1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Julho de 2022:
Queridos amigos,
A sorte não favorece só os audazes, há bancas da Feira da Ladra onde se podem descobrir pepitas, esta conferência de António Júlio de Castro Fernandes tem muito que se lhe diga, recordo que em 1955 ele produziu, e seguramente que não era um exclusivo para a administração do BNU, um documento bem encorpado sobre a situação da Guiné e já numa previsão de mudanças geoestratégicas e geopolíticas, queixando-se da falta de qualidade dos funcionários da administração e da estagnação económica, baseada numa avidez de duas ou três culturas, de fraquíssima qualidade, só de puro escoamento em Portugal, escreveu para quem o quis ler que a Guiné em termos socioeconómicos e culturais tinha que dar uma grande volta. O que não aconteceu. Seguramente escalado para se dirigir à administração colonial, aos empresários locais, adoçou o discurso, nada de temores com subversões (houve quem previsse que os tumultos nacionalistas podiam começar pela Guiné), e vendeu a receita tão cara aos dirigentes do Estado Novo que a nossa presença em África era uma especificidade em prol da civilização ocidental e da mensagem cristã. No ano seguinte a esta alocução de fé e da inabalável crença do Estado Novo de que não haverá política de abandono, a subversão estará em marcha.
Um abraço do
Mário
Discurso político de Castro Fernandes, Bissau, 1960, Comemorações Henriquinas
Mário Beja Santos
Nome sonante do Estado Novo, economista, banqueiro, membro do Governo, Presidente da Comissão Executiva da União Nacional, António Júlio de Castro Fernandes era grande conhecedor da realidade económica da Guiné. Queria lembrar ao leitor o documento que assinou pelo seu punho em 1955 e enviado à administração do BNU, a que ele pertencia, documento que parcialmente transcrevi no meu livro "Os Cronistas Desconhecidos do Canal de Geba", o BNU da Guiné, Edições Húmus, 2019, onde revela que não se pode perder mais tempo numa atitude de desenvolvimento, estavam previstas grandes alterações em torno da colónia, era um risco não mudar o estado das coisas. Se o leitor estiver interessado tem o documento integral à sua disposição na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa.
A conferência que ele vai proferir em 23 de abril de 1960 direciona-se para três temas: Portugal na Guiné; presente e futuro da Guiné; e condicionalismo político. Não traz nada de novo acerca do descobrimento da Guiné, a não ser não ter referenciado Nuno Tristão como o primeiro a chegar à região, mas sim Diogo Gomes, em 1456. Refere sumariamente a colonização e dirige-se ao auditório falando do presente e do futuro. Estamos em 1960, na fronteira norte está a República do Senegal que então fazia parte da Federação do Mali. “Sobre vários aspetos, a Guiné Portuguesa é um país singular, que se destaca pelas características próprias entre as paisagens do Sudão e o grande planalto da Guiné Superior, com a sua particular estrutura de terras baixas, irrigadas por rios largos e numerosos, um território meio continental e meio insular.”
Dá-nos uma água-forte do mosaico étnico, e discreteia sobre a economia, baseada na agricultura. “O ponto fraco do sistema reside na monocultura, não em sentido literal porque, na área da província, há três ou quatro culturas com relevante valor económico. Assim, temos: a mancarra em Farim, Bafatá e Gabu; a palmeira de azeite em Cacheu, Geba e Arquipélago de Bijagós; o arroz em Mansoa, Catió, Fulacunda, Bissau e São Domingos. É visível que a agricultura guineense está concentrada em número restrito de produtos: o amendoim, o coconote e o óleo de palma, que são artigos de exportação; o arroz e o milho, de consumo interno. O primeiro problema que se põe é o de transitar para um esquema em que os produtos cultivados sejam mais numerosos e em que as explorações evoluam no sentido da policultura. É preciso imprimir à economia agrícola da Guiné características de variedade e flexibilidade que lhe faltam. As grandes culturas tradicionais correspondem a direções que estão certas e bem pode dizer-se que têm sentido funcional. O arroz e o milho são os produtos-base da alimentação do indígena. As oleaginosas são o ouro da província. Mas não só podem aclimatar-se outras culturas como aquelas são suscetíveis de adquirir maior extensão. Há que vitalizar e enriquecer um sistema que se enquistou na rotina, sem que nela encontrasse um equilíbrio salutar.”
E tece considerações sobre os problemas da qualidade, o amendoim era de baixa qualidade, o óleo de palma dificilmente colocável no estrangeiro, a mancarra ia acarretar o empobrecimento dos solos, impunha-se sanear e valorizar a agricultura da Guiné, que se encontrava num quadro de estagnação. A indústria da Guiné pouco representava, as suas trinta e tantas unidades fabris eram complementares da lavoura. E espraia-se sobre os planos de fomento, a recuperação de terras para o arroz, um programa de regularização e dragagem do rio Geba, a construção de pontes sobre o Geba, o Corubal e o Cacheu, a conclusão da ponte do cais de Bissau e dos cais de Catió e Cacheu. Faz sempre menção ao I Plano de Fomento e ao II, onde se previra a instalação de uma estação agrária para aproveitamento dos terrenos alagados, ribeirinhos do Geba.
E assim se chegou à questão mais delicada, o condicionalismo político, socorre-se de um punhado de lugares comuns para falar da África Negra, do nacionalismo africano, pretende que fique claro que o continente não é nem homogéneo nem uniforme, da ebulição dos novos Estados parece que se deseja um regresso às origens, renasceram ódios, é intensa a hostilidade ao Ocidente, e faz uma observação de caráter pessoal:
“A África é de tal modo complemento da Europa que bem podemos admitir a hipótese de, passado algum tempo, se refazer a colaboração que está na ordem natural das coisas e arrefecer e apagar-se o ímpeto agressivo de um racismo negro que é de criação puramente artificial, produto da propaganda dos agitadores mais do que a expressão autêntica de uma aversão hereditária. Ouvimos por toda a África o tambor da guerra. Nem a África pode organizar-se unitariamente, porque nela não há fator de unidade, nem sequer lhe é possível organizar-se pela simples transformação dos territórios coloniais em Estados autónomos.”
E o político que abraçou o nacional sindicalismo e que se entusiasmou pelo corporativismo e é um peso pesado da União Nacional dá conta à audiência do que fará Portugal. Não se percebe como os responsáveis do Ocidente querem fazer frente à invasão comunista, parece que todos querem descolonizar e recomendam a descolonização a quem não a quer fazer, porque há a especificidade portuguesa. “Não conhecemos os equívocos em que outros tropeçam porque, dentro das nossas fronteiras, nos territórios portugueses, o nacionalismo só tem um sentido. Não há, no nosso Ultramar, nacionalismo que não seja português ou, se o preferirmos, que não seja nacional. Nós vivemos à margem dos equívocos em que outros se transviam. Como eles, nós não temos nações negras dentro dos limites em que se exerce a soberania portuguesa. Na nossa África, é efetiva a presença de uma nação, a Nação Portuguesa. Não corremos o risco de nos desnortearmos, ao ponto de nos atormentar as vigílias a ideia de que dominamos e recusamos o direito à vida a nações escravizadas. A nossa experiência africana é mais larga que a dos outros povos, mais longa e mais rica de conteúdo.”
Está dado o mote para avisar a audiência, os meios de comunicação e a opinião pública em geral de que não iremos praticar a política do abandono, a renunciar ao que é irrenunciável. E evoca-se a lição da história:
“Começámos por nos aventurar pelas rotas do Atlântico Sul e do Índico, lutando com as tempestades em frágeis caravelas, a dobrar os promontórios, de mandar as aguadas, aprender a conhecer o litoral do grande continente. Depois, fundámos os nossos estabelecimentos da costa. Desde logo nos aventurámos através do sertão inóspito, ganhando palmo a palmo a terra e as gentes alma a alma. É que, para nós, colonizar não era apenas criar balcões de comércio ou mesmo fazendas prósperas. Era serviço de Deus e da Pátria. Fomos em África soldados e missionários, mercadores e lavradores, mas fomos, acima de tudo e na mais larga acessão da palavra, homens humanizando outros homens.”
E na sua alocução não deixa de mencionar os valores materiais e morais da Civilização Ocidental e Cristã. E termina a sua conferência com o apelo à energia firme; a aceitação voluntária de sacrifícios e riscos, vivia-se a hora em que se propunha a Portugal o problema de sobreviver ou não sobreviver na sua dimensão mundial. Havia que estar unidos e confiar nos chefes e na aliança inquebrantável de todos os portugueses de boa vontade. Sagaz, não menciona uma só vez a erupção do nacionalismo africano na Guiné ou a subversão latente, não havia que descolonizar porque éramos todos portugueses. Bem silenciou as tensões já existentes, deverá ter considerado que era a comunicação adequada para comemorar a epopeia henriquina. No ano seguinte, tudo começará a ser diferente.
Imagem da época da sede da Associação Comercial, Industrial e Agrícola da Guiné, projeto do arquiteto Jorge Chaves, teve intervenções no interior de um jovem que seria um grande nome das artes plásticas portuguesas, José Escada
Nota do editor
Último poste da série de 29 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24175: Historiografia da presença portuguesa em África (361): Informações sobre a Guiné no Anuário Colonial de 1917 (Mário Beja Santos)