o Cherno me pergunta se o livro que eu estou a escrever já está pronto, e então perdeu a timidez quando eu lhe disse que o livro estava avançado, fez-me inúmeras perguntas sobre pessoas, se estavam incluídas no meu trabalho, fiquei atónito quando ele me perguntou se eu ia dizer que Serifo Candé fizera parte da 3.ª Companhia de Comandos, aquele meu amigo do coração que eu fora visitar à tabanca dele em 1991 e que julgou que eu o vinha buscar, como é que tu me deixas aqui a passar fome, não tenho comida para dar aos meus filhos? Eram pormenores sem conta, procurei suavemente explicar ao Cherno que não podia entrar em tanto detalhe, era um livro sobre a minha comissão, jamais poderia esquecer a lealdade e a fidelidade de todos aqueles que tinham combatido ao meu lado, mas este tipo de livros tem que respeitar as recordações. E pela primeira vez na vida o Cherno repreendeu-me: “Escrevi aqui tudo de que me lembrei porque pensava que tu querias que toda a gente ficasse a saber que combateste com um grupo de africanos que acreditaram sempre em ti, por isso nós devíamos constar da história desse teu livro”. Fiquei com a garganta seca, prometi-lhe que iria rever todo o trabalho já passado a escrito, estamos os dois de pé, e neste exato momento, estou na véspera da tarde da minha partida, ando na companhia do Cherno, do alferes Reis e do furriel Pires, despedi-me dos comerciantes de Bambadinca, visitei as famílias dos soldados, fui aos Correios agradecer todas as gentilezas de D. Leontina, foi penoso despedir-me de D. Violete e da sua mãe, subimos a rampa de Bambadinca e Cherno, como é seu hábito, ajuda-me carinhosamente a arrumar todos os meus trastes num caixote que foi feito na carpintaria, anda por ali o jovem Mamadu Soncó que teima em que eu o leve para Lisboa, continuo a olhar para o Cherno, agora seguro-lhe as mãos, já abracei quem fica no quartel, o rosto de Mamadu Soncó é uma máscara de inquietação, sei que me vais esquecer, eu estudei português, matemática, desenho e ciências naturais, deixa-me ir estudar… Fiz-lhe promessas, fui-lhe escrevendo ao longo do tempo, encontrei casualmente um aerograma que ele me enviou em setembro de 1973, já tinha feito a quarta classe, continuava a estudar, trabalhava como escriturário na Polícia Militar, sabia datilografia. Continuando a olhar este meu irmão Cherno Suane, estamos numa coluna que vai em direção a Xime, despedi-me de quem está na ponte de Undunduma, de quem faz vigilância nas obras do alcatroamento da estrada, cumprimentei quem me esperava em Amedalai, alguém subiu para uma viatura para me contar que o PAIGC celebrara o 3 de agosto flagelando o Enxalé, foi fogo de pouca monta porque houve a reação do fogo de obus do Xime.

Estou agora a despedir-me do Cherno, ele vai voltar para o local de trabalho e eu vou apanhar o Metropolitano até ao Saldanha, o pelotão despede-se de mim e eu dele, depois de um aperto de mão a mão direita vai até ao coração, mais uma vez pedi a todos que ajudassem o alferes Reis, ajudam-me a levar a bagagem para dentro da lancha, mostro a guia de marcha, mandam seguir. E é neste exato momento , meu querido Cherno, que eu dei comigo a pensar como iria cumprir os meus sonhos, os olhos não param de se deslumbrar com aquele Geba que parece uma folha dourada, os tufos de vegetação de um lado e do outro, já passámos a embocadura do Corubal, então sento-me, rezo, oiço o ronronar dos motores, venho à amorada e avisto o Ilhéu do Rei, desembarcamos no Pidjiquiti e alguém me leva com a mala para o Vaticano III, um albergue de curta permanência já dentro do quartel de Santa Luzia, a mala seguiu para Brá, para o Depósito de Adidos, anoiteceu, sinto que todos os perigos da guerra estão passados, agora tenho que prospetar o futuro, mas há uma sensação muito dolorosa, minha adorada Annette, começara, eu estava a sentir, aquela dolorosa separação dos meus bravos soldados.

Não sei o que me reserva a reunião com o Diretor da Confederação Europeia dos Sindicatos. Falei telefonicamente com Paolo Adorno e Michel Renard, eles suspeitam que me vão propor um contrato até cinco anos, renovável mais um ano, intuem que me vão propor os pelouros dos Consumidores e da Saúde, já sabem que rejeito categoricamente as áreas da Concorrência e da Agricultura. Das informações que aqui pude obter, é possível obter uma licença registada, por conveniência de serviço em organizações comunitárias, vou ver as condições financeiras que me oferecem, espero que o destino nos prepare uma bonita surpresa. Parece que estou a sofrer daquela inquietação que relatei acima, quando eu sabia de ciência certa que já nada tinha a ver com os meus bravos soldados, não via ser difícil suspender todas as minhas colaborações, poderei até conservar alguns artigos em jornais e revistas, atendendo ao acesso a informações que no futuro disporei. Há a situação dos meus filhos, o Henrique tem presentemente trabalho, vejo-o muito estabilizado, ele e a mulher constituem um casal que vive em rigor orçamental; o Ricardo está presentemente desalentado, ele precisa muito de mim, gostaria de conversar largamente contigo se era possível encontrarmos algo em Bruxelas em que ele se inserisse perfeitamente, a Rita vai de vento em popa. Não quero acrescentar mais nada a esta carta, sei que amanhã vou ter a grande alegria de estar contigo, e que no dia seguinte, muito provavelmente, te transmitirei notícias que te encherão de felicidade. É bem engraçado escrever estas coisas e saber que tu as vais ler algum tempo depois de termos vivido o nosso presente, não achas? Bien à toi, bisous milles, comme toujours, Paulo.


Vejo vezes sem conta a rampa de Bambadinca, aqui cheguei extenuado, vindo de Missirá ou Mato de Cão, muito provavelmente com o Unimog 411 do outro lado da bolanha, pronto para receber bidons de gasóleo ou petróleo, sacos de cimento, rolos de arame farpado, as vitualhas possíveis, aqui se chegava e um pequeno grupo dividia-se com obrigações: uns para as munições, outros para o material de Engenharia, aqueloutros para equipamentos de transmissões, questões relacionadas com a manutenção de viaturas, o economato, o abastecimento alimentar, sempre discutido, por vezes com gritaria, não há isto nem há aquilo, tem latas de chouriço e barricas de pé de porco, umas latas de feijão-verde, e viva o velho. Por vezes tínhamos sorte, disponibilidade de viaturas àquele arremedo de cais, entrar na canoa de Mufali Iafai com as pernas na lama até às coxas, e nunca esqueço a noite de 28 de maio de 1969, viemos de Missirá a trote alta noite para apoiar os flagelados de Bambadinca, o Zé Maria Tavares trouxe-me até aqui, o Geba estava na vazante, tinha uns bons quilos de lodo em cima da farda, mas fiquei feliz, havia um pequeno sinistrado depois de todo aquele angustiante foguetório.

Aqui está a erosão do tempo, é capaz de ser uma daquelas fatalidades das alterações climáticas, a rampa achatou-se, até parece que a laterite se descoloriu, era um caminho vistoso até ao cais, passados todos aqueles anos dói que se farta ver a incúria e o abandono, todos aqueles edifícios podiam ser úteis para as populações, os armazéns estão destruídos, o porto desapareceu, fiquei especado junto à casa de Mufali Iafai, o jovem faleceu e o caminho da bolanha de Finete também desapareceu.

Quantos telefonemas vim fazer para Lisboa na estação dos CTT, era um edifício impecável, tinha pessoal garboso, gente atenciosa, vinha à procura de selos também, não só para a minha correspondência, mas havia quem me solicitasse, por hábitos filatélicos, as últimas edições. À chegada ou à partida cumprimentava este pessoal, de cortesia esmerada.

E também quantas vezes entrei nesta escola para cumprimentar Dona Violete e acertarmos uma hora do chá, ela fazia sempre questão, e apareciam papéis sobre a história da Guiné e recordações dos tempos em que ela fora professora em Gã Gémeos, no início da década de 1950, era um encanto ouvi-la e devo-lhe a iniciação dos estudos deste país fascinante, preso ao meu coração.

Neste dia parto do Xime na lancha de desembarque grande Alfange. Era um cais sólido, preparado para receber pesadas cargas, a navegabilidade do Geba ficou alterada a partir de outubro de 1969, os barcos mais possantes atracavam aqui, só as embarcações civis seguiam até Bambadinca. Ironia do destino, esperaram a minha transferência para Bambadinca para pôr este cais e porto operacionais, aguentei a pé firme as idas a Mato de Cão, ininterruptamente, de agosto de 1968 a outubro de 1969. O cais morreu, o porto também, ficou esta camada de alcatrão que a natureza se encarrega de atapetar, o Xime parecia fadado, com a independência, a ser um porto influente, ali perto está um silo monumental, que deve ter custado uns bons milhões de dólares, nunca foi usado, pode ser exibido como um dos elefantes brancos de gente que sonhava em grande esquecendo que era preciso cuidar dos pequenos.

Este homem que sorri com riso franco chama-se Samba Gebo, assim que me viu chegar a Bambadinca, antigo companheiro de armas, nunca mais me largou. Viemos até à velha ponte do rio de Undunduma, ali perto estava um destacamento infecto onde passei muito sobressalto, pelo temor de uma flagelação brutal, felizmente que nunca aconteceu. A guerrilha do PAIGC atacara Bambadinca vindo por aqui, a partir desse momento criou-se um destacamento onde passávamos a noite e se faziam uns pequenos patrulhamentos de dia, à volta de Amedalai.

Guardei as melhores recordações da Pensão Central, aqui almoçava e jantava durante os meses que fiz cooperação, em 1991. Comida gostosa, preços económicos, por vezes cooperantes interessantíssimos, caso dos holandeses do saneamento básico, os profissionais de saúde da Medicina Tropical, e numa mesa ao fundo, sempre com o seu sorriso doce, Dona Berta, uma senhora que fez milagres aí por 1977, quando não havia praticamente comida em Bissau e aqui nunca faltou a sopa, o prato e a sobremesa aos cooperantes. Um mistério que nunca se irá apurar.

A Fundação Mário Soares recuperou entre o material calcinado pelo vandalismo das tropas senegalesas imagens de rara beleza, que subsistiram das fogueiras feitas por estes colaboradores de Nino que destruíram a maior parte do acervo histórico da Guiné-Bissau. É uma imagem que foi publicada no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, um Mandinga prepara uma esteira.

____________

Nota do editor

Último poste da série de 19 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22730: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (79): A funda que arremessa para o fundo da memória

Guiné 61/74 - P22752: Parabéns a você (2008): Jorge Teixeira, ex-Fur Mil Art da CART 2412 (Bigene, Guidage e Barro, 1968/70) e Manuel Lima Santos, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3476 (Canjambari e Dugal, 1971/73)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 24 de Novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22745: Parabéns a você (2007): Abel Santos, ex-Soldado At Art da CART 1742 (Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69) e António Levezinho, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71)

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22751: A nossa guerra em números (6): o bico-de-obra das viaturas de transporte...


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > "Porto fluvial", no Rio Fulacunda > Montagem de segurança > Um obus 14, rebocado por uma Berliet (que se tornou no auge da guerra a principal viatura pesada das Forças Armadas Portuguesas: em 10 anos, de 1964 a 1974,  a Berliet Tramagal produziu mais de 3500 viaturas Berliet).

Foto (e legenda): © Jorge Pinto (2014). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Gabu > Canquelifá > CCAV 2748 (1970/72) > O Unimog 411 ("burrinho do mato"), depois da explosão de mina A/C em 16 de Abril de 1972.

Foto (e legenda): © Francisco Palma (2017) Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Contabane > Quirafo > Feverereiro de 2005 > Restos, descobertos mais de 30 anos depois, da fatídica GMC (sigla de General Motors Corporation) que serviu de caixão a muita gente, entre civos e militares,  no trágico dia 17 de Abril de 1972, na picada de Quirafo (entre o Saltinho, Contabane e Dulombi).

Foto (e legendagem(: © João Santiago / Paulo Santigao  (2006).Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Bafatá > Xitole > 1970 > Uma coluna logística, vinda de Bambadinca, passa pela Ponte dos Fulas, sobre o Rio Pulom, a caminho do Xitole (CART 2716, 1970/72).. Era habitual viaturas civis, alugadas pelas autoridades de Bambadinca, sede do setor L1 (neste caso, o BART 2917), integrarem essas colunas, por falta de veículos de transporte pesados.


Foto (e legenda): © Humberto Reis  (2006).Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região do Cacheu > Teixeira Pinto > Pel Rec Daimler 3089 (Teixeria Pinto, 1971/73) > Janeiro de 1972 >  A “oficina” do Pelotão Daimler, É visível o 1º cabo mecânico David Miranda que fazia o "milagre" de manter as viaturas sempre operacionais. Chegámos a ter duas ou três Daimlers, vindas da sucata de Bissau, para "canibalizar". Ao trabalho do Miranda muito ficou a dever o sucesso do Pelotão.

 Foto (e legenda): © Francisco Gamelas   (2016).Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Caro/a leitor/a: sabia que...

(i) nos anos 60 do século passado, e para satisfazer as necessidades logísticas da guerra do ultramar / guerra de África / guerra colonial, nos teatros de operações de Angola, Guiné e Moçambique, o Exército Português teve de fazer aquisições de armamento e viaturas, no valor de 6 mil e 294 milhões de contos, o que, convertida a valores de hoje,  equivaleria a mais de 2 mil e 300 milhões de euros (, o equivalente ao orçamento da defesa nacional previsto para 2022);

(ii) no que diz respeito às viaturas militares, durante os anos em que se fez a sua renovação,  as despesas anuais, a preços de hoje, foram da ordem dos 200 milhões de euros: aquisição de viaturas novas como o jipes Willys, a vaitura média Unimog e a viatura pesada Berliet;

(iii) é em 1962 que aparecem os Unimog, de fabrico alemão: o Unimog 3/4 t Diesel (, o famoso "Burrinho do Mato", o Unimog 411; e o Unimog 4 de 1,5 t, o Unimog 404, mais versáteis,  e com ómelhor capacidade de adaptação ao terreno, em substituição das viaturas norte-americanas (jipões 3/4 t, GMC, Bedford, Chevrolet,  etc.) (a razão, para lá da versatibilidade e o consuno, tinha a ver com  o facto de os norte-americanos terem passado  a cumprir a resolução da ONU de boicote de equipamento militar a Portugal, fora do âmbito da NATO);

(iv) em 1965, o Exército português já dispunha no ultramar de 2 mil Unimog... mas as dificuldades burcoráticas atrasavam a entrega de viaturas novas e de sobresselentes: por exemplo, em Angola, em 1967, o número de viaturas (ligeiras, médias e pesadas) inoperacionais era das ordem dos 60% (!);

(v) o Unimog (acrónimo do alemão UNiversal -MOtor - Gerät) era produzido pela Mercedes Benz, tendo-se tornado na viatura média mais usada na guerra do ultramar; O 411 gastava 12 litros de gasóleo aos 100, e atingia a velocidade máxima de 53 km; o 404 ia aos 20 litros de gasolina aos 100, e atingis os 95 km /hora; 

(vi) em 1964, passou a produzir-se em Portugal a Berliet, sob licença francesa, a uma média de... 140 unidades anuais (, tendo passado mais tarde às 600); de 1964 a 1974, a Berliet Tramagal (a metalúrgica Duarte Ferreira) produziu 3549 viaturas para as Forças Armadas, ou seja 350 em média  por ano; a Berliet tornar-se-ia a principal viatura pesada nos 3 teatros de operações...

2. Cada subunidade  (companhia) deveria ter, em princípio, a seguinte frota ou parque de viaturas: 

(i) 3 a 4 viaturas ligeiras (jipes); (ii)  6 viaturas médias (3/4 t) (Unimog); e 3 viaturas pesadas (Berliet, Mercedes, GMC)...

A CCS do batalhão tinha uma frota maior: (i)  5 a 8 viaturas ligeiras (jipes); (ii) 4 a 6 viaturas médias (Unimog,  404 e 411), mais  3 viaturas automacas; e (iii)  3 a 5 viaturas pesadas (GMC; Mercedes, Berliet...) 

Acrescente-se, da minha experiência e do conhecimento da minha CCAÇ 2590 / CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71), não me lembro de haver mais de um jipe, nem nunca lá vi nenhuma Berliet... E muito menos automacas (Unimog)

3. Mas a situação do material auto (aquisição de viaturas novas para substituição das inoperacionais e perdidas, fornecimento de sobresselentes, manutenção e gestão...) foi sempre um bico- de-obra durante toda a guerra, nos três teatros de operações... 

Na Guiné, recorria-se a viaturas civis para transporte de material, nas colunas logísticas. Dadas as características do terreno, clima, tipo de guerra, etc., o desgaste e a perda de material auto tinham que ser elevadas.

Por exemplo, em 1967, na Guiné existiam 2238 viaturas,  das quais 48% (!!!) estavam inoperacionais... Em 1971, a situação não era melhor. Veja-se o nº de viaturas, por tipologia (e entre parênteses a percentagem de inoperacionais):
  • 774 jipes (49%  inoperacionais);
  • 704 Unimog  404 (39,5% );
  • 438 Unimog 411 (26%);
  • 255 GMC (48,5%);
  • 119 Mercedes 322 (63%);
  • 98 Berliet (38,5%).
Já não falando das viaturas blindadas, as autometralhadoras, mais de 2/3 das quais estavam inoperacionais (!!!)... "En passant", havia em 1971, no TO da Guiné as seguintes viaturas blindadas:
  • 16 Panhard (25% inoperacionais);
  • 10 Fox (60%);
  • 108 Daimler (75%).

Tomando como referência os anos de 1966 e 1967, verifica-se que há, nos teatros de operações ultramarinos, em 1967: (i) 3000 viaturas ligeiras 1/4 t  (jipes), menos cerca de 30% do que em 1966: (ii) 6500 viaturas médias 3/4 t, mais 75% (relativamente ao ano anterior); e (iii) 1800 viaturas pesadas, menos de 9 % (por comparação com 1966). A ter havido alguma melhoria foi graças à entrada da Berliet e do Unimog.

Por exemplo, em 1968 a situação nos 3 teatros de operações era grave, justificando a urgência da aquisição de 7 mil viaturas: 4 mil para ultrapassar a fasquia dos 75% do quadro orgânico de cada unidade; e o resto para substituir as viaturas inoperacionais e perdidas que, na altura, em 1968/69, seriam da ordem dos 20% - 25% (o que nos parece subestimado).

A "doutrina em vigor era substituir, todos os anos, em média,  600/700 jipes, 1200/1500 Unimog, e 360/450 viaturas pesadas (Berliet, Merecdes)... O que nunca se conseguiu por falta de verbas...

De qualquer modo, temos que reconhecer aqui "o engenho e a arte" (esforço, dedicação, competência, desenrascanço, imaginação) dos nossos mecânicos auto (, o pessoal da "ferrugem", de resto mal representado no nosso blogue). Sem esquecer os nossos heróicos condutores auto que faziam das tripas (caixa de velocidades, travão, volante, guincho, etc.) coração!

Para o dispositivo militar existente em 1966, pode-se dizer que faltavam mais de um terço (35%)  das viaturas necessárias para as forças que estavam no terrno, situação que se veio a agravar com o reforço de efetivos em 1968, na Guiné e Moçambique.


Fonte: Adapt de Pedro Marquês de Sousa, "Os números da Guerra de África". Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, pp. 204-212, e 294-299.
__________

Guiné 61/74 - P22750: Efemérides (356): Thanksgiving - Dia de Acção de Graças - Fomos recebidos sem reservas pelos EUA. Em troca apenas nos pediram que compreendêssemos e respeitássemos as suas instituições (José Câmara, ex-Fur Mil)


1. A propósito do Dia de Acção de Graças que hoje se festeja nos Estados Unidos da América, o nosso camarada José Câmara (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), enviou-nos esta mensagem:

Familiares e amigos,
Alguns anos atrás, no Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, tive a oportunidade de endereçar uma mensagem pelo Thanksgiving, o Dia de Acção de Graças na grande Nação Ameriana. É porventura o maior feriado familiar americano. Este ano está previsto que cerca de 48 milhões de americanos viajarão para se encontrarem com os familiares.

Tal como então, a mensagem que então enderecei continua bem viva e a única coisa que mudou foi o tempo desde então, Os sentimentos são os mesmos.


Meus queridos familiares e amigos,
Amanhã, Quinta-Feira, irei celebrar o Dia de Acção de Graças nos Estados Unidos da América.
Eu e muitos de nós escolhemos este grande País americano para nossa segunda Pátria. Aqui fizemos as nossas vidas, formámos e vimos crescer as nossas famílias, realizámos muitos dos nossos sonhos. De uma maneira geral fomos recebidos sem reservas pelos EUA. Em troca apenas nos pediram que compreendêssemos e respeitássemos as suas instituições. Na verdade, pediram muito pouco para aquilo que recebemos em troca.

Sou agradecido e penso que a maioria dos que aqui vivem me acompanham nesse sentimento. Também celebro com estes. Lá longe, onde a Europa acaba e a América começa vivem muitos familiares, companheiros e amigos da escola, da minha juventude, do trabalho, do desporto.

Do serviço militar reconheço os camaradas que ao longo dos anos viveram as mesmas horas de aflição, os mesmos sacrifícios e também os grandes momentos de alegria e camaradagem, que também os houve, que só a guerra do Ultramar poderia proporcionar.
Se me permitem, deixem-me também celebrar o dia de Ação de Graças, o Thanksgiving Day, no meio de vós, nos dois lados do Atlântico.

Com um abraço,
JC

____________

Nota do editor

Último poste da série de 23 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22744: Efemérides (355): Eduardo Jorge Ferreira (Lourinhã, 1952-Torres Vedras, 2019): dois anos de saudade (Rui Chamusco)

Guiné 61/74 - P22749: In Memoriam (419): Tibério Paradela (1940-2021), capitão da marinha mercante, um "lobo do mar" ilhavense, que nos deixa um notável testemunho da epopeia da pesca do bacalhau, no seu romance "Neste mar é sempre inverno"




Tibério Paradela (1940-2021), um "lobo do mar", natural de  Ílhavo, capitão da marinha mercante, reformado,  irmão mais novo do nosso amigo, o arquiteto António José Paradela, 



1. Acabámos, ontem, ao fim da tarde,  de receber a dolorosa notícia da morte de mais um amigo, o Tibério Paradela. Sofria de doença de evolução prolongada. O funeral é na sexta feira, à tarde. Tinha 81 anos.

Em março passado, talvez premonitoriamente,  já se tinha despedido do seu velho conpanheiro, o mar, conforme carta publicada em "O Ilhavense" (Vd. abaixo a reprodução dessa belíssima "carta de despedida"... ou de reconciliação ?!).

Eis alguns apontamentos sobre a sua vida:

(i) capitão da Marinha Mercante reformado;

(ii)  nascera em Ílhavo, em 1940;

(iii) concluiu o curso de Pilotagem da Escola Náutica em 1960;

(iv) embarcou como praticante de piloto em 1961, no arrastão "Santa Mafalda";

(v) e, no ano seguinte, aso 21 anos, como imediato no navio bacalhoeiro à linha "Novos Mares" , entre 1962 a 1964: esta embarcação foi o  último bacalhoeiro em madeira, construído na Gafanha da Nazaré, fez parte da Frota Branca até 1986, data em que foi abatido à frota por ordem do Secretário de Estado das Pescas. (Em 1991 foi oferecido para se transformar em museu, o que nunca se concretizou; por incúria, deleixo ou crime, acabou por se afundar no porto de Aveiro.)

(vi) trabalhou depois a cabotagem na costa de Moçambique, foi comandante de cargueiro, piloto da barra no Porto da Beira (Moçambique), superintendente duma Companhia de Estiva no Porto da Beira (Moçambique), e comandante de navios mercantes nas linhas do Norte da Europa, Mediterrâneo e Norte de África, Ilhas, Moçambique, Angola, África do Sul, Golfo da Guiné;

 (vii) 
 terminou a carreira profissional no Lobito (Angola) na indústria petrolífera.

(viii) vivia na Costa Nova, concelho de Ílhavo, tal como o nosso camarada Jorge Picado (de quem, de resto, os irmãos Paradela são amigos).

(ix) aproveitando o tempo da reforma, fez parte de diversas tertúlias, dedicou-se a causas socias  e estreou-se também na escrita;

(x) deixa publicado, um romance (ou obra de ficção) que tem como horizonte temporal a campanha da pesca do bacalhau na Terra Nova e na Groenlândia, entre abril de 1965 e abril de 1966: "Neste mar é sempre inverno", edição de  autor, Aveiro, 2014, 262 pp.; imagem da capa, à esquerda, da autoria do arquiteto  e nosso amigo, José António Paradela, irmão do autor, e natural de Ílhavo; o livro teve uma 2ª edição em 2016.)

(xi) deixa também, ao que sabemos, vários contos inéditos.


2. Temos 3 postes com notas de leitura do seu livro (**), sobre o qual escrevemos:

(...) Se o livro tivesse sido escrito (e publicado) ainda no tempo do Estado Novo, teria pela certa um título mais prosaico e pitoresco: "Cenas da vida da pesca do bacalhau". Mas não, não de trata de um livro de memórias, muito menos de registo etnográfico das campanhas do bacalhau e da vida a bordo nos últimos barcos da pesca à linha da nossa "frota branca". Não é sequer um simples diário de bordo duma viagem, de seis meses, aos bancos de pesca da Terra Nova e da Groenlândia. O que não quer dizer que o livro não tenha uma grande riqueza de informação etnográfica, recomendando-se a sua leitura também por essa razão adicional.

"Neste mar é sempre inverno" é um título de homenagem aos homens do mar. Na pág. 105, percebe-se melhor a escolha do título. O autor atribui ao filósofo grego Platão a afirmação segundo a qual haveria 3 espécies de homens: "os vivos, os mortos e os homens que andam no mar"...

Mas por que é que os homens do mar teimam em sê-lo pela vida fora, de modo contínuo ? Para Tibério Paradela, há uma razão, "talvez a única", para explicar por que é que o homem do mar o é para toda a vida: seria o "esquecimento". E esclarece o autor:

"Não o varrimento da memória, mas o alijamento das agruras e anmraguras para o sótão das lembranças indesejadas numa sucessão infalível, porque no mar é sempre inverno" (p. 105).

Poderia tresler-se: "neste mar é sempre inferno"... Neste mar, e na frota branca do bacalhau!

É esta epopeia, já esquecida pelos portugueses nascido no pós-25 de abril, que prende o leitor ao longo das mais de 260 páginas do romance. Li e reli o livro e tirei inúmeras notas de leitura, algumas das quais vou aqui partilhar, com todo o gosto, com os leitores do nosso blogue. (...).

3. Deixo aqui a minha homenagem, de apreço e saudade, ao Tibério Paradela, com quem convivi, embora esporadicamente,  nas minhas passagens pela Costa Nova, de visita ao irmão e à Matilde. A esposa, filhos, netos e ao seu mano Zé António Paradela, e demais amigos da Costa Nova, deixo aqui a expressão da nossa solidariedade na dor.

Reproduzo também dois textos da sua autoria, um soneto e uma crónica. 

Toldaram-se-te os olhos, marinheiro,
Quando pra trás olhaste e já não viste
A terra, que deixaste em adeus triste,
Chorado no convés do teu veleiro.

Se és tu do mar o grande caminheiro
Em busca de destinos que cumpriste;
Se o fado teu, ao qual nunca fugistes,
Já fez de ti, no mundo, o Ser primeiro,

Então, enxuga as faces, meu guerreiro,
E volta para a frente o teu olhar.
Não vá esse inimigo traiçoeiro

A quem, por toda a parte, chamam mar,
Revoltar-se e engolir-te por inteiro
Numa onda vilã que vai passar!

In: Paradela,  Tibério - Neste mar é sempre inverno. Edição de autor, Aveiro, 2014, p. 12.  


Carta a um Companheiro

por Tibério Paradela

 O Ilhavense,  10 de Março de 2021


Decidi despedir-me. Despedir-me de ti!

Faço-o por escrito para que fique a constar dos teus vastíssimos arquivos, não caindo, assim, no esquecimento das palavras que o vento leva.

Foste meu companheiro mais de três décadas e isso, só por si, devia ter feito nascer entre nós uma relação forte, impregnada de amizade e admiração mútuos. Porém, quis o teu mau humor tão frequente que, da minha parte, a confiança em ti se esgotasse na passagem do tempo.

Não posso esquecer as tuas ameaças, os repentes dos teus humores, as tuas ciladas. Assim, obriguei-me a aprender a lidar contigo, sempre de prevenção, para não cair nas garras dos teus poderes.

Até que, um dia, decidi encarar-te de frente com a coragem que os fracos também sabem assumir quando as ameaças começam a roê-los por dentro. Curiosamente, a partir daí, a nossa relação melhorou bastante. E foi numa certa indiferença por ti que encontrei a solução final.

Mas, para que as coisas não fiquem assim, companheiro, quero revelar-te que sinto que nem tudo foi mau entre nós! Proporcionaste-me lindos passeios, conheci muitos e lindos países, cidades maravilhosas, gentes as mais diversas. 

Deste-me também a possibilidade de me situar na vida, construir uma carreira, cimentar uma personalidade. Afinal, tu mais que ninguém, viste-me crescer e ensinaste-me a crescer. Sim! Porque trinta e tantos anos não são trinta e tantos dias; porque a dureza das relações nem sempre é perniciosa; e porque no fundo, no fundo, as tuas fúrias são filhas do vento, deixemos para esse maldito vento a expiação dos meus descontentamentos!

Afinal tu, MAR, sempre foste meu amigo! E, se calhar, quando eu te rogava coriscos, estavas tu, nos teus rugidos, a pedir ao vento que te deixasse em paz. Assim, não posso deixar de fazer as pazes contigo e enviar-te aquele abraço salgado com estes pequenos braços humanos que te querem apertar com tanta força quanta aquela que tu tens.

O teu companheiro e amigo,

Tibério


P.S. – MAR! Vou enviar cópia desta carta ao Criador. Ao nosso Criador! E pedir-lhe que prolongue tanto quanto Lhe aprouver o meu crepúsculo para que eu, por muitos, muitos anos, continue a ouvir falar de ti!
Uma crónica de Tibério Paradela

___________

Notas de leitura:

(**) Vd. postes de:

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22748: (De)Caras (183): Revivendo e partilhando (João Crisóstomo, Nova Iorque, de Visita a Portugal)

1. Mensagem do nosso camarada João Crisóstomo, a residir em Nova Iorque, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67), enviada ao nosso Blogue em 16 de Novembro de 2021:

Caros camaradas,
Sempre que vou a Portugal uma das minhas prioridades é tentar contactar pessoalmente aqueles que me são queridos e a quem apenas consigo contactar por telefone ou E-mail durante todo o ano. Se a alguns consigo fazê-lo individualmente a maioria sejam estes membros de família, camaradas da Guiné ou simplesmente amizades feitas ao longo dos anos, apenas consigo fazê-lo em ocasiões pre-combinadas que me permitem ver e encontrar várias pessoas ao mesmo tempo.
Evidentemente que “férias em Portugal” quer dizer sempre viajar um pouco. E foi nestas viagens que tive ocasião de fazer algumas visitas já mencionadas em ocasiões anteriores quando tive a grande satisfação de visitar o Valdemar Queiroz e o Francisco Pinho da Costa. Este último nunca o tinha visto mais depois de termos sido vítimas duma mina, ocasião em que fracturou as pernas e foi evacuado para Bissau e depois para Portugal. Tive muita pena de não me ter sido possível visitar vários outros que sabia estarem com problemas de saúde ou outras razões que que não lhes permitiam deslocações. A alguns até já contactei depois de ter voltado a Nova Iorque. A outros farei o possível para os contactar brevemente, tanto mais que a época de Natal e Ano novo se aproximam.
Entretanto aqui estão algumas fotos, queridas todas pois são elos entre mim e outros que me são queridos.


Esta foto foi tirada no Algarve. O Henrique Matos encarregou-se de combinar com os outros três a melhor maneira de nos vermos e vieram os quatro ter comigo ao Hotel Vila Galé em Tavira onde eu e a Vilma, acompanhados pelo Rui e Virginia a quem tínhamos convencido a vir connosco, fizemos a nossa base nesses poucos dias no Algarve. A Vilma, convencida a ficar na foto para esta ficar mais bonita, foi depois ter com o Rui e Virginia. E nós cinco, - eu , Henrique Matos, Teixeira, Chico e Viegas - ( que faz hoje anos e a quem por telefone já dei um abraço, interrompendo o seu almoço com amigos) ficámos a matar saudades, revivendo momentos, partilhando notícias e lembrando camaradas; como sempre sucede nestas ocasiões.
Reviver a Guiné, pelo menos para mim, mas creio que é mais ou menos geral este sentir, não importa quantas vezes o fazemos, é quase sempre como se fosse a primeira vez depois das vividas experiências passadas. Doloroso porém quando aqueles camaradas que connosco viveram esses momentos não estão mais entre nós. Ao fim de duas horas e um abraço forte despedido-nos… "até à próxima vez, talvez no próximo ano, se Deus quiser”.

O claustro do convento de Varatojo foi o lugar de encontro com os meus familiares e amigos este ano. E porque entre os meus familiares tenho alguns que foram também meus camaradas na Guiné e outros que partilharam comigo as vivências de Seminário, na missa que precedeu o nosso encontro eu pedi ao Padre Melícias, celebrante para lembrar duma maneira abrangente todos os camaradas da Guiné ou de Seminário já falecidos. Como a foto revela foi pequeno o número de presentes este ano. Razões de idade, agora agravadas pela ainda presente covid assim o exigiram.

O viver próximo de Luís Graça, Rui Chamusco e a São, esposa do saudoso Eduardo Ferreira, facilitaram-me encontros e momentos daqueles que me fazem sentir o quão maravilhosa pode ser a vida de cada um de nós. Basta sabermos não perder as boas oportunidades. O sorriso na cara de cada um, incluindo em outros queridos/as presentes nesses momentos, dá bem idéia da amizade e alegria que todos sentíamos naquele momento.

Outros momentos me ficaram na memória e coração, mas que devida à minha pouca perícia em coisas digitais não me ficaram devidamente registados apesar das boas intenções nesse sentido. Mesmo sem as devidas fotos, recordo já com saudade os momentos com Manuel Leitão (o Mafra); as visitas ao Forte de Castro Marim, no Algarve, quase na fronteira com a Espanha, onde o Infante Dom Henrique que aí chegou a viver foi o primeiro Grão Mestre da Ordem de Cristo, herdeira dos privilégios e propriedades da extinta Ordem dos Templários.
Entre outros momentos dignos de registo lembro uma visita à Coudelaria de Alter do Chão com os seus famosos cavalos e a sua “escola de faisões", única no género em Portugal. No Crato fui encontrar o túmulo, original dizem, de Don Nuno Álvares Pereira… e em Castelo de Vide, graças a uma dica do Luís Graça, fui encontrar uma sinagoga e o que resta de uma povoação que recebeu milhares de refugiados aquando da instalação da Inquisição na Espanha.
E outros lugares que me fazem ver que cada vez que me desloco dum lado para outro o quanto há para conhecer e visitar.

Que ficam para a próxima vez, se Deus quiser.
João Crisóstomo, Nova Iorque

____________

Nota do editor

Último poste da série de 9 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22699: (De)Caras (182): os dois "ponteiros" de Bambadinca, o velho Brandão (da Ponta Brandão) e o histórico Inácio Semedo, de quem o Amílcar Cabral foi padrinho de casamento - II (e última) Parte

Guiné 61/74 - P22747: Memória dos lugares (432): Tabatô, a tabanca da utopia, a 10 km, a nordeste de Bafatá - Parte III


Guiné-Bissau > Bissau > Dezembro de 2009 > Hotel SPA Coimbra, sito na Av Amílcar Cabral >   Da esquerda para a direita, o João Graça, músico e médico,  português, o Mamadu Baio (músico da tabanca mandinga de Tabatô,), Victor Puerta (cooperante espanhol / Barcelona, ONG Intercanvi), Catarina Meireles (médica portuguesa), Jandira (só se vê o rosto,  guineense, à data era namorada do Alexandre Lopes um dos donos do Hotel SPA Coimbra)...

A menina da frente e o primeiro rapaz (de pé.  não recordo o nome, convivi pouco, ) eram namorados, e estavam em cooperação mas no âmbito informático/administrativo em Bissau. Também já não  recordo se eram portugueses.

A última pessoa sentada é a Enf Luísa, de Coimbra, no mesmo projeto que eu - ONG Saúde em Português. Éramos como D. Quixote e Sancho Pança (não sei quem era o quê... ehehe) e auto-batizamo-nos de Catarina Sanhá e Luísa Baldé .... ehehehehe.

O último senhor em pé é o Dr. Miguel Lopes - dono/proprietário do Hotel (com o irmão Alexandre e a mãe, D. Francelina).
 
Local: lobbi bar do restaurante do Hotel Spa Coimbra (recentemente inaugurado). Este jantar foi-nos oferecido, a mim e à Luisa, em gratidão à alegria que levávamos à Casa (e despedida antes de Natal... também)!
 
Foi-nos permitido convidar amigos e, de entre aqueles que estavam em Bissau e podiam vir... resultou esta fabulosa moldura humana.

Legenda: Catarina Meireles (2021)
 
Foto: © João Graça  (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complemenetar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné-Bissau > Região de Bissau > Tabatô > 28 de Novembro de 2009 > A cerimónia do Tabaski... em que pela 1ª vez participaram três europeus, não-muçulmanos, duas portuguesas e um espanhol... Uma das portuguesas foi a Catarina Meireles, médica, que aparece nas fotos a seguir,  nas fso (a 3ª, a contar de cima), com uma criança mandinga ao colo; e na 2ª, partilhando a refeição)... Na 1ª foto, de cima  a temos uma vista geral da assembleia, durante a cerimónia do Tabaski, na aldeia mandinga de Tabatô, a ea nordeste de Bafatá, a escassos 10 km. 



Guiné-Bissau > Região de Bissau > Tabatô > 28 de Novembro de 2009 > Festa do Tabaski >  O Mamadu Baio ,. à esquerda, partilhando a refeição do dia com a Catarina  Meireles e um putro estrangeiro


Guiné-Bissau > Região de Bissau > Tabatô > 28 de Novembro de 2009 > Festa do Tabaski >  A Catarina Meireles com um menina mandinga
 

Fotos (e legendas): © Catarina Meireles   (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complemenetar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Tabatô > 16 de dezembro de 2009 > 9h30 > O chefe da aldeia, Mutar Djabaté, pai do músico Kimi Djabaté, e ele próprio um grande balofonista (tocador de balafon)... É um dos atores principais do filme do João Viana, "A batalha de Tabatô" (2013), juntamente com Fatu Djabaté e Mamadu Baio. Sinopse do fil
me: "Depois de anos a viver em Portugal, o pai de Fatu regressa a África para assistir ao casamento da filha com Idrissa Djebaté. Ela é professora universitária e seu futuro marido é um músico conhecido. A festa de casamento é em Tabatô, um lugar extraordinário onde todos os seus habitantes são, há 500 anos, músicos djidius, cantores-poetas que narram contos e lendas representativos da vida africana. No caminho até lá, à medida que as recordações se avivam, o velho senhor começa a revelar traumas esquecidos da sua juventude, enquanto soldado mandinga na guerra colonial, décadas antes.

Filmado na Guiné- Bissau, é a primeira longa-metragem de ficção de João Viana, que foi distinguido com uma menção honrosa na edição de 2012 do Festival Internacional de Cinema de Berlim." CineCartaz / Público.

Foto (e legenda): © João Graça   (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 

1. Tabatô passou-nos completamemte ao lado, ao tempo da guerra colonial, Era uma aldeia, discreta, de músicos, com raízes ancestrais no antigo império do Mali e depois no reino do Gabu, Fica a 10 km, a nordeste de Bafatá, do lado direito da estrada que segue para Contuboel (e a cerca de 15 km, a sul desta povoação, onde  alguns de nós estiveram no respetivo Centro de Instrução Militar, em 1969)(*).

Depois da independência da Guiné-Bissau, form etnomusicólogos, como o canadiano Sylvain Paneton quem pôs Tabatô no mapa, com um estudo "seminal", de 1987, sobre o "balafón" (**).

Mas só em março de 2010 é que se realiza o Festival de Cultura Tradicional do Balafon, que traz à aldeia a conunicação social (rádio, televisão, jornalistas, nacionais e estrangeiros). Mas uns meses antes a aldeia era visitada por potugueses, como o João Graça e a Catarina Meireles, ambos médicos. Notável é o facto de, sendo mulher, a Catarina  ter conseguid conseguido  mesmo assim participar na festa do Tabaski (***), o que a antropóloga social brasileira   ainda não conseguira. É desta investigadora o importante estudo sobre a música afro-mandinga, com raiz em Tabató (****):

Eis alguns excertos sobre Tabatô e a sua população e a sua história, extraídos da tese de doutoramento da Carolina Carret Höfs, com a devida vénia:

(...) Está localizada a 12 km de Bafatá, na zona leste do país, e (...) é conhecida pela sua população ser maioritariamente de griots ["djidius"] , apesar de ser dividida em duas metades.

(...) A segunda metade é habitada pelos descendentes do régulo fula. Há ainda em Tabato uma família que é tida como de cativos, sendo o patriarca destes o homem mais velho da tabanka, mas que não tem a autoridade do patriarca de apelido griot.

(...) Embora considerada uma tabanca mandinga, Tabatô está sob o regulado de um homem fula, que mantém uma certa autoridade sobre os mandingas que ali vivem, como podemos ver na maneira como exerce a sua autoridade nas reuniões na mesquita, em que se fala fula, e nas reuniões sobre assuntos da tabanca, como foi a dos preparativos para o Festival de Cultura Tradicional do Balafon, realizado em Março de 2010 [e que deu grande visibilidade nacional e até internacional a Tabatô].

Naquela altura, era imprescindível o aval do régulo fula como também de um guia de visitas, que foi preparado para receber a comitiva vinda de Bissau. A casa do régulo antigo estava entre os outros pontos de interesse, como o polón (a grande árvore em que está enterrado o patriarca), o mato sagrado, a casa-museu. (pág. 63)

(...) Tabatô é uma pequena aldeia formada por uma moransa de descendentes do régulo fula
responsável pela vinda da família de Bundunka Djabaté para aquela zona do país. Estas casas foram construídas na primeira metade da aldeia, ao passo que os descendentes do griot mandinga ocupam a segunda metade das terras.

Estava-se nos fins do século XIX, quando Bundunka Djabaté chegou a Tabatô com as
suas esposas e os seus dois filhos, partindo de Kankan na Guiné-Conakry, a chamado de um
régulo fula cuja família, pouco a pouco, se foi espalhando por outras tabancas que pudessem nomear em língua fula, ao contrário do que se passou em Tabatô, uma das poucas localidades com nome mandinga que restaram depois da Guerra de Cansalá, quando o Império do Futa- Djalon se instalou onde antes estava o Reino do Gabu, última fronteira do Império do Mande (...).

Tabatô é uma referência também para griots de outras famílias na Guiné-Bissau, que
foram até lá para estudar com Ba Djabaté, e outros “grandes”, a arte do balafon e da djaliá. (pág. 214).

(...) Mutar Djabaté é hoje o homem grande de Tabatô, descendente do fundador da tabanca e, como chefe de família, ele é papesinho (pai pequeno) das gerações mais jovens, razão pela qual lhe devem respeito e sempre lhe apresentam, a ele e ao Conselho da família, as suas vontades, projectos e ideias. (...) (pág. 75)

(...) Até ao fim dos anos 1970 [, ou seja, desde a administração portuguesa até ao fim do regime de Luís Cabral ], os griots [ leia-se "djidius", em crioulo ] que ali estavam [ em Tabatô] viviam quase exclusivamente da sua arte [, atuando em festas, casamentos, choros...] o que ao longo do tempo se tornou insustentável pela própria conjuntura do país, obrigando muitas famílias a voltarem-se para a agricultura de exportação [ ,caso do caju, em particular], (e não apenas de subsistência, como acontecia até então), e entrando também nos grandes circuitos do êxodo rural [, estabelecendo-se em Bissau, por exemplo] e da migração internacional [, países vizinhos, Lisboa, Paris, Londres...] (...) (pág, 214).

(...) Na Guiné-Bissau e em Lisboa, os griots se apresentam não apenas em festas de
casamentos e baptizados ou no tabaski (a festa que celebra o fim do jejum do Ramadão),
como também participam em eventos voltados para o activismo social e engajamento em
questões sociais, como a dos direitos das mulheres, por exemplo. Entretanto, acompanhando
os diferentes contextos em que essas festas e suas actuações se dão, podemos perceber uma
diferença na maneira de se apresentar e realizarem sua performance, muito embora em todos eles preza-se por manter o propósito do djumbai, ou seja, do levar diversão às pessoas
presentes, mantendo aceso um dos propósitos da djaliá. (...) (pág. 157).

 
2. Grande exemplo do ecumenismo e da hospitalidade que em 2009 já se praticava em Tabatô,  é este relato da (Ana) Catarina Meireles (que hoje vive em Braga e é especialista em medicina geral e familiar). Merece voltar a ser reproduzido aqui no nosso blogue (***).


O Tabaski em Tabatô

por Catarina Meireles


No passado fim de semana (26-27 de nivembro de 2009) fui ao Tabaski - cerimónia de imolação do carneiro (por analogia: Páscoa dos Muçulmanos).

Depois de muitas resistências, dúvidas, declinações... lá consegui que me deixassem assistir ao ritual ("eucaristia") numa tabanca perto de Bafatá, de seu nome Tabatô - muito especial, particularmente pela sua forma de vida comunitária, que assenta na música e dança étnicas. São fabulosos!

Fui com mais uma amiga (portuguesa) e um amigo (espanhol). Vestimos roupas típicas, ocupamos as posições indicadas (segundo a ordem social vigente) e imitamos tudo o que nos diziam para fazer... E não me senti diferente... ao contrário, até me senti mais especial!

No fim do ritual, chamaram-nos (aos 3 brancos) para junto dos Homens Grandes e ajoelhámos em círculo.

Para quê? Para dar graças a Alá por esta dávida - pela primeira vez 3 brancos visitaram aquela tabanca no dia do Tabaski. Era um sinal divino de prosperidade e de vida longa (incluindo para nós!)

As explicações foram reforçadas várias vezes para que percebessemos o quão importante e bem-vinda era a visita dos 3 brancos.

Eu disse...
- Sim, 3 é número sagrado!

Eles rejubilaram com o entendimento do misticismo!

Foi-me pedido que falasse... e falei. Pedi uma cadeia de união - corrente de mãos dadas. Expliquei como fazer e disse:
- Não há preto, não há branco, somos todos irmãos... daí esta cadeia de união.

E do meu lado esquerdo soou uma voz meiga, dum dos homens que me acolheu nas 3 vezes que fui a essa tabanca:
- Obrigado, Fátima de Portugal!

Catarina Meireles

Bafatá, 1 de Dezembro de 2009


3. Mensagem da Catarina Meireles (que foi minha aluna em 2007, na ENSP / Universidade NOVA de Lisboa), com data de 22 do corrente (, respondendo a uma mensagem minha, e ao meu comentário: "Catarina, que bom saber de si, ter notícias suas, sentir que continua a ser o mesmo maravilhoso ser humano que eu conheci há de mais uma boa dúzia de anos, não ?!"):

(...) Bom dia a todos! Estive lá, na mesma altura com do seu filho João. Fui algumas vezes, a Tabatô, por ser realmente perto de Bafatá. Lá vivi o Tabaski (matança do carneiro) de 2009... E partilhei consigo, Professor. Aldeia verdadeiramente especial, Pessoas incríveis... Ainda hoje as sinto.


E sabe o curioso? Em 2010 fui a Cabo Verde, à ilha da Boavista... E num dia a passear pela rua se vendedores de artesanato encontrei alguém... Um homem dessa aldeia de Tabatô - uma Alegria imensa para ambos!!!

Eu dei-lhe "notícias da terra", pois não ia lá há anos... Contei-lhe do terreiro, festas para turistas, do novo poço da aldeia, da escola, das filhas do primo Figgi...

Os dois, de lágrimas nos olhos e coração cheio, demos um Abraço que só a Fraternidade Universal pode entender!

Manga di  Mantenhas!
Que bom recordar depois de tantos anos... (parece que foi ontem) 

Ana Catarina Meireles (...)


____________

Notas do editor:

(*) Vd. postes de 


22 de novembro de  2021 > Guiné 61/74 - P22741: Memória dos lugares (431): Tabatô, a tabanca da utopia, a 10 km, a nordeste de Bafatá - Parte II

(**) Vd. Sylvain Paneton . Le balafon mandinka mori. Compte-rendu et perspectives de recherches et d’études en Guinée-Bissau. Dissertação de Mestrado de Artes em Musicologia
apresentada à Faculdade de Música da Universidade de Montreal, 1987  (Mimeo).

(****( Vd. poste de 8 de julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6695: Memória dos lugares (89): Bafatá, Tabatô, Tabaski 2009: Não há preto nem branco, somos todos irmãos, disse a Fátima de Portugal numa cadeia de união... (Catarina Meireles)

(****) Carolina Carret Höfs - Griots cosmopolitas : mobilidade e performance de artistas mandingas entre Lisboa e Guiné-Bissau. Tese de doutoramento em antropolgia social. Lisboa: Universidade de Lisboa, 2014, 271 pp.  Disponível em https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/12136/1/ulsd068997_td_Carolina_Hofs.pdf
 
 

Guiné 61/74 - P22746: Historiografia da presença portuguesa em África (291): O estudo "Gonçalo de Gamboa de Aiala, Capitão-mor de Cacheu, e o Comércio Negreiro Espanhol, 1640-1650", por Maria Luísa Esteves; Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, 1988 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Fevereiro de 2021:

Queridos amigos,
É incontestável que o período filipino foi altamente danoso para a presença portuguesa na Senegâmbia, a retração foi enorme, o abandono e a incúria chegaram a levar a crer que a presença portuguesa estava definitivamente condenada. Cacheu era um ponto fulcral para o comércio negreiro e até para a economia de Cabo Verde. D. João IV, ouvido o Conselho Ultramarino, procurou tomar medidas eficazes, e por mais controversa que possa ser encarada a atividade de Gonçalo de Gamboa de Aiala, Capitão-Mor de Cacheu, por ele nomeado, apresentou resultados, o fundamental foi melhorar a presença portuguesa, Gamboa criou Farim e Ziguinchor, perseguiu com todos os meios ao seu alcance os navios estrangeiros, viveu em permanente tensão com os comerciantes de Cacheu que faziam o jogo duplo, juravam fidelidade a D. João IV mas ansiavam pelo regresso dos Áustrias. Maria Luísa Esteves oferece-nos o retrato de uma década e mostra à evidência que se deve a Gamboa ter travado o descalabro em que se encontrava a então denominada Senegâmbia Portuguesa. Resta acrescentar que neste século XVII a mobilidade da nossa presença se circunscrevera entre os rios Casamansa e Nuno.

Um abraço do
Mário



Gonçalo de Gamboa de Aiala, Capitão-Mor de Cacheu (1640-1650)

Mário Beja Santos

O estudo "Gonçalo de Gamboa de Aiala, Capitão-mor de Cacheu, e o Comércio Negreiro Espanhol, 1640-1650", por Maria Luísa Esteves, Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, 1988, trabalho que se associou às comemorações do IV Centenário da Fundação de Cacheu, permite-nos visualizar os danos sofridos durante o período filipino na então denominada Senegâmbia Portuguesa. 

Com a Restauração, descobre-se que aquela zona de África estava praticamente desguarnecida tanto do ponto administrativo como militar, e, no entanto, era uma das principais saídas do comércio negreiro. O primeiro rei Bragança encontrou dificuldades inesperadas, como observa a historiadora Maria Emília Madeira Santos:

“Os comerciantes locais, beneficiando de uma rede de comércio internacional montada por poderosos mercadores de Sevilha e Cádis, iriam resistir a um corte de relações tão lucrativas. Os corsários franceses, holandeses e ingleses, legitimados pela guerra contra Espanha, atacavam ferozmente qualquer tentativa portuguesa de domínio na área. Gonçalo de Gamboa de Aiala, o Capitão-mor da Capitania de Cacheu, encarregado de construir uma fortaleza naqueles rios, precisaria de lutar em várias frentes: a oposição das populações locais, os interesses dos comerciantes negreiros, a rede comercial intercontinental com sede em Espanha, os corsários de todas as nacionalidades”.

A autora começa por nos dar uma visão geral das consequências que a perda da independência acarretou para as colónias portuguesas, dá-nos depois a situação da Guiné, aquando da Restauração e finalmente a ação desenvolvida por Gonçalo de Gamboa da Capitania de Cacheu. Não há nenhum excesso em dizer que o domínio castelhano acentuara as dificuldades de manutenção das possessões portuguesas, houvera que seguir a sua política internacional, completamente desastrosa para o nosso império, vinham ataques de todas as proveniências e D. João IV ascende ao trono com obstáculos aparentemente insuperáveis e numa vastidão incomportável: Guerra da Independência, uma força marítima mais do que insuficiente, tempos de decadência da arte de construção naval, falta de armamento, situação financeira crítica, a crónica exiguidade de meios humanos. A Guiné, a concorrência comercial de franceses, ingleses e holandeses era feroz, todos sedentos da compra de escravos. 

“Quando rompeu a madrugada do 1.º de Dezembro de 1640, a presença portuguesa na Guiné limitava-se à faixa compreendida entre o Casamansa e o Bolola. O comércio da escravatura, fonte de riqueza da colónia, estava praticamente na mão dos negreiros espanhóis que embarcavam para as Antilhas todos os escravos que podiam arranjar, fugindo ao pagamento dos direitos aduaneiros e provocando com isso o descalabro da vida económica. Para além da quebra de rendimentos, resultante do contrabando que os mercadores de escravos praticavam, acrescia ainda o facto de as receitas da colónia estarem arrendadas a contratadores particulares que depositavam em Lisboa o pagamento dos seus contratos. As autoridades da Guiné ficavam, deste modo, sem recursos para satisfazer as necessidades mais prementes, com os ordenados dos funcionários e quaisquer obras de fortificação que impedissem o comércio ilícito”.

Assim se explica a decadência, a fácil fixação dos ingleses na Gâmbia, a incapacidade de agir do governo de Cabo Verde. 

“Cacheu era, na altura da Restauração, a praça mais importante da Guiné, a presença portuguesa naquela região, como em toda aquela costa, era precária, embora fosse o núcleo populacional mais numeroso de toda a colónia”

A autora debruça-se sobre Cacheu e os seus mercadores de escravos, não se pode iludir a anarquia e indisciplina que grassavam em consequência dos abusos cometidos pelos comerciantes espanhóis e outros estrangeiros. O Capitão-mor de Cacheu é Luís de Magalhães que pede ao rei que tome medidas tendentes a evitar a ruína total, entre elas a permissão do resgate de escravos para o Brasil e o incremento das relações comerciais nas ilhas de Cabo verde. O rei pretende agir, ordena a construção da fortaleza e escolhe para futuro Capitão-mor Gonçalo de Gamboa de Aiala, Capitão-mor e Feitor de Cacheu por três anos, este oficial servira no Brasil e na Índia, aqui acobertara-se de valor militar. Gamboa vai demorar tempo a chegar a Cacheu, elabora a relação de material e pessoal que precisava para construir, artilhar e guarnecer militarmente a futura fortaleza; precisa de algum poderio naval para salvar a Guiné das pretensões estrangeiras, é um processo demorado. 

Enquanto tudo isto se passa, chegam ao rei e ao Conselho Ultramarino notícias inquietantes provenientes do Governador de Cabo Verde: Luís de Magalhães era acusado de cumplicidade e trato com os castelhanos; comerciantes de Cacheu insistem em embarcar escravos com destino ao Brasil, pagando direitos na feitoria de Cacheu, o monarca acede.

Finalmente o novo capitão-mor encaminha-se para Cacheu encarregado da construção da fortaleza, o dinheiro destinado à obra estava confiado à guarda do Capitão Paulo Barradas da Silva, os dois muito cedo entrarão em litígio, ora por falta de materiais, ora por não haver concordância quanto ao local escolhido, e Gamboa não esquece a obrigação de procurar suster a presença constante de navios estrangeiros nas costas da Guiné. Barradas da Silva queixa-se ao rei das afrontas praticadas por Gamboa e diz proteger os devedores de grandes somas à Fazenda Real. Dado fundamental, Gamboa põe-se em campo para resistir às tentativas espanholas de ocupação, fortifica e guarnece de artilharia Ziguinchor, o presídio adquiriu extraordinário valor como centro comercial e de fixação portuguesa. Gamboa tinha a noção de que precisava de controlar a navegação no rio Farim ou de S. Domingos, arrendou em nome da Fazenda Real o comércio do rio Geba, recorde-se que nesta altura os moradores do presídio de Geba tinham-se, na sua generalidade, transferido para Cacheu e para a recém-fundada Farim. O capitão-mor dá como reforçada a presença portuguesa na região e lança-se na perseguição dos concorrentes, apresa barcos espanhóis. No entanto prosseguem as tensões entre Gamboa e Paulo Barradas por causa do dinheiro que este retém e que é fundamental para a construção da fortaleza. Os moradores de Cacheu fazem queixas ao rei, protestam-lhe lealdade, se bem que Gamboa os acusa de traidores e partidores de Castela.

O estudo de Maria Luísa Esteves está altamente documentado, toda a sua investigação assenta em documentos do Arquivo da Torre do Tombo e do Arquivo Histórico Ultramarino. Atenda-se às suas conclusões. Gamboa trazia a incumbência de conservar e desenvolver Cacheu, afastar o ocupante espanhol e perseguir o comércio ilícito. Fundou e fortificou a povoação de Farim, construiu o presídio de Ziguinchor, o melhor porto do Casamansa que irá dominar durante dois séculos o tráfego no rio; Farim será a extensão natural de Cacheu e de grande importância para o comércio local. Foi-lhe confiada a missão de construir a fortaleza, faltaram-lhe materiais, pessoal e encontrou séria oposição de Paulo Barradas da Silva, encarregado da cobrança do dinheiro destinado às fortificações. Não deu tréguas a perseguir os estrangeiros que se entregavam ao resgate de escravos. Sufocou com firmeza qualquer sintoma de insurreição interna. 

Como observa Maria Luísa Esteves, “foi decisiva a sua ação no conflito provocado pelo choque de interesses que o opôs aos ricos e poderosos comerciantes negreiros de Cacheu e à própria população local, grandemente prejudicada com o corte das relações prejudiciais com a Espanha. Gamboa procurou, igualmente, canalizar o resgate de escravos para o Brasil, sabendo como este Estado, depois da tomada de Luanda pelos holandeses, carecia de braços para os engenhos de açúcar. Assim, tentou desviar os negreiros para este comércio com a intenção de disputar à cobiça dos espanhóis o caudal dos escravos da Guiné. Vai ser uma luta tenaz não só contra o comércio negreiro espanhol, mas ainda contra os holandeses, ingleses e franceses interessados neste lucrativo tráfico”.

Uma aldeia perto de Cacheu, gravura proveniente do livro África Ocidental, Notícias e Considerações, por Francisco Travassos Valdez, Lisboa, 1864
Um panorama da Fortaleza de Cacheu
Interior da Fortaleza de Cacheu, vêem-se os restos das estátuas apeadas depois da Independência
____________

Nota do editor

Último poste da série de 17 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22725: Historiografia da presença portuguesa em África (290): Entre os primeiros contributos para o conhecimento da Guiné: André Alvares de Almada e André de Faro (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22745: Parabéns a você (2007): Abel Santos, ex-Soldado At Art da CART 1742 (Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69) e António Levezinho, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71)


____________

Nota do editor

Último poste da série de 23 de Novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22742: Parabéns a você (2006): José Saúde, ex-Fur Mil Op Especiais da CCS/BART 6523/73 /Nova Lamego, 1973/74)