quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22751: A nossa guerra em números (6): o bico-de-obra das viaturas de transporte...


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > "Porto fluvial", no Rio Fulacunda > Montagem de segurança > Um obus 14, rebocado por uma Berliet (que se tornou no auge da guerra a principal viatura pesada das Forças Armadas Portuguesas: em 10 anos, de 1964 a 1974,  a Berliet Tramagal produziu mais de 3500 viaturas Berliet).

Foto (e legenda): © Jorge Pinto (2014). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Gabu > Canquelifá > CCAV 2748 (1970/72) > O Unimog 411 ("burrinho do mato"), depois da explosão de mina A/C em 16 de Abril de 1972.

Foto (e legenda): © Francisco Palma (2017) Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Contabane > Quirafo > Feverereiro de 2005 > Restos, descobertos mais de 30 anos depois, da fatídica GMC (sigla de General Motors Corporation) que serviu de caixão a muita gente, entre civos e militares,  no trágico dia 17 de Abril de 1972, na picada de Quirafo (entre o Saltinho, Contabane e Dulombi).

Foto (e legendagem(: © João Santiago / Paulo Santigao  (2006).Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Bafatá > Xitole > 1970 > Uma coluna logística, vinda de Bambadinca, passa pela Ponte dos Fulas, sobre o Rio Pulom, a caminho do Xitole (CART 2716, 1970/72).. Era habitual viaturas civis, alugadas pelas autoridades de Bambadinca, sede do setor L1 (neste caso, o BART 2917), integrarem essas colunas, por falta de veículos de transporte pesados.


Foto (e legenda): © Humberto Reis  (2006).Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região do Cacheu > Teixeira Pinto > Pel Rec Daimler 3089 (Teixeria Pinto, 1971/73) > Janeiro de 1972 >  A “oficina” do Pelotão Daimler, É visível o 1º cabo mecânico David Miranda que fazia o "milagre" de manter as viaturas sempre operacionais. Chegámos a ter duas ou três Daimlers, vindas da sucata de Bissau, para "canibalizar". Ao trabalho do Miranda muito ficou a dever o sucesso do Pelotão.

 Foto (e legenda): © Francisco Gamelas   (2016).Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Caro/a leitor/a: sabia que...

(i) nos anos 60 do século passado, e para satisfazer as necessidades logísticas da guerra do ultramar / guerra de África / guerra colonial, nos teatros de operações de Angola, Guiné e Moçambique, o Exército Português teve de fazer aquisições de armamento e viaturas, no valor de 6 mil e 294 milhões de contos, o que, convertida a valores de hoje,  equivaleria a mais de 2 mil e 300 milhões de euros (, o equivalente ao orçamento da defesa nacional previsto para 2022);

(ii) no que diz respeito às viaturas militares, durante os anos em que se fez a sua renovação,  as despesas anuais, a preços de hoje, foram da ordem dos 200 milhões de euros: aquisição de viaturas novas como o jipes Willys, a vaitura média Unimog e a viatura pesada Berliet;

(iii) é em 1962 que aparecem os Unimog, de fabrico alemão: o Unimog 3/4 t Diesel (, o famoso "Burrinho do Mato", o Unimog 411; e o Unimog 4 de 1,5 t, o Unimog 404, mais versáteis,  e com ómelhor capacidade de adaptação ao terreno, em substituição das viaturas norte-americanas (jipões 3/4 t, GMC, Bedford, Chevrolet,  etc.) (a razão, para lá da versatibilidade e o consuno, tinha a ver com  o facto de os norte-americanos terem passado  a cumprir a resolução da ONU de boicote de equipamento militar a Portugal, fora do âmbito da NATO);

(iv) em 1965, o Exército português já dispunha no ultramar de 2 mil Unimog... mas as dificuldades burcoráticas atrasavam a entrega de viaturas novas e de sobresselentes: por exemplo, em Angola, em 1967, o número de viaturas (ligeiras, médias e pesadas) inoperacionais era das ordem dos 60% (!);

(v) o Unimog (acrónimo do alemão UNiversal -MOtor - Gerät) era produzido pela Mercedes Benz, tendo-se tornado na viatura média mais usada na guerra do ultramar; O 411 gastava 12 litros de gasóleo aos 100, e atingia a velocidade máxima de 53 km; o 404 ia aos 20 litros de gasolina aos 100, e atingis os 95 km /hora; 

(vi) em 1964, passou a produzir-se em Portugal a Berliet, sob licença francesa, a uma média de... 140 unidades anuais (, tendo passado mais tarde às 600); de 1964 a 1974, a Berliet Tramagal (a metalúrgica Duarte Ferreira) produziu 3549 viaturas para as Forças Armadas, ou seja 350 em média  por ano; a Berliet tornar-se-ia a principal viatura pesada nos 3 teatros de operações...

2. Cada subunidade  (companhia) deveria ter, em princípio, a seguinte frota ou parque de viaturas: 

(i) 3 a 4 viaturas ligeiras (jipes); (ii)  6 viaturas médias (3/4 t) (Unimog); e 3 viaturas pesadas (Berliet, Mercedes, GMC)...

A CCS do batalhão tinha uma frota maior: (i)  5 a 8 viaturas ligeiras (jipes); (ii) 4 a 6 viaturas médias (Unimog,  404 e 411), mais  3 viaturas automacas; e (iii)  3 a 5 viaturas pesadas (GMC; Mercedes, Berliet...) 

Acrescente-se, da minha experiência e do conhecimento da minha CCAÇ 2590 / CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71), não me lembro de haver mais de um jipe, nem nunca lá vi nenhuma Berliet... E muito menos automacas (Unimog)

3. Mas a situação do material auto (aquisição de viaturas novas para substituição das inoperacionais e perdidas, fornecimento de sobresselentes, manutenção e gestão...) foi sempre um bico- de-obra durante toda a guerra, nos três teatros de operações... 

Na Guiné, recorria-se a viaturas civis para transporte de material, nas colunas logísticas. Dadas as características do terreno, clima, tipo de guerra, etc., o desgaste e a perda de material auto tinham que ser elevadas.

Por exemplo, em 1967, na Guiné existiam 2238 viaturas,  das quais 48% (!!!) estavam inoperacionais... Em 1971, a situação não era melhor. Veja-se o nº de viaturas, por tipologia (e entre parênteses a percentagem de inoperacionais):
  • 774 jipes (49%  inoperacionais);
  • 704 Unimog  404 (39,5% );
  • 438 Unimog 411 (26%);
  • 255 GMC (48,5%);
  • 119 Mercedes 322 (63%);
  • 98 Berliet (38,5%).
Já não falando das viaturas blindadas, as autometralhadoras, mais de 2/3 das quais estavam inoperacionais (!!!)... "En passant", havia em 1971, no TO da Guiné as seguintes viaturas blindadas:
  • 16 Panhard (25% inoperacionais);
  • 10 Fox (60%);
  • 108 Daimler (75%).

Tomando como referência os anos de 1966 e 1967, verifica-se que há, nos teatros de operações ultramarinos, em 1967: (i) 3000 viaturas ligeiras 1/4 t  (jipes), menos cerca de 30% do que em 1966: (ii) 6500 viaturas médias 3/4 t, mais 75% (relativamente ao ano anterior); e (iii) 1800 viaturas pesadas, menos de 9 % (por comparação com 1966). A ter havido alguma melhoria foi graças à entrada da Berliet e do Unimog.

Por exemplo, em 1968 a situação nos 3 teatros de operações era grave, justificando a urgência da aquisição de 7 mil viaturas: 4 mil para ultrapassar a fasquia dos 75% do quadro orgânico de cada unidade; e o resto para substituir as viaturas inoperacionais e perdidas que, na altura, em 1968/69, seriam da ordem dos 20% - 25% (o que nos parece subestimado).

A "doutrina em vigor era substituir, todos os anos, em média,  600/700 jipes, 1200/1500 Unimog, e 360/450 viaturas pesadas (Berliet, Merecdes)... O que nunca se conseguiu por falta de verbas...

De qualquer modo, temos que reconhecer aqui "o engenho e a arte" (esforço, dedicação, competência, desenrascanço, imaginação) dos nossos mecânicos auto (, o pessoal da "ferrugem", de resto mal representado no nosso blogue). Sem esquecer os nossos heróicos condutores auto que faziam das tripas (caixa de velocidades, travão, volante, guincho, etc.) coração!

Para o dispositivo militar existente em 1966, pode-se dizer que faltavam mais de um terço (35%)  das viaturas necessárias para as forças que estavam no terrno, situação que se veio a agravar com o reforço de efetivos em 1968, na Guiné e Moçambique.


Fonte: Adapt de Pedro Marquês de Sousa, "Os números da Guerra de África". Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, pp. 204-212, e 294-299.
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5 comentários:

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Este texto confirma algo de que todos tínhamos uma ideia.
As viaturas que se avariassem eram dificilmente reparáveis e as que e inutilizassem devido ao combate ou acidente apodreciam nas unidades. Em 1968 ainda foi possível recuperar na unidade dois Unimog 404 aos quais faltavam os motores.
As duas Berliet que accionaram minas em 1972/73 nunca foram substituídas, o mesmo tendo sucedido ao Unimog 411 que ardeu, em parte numa emboscada...
Isto é apenas um exemplo.

Um Ab.
António J. P. Costa

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Já aqui se relataram histórias de "canibalização" de viaturas. Tiravam-se "órgãos" (peças) as que estavam no "cemitério" para prolongar a vida de outras...Seria interessante termos as listas das viaturas (e seu estado) que passavam para a outra companhia que nos ia render. Em muitos casos seria

Tabanca Grande Luís Graça disse...

... só sucata. Faltam-Nos depoimentos do pessoal da "ferrugem". Apareçam, camaradas.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Numa guerra (ou qualquer outra ação humana organizada, de grande escala), a logística é sempre um problema. A grande distância, ainda pior. Para mais, em três teatros de operações com um superfície mais de 20 vezes maior do que o Portugal europeu. No caso do "mato" da Guiné, o hipermercado mais próximo era em Bissau e a central de compras em Lisboa, com os principais fornecedores ainda mais longe, em França e na Alemanha!...

Valdemar Silva disse...

"Beber vinho é dar de comer a um milhão de portugueses"
"A guerra na Guiné é dar a ganhar milhões à Tramagal & arredores"

Há quem diga que aquela do vinho não quer dizer concretamente o consumo mas sim a riqueza gerada na produção de vinho, já a das viaturas da Tramagal é que não quer dizer outra coisa.

Nos anos de 1961 a 1973 as despesas em Defesa foi em média de 34% do Orçamento do Estado, atingindo em 1969 cerca de 39%. (...e 8.830 mortos e 15.500 deficientes)
E continuavam em 1970: 30% de analfabetos, 36% sem electricidade, 42% sem esgotos e 53% sem água canalizada, e um milhão e trezentos mil de emigrantes à procura de melhor condições de vida.

Abraços e saúde
Valdemar Queiroz