sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22753: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (80): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Novembro de 2021

Queridos amigos,
É bem provável que este fim de comissão coincida com a concretização de trabalho de Paulo em Bruxelas, seria uma verdadeira revolução, os cinquentões apaixonados juntos no ninho. Esta carta com apontamentos do quase final da comissão também deixa transparecer que Paulo, num curto lapso de tempo, terá que tomar decisões, é funcionário público, terá que pedir licença registada, seguramente que será deferido, são casos tratados como conveniência de serviço; dois dos filhos singram na vida, mas há aquele Ricardo que sofre de Síndrome de Asperger, é muito agarrado ao pai, há que adotar um procedimento de o deixar bem acompanhado, talvez mesmo haverá a necessidade de ele ir para Bruxelas, tudo isso vai pesar nas decisões de Annette e Paulo. Acontece que Annette trouxe uma questão nova para o romance: será que a comissão do Paulo acabou exatamente no dia em que ele desembarcou no Cais da Rocha do Conde de Óbidos? É possível acabar uma ligação que teve afetos tão poderosos? Não houve um depois? Então o Paulo não voltou à Guiné? Não seria melhor a Rua do Eclipse prosseguir por esse mar fora, dado que é notório a relação inquebrantável? Paulo cisma, é preciso ser prudente, tudo vai do trabalho que lhe vão propor em Bruxelas, e, francamente, agora não há caderninhos viajantes, há escassas memórias, talvez Annette pudesse encontrar agora um remate inspirador para o fim do livro. Vamos esperar.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (80): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Ma chérie, aí estarei amanhã ao fim da tarde, como, infelizmente, tenho viagem marcada dois dias depois, permito-me fazer seguir pelo correio todo o restante material que guardei do final da minha comissão em Bambadinca. Entrego-te com muito carinho o caderninho viajante que andava sempre comigo, aquelas últimas viagens no período de sobreposição com o Nelson Reis, as últimas fotografias tiradas nas tabancas em autodefesa, comoveu-me profundamente os abraços recebidos por chefes de tabanca e mesmo do régulo de Badora, de nome Mamadu Sanhá, andava sempre com os seus galões de tenente e viajava até Bambadinca numa motoreta. Registei que estava a partir e chegou Dauda Bari, era um cabo Fula que viera de Gandembel. Registei um comentário de Sadjo Seidi que se queixava das aulas de ginástica da escola, achava que já não tinha idade para aprender mais letras. Irei reencontrá-lo décadas depois, não esquecera o seu comentário, e manifestava pesar por não ter estudado. Como te disse na última carta, fiz um telefonema a Cherno Suane, que tu conheces, ele trabalha num estabelecimento de eletrodomésticos de um senhor que se chama Adolfo Brilhante, perto do Largo de São Paulo, pedira-lhe se ele podia escrever umas notas sobre os episódios da nossa vida entre julho e agosto de 1970, sabendo eu de antemão que o Cherno depois do seu duplo traumatismo craniano tinha falhas de memória. Apareci na loja depois de ter feito ginástica e fomos os dois para um café-restaurante ali ao pé chamado Pérola de São Paulo, o papel do Cherno segue nesta carta, ele relata emboscadas em Samba Silate, a nossa permanência na ponte de Undunduma, patrulhamentos em direção a Taibatá, noites na Missão de Sono, os dois dias que passámos em Mansambo, a vigilância que fazíamos na estrada alcatroada do troço Amedalai – Ponta Coli – Xime.

O Cherno tem um curioso contrato com o senhor Adolfo, este cede-lhe uma casa ali no Largo de São Paulo que o Cherno enche de gente que vem ou vai para a Guiné, um dia fui lá visitá-lo com o Abudú Soncó, a certa altura pensei que estava num terminal de aeroporto. E sempre com a sua voz ciciante e com aqueles olhos que volteiam e revolteiam, penso sempre que é uma questão de timidez não me olhar fixamente, falou dos dois últimos dias que passei em Bambadinca, não sei porquê perguntou-me se eu me lembrava de Damba Trilene, fui sincero com ele e disse-lhe que não me lembrava, depois fiquei a saber que fora fuzilado depois da independência, gritara desalmadamente que não tinha feito mal nenhum. É nisto que o Cherno me pergunta se o livro que eu estou a escrever já está pronto, e então perdeu a timidez quando eu lhe disse que o livro estava avançado, fez-me inúmeras perguntas sobre pessoas, se estavam incluídas no meu trabalho, fiquei atónito quando ele me perguntou se eu ia dizer que Serifo Candé fizera parte da 3.ª Companhia de Comandos, aquele meu amigo do coração que eu fora visitar à tabanca dele em 1991 e que julgou que eu o vinha buscar, como é que tu me deixas aqui a passar fome, não tenho comida para dar aos meus filhos? Eram pormenores sem conta, procurei suavemente explicar ao Cherno que não podia entrar em tanto detalhe, era um livro sobre a minha comissão, jamais poderia esquecer a lealdade e a fidelidade de todos aqueles que tinham combatido ao meu lado, mas este tipo de livros tem que respeitar as recordações. E pela primeira vez na vida o Cherno repreendeu-me: “Escrevi aqui tudo de que me lembrei porque pensava que tu querias que toda a gente ficasse a saber que combateste com um grupo de africanos que acreditaram sempre em ti, por isso nós devíamos constar da história desse teu livro”. Fiquei com a garganta seca, prometi-lhe que iria rever todo o trabalho já passado a escrito, estamos os dois de pé, e neste exato momento, estou na véspera da tarde da minha partida, ando na companhia do Cherno, do alferes Reis e do furriel Pires, despedi-me dos comerciantes de Bambadinca, visitei as famílias dos soldados, fui aos Correios agradecer todas as gentilezas de D. Leontina, foi penoso despedir-me de D. Violete e da sua mãe, subimos a rampa de Bambadinca e Cherno, como é seu hábito, ajuda-me carinhosamente a arrumar todos os meus trastes num caixote que foi feito na carpintaria, anda por ali o jovem Mamadu Soncó que teima em que eu o leve para Lisboa, continuo a olhar para o Cherno, agora seguro-lhe as mãos, já abracei quem fica no quartel, o rosto de Mamadu Soncó é uma máscara de inquietação, sei que me vais esquecer, eu estudei português, matemática, desenho e ciências naturais, deixa-me ir estudar… Fiz-lhe promessas, fui-lhe escrevendo ao longo do tempo, encontrei casualmente um aerograma que ele me enviou em setembro de 1973, já tinha feito a quarta classe, continuava a estudar, trabalhava como escriturário na Polícia Militar, sabia datilografia. Continuando a olhar este meu irmão Cherno Suane, estamos numa coluna que vai em direção a Xime, despedi-me de quem está na ponte de Undunduma, de quem faz vigilância nas obras do alcatroamento da estrada, cumprimentei quem me esperava em Amedalai, alguém subiu para uma viatura para me contar que o PAIGC celebrara o 3 de agosto flagelando o Enxalé, foi fogo de pouca monta porque houve a reação do fogo de obus do Xime.

Estou agora a despedir-me do Cherno, ele vai voltar para o local de trabalho e eu vou apanhar o Metropolitano até ao Saldanha, o pelotão despede-se de mim e eu dele, depois de um aperto de mão a mão direita vai até ao coração, mais uma vez pedi a todos que ajudassem o alferes Reis, ajudam-me a levar a bagagem para dentro da lancha, mostro a guia de marcha, mandam seguir. E é neste exato momento , meu querido Cherno, que eu dei comigo a pensar como iria cumprir os meus sonhos, os olhos não param de se deslumbrar com aquele Geba que parece uma folha dourada, os tufos de vegetação de um lado e do outro, já passámos a embocadura do Corubal, então sento-me, rezo, oiço o ronronar dos motores, venho à amorada e avisto o Ilhéu do Rei, desembarcamos no Pidjiquiti e alguém me leva com a mala para o Vaticano III, um albergue de curta permanência já dentro do quartel de Santa Luzia, a mala seguiu para Brá, para o Depósito de Adidos, anoiteceu, sinto que todos os perigos da guerra estão passados, agora tenho que prospetar o futuro, mas há uma sensação muito dolorosa, minha adorada Annette, começara, eu estava a sentir, aquela dolorosa separação dos meus bravos soldados.

Não sei o que me reserva a reunião com o Diretor da Confederação Europeia dos Sindicatos. Falei telefonicamente com Paolo Adorno e Michel Renard, eles suspeitam que me vão propor um contrato até cinco anos, renovável mais um ano, intuem que me vão propor os pelouros dos Consumidores e da Saúde, já sabem que rejeito categoricamente as áreas da Concorrência e da Agricultura. Das informações que aqui pude obter, é possível obter uma licença registada, por conveniência de serviço em organizações comunitárias, vou ver as condições financeiras que me oferecem, espero que o destino nos prepare uma bonita surpresa. Parece que estou a sofrer daquela inquietação que relatei acima, quando eu sabia de ciência certa que já nada tinha a ver com os meus bravos soldados, não via ser difícil suspender todas as minhas colaborações, poderei até conservar alguns artigos em jornais e revistas, atendendo ao acesso a informações que no futuro disporei. Há a situação dos meus filhos, o Henrique tem presentemente trabalho, vejo-o muito estabilizado, ele e a mulher constituem um casal que vive em rigor orçamental; o Ricardo está presentemente desalentado, ele precisa muito de mim, gostaria de conversar largamente contigo se era possível encontrarmos algo em Bruxelas em que ele se inserisse perfeitamente, a Rita vai de vento em popa. Não quero acrescentar mais nada a esta carta, sei que amanhã vou ter a grande alegria de estar contigo, e que no dia seguinte, muito provavelmente, te transmitirei notícias que te encherão de felicidade. É bem engraçado escrever estas coisas e saber que tu as vais ler algum tempo depois de termos vivido o nosso presente, não achas? Bien à toi, bisous milles, comme toujours, Paulo.


Vejo vezes sem conta a rampa de Bambadinca, aqui cheguei extenuado, vindo de Missirá ou Mato de Cão, muito provavelmente com o Unimog 411 do outro lado da bolanha, pronto para receber bidons de gasóleo ou petróleo, sacos de cimento, rolos de arame farpado, as vitualhas possíveis, aqui se chegava e um pequeno grupo dividia-se com obrigações: uns para as munições, outros para o material de Engenharia, aqueloutros para equipamentos de transmissões, questões relacionadas com a manutenção de viaturas, o economato, o abastecimento alimentar, sempre discutido, por vezes com gritaria, não há isto nem há aquilo, tem latas de chouriço e barricas de pé de porco, umas latas de feijão-verde, e viva o velho. Por vezes tínhamos sorte, disponibilidade de viaturas àquele arremedo de cais, entrar na canoa de Mufali Iafai com as pernas na lama até às coxas, e nunca esqueço a noite de 28 de maio de 1969, viemos de Missirá a trote alta noite para apoiar os flagelados de Bambadinca, o Zé Maria Tavares trouxe-me até aqui, o Geba estava na vazante, tinha uns bons quilos de lodo em cima da farda, mas fiquei feliz, havia um pequeno sinistrado depois de todo aquele angustiante foguetório.

Aqui está a erosão do tempo, é capaz de ser uma daquelas fatalidades das alterações climáticas, a rampa achatou-se, até parece que a laterite se descoloriu, era um caminho vistoso até ao cais, passados todos aqueles anos dói que se farta ver a incúria e o abandono, todos aqueles edifícios podiam ser úteis para as populações, os armazéns estão destruídos, o porto desapareceu, fiquei especado junto à casa de Mufali Iafai, o jovem faleceu e o caminho da bolanha de Finete também desapareceu.

Quantos telefonemas vim fazer para Lisboa na estação dos CTT, era um edifício impecável, tinha pessoal garboso, gente atenciosa, vinha à procura de selos também, não só para a minha correspondência, mas havia quem me solicitasse, por hábitos filatélicos, as últimas edições. À chegada ou à partida cumprimentava este pessoal, de cortesia esmerada.

E também quantas vezes entrei nesta escola para cumprimentar Dona Violete e acertarmos uma hora do chá, ela fazia sempre questão, e apareciam papéis sobre a história da Guiné e recordações dos tempos em que ela fora professora em Gã Gémeos, no início da década de 1950, era um encanto ouvi-la e devo-lhe a iniciação dos estudos deste país fascinante, preso ao meu coração.

Neste dia parto do Xime na lancha de desembarque grande Alfange. Era um cais sólido, preparado para receber pesadas cargas, a navegabilidade do Geba ficou alterada a partir de outubro de 1969, os barcos mais possantes atracavam aqui, só as embarcações civis seguiam até Bambadinca. Ironia do destino, esperaram a minha transferência para Bambadinca para pôr este cais e porto operacionais, aguentei a pé firme as idas a Mato de Cão, ininterruptamente, de agosto de 1968 a outubro de 1969. O cais morreu, o porto também, ficou esta camada de alcatrão que a natureza se encarrega de atapetar, o Xime parecia fadado, com a independência, a ser um porto influente, ali perto está um silo monumental, que deve ter custado uns bons milhões de dólares, nunca foi usado, pode ser exibido como um dos elefantes brancos de gente que sonhava em grande esquecendo que era preciso cuidar dos pequenos.

Este homem que sorri com riso franco chama-se Samba Gebo, assim que me viu chegar a Bambadinca, antigo companheiro de armas, nunca mais me largou. Viemos até à velha ponte do rio de Undunduma, ali perto estava um destacamento infecto onde passei muito sobressalto, pelo temor de uma flagelação brutal, felizmente que nunca aconteceu. A guerrilha do PAIGC atacara Bambadinca vindo por aqui, a partir desse momento criou-se um destacamento onde passávamos a noite e se faziam uns pequenos patrulhamentos de dia, à volta de Amedalai.

Guardei as melhores recordações da Pensão Central, aqui almoçava e jantava durante os meses que fiz cooperação, em 1991. Comida gostosa, preços económicos, por vezes cooperantes interessantíssimos, caso dos holandeses do saneamento básico, os profissionais de saúde da Medicina Tropical, e numa mesa ao fundo, sempre com o seu sorriso doce, Dona Berta, uma senhora que fez milagres aí por 1977, quando não havia praticamente comida em Bissau e aqui nunca faltou a sopa, o prato e a sobremesa aos cooperantes. Um mistério que nunca se irá apurar.

A Fundação Mário Soares recuperou entre o material calcinado pelo vandalismo das tropas senegalesas imagens de rara beleza, que subsistiram das fogueiras feitas por estes colaboradores de Nino que destruíram a maior parte do acervo histórico da Guiné-Bissau. É uma imagem que foi publicada no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, um Mandinga prepara uma esteira.

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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22730: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (79): A funda que arremessa para o fundo da memória

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