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quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27096: Felizmente ainda há verão em 2025 (12): ruminações nova-iorquinas... (João Crisóstomo, régulo da Tabanca da Diáspora Lusófona)





1. Mensagem do nosso John Crisostomo, o luso-americano régulo da Tabanca da Diáspora Lusófona  (foto à esuerda: com a Vilma, num 10 de junho).

João Crisóstomo, membro da nossa Tabanca Grande, com c. 280  referências no blogue, a viver em Queens, Nova Iorque, ativista social, ex-alf mil inf, CCAÇ CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67).


Data - 6 ago 2025 00:42  
Assunto - Ruminações

Caríssimo Luís Graça ( e outros camaradas-irmãos, se o nosso comandante quiser “partilhar” estas minhas “ruminações” )


Acabo de abrir o computador para me pôr em dia com os meus camaradas da Tabanca e verifico que estou mesmo a ficar atrasado. Tanta coisa boa: 

  • poesias do Manuel Gouveia Oliveira que merecem admiração e aplauso;
  • uma homenagem do Joaquim Caldeira ao “desconhecido herói' Adriano ( e quantos outros merecem um post destes e muito mais e nunca são lembrados por ninguém!); 
  •  crónicas do Juvenal Amado que nos fazem lembrar algumas situações semelhantes nas nossas vidas mas que na maioria dos casos, nunca passam de "luzes debaixo de alqueires”, por nunca serem partilhadas…; 
  • um comentário muito apropriado do Eduardo Estrela ao post do Adão Cruz (ambos me fazem inveja porque eu não sei dizer tanto com em tão poucas palavras; … etc etc… 

Isto para mencionar apenas os posts destes últimos dias, pois é raro o dia em que não apareça neste nosso blogue algo credor do nosso apreço. A eles e todos, faço minhas as palavra do Virgílio Teixeira “ A todos que não posso responder em directo, os meus abraços”.

Mas há um post muito especial que me causou uma cascada de emoções, frustração e inveja por não poder participar melhor do que sentir um nó no peito. Entre outras, muitas saudades. Saudades dum encontro semelhante (um festival do mexilhão ) onde eu e a Vilma fomos e em que, parece-me, estiveram toda a gente mencionada nesta "batatada de peixe seco”: O saudoso Eduardo e a São; o Rui Chamusco; os duques do Cadaval Pinto de Carvalho e Céu Pintéus; O Jaime ; e tu e a Alice…

E fez-me lembrar os meus tempos de miúdo: eu ainda não estava na escola primária, portanto devia ter os meus quatro ou cinco anos ; quando em Peniche havia peixe com fartura vinham sempre uma ou duas carrinhas vender o peixe pelas aldeias ; quando chegavam à minha aldeia, a Bombardeira, geralmente já só havia chicharro que vinha em bruto, na parte de trás da carrinha . E não era vendido ao quilo mas "em atacado" ( é assim que se diz certo?) aos cestos. 
Se me não engano chegava a ser cinco tostões por um cesto de chicharro.

 Nesses dias o meu pai comprava um ou dois cestos de chicharro, que depois de aberto e limpo era posto a secar . E aí eu sentia-me muito importante no meu trabalho de enxutador de moscas: punham-me em cima do telhado, com um boné velho na cabeça e uma pequena vara de eucalipto na mão e eu, muito compenetrado da minha responsabilidade de não deixar que as moscas pousassem no peixe, lá ficava até que o sol começava a perder a força e o chicharro era arrecadado para se repetir a mesma operação no dia seguinte.” Oh Tempo, volta pra trás…”

Não vou fazer comentário a este teu post pois que não tenho o que é necessário para o fazer . Mas mais uma vez, aproveito quem sabe falar e escrever melhor do que eu: “ Grande texto, Luís, estas a escrever como um principe, dos bons, da excelente literatura” diz o António Graça de Abreu. Ele tem razão. E a ambos eu tiro o meu chapéu.

E já que estou no computador, aproveito para te dar notícias nossas. Estamos bem, mais ou menos, pois na nossa idade, pelo menos no que me diz respeito, quando dizemos que está tudo bem, geralmente estamos a mentir: se não é a perna que dóe .. são os dentes a atrapalhar ou as costas a lembrar que estamos nos “entas” avançados. Agora ando quase sempre de bengala, por vezes até dentro de casa.

A Vilma essa parece cada vez mais nova: neste momento está em Maryland ( um “estado" perto de Washington) numa convenção relacionada com meditações e coisas assim . Ela bem me quis convencer a ir com ela mas eu pus os pés no chão: tive e fiz mais retiros e meditações, nos meus tempos de colégio, mais que suficientes para o resto da vida… Mas ela lá está contente e feliz. Falamos pelo WatsApp todos os dias duas ou três vezes. Quando ele me disse que gostava de ir a esta convenção eu pus as minhas reticências e objeções; mas evidentemente que não me opus, desde que fosse sozinha! ; e agora vejo que agi bem: ela está tão feliz que ao olhar para ela não posso deixar de sentir a sua alegria contagiante!

E não estou a dizer isto porque sou católico. “Voltei"ao catolicismo depois de muitas "visitas e viagens” que incluíram o ceticismo e agnosticismo… Muita gente pensa que o facto de eu por vezes ter muitos contactos com autoridades e líderes religiosos quer dizer que sou muito “religioso.” E não é bem assim. Na verdade sou católico , mas não sou “fanático”. Acho que antes de ser cristão um indivíduo é um ser humano. E por vezes até digo que me sirvo dos meus "contactos religiosos” para atingir fins sociais, independentemente da sua ligação ou não com religiões. Mas … chega de ruminações religiosas para hoje.

Bom, agora vou fazer uma pausa, que tenho de ir pintar o meu "back yard” (um pequeno quintal na traseira da minha casa.). Volto logo. Ou então faço como tu que te levantas às três da manhã para falar com os teus amigos e camaradas.

Estou de volta .

Disseste-me há tempos ( em comentário ao 4 de Julho americano com sabor a bacalhau ) que sou um "homem de ideias práticas, gostas de bricolagem” …. Deixa-me responder a esta tua afirmação/suposição. Porque parece-me que tens razão. Mas primeiro deixa-me fazer as devidas "ressalvas” para não ser mal compreendido e fazer figura de charlatão.

Lembro o que o meu pai dizia: "alguém que diz ter sete ofícios, pode ter quantos ofícios quiser mas não é bom em nenhum deles.” Portanto o que segue não em qualquer intenção de ridícula gabarolice. Os meus “ofícios" de alguma maneira foram-me impostos… tomei-os por pura e simples necessidade, nada mais. Sobrevivência ….

Pergunto-me o que diria hoje o meu pai , ao ver que o seu filho “virou” ( "virar “era uma palavra que ele usava para dar ênfase a uma ideia fora do vulgar) mesmo um homem de sete ofícios…As voltas da minha vida depois da Guiné deram mesmo nisso. É que "a necessidade faz o ladrão”. Quis estudar línguas e para isso tive de começar a lavar pratos e panelas… e eu que nunca tencionava trabalhar em restaurantes, de repente fizeram de mim um garçon, depois “virei” maitre d’hotel, gerente de restaurante, e finalmente mordomo.

Se "virei activista” também não tive culpa. As circunstancias em que me encontrava quando as coisas “apareciam" não me permitiam fazer diferentemente do que fiz. O acaso trouxe-me a Nova Iorque; o acaso levou-me a ser mordomo. Outra pessoa a quem o acaso levasse a encontrar-se nas mesmas circunstâncias teria com certeza feito igual, talvez mesmo mais e melhor.

E quanto a bricolage (em português europeu, bricolagem), é a tal necessidade de se desenrascar: reconheço e admito que tenho muita imaginação. E, dizem que sou “perseverante”. Sou pior do que isso: o que eu sou é um teimoso do caraças quando a minha cabeça me diz que uma coisa é ou pode ser duma maneira, mesmo que a maioria das pessoas afirme diferentemente. E quando é assim não desisto. Essa a razão porque por vezes me apelidaram de "berbequim".

A tal engenhoca para cortar o bacalhau em postas com uma catana da Guiné  (imagem à esquerda) é um exemplo de imaginação, faceta que não nego. 

Tenho vários outros ofícios, sem ser bom em nenhum deles: todas as pessoas que visitam a minha casa ficam de boca aberta ao ver a quantidade de bogigangas que eu tenho seja para o que for: carpintaria, alvenaria, pinturas… faço de tudo um pouco, bem consciente de que sou um engenhocas, mas sempre e apenas um engenhocas amador. 

Por vezes as coisas saem tortas e lá tenho eu de chamar o empreiteiro para corrigir as asneiras que eu fiz… outras vezes dá certo. Por exemplo a casa de arrumações no meu quintal foi toda feita por mim, sozinho. O empreiteiro que faz a maioria dos “trabalhos mais complicados " na minha casa queixou-se um dia de que eu tinha dado aquele trabalho a outrem…

Bom já chega. Hoje aconteceu-me ter inesperado tempo livre e deu-me para isto .

Um grande abraço
João ( Nova Iorque )






Lourinhã > Ribamar > Tabanca de Porto Dinheiro > 12 de julho de 2015 > Restaurante O Viveiro > Convívio anual da Tabanca de Porto Dinheiro. Régulo:  Euardo Jorge Ferreira (1952-2019).
- No  grupo dos tabanqueiros da saudosa Tabanca da Porto Dinheiro, falta o fotógrafo, o Álvaro Carvalho (casado com a Lena do Enxalé, de está azul, entre o João Crisóstomo e a Vilma). Faltam ainda os "duques do Cadaval" (Joaquim Pinto Carvalho e Céu Pintéus)...A Dina já não está entre nós nem o Eduardo... O Lopes está doente, acamado. Do nosso capelão Hirácio (e da Milita) também não temos notícias recentes. Falta ainda o Rui Chamusco, o Carlos Silvério e a Zita...

Legenda: da esquerda para a direita, António Nunes Lopes, João Crisóstomo, Helena do Enxalé, Vilma Crisóstomo, Dina, Milita (primeiria fila); Eduardo Jorge Ferreira, Maria Alice Carneiro, Alexandre Rato  [presidente da junta de freguesia de Ribamar,], Horácio Fernandes e Jaime Bonifácio Marques da Silva (segunda fila).


Foto (e legenda) : © Álvaro Carvalho (2015)  Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar:  Blogue Luís Graça & Camnaradas da Guiné]


2. Post-Scriptum

john crisostomo
6 agosto 2025 | 08:05

Às 02.03 AM, sem conseguir dormir, levantei-me e reli as "ruminações" que te enviei ontem. Vejo que há muito mais que podia acrescentar ou que podia ser dito de melhor maneira. 

Por exemplo não disse que o facto de ser eu o enxutador oficial de moscas quando o chicharro era posto aberto e espalhado em cima do telhado para secar se deve com certeza ao facto de eu ser o único "homem" da família num mundo de mulheres. Os meus pais tiveram dez filhos, mas de rapaz só saí eu. 

A mesma razão (de ser eu eu o único rapaz,) fazia de mim o "algoz.  mata-moscas" à noite antes de irmos para a cama. Na falta de outro meio mais eficiente para controlar as muitas moscas dentro de casa, durante o dia eram pendurados no teto uns ramos bem apertados de umas ervas/meio arbustos (não me lembro o nome ). Eram nestes ramos que as moscas se juntavam para passar a noite. 

E então à noite eu, com um a ajuda das minhas irmãs, conseguia enfiar e envolver os ramos de baixo para cima com uma saca das batatas ( de serapilheira) bem aberta, com muito jeito e cuidado para não tocar nos ramos ( pois quando o saco tocava nos ramos elas fugiam todas). Quando o saco estava a chegar ao teto eu de repente fechava o saco e as moscas ficavam dentro do saco. Então eu agitava o saco para elas não ficarem agarradas aos ramos e deslizava a boca da saca do ramo que continuava pendurado para o dia seguinte. A seguir com toda a força de que era capaz, com o apoio entusiástico das minhas irmãs que sempre riam a bandeiras despregadas, eu batia o saco conta a parede ou mesmo contra o chão. E repetia a mesma operação, um a um, em todos os ramos espalhados pela casa. etc.

Sobre outros assuntos mais sérios mais havia para dizer também, mas acho melhor deixar para quando nos encontramos pessoalmente, não vás tu achar que estou a abusar da tua boa vontade, esperando que tenhas pachorra suficiente para ouvir as minhas deambulações de pensador barato. 

Também disso não tenho culpa e até gostava bem de sentir menos esta obcecação de andar sempre a pensar em coisas de que, sei bem, nunca teremos uma resposta ou certeza. Da mesma maneira que os chamados cientistas pensam e tentam chegar a saber como o mundo começøu, tenha isso sido há quatro mil milhões e meio de anos ou quatrocentos vezes quatro mil milhões…

Bom, vou voltar à cama ( neste momento a Vilma está na sua convenção em sérias meditações e eu estou sozinho!) e vou ler o James Michener que é sempre uma leitura agradável e por vezes apaixonante. Dorme bem.
João

(Revisão / fixação de texto, negritos: LG)                            

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Guiné 61/74 - P27095: Felizmente ainda há verão em 2025 (11): uma crónica pícara das minhas (des)venturas em abril de 1965, quando, com o meu amigo Manuel Salazar, decidi ir a Santiago de Compostela, à boleia, de capa e batina, praticamente sem um tostão no bolso (Virgílio Teixeira)



Espanha  > Galiza > Santiago de Compostela > Abril de 1965 > Da esquerda para a direita, o Virgílio Teixeira, de capa e batina,  o prior da Igreja de São Tiago de Compostela, depois o Manuel Salazar, também de capa e batina;  à direita, um homem à civil, também espanhol, deve ser o sacristão, e outro estudante de capa, que conhecemos lá. 

Viagem feita à boleia, com uma agravante de termos ficado ao relento num local depois de Arcos de Valdevez, chamado Extremo. À noite faltou a boleia até Valença, e ficámos no meio do ‘mato’. Uivos de lobos, frio de rachar, passámos a noite na cabina de uma camioneta abandonada, com as capas à volta de nós, para minorar o frio. Depois de manhã rápido chegámos a Santiago de Compostela. A foto tem a data de 28 de abril de 1965. Data da revelação. O padre prior depois de contarmos as nossas aventuras, ofereceu-nos estadia e comida para dois dias. Mas passámos mal aquela noite no Extremo, terra que nunca mais esqueci.


Foto (e legenda): © Virgílio Teixeira (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine]

Virgílio Ferreira, aspirante
a oficial miliciano,
Porto, junho de 1967.
Foto para o BI militar


1. Crónica do Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69); natural do Porto, vive em Vila do Conde, sendo economista, reformado; tem já mais de 210  referências no nosso blogue.



Uma crónica pícara das minhas (des)venturas em abril de 1965, quando, com o meu amigo Manuel Salazar, decidi ir a Santiago de Compostela, à boleia, de capa e batina, praticamente sem um tostão no bolso 

por Virgílio Teixeira



Nesse tempo, com o meu amigo Salazar (Manuel e não António), estudante de Direito em Coimbra, de raízes muito humildes, com bolsa de estudo fez o liceu e depois o curso de direito em Coimbra, sem custos. Chegou a Juiz Conselheiro e está,  como eu,  reformado e abandonado.

Muito mais de raízes muito pobres, era meu vizinho com quem joguei à bola na rua, e depois frequentámos o mesmo colégio, e no final perdi o seu rasto. Eu, por razões que não de disciplina, faltei o ano quase todo da 3ª classe, e as bárbaras das freiras chumbaram-me, tive de repetir e atrasei um ano.

Ele seguiu o seu caminho e eu o meu. Ele foi para o Liceu e eu fui trabalhar, com muito mais possibilidades do que ele. O pai era operário fabril, muito sério e muito boa pessoa, apesar de nunca ter falado com ele. A mãe estava entravada, numa cadeira de rodas, e cozinhava e fazia as coisas, com a ajuda das vizinhas, muito boa senhora, mas ele, o meu amigo, não era amigo, talvez sofresse de inveja, apesar de ele estudar e eu, ao mesmo tempo , trabalhava e estudava de noite.

Como não íamos a parte nenhuma, chegados ou a férias ou fins de semana, nos anos 64,65 e 66 lá organizamos o nosso passatempo. Começámos por viagens pelo país, cada dia inventávamos um percurso, como ir a Trás os Montes, Douro, Alentejo,   Algarves, etc.

Vestíamos a capa e batina, que nessa época era um handicap grande, íamos para a estrada à boleia, sem quase dinheiro nenhum. A minha mãe preparava um farnel, que dava só para um dia, e as viagens eram longas, só nos Carnavais de 65 e 66 eram 6 dias a pão e água.

Vamos reduzir isto, que está tão bem documentado na minha vida em livro de 3 mil páginas, nunca editado, nem editável.

Escrevo tudo sem ir lembrar nada o que escrevi, um dia deu-nos na cabeça, que tínhamos que passar fronteiras. Ir conhecer a nossa vizinha Espanha, começando pela Galiza.

No 2º trimestre de 65 , já estávamos apurados para todo o serviço militar, em espera para terminar os cursos, ninguém podia sair de dentro de fronteiras.

Como já expliquei várias vezes, eu tinha uma relação muito especial com uma filha de um camarada de meu pai, que por acaso trabalhava aqui na PIDE,  no Porto. Fácil foi convencer o pessoal que nós éramos 'direitinhos' e não íamos 'dar o salto' (ou 'dar os frosques', como se dizia no meu Porto) , e assim passar a fronteira de Valença era apenas coisa de um telefonema do Porto para Valença.

Fomos então, lá para abril de 65, com grande experiência de boleia de estradas, com o aval das capas e batinas, que ainda mantinham muito respeito, porque eram poucas, saímos do Porto, direcção a Valença.

As boleias apanhávamos tudo que fosse na direcção que queríamos, ninguém escusava nada, tudo muito fácil, muitos conhecimentos e algumas amizades.

E lá fomos, passando e parando em vários sítios e cidades. Chegados a Arcos de Valdevez , já começava a ficar escuro, e daí para diante eram florestas carregadas de lobos e cães selvagens.

O homem deixou-nos no cruzamento chamado de Extremo, que em frente era selva e para os lados do mar, nomeadamente Ponte de Lima,  era mais agradável e povoado. 

Não tivemos alternativa, a noite caiu rapidamente , o vento gélido das montanhas fazem-se sentir, e os uivos dos lobos ouvem-se claramente.

Mais nenhum carro passou e ali ficámos plantados no cruzamento da morte,  como ainda hoje lhe chamo.

Caminhámos até encontrar luzes, era a casa do Padre, ou estava lá com a amante ou teve medo, apesar de explicarmos por fora sem nunca nos vermos.

Continuámos até ver uma casa de pasto e uma camioneta velha à porta. Tocámos e falámos sem ninguém abrir a porta e explicámos que os lobos e os cães ali perto nos tentavam agredir, nada que comovesse os donos. Disse-nos então que estava ali uma camioneta e que podíamos passar a noite na cabina, sem vidros e sem fechos.

Lá entrámos com os cães a ladrar e os lobos a uivar. O frio era tanto que tivemos de dormir abraçados, enrolados nas capas de ambos.  Um terror.

De manhã cedo, com a luz do dia,  lá aparece o homem e mulher e filhas, Pediram desculpas e ofereceram o pequeno almoço, que bem nos soube, pois não havíamos jantado. Em cada viagem perdíamos vários quilos.

Obrigado e pusemo-nos à estrada e de dia foi num rápido e estávamos em Valença, passámos sem problemas, e pela Galiza dentro conheci outro mundo, não muito diferente do nosso, só falavam galego.

As boleias foram fáceis e rapidamente antes do almoço estávamos na Catedral de Santiago. Fomos recebidos pelo Prior, ainda tenho uma fotografia (ver acima), tínhamos ar de sofrimento,

Explicada a nossa aventura, almoçá
mos por ali junto dos restantes membros. Depois não sei como foi a conversa, mas ofereceram jantar e quarto pra dormir. Tudo 5 estrelas, para quem dormira numa cabine de camioneta sem vedação.

Despedimo-nos com as respectivas moradas e nomes, com juras de lá voltarmos. Agora íamos para casa. Não sei se nos deu algum dinheiro para a viagem.

Mas em vez  de seguirmos para casa, continuámos à boleia e fomos até à Corunha e todas aquelas praias, e ainda fomos parar a Tordesilhas , e virámos  para o ocidente, Salamanca e fronteira. Depois voltámos a casa. Com menos uns quilos...

Esta foi a nossa peregrinação a Santiago, julgo que não se sabia ainda das futuras rotas de peregrinação.

Ficava aqui a falar nas nossas aventuras à volta de Portugal, com 2 carnavais em Loulé em 65 e 66 e a bajulação daquelas raparigas, que aproveitámos para tirar algum proveito, e na última vez acabámos ao fim de 5 dias de ir dormir na Cadeia de Loulé, onde o pai de um dos nossos companheiros era guarda prisional e ali dormimos cerca de 20 estudantes, no meio de colchões de palha carregados de mijo e pulgas, e de manhã fomos ao lavatório passar água nos olhos e fugir dali, a chuva tinha passado e as roupas secado.

Depois fomos ter a Évora, onde estava o meu Pai, que nos matou a fome, e dinheiro para o comboio direto ao Porto. Só que continuámos para Norte, para dar a volta a Portugal, que acabei por fazer sozinho, por desistência do meu amigo e vizinho...

Fico por aqui, logo vou continuar com as rotas de Santiago modernas, e dar respostas ao Abilio e Santiago.

Comecei às 13 horas, agora já são 17 e meia, e vou levar a minha Santa à Missa, eu espero no café.

(Revisão / fixação de texto, título, negritos: LG)


2. Comentário do editor LG:

Para quem quiser saber mais sobre a históriia do caminho de Santiago, clicar aqui:



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Nota do editor LG:

terça-feira, 5 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27094: Felizmente ainda há verão em 2025 (10): As nossas férias na Nazaré (Juvenal Amado, ex-1º Cabo CAR do BCAÇ 3872)



AS NOSSAS FÉRIAS

As férias eram assunto esperado todo o ano. Até ir para a tropa as minhas férias tinham preliminares logo desde Maio com futeboladas no areal, seguida de banhos nas águas ainda frescas da Nazaré e S. Martinho do Porto ali tão perto.

Depois, as férias oficiais eram rotativas durante os meses de Junho Julho e Agosto na secção de pintura da Crisal. Por vezes faziam-se trocas que favorecessem ambas as partes. Sendo trabalhador,  não tendo assim ligação directa no dia a dia com os outros jovens do meio estudantil, mantive boas relações com o grupo. E sendo eu o único trabalhador sindicalizado,  nunca me sentido excluído.

Era comum passarmos 15 dias na Nazaré quando se podia lá alugar casa,  longe dos preços praticados hoje, que ultrapassam os do Algarve. Dias na praia, noites na moina, que implicavam a ida à padaria volta das três da manhã onde comíamos pão quente com manteiga. Essa era a hora que os pescadores se aviavam de pão para ir para os meus turnos no friso de traineiras no horizonte e de onde regressavam os do turno anterior com o pescado. 

De notar, que nesse tempo não havia porto de abrigo e estas manobras eram por vezes arriscadas e punham em perigo os ocupantes das barcaças a remos. Quando o mar estava picado,  era comum as mulheres e as mães juntarem-se no areal numa moldura trágica com rezas envoltas dos seus xailes negros.

Talvez com os meus 18 anos comecei a ir para o Algarve. Os parques de campismo, a vida ao ar livre, os relacionamentos eram o que nos aproximavam dos perfumes do movimento Flower Power que marcaram que aqueles anos também por cá. Paz & Amor, façam amor e não a guerra e o relacionamento com jovens vindas de países onde não existiam os tabus vigentes da nossa sociedade, mostravam-nos um Mundo que nem sabíamos que existia. As férias era assim um prémio para um ano de trabalho e a recordação que nos acompanharia até às próximas.

Mas veio o serviço militar que interrompeu tudo de forma a não deixar dúvida durante os três anos seguinte. Não foi por falta de calor mas voltei a fazer as férias da praxe de 35 dias que gozei praticamente no Invern,  por isso fiquei longe do mar. Foram umas férias estranhas pois tive sempre a sensação de nem cá estar, nem lá estar. Quando embarquei no avião de regresso numa noite chuvosa e fria,  fiquei sem dúvida uma vez que não havia escolhas.

Regressei, casei, nasceu a minha filha e voltei a fazer férias no campismo, visitando praias, apreciando um bocadinho das recordações da juventude sem cabelos compridos nem camisas compradas nos Porfirios e calças de ganga de candonga que vinham das Canárias.

Hoje as férias são passadas em função da minha utilidade, onde o descanso é o mais apreciado no alvorecer deste mundo novo, onde ideia luminosa prevê vir a comprar férias e onde tantas regalias ganhas com luta estão em perigo.

04/08/2025
Juvenal Sacadura Amado

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Nota do editor

Último post da série de 5 de Agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27092: Felizmente ainda há verão em 2025 (9): Tu comeste batatada de peixe seco... ontem, na Ventosa do Mar, freguesia da Marquiteira, Lourinhã.. Mas, bolas, Eduardo, João, Rui, amigos, camaradas, como é difícil, em agosto, juntar a gente toda de quem a gente gosta!... (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P27093: Blogpoesia (805): Versejar em Nova Sintra - 2: "Despedida de Nova Sintra", por Manuel Gouveia de Oliveira, Soldado Atirador (Aníbal José da Silva, ex-Fur Mil Alimentação)


1. Em mensagem de 1 de Julho de 2025, o nosso camarada Aníbal José Soares da Silva, ex-Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483 / BCAV 2867 (Nova Sintra e Tite, 1969/70), enviou-nos alguns versos alusivos a Nova Sintra.
Publicamos hoje a "Despedida de Nova Sintra" da autoria do Soldado Atirador Manuel Gouveia de Oliveira, o "Xabregas".



VERSEJAR EM NOVA SINTRA - 2

Não me recordo de haver muitos militares a fazer versos e a havê-los não os davam a conhecer.
Eventualmente enviavam as suas “obras” à mãe, à esposa, à namorada, ou à madrinha de guerra.

Mas recordo com muita saudade o amigo Xabregas, sempre bem disposto e risonho, soldado atirador de Cavalaria de seu nome completo Manuel Gouveia de Oliveira que, sobre qualquer tema ou pretexto, repentinamente fazias as suas quadras. De várias que ele compôs, partilho com os camaradas do blogue, as duas únicas que tive a oportunidade de guardar.



DESPEDIDA DE NOVA SINTRA

Dezassete chegam bem para quem tem
Esta missão cumprida
Por isso eu digo agora chegou a hora
De merecermos a partida

Vamos todos pra Bissau, que já não é mau
E dormir
descansadinhos
Vamos entregar a farda camufleda
Porque já somos velhinhos

Adeus Nova Sintra, nunca mais quero voltar
Saudade são meus desejos
Mas tu não leves a mal.

Adeus Bissau, também não quero voltar
Quero ir para a mimha terra
Quando a missão terminar.

Marchando na escuridão, em paliçadas
Em qualquer operação
Sempre unidos e velozes as nossas vozes
Nunca disseram que não

Adeus Nova Sintra
Colunas a S. João
Adeus Mata do Jorge
Uanadim e Brandão


Autor
Manuel Gouveia de Oliveira
Soldado Atirador de Cavalaria
CCAV 2483

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Nota do editor

Último post da série de 29 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27068: Blogpoesia (804): Versejar em Nova Sintra - 1: "Marcha de Nova Sintra", por Manuel Gouveia de Oliveira, Soldado Atirador (Aníbal José da Silva, ex-Fur Mil Alimentação)

Guiné 61/74 - P27092: Felizmente ainda há verão em 2025 (9): Tu comeste batatada de peixe seco... ontem, na Ventosa do Mar, freguesia da Marquiteira, Lourinhã.. Mas, bolas, Eduardo, João, Rui, amigos, camaradas, como é difícil, em agosto, juntar a gente toda de quem a gente gosta!... (Luís Graça)


Lourinhã > Freguesia da Marquiteira > Ventosa do Mar > 4 de agosto de 2025 > Foto de t-shirt de um comedor de batatada de peixe seco, uma iguaria que não há no céu... nem nos restaurantes da Terra da Alegria.  Só na Marquiteira e na Ventosa do Mar... A da Marquiteira foi há um mês.

Fotos (e legenda): © Luís Graça (2025). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Garça & Camaradas da Guiné]


Bolas!.. A vida é breve... Tão breve... Um dia destes estamos numa cama de hospital a rever a merda do filme das nossas vidas ao contrário. De trás para a frente. De frente para trás. Um documentário curto.  Um filme mudo. Uns escassos segundos. Uma semibreve. Em trinta, sessenta segundos. O nosso tempo de antena... Tão breve como um orgasmo... E depois "damos o peido mestre!"... E vinte e quatro depois somos consumidos pelo fogo.  A 900 graus.  

A vida é tão breve e cruel, camaradas.  O fim do filme não é nada bonito. Porra, merecíamos melhor, não acham ?!...

Nascemos de um orgasmo. Semibreve. Trinta segundos. Tão simples como isso. Nada de mais anódino (do grego, "anódunos, -on", sem dor).. Anódino, anónimo, vulgar... A maior parte das nossas vidas cabe num pequeno vídeo de 30 a 60 segundos, Um minuto. Nada tem de heróico.  E o que é que levamos da nossa vida terráquea para a prometida eternidade ?... Uns dizem que é o que se come, se bebe e se f*de...

Como a gente dizia, na tropa, com crueldade e a estupidez dos nossos verdes anos (em que, pobres de nós , pensávamos que éramos  eternos, imortais, invulneráveis!), somos todos "meias lecas, meias f*das", feitos numa noite alegre de verão ou numa noite de pesadelo de inverno...

Acabámos de nascer. Há 70, 80 anos...  Heroínas foram as nossas mães. Nove meses a afagar a barriga. E depois a parir. E depois a amamentar-nos... Não há mais lindo do que a gravidez das nossas mães. A infinita ternura que puseram, do princípio ao fim, na nossa gestação. Mãe só há uma. Pai....todos podem ser. Progenitores, doadores de sémen.

As nossas mães que pariam em casa. Com dor. Sem assistência médico-hospitalar. No tempo do... Velho Estado Novo.  Cumprindo a maldição bíblica. Parirás com dor. Iam parir na casa das suas mães, se não vivessem longe. 

Como a tua, que faria agora 103 anos. Se fosse viva. Morreu com 92. Maria da Graça. Nascida em 6 de agosto de 1922, No Nadrupe, a 3 km da vila, Lourinhã. Filha da tia "Patxina" , Maria do Patrocínio, e do Manuel Barbosa. Em dia de festa. Festa do  Nadrupe, em honra de Nossa Senhora da Graça. Daí o apelido, Graça.  A três quilómetros da Lourinhã. Na margem direita do Rio Grande da Lourinhã. Que era navegável no tempos dos fenícios,romanos, visigodos, mouros, cruzados.... O mar chegava à Lourinhã nos séculos XII, XIII, XIV... A tua casa está construída em leito de mar. Assente em fósseis marinhos. E um dia destes será engolida por um tsunami.  Estupidez dos autarcas e do Estado que nos deixa construir e habitar em antigos leitos de mar. Todos queremos, afinal,  viver à beira-mar, e mais perto do sol,  para um dia sermos engolidos por eles, pela água e pelo fogo.

Andámos a jogar ao pião. Há 70 e tal anos. Somos filhos do pós-II Guerra Mundial. Da Idade Atómica. Da Bomba Nuclear. Somos todos filhos de Hiroshima. 6 de agosto de 1945. Por favor, não esqueçam!... Não esqueçam Hiroshima.

Aprendemos a rezar. Aprendemos as primeiras letras. Com sete ou oito anos já andávamos a jogar à porrada com os outros miúdos da rua e da escola. Na Rua do Castelo ou no Largo do Convento. Ou na Rua Grande, Ou no Largo das Aravessas.  Vimos o primeiro sangue a escorrer da cabeça. Saltámos às fogueiras de Santo António, São João e São Pedro. Fizemos gazeta à escola e à catequese. Quando o Rio Grande da Lourinhã transbordava. E, sem nos darmos conta, estávamos todos nus, em bicha de pirilau, com a mão a esconder as "vergonhas", à frente dos senhores coronéis da tropa que decidiam quem era apto ou não apto para servir a Pátria. Nus, em pelota, no primeiro andar do velho edifício republicano da câmara municipal. 

Um ou dois anos depois, lá estavam os "filhos de sua mãe", com uma p*ta de uma Mauser, na Índia, ou com uma "namorada", de nome G3, em Angola, Guiné e Moçambique,a defender os cacos do Império. Que fora grande no tempo do nossos maiores. Já não te lembras dos seus nomes. Os heróis da Pátria. Que vergonha!... Tinhas a obrigação de os saber. Eras um "barra" em história, quando fizeste o exame de admissão ao Liceu. Em Lisboa. Um terror, o exame de admissão...

Hoje, "radioativo, protésico, parkinsónico e...alzheimareado", já não te lembras a quem deste  três anos da tua vida, tão curta (vais fazer oitenta, se lá chegares, em 29 de janeiro de 2027!)...  Se alguém souber, por favor, que te ajude!... É uma obra de caridade...

São três da manhã. Estás con insónias. E quando estás com insónias, levantas-te, abres o "portátil"... e escreves. Alimentas o blogue, a tua "droga", a tua "adição". 

Nunca se deve comer batatada de peixe seco à noite. Muito menos na Ventosa do Mar, Lourinhã. Numa manjedoura coletiva que juntou perto de 350 bocas, esfomeadas, ruidosas, alegres... Como em romaria...  Ontem, 4 de agosto de 2025. No último dia da tradicional Festa do Emigrante. Convivendo à mesa com gente de diferentes gerações. Filhos de muitas mães e terras: Cadaval, Lourinhã, Seixal, Sobral, Marteleira, Ventosa, Cesaredas, Lisboa, Marco de Canaveses, Paris... Gente que adora batatada de peixe seco. Iguaria que só existe em terras ribeirinhas da Lourinhã como a Marquiteira, a Ventosa do Mar, Ribamar. Honra a esta gente que mantém esta tradição. 

Ficaste ao lado de pequenos empresários, gente valorosa, na casa dos 40/50, como os teus filhos. Um de mármores, outro de ar condicionado. Mas a quem já nada diz a p*ta da guerra que te roubou três anos de vida, e ainda tira o sono a muita gente, cinquenta, sessenta anos depois. Só tira o sono a quem a fez. Como tu. O Jaime. O Pinto de Carvalho.

Porra!... Faltou o Eduardo Jorge Ferreira, que já está lá no céu. Desde 2019.  Morto estupidamente numa clínica particular a partir uma pedra na bexiga. E que sempre te dizia, na caldeirada de Ribamar ou na batatada de peixe seco da  Ventosa: "Luís, olha que no céu não há disto!"... E ele era crente, tão cristão como tu és  herege!... 

Ainda hoje esta gente fala com respeito e ternura do senhor professor Eduardo Jorge... Que falta  fazes,  nosso irmão!... E tu, mano  João Crisóstomo, que estás para aí sozinho, com a tua Vilma,  em Nova Iorque. Bolas, nunca comeste com a malta, teus amigos e camaradas,  a batatada de peixe seco!... E o  mano Rui Chamusco que deve estar andar pelo Sabugal (ou por Alter do Chão ?)... Bolas, Eduardo, João, Rui, como é difícil, em agosto, juntar a gente toda de quem a gente gosta.

És fã, de há muitos anos, desta iguaria dos pobres. Que merecia ter uma confraria. A da Batatada do Peixe Seco. Costumas não perder as tradicionais batatadas de peixe seco da Marquiteira e da Ventosa do Mar. Este ano perdeste,  por um dia, a da Marquiteira. Que é a Rainha da Festa. Honra à Marquiteira, terra do teu primo, amigo e camarada  Rogério Gomes, que esteve em Angola, na guerra...

 Mas estiveste ontem, há meia dúzia de horas, na batatada de peixe seco, na da Ventosa do Mar. Terra do João Duarte, o presidente da Câmara Municipal da Lourinhã (agora em fim de mandato). Que sabe receber, como ninguém, os seus amigos e convidados. Na sua "manjedouro" eram dezenas os comensais, os companheiros. Convidou-te, a ti,  à Alice Carneiro, ao Jaime Silva, e aos "duques do Cadaval" (Joaquim Pinto de Carvalho e Céu Pintéus). Sem distinção de terras, clubes ou partidos. Um gesto de grande hospitalidade e nobreza. Na tua terra ainda são todos iguais.

 A batatada de peixe seco honrou a tradição. Não faltou a generosidades deste gente da Ventosa do Mar, Lourinhã. Malta nova, que organiza a festa. Que dá uma semana das suas férias ou do seu tempo em prol dos outros. Que veste a camisola, pela sua terra. Que lindo, que exemplo, que inveja, em tempo de crueldade, individualismo, egoísmo, arrogância, ódio, xenofobia, por toda a parte no mundo!... E aqui mesmo, ao teu lado...

Não faltou a batata,  a cebola, a arraia, a sapata... e pela primeira vez o espadarte seco (que é mais duro de roer)... A sapata e a arraia são as rainhas da festa... 

No final, estafaram-se duas garrafas de aguardente DOC da Lourinhã e uma de uísque velho, da garrafeira do João Duarte... Obrigada, Ventosa do Mar!,,, Obrigado, mordomos da festa do emigrante da Ventosa do Mar!... Obrigado, João Duarte, que sabes  honrar a tua terra, Ventosa do Mar,  como ninguém! 

Lourinhã, 6 de agosto de 2025, entre as três e meia e as seis e meia da manhã. (Três horas para escrever e editar este poste!...Três horas roubadas ao sono... Mas não à vida. Solidária.)
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segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27091: (in)citações (277): O cérebro também pode apodrecer (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)



O CÉREBRO TAMBÉM PODE APODRECER

adão cruz

Já o tenho dito muitas vezes, mas não me canso de o repetir. O nosso cérebro, encerrado completamente às escuras numa dura caixa óssea, é a estrutura mais complexa e mais difícil de entender, no planeta e no Universo conhecido. O simples cérebro de uma formiga é uma estrutura mais complexa e difícil de entender do que uma estrela. O nosso cérebro é composto por 86.000 milhões de células, ou neurónios, ligados entre si por biliões de ramificações. Um milímetro cúbico de córtex cerebral contém mais conexões do que seres humanos à superfície da terra. Este nosso admirável e soberano órgão realiza provavelmente triliões de ligações e cálculos durante os nossos raciocínios do dia-a-dia.

E todos nós o desprezamos, considerando-o pouco mais do que um instrumento de discussão futebolística. Porém, não é propriamente esta mensagem numérica o que aqui quero deixar. Gostaria que ficasse retida a sua essência, isto é, o reconhecimento da poderosíssima arma e riqueza da nossa estrutura mental, do nosso pensamento e da nossa razão.

Diante de tudo o que se passa actualmente no mundo, especialmente o silêncio e a indiferença perante a crueldade e a barbaridade nunca vistas, a desumanidade elevada ao mais alto grau, a morte lenta da solidariedade e justiça sociais, o hedonismo absoluto e o espezinhar de toda a ética e dignidade, como vemos inacreditavelmente e diariamente nos ditos líderes europeus e não só, sou levado a pensar que uma boa parte do cérebro humano da nossa sociedade está envolta numa nuvem de poeira ou mesmo enferrujada ou até apodrecida. Como se fora uma maçã, meio sã e meio podre. Simplesmente, a parte sã nunca consegue regenerar a parte podre, mas esta continua a invadir a parte sã até que toda a maçã apodreça por completo.

Se a parte podre e a parte sã da sociedade fossem bem definidas e houvesse uma hipótese cirúrgica de as separar, seria a única solução terapêutica, permitindo extirpar a metade podre, deitando-a repugnantemente ao lixo. A forma de o fazer, como é óbvio, não seria fácil de imaginar. Porém, o são e o podre da humanidade não estão, provavelmente, separados em duas metades distintas, como na maçã. O podre pode estar infiltrado no meio do são e o são infiltrado no meio do podre, o que nos leva a pensar que a vitória da parte sã se tornaria ainda muito mais difícil ou impossível.

Uma tão ciclópica tarefa, a ser tentada, só poderia ser levada a cabo no seio daquela parte da sociedade, cujo cérebro ainda saudável fosse capaz de lutar diariamente com as armas mais poderosas do ser humano, o pensamento e a razão, único detergente com poder para limpar as zonas podres da nossa mentalidade. Porém, tal detergente, aquele que a ignóbil e prostituída comunicação social não permite, é substituído por outro mais fraco, uma espécie de linha branca, fazendo pouca espuma e deixando o cérebro permanentemente untuoso de gordura. Seria indispensável conhecermos o mais profundamente possível e enfrentarmos como cidadãos conscientes os factores necróticos da degenerescência humana e os catalisadores da putrefação, que são incomensuráveis.

Desde a diabólica corrupção à criminalidade social dos que nunca foram filhos e nunca tiveram nada, até aos crimes bem mais graves e socialmente destrutivos de muitos dos que sempre tiveram pais e tiveram tudo. Desde as mentiras, distorções, falsidades e obscurantismos de toda a espécie, à monumental hipocrisia e crimes das instituições, nomeadamente religiosas, consideradas impenetráveis à desonra, mas mostrando-se ao mundo como campeãs em muita podridão, nomeadamente a que respeita a um dos mais hediondos crimes, a pedofilia.

Podemos pensar que se trata de um trabalho quase utópico, numa sociedade mentalmente anquilosada, atrofiada, de neurónios quase murchos, difíceis de reanimar, nos quais os poderes instituídos fecharam o fluxo da razão a sete chaves, a razão fruto do pensamento, o pensamento como a mais poderosa arma de que o homem dispõe contra a exploração do homem pelo homem, contra a escravidão, a perversão dos mais nobres princípios, contra a fraude de governos e grandes corruptos, contra a especulação selvagem, contra a injustiça, contra a mentira, contra a falta de ética e moral, contra a estupidificação institucionalizada e contra a falsa cultura, ...a cínica madrasta de um sociedade livre.

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Nota do editor

Último post da série de 21 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27042: (in)citações (276): Os sinais de Deus (Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil Op Especiais)

Guiné 61/74 - P27090: Ser solidário (286): Almoço-Convivio da Associação Anghilau, dia 14 de Setembro de 2025, às 12h30, no Restaurante da Quinta de Santo António, na Malveira (Manuel Rei Vilar)



ALMOÇO-CONVÍVIO

ASSOCIAÇÃO ANGHILAU

Dia 14 de setembro de 2025 às 12h30

Restaurante da Quinta de Santo António
Rua de Cascais, perto da Malveira da Serra (Tel. 214 872 442)


Caríssimos Padrinhos, Madrinhas, Benfeitores, Sócios e Amigos da Associação Anghilau,

A última vez que nos reunimos foi em outubro de 2023 - há quase dois anos! É por isso que sentimos ser cada vez mais necessário organizarmos um novo Encontro informal. E porque somos uma Associação, isso implica nos associarmos, convivermos, partilharmos ideias, celebrarmos conquistas e fortalecer laços.

Além disso, neste ano de 2025 também se assinalam os 5 anos da nossa Associação e os 55 anos da morte do Capitão Luís Filipe Rei Vilar. Assim, esta celebração é igualmente um tributo à sua vida e ao legado que ele nos deixou a nós, Associação Anghilau, e à população de Suzana, o qual continuamos através da nossa ação.

Assim, em nome da Direção, tenho o prazer de vos convidar para um Almoço-Convívio, no próximo 14 de setembro, às 12h30, como habitualmente, no Restaurante da Quinta de Santo António. O almoço inclui entradas, sopa, prato principal, sobremesa, café e bebidas (vinho branco, vinho tinto ou sangria) e tem o custo de 28,00 euros por pessoa. Como sempre, os vossos amigos serão igualmente muito bem-vindos!

👉 Confirmem, por favor, a vossa presença e o número de pessoas através do e-mail (mreivilar@gmail.com) ou pelo telefone/WhatsApp (+33 6 76 57 95 04).

Durante o Encontro, partilharemos as mais recentes notícias de Suzana, apresentaremos os novos projetos e iniciativas da nossa Associação, e haverá, como sempre, tempo para conversas informais, novos encontros e troca de ideias. Aproveitaremos também para lançar um novo ciclo de apadrinhamentos, destinado às crianças que, neste ano letivo, iniciaram o seu percurso no Jardim-Escola Capitão Luís Filipe Rei Vilar... Será mais uma Ação "Venham mais Cinco".

Em nome da Direção, aproveito também para agradecer a todos a vossa generosidade, fidelidade e amizade. Contamos convosco para continuarmos a cumprir o nosso compromisso com a Educação das crianças, dos jovens e da Comunidade de Suzana... e também, claro, com a vossa presença neste almoço-convívio.

Aproveito ainda para vos informar que, no início de dezembro, convocaremos uma Assembleia Geral, onde será apresentado e aprovado o Plano de Atividades e Orçamento para 2026.

Por último convido-vos a visitarem o novo site da nossa Associação:
www.associacao-anghilau.com.

Recordando o lema do Capitão Rei Vilar, que inspirou a criação da nossa Associação:
“Lutando, Construindo e Ensinando!”

Despeço-me com as nossas melhores saudações em língua felupe:
Kassumai – Felicidade, Paz e Liberdade.
Bem-hajam!

Pela Direção,
Manuel Rei Vilar
Presidente

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Nota do editor

Último post da série de 19 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26938: Ser solidário (285): Bilhete-postal que vai dando notícias sobre a "viagem" da campanha de recolha de fundos para construir uma escola na aldeia de Sincha Alfa - Guiné-Bissau (14): Mercado de venda de produtos em segunda-mão no dia 21 de junho na cidade de Bressanone – Região Italiana do Alto Adige (Renato Brito)

Guiné 61/74 - P27089: Memórias da tropa e da guerra (Joaquim Caldeira, ex-fur mil at inf, CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834, Tite e Fulacunda, 1968/69) (6): A noite do Adriano, um herói desconhecido




Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > A famosa "torre de vigia", onde estava montada uma Breda, e que já existia no tempo dos Boinas Negras, a CCAV 2482 (1968/70)



Foto (e legenda): © Armando Oliveira  (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine]



1. Mensagem do  Joaquim Caldeira, grão-tabanqueiro nº 905,  ex-fur mil at inf CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834 (Tite e Fulacunda, 1968/69) (*)


Data - terça, 29/07/2025  12:14  
Assunto -  A noite do Adriano

Desta vez, envio um relato sobre a heroicidade por vezes forçada de um grande homem a quem Portugal ainda não fez justiça.

Ontem fui surpreendido por um telefonema que me fez o nosso amigo, coronel Trabulo. Queria incentivar-me e ao mesmo tempo corrigir algumas imprecisões, sobretudo de datas. Fiquei maravilhado por saber que já estão a fazer comentários ao que escrevi. Peço a todos os que lerem estas palavras que comentem e, se possível, complementem com alterações que lhes pareçam pertinentes. Sobretudo, ajudem-me com material porque eu já não me lembro de tudo.

Mas vamos ao Adriano.

Um abraço, caro amigo.
J.Caldeira


A noite do Adriano, um herói desconhecido

por Joaquim Caldeira (*)


Nas noites mais escuras, dentro da mata, a nossa fila indiana mantinha-se graças ao ouvido, pois que à distância regulamentar que cada um devia manter dohomem da frente, cerca de três metros, não se via nada. Mas, tal como eu e muitos de nós, oAdriano também estava a perder qualidades auditivas e com maior grau de perigosidade.

Estava quase surdo. Penso que acabou por ficar surdo total. Efeitos do ruido sobre o sistema auditivo, dizem-me os otorrinolaringologistas. É assim que se escreve? Bem, como o Adriano estava surdo e não conseguia ver dada a enorme escuridão, ao passarmos numa bifurcação do caminho, ele seguiu pelo outro ramo, levando atrás o resto da coluna. E, quando se deu conta, era tarde. De noite não é possível juntar duas colunas. Mesmo de dia é altamente perigoso, como já aqui referi no episódio da enfermeira. Foi então necessário esperar que o dia nascesse para que as duas colunas, entretanto paradas, pudessem caminhar para o encontro.

Este episódio não teria importância se não fosse introito para o que vem a seguir:

Certa noite, em Fulacunda, calhou a vez ao Adriano de subir ao palanque para sentinela noturna de duas horas. Esse palanque não era mais do que um tronco de "cibe"  com unsquatro metros de altura, encimado por um estrado de madeira, quadrado de dois metros, e nele estava um metralhadora Breda  com dois cunhetes de balas em permanência. Para quem já esqueceu, um cunhete tem mil balas. Para ajudar na subida tinham sido pregados uns sarrafos e, na subida para a plataforma, um pouco de ginástica. Para descer era o cabo dos trabalhos.

E nessa noite, comandado pelo próprio Nino Vieira,  um grupo altamente armado e em número elevado, atacou as nossas fortificações com vários canhões, vários morteiros e roquetes e várias metralhadoras e outras armas ligeiras, dispostas em ninhos por espécie e colocadas a pouco mais de cinquenta metros do arame. Foi uma flagelação destinada a entrar e arrasarconnosco, pois que eles sabiam que nessa altura estavam apenas dois pelotões. O terceiro e o quarto pelotões tinham sido desviados para a psicossocial em Bedanda e no Catió. Está certo?por ordem do comandante do batalhão.

Voltando ao ataque, dessa vez era para acabar com Fulacunda. Mas o Adriano estava lá. E via de onde saiam os disparos. E estava em local privilegiado para apontar ao sítio e ter sucesso.

E teve. Sozinho, nós apenas podíamos fazer barulho e evitar a entrada, sozinho, portanto, foidizimando o IN ninho a ninho, começando pelos canhões, passando aos morteiros e acabando nas metralhadoras. E pô-los em fuga. Mas com o Nino era tudo muito a sério. Não deixaram os feridos nem os mortos nem o armamento. Apenas ficou o sangue, muito, e o mato pisado pelo arrastar de quem não poderia andar.

E, porquê fez tanto e tão bom trabalho, o Adriano. Então ele conta que via as balas tracejantes à sua volta e via os clarões das granadas de canhão, morteiro e roquete rebentar na base do "cibe" e manteve-se firme no seu posto. É que ele nunca teve a noção verdadeira do perigo em que estava porque não ouvia e porque era muito difícil descer dali.

Foi um grande herói. Pedi ao capitão que não se esquecesse dele para as nomeações aos "Óscares". Levou um louvor. Merecia mais. E, do país, não levou nada. Quando os nossos governantes enaltecem quem defendeu o bom nome de Portugal na Bósnia, no Kosovo, no Afeganistão. etc, etc, dando-lhes benesses, merecidas, esquecem quem defendeu o bom nome e a integridade de Portugal, deu a vida, deu a saúde e, em troca, nem uma pensão por invalidez lhe concedem. Se fosse para dar benesses a comendadores ou outros, a políticos ou a outros, haveria dinheiro. Ao Adriano ainda não foi feita justiça. 

Pobre Portugal.  Afonso Henriques, no que te meteste com a teimosia de ser rei!

(Revisão / fixação de texto: LG)

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Nota do editor LG:

(*) Último poste da série > 18 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27028: Memórias da tropa e da guerra (Joaquim Caldeira, ex-fur mil at inf, CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834, Tite e Fulacunda, 1968/69) (5): Consagração de um grande homem e combatente, o João Gualberto Amaral Leite (1944-2011)

Guiné 61/74 - P27088: Notas de leitura (1826): "África No Feminino, As Mulheres Portuguesas e a A Guerra Colonial", por Margarida Calafate Ribeiro; Edições Afrontamento, 2007 (Mário Beja Santos)


Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Julho de 2024:

Queridos amigos,
Trata-se de uma investigação relevante e vincadamente singular. Como observa a autora, Margarida Calafate Ribeiro, é uma recolha de vivências da memória da guerra colonial a partir das perspetiva de mulheres portuguesas que acompanharam os maridos numa retaguarda ou num destacamento atreito à guerra. "Nasceu do meu espanto sobre o registo apenas ficcional do rosto destas mulheres, e da generosidade das mulheres que entrevistei quando um dia lhes bati à porta e lhes disse: 'Sei que esteve em África. Quer contar?'.

 Uma coletânea de testemunhos onde se exprimem as diversidades na formação destas mulheres nossas contemporâneas, o quadro ideológico envolvente de todas elas, há uma imensa saudade por aqueles amplos espaços, pelas rasgadas solidariedades, quem ali deu à luz ou levou crianças pequenas guarda recordações ao milímetro, há quem não queira voltar, sobretudo as mulheres que ali estiveram presentes nos últimos anos, com realce para a Guiné e Moçambique, houve a clara perceção que o mundo desabava e em muitos dos depoimentos há o claro desconforto em dizer que nem tudo correu bem na descolonização, mas que foi o resultado inevitável de uma teimosia sem limites que levou muita gente a ter que fugir e ao sofrimento de guerras civis. Oxalá que esta obra tenha continuação.

Um abraço do
Mário



Mulheres que foram à guerra ou que andaram ali bem perto

Mário Beja Santos

O essencial dos testemunhos de quem participou ou viveu o teatro de guerra é dado pelos militares, como comprova a literatura produzida de 1961 até hoje. Há, evidentemente, testemunhos de mulheres, referem sempre nomes como os de Lídia Jorge ou Wanda Ramos que ousaram, pela via da ficção, pôr na escrita a experiência do que viram em África. Daí o conjunto de iniciativas de dar voz a quem esteve na Ribalta, logo as enfermeiras paraquedistas, depois as mulheres dos militares.

E é neste nicho da memória do feminino que Margarida Calafate Ribeiro [na foto à direita], investigadora do Centro Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, desenvolveu um projeto de auscultação de mulheres que acompanharam os maridos em Angola, Guiné e Moçambique; não foram poucas as que viveram em aquartelamentos sujeitos a flagelações ou transitaram por estradas onde podiam ocorrer emboscadas ou deflagrar minas.

E o todo desta obra é de uma impressionante qualidade, são depoimentos enriquecedores, iremos ser confrontados com memórias onde é difícil não acreditar na sua total sinceridade; um todo que clarifica (ou comprova) que o estudo da guerra colonial não pode deixar de dar visibilidade às mulheres destes militares, muitas delas guardam recordações felizes, outras não tanto, lendo "África no Feminino, As Mulheres Portuguesas e a Guerra Colonial", Edições Afrontamento, 2007, ganha-se consciência de que se queremos interpretar a guerra colonial num sentido individual e coletivo, é indispensável ouvir os diferentes testemunhos e não tratar a presença das mulheres na guerra como um mero acidente histórico.

Sendo completamente inviável ir pontuando e distinguindo esta vasta galeria de testemunhos recolhidos pela investigadora, há que procurar classificar em termos amplos quem testemunha e a matéria desse testemunho. Um número elevado delas tem formação académica ou cursou os liceus e pôde ministrar no ensino enquanto o marido cumpria a sua comissão. São, por conseguinte, referências de mulheres de oficiais e alguns sargentos. Pesam os testemunhos de mulheres que alegam não ter então qualquer formação política, viver em ambiente conservador e religioso; há uma lembrança comum a todas, o horror das partidas no cais, ninguém esqueceu aqueles lenços a acenar e os gritos das despedida; há depoimentos bem vincados de mulheres de médicos, a partilha daquele sofrimento por verem vidas a apagar-se; elas nunca esquecem a procura de normalidade na vida, o vínculo estabelecido entre mulheres, mas há quem guarde más memórias da leviandade de outras mulheres de militares, e como recusaram o convívio; não são poucas as referências à formação católica e depois como, também graças à universidade, entraram nas suas vidas Graham Greene, Kafka, Saint-Exupéry, Malraux, Camus, Garcia Lorca, o novo cinema; os testemunhos dividem-se, compreensivamente, quando se fala em viver em cidades em que se sentia ou não a guerra.

Alguém testemunhará assim:

“Em Bissau, não tínhamos bem consciência da guerra, embora ouvíssemos os bombardeamentos, víssemos os helicópteros e muita tropa. Mas as desgraças que eu vi no hospital militar de Bissau não aconteciam em Bissau. Havia duas coisas que me davam a consciência da presença da guerra: primeiro, o regresso do meu marido das operações, vinha cheio de febre, com o corpo todo cheio de picos, que eu com uma pinça ia tirando devagarinho, vinha completamente esgotado física e psicologicamente. Íamos à missa na capela da Marinha, pelos que tinham morrido, que podiam ser do destacamento do meu marido ou de outro qualquer, mas havia sempre missas na capela e foi aí que comecei a aperceber-me de que estávamos realmente em guerra, morriam pessoas. Os helicópteros eram outro sinal da guerra. Transportavam sempre mortos ou feridos graves. Lembro-me como esperava por eles, quando o meu marido saía em missão. Os helicópteros só chegavam quando amanhecia e a minha primeira aula da manhã começava pelas 7h00. Entre as 7h05 e as 7h10 começavam a chegar os helicópteros. Ainda hoje tenho, muito dentro de mim, aquela angústia.”

E, mais adiante:

“Em Bissau havia casas, eletricidade, frigorífico, comida, bem-estar, lojas, vida. Estávamos bem, embora vivêssemos alienados da realidade. Quando hoje penso nisso, nós não estávamos na vida real, o que era aquilo? Vivíamos numa euforia falsa, entre ataques e regressos no mato e muitas festas.”

A eficácia deste levantamento de testemunhos é podermos sentir a multiplicidade dos olhares, a mulher como sujeito histórico da guerra e veiculadora de uma ética de reconhecimento, olhares sobre o ensino, sobre o racismo, a generosidade; e há o fator temporal a pesar na narrativa, sobretudo na Guiné e em Moçambique, quem ali viveu entre 1973 e 1974 observou se tinham entrado na diluição; é nesta diversidade de depoimentos que se pode entender como as produções literárias se demarcam perfeitamente nos três teatros de guerra. O depoimento de uma mulher em Angola ajuda a iluminar a complexidade de todos estes olhares:

“Em Angola os costumes eram muito mais brandos, a vida social muito mais descontraída e isso tornava as pessoas mais livres. O adultério era uma prática corrente precisamente porque havia muitas mulheres em Luana cujos maridos estavam no mato. Viajava-se muito, havia muitas pessoas que trabalhavam com empresas sul-africanas ou da Rodésia ou de Moçambique e havia muita gente que ficava sozinha. As mulheres dos militares que estavam no mato eram muito observadas. Estávamos permanentemente sobre a mira das pessoas. As mulheres dos militares eram consideradas presas fáceis, o que, por vezes, tornava a vida um bocado complicada. Estar com alguém fora do habitual ou com alguém do sexo oposto era muitas vezes objeto de mexericos e más-línguas.”

Há um extremo cuidado na composição do relato, a investigadora pede a quem inquire que fale das suas origens, da mentalidade doméstica, onde e como estudou, depois a narrativa encaminha-se para o modo como o casal se acompanhou e se acarinhou, e qual a importância da experiência na vida depois do regresso, muitos destes casamentos acabaram em ruturas, inevitavelmente fala-se do stress pós-traumático da guerra. Há depoimentos a que as mulheres não se furtam a refletir sobre o significado da guerra, como dela falam aos filhos, alguém depõe assim:

“Porque fui eu? Não sei bem, na altura fui o que desejei fazer, sem pensar numa realidade mais remota que não a simples companhia a alguém de quem gostava, uma coisa que me pareceu ser a atitude mais natural. Acho que, para a maioria dos milicianos, o fator mais importante foi exatamente a falta de empenhamento naquela guerra, não era uma guerra para a qual corrêssemos cheios de entusiasmo, como para as Brigadas Internacionais na Guerra Civil Espanhola. Não foi uma guerra de ideologia, foi uma obrigação que nos surgiu no caminho. Ficou a experiência da solidariedade que vivia no mato e os espaços sem limites que desconhecíamos.”

Sem margem para dúvida, um indispensável alinhamento de apontamentos que contribuem para se conhecer melhor o que estas mulheres com formação académica ou escolar guardaram na memória do tempo em que acompanharam os seus maridos nas três frentes de guerra.

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Nota do editor

Último post da série de 1 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27078: Notas de leitura (1825): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 4 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P27087: Efemérides (464): 4 de agosto de 1969, o "adeus às armas", ou o dia em que o T/T Uíge apitou.... seis vezes, antes de zarpar (Virgílio Teixeia, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAQÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)


 
Foto nº 1


Foto nº 2

T/T Uíge, no regresso a casa >  Agosto de 1969 >   O Virgílo Teixeira, de óculos escuros,  é o do meio na foto nº 1...  Era o adeus às armas, o regresso a casa... Uma efeméride sempre nostálgica e festiva, ao mesmo tempo.


Fotos (e legenda): © Virgílio Teixeira (2024). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine]



1. Mais uma "efeméride"... Temos 464 referências com este descritor. É próprio do ser humano comemorar "efemérides"... A palavra vem do grego antigo "ephemerís" (ἐφημερίς), que queria dizer "diário" ou "registro diário". O termo é composta por 2 elementos: (i) "epí" (ἐπί), sobre, a respeito de; (ii) "hēméra" (ἡμέρα), dia...

Antes de chegar à nossa língua, passou para o latim dos nossos "colonizadores" e "esclavagistas" romanos, "ephemeris", que continuou a significar registro diário de acontecimentos.  

Quando usamos hoje  o termo "efeméride", estamos a referirmo-nos a um acontecimento importante, histórico, social ou pessoal, ocorrido numa determinada data.  Pode ou não estar registada em documento escrito, nem muito ser celebrado como feriado (o 25 de Abril, o Dia de Portugal, o Natal...). Pode simplesmente estar guardado na nossa memória: o dia em que fomos às sortes, o dia em que nascemos (que até pode ser diferente do assento na Conservatória do Registo Civil)... 

Ou simplesmente o dia em que regressámos da Guiné... É o caso de hoje: há 56 anos, o nosso camarada Virgílio Teixeira  dizia... "adeus às armas"... Com uma particularidade, algo anedótica:  foi  o dia em que o T/T Uíge apitou... seis vezes, as três primeiras vezes não valeram,  foi falsa partida, o navio só zarparia  uma hora depois... Algo de insólito aconteceu... (Virgílio, também podia ser publicado na série "Humor de caserna" esta tua "efeméride"...).


2.  Mensagem de Virgilio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69:


Data - 4 agosto 2025 , 01:40 

Assunto - 4 Agosto 69:  o Adeus às Armas... O dia em que o navio de T/T Uíge teve de esperar uma hora para zarpar


Efeméride Nunca Esquecida !

Dia 4 de agosto de 1969,  eram 12 horas,  o T/T  Uíge,  cheio,  ao largo de Bissau, pronto para arrancar rumo à nossa casa.

O heli de Spinola já dava as voltas ao navio para, como normalmente, agradecer e despedir-se das tropas que acabavam a comissão de serviço na guerra da Guiné.

Tudo a postos... e agora vem, não o humor de caserna, mas sim "o humor negro": arrancada interrompida,  ninguém sabe o que se passa!

Vemos uma LDP, uma lancha da Marinha,  a chegar em alta velocidade.  Vêm buscar um oficial miliciano para ir ao QG a Bissau!  Preso ?...

Esperamos longo tempo, uma infinidade, quando queremos deixar para trás o território da Guiné.

Uma hora depois já vemos a mesma LDP a chegar com o oficial impedido de partir!

Ele sobe as escadas mete-se no seu camarote, e nunca falou do assunto.

O navio apita,  ou volta a apitar três vezes, as hélices já rodam e o rasto das águas a ficarem para trás, e uma hora depois lentamente já não se vê nem Bissau nem a ponte-cais, só o oceano Atlântico!...

Não há calor sufocante, nem mais humidade pegajosa!...

Em 10 de agosto chegámos a Lisboa, seguimos para Tomar, fizemos o espólio, recebemos os nossos vencimentos, despimos as fardas, recebemos a guia de marcha e fomos  para o comboio com viagem paga.

Chegámos à estação de São Bento, no Porto,  já noite.

Acabara uma fase das nossas vidas.

Faz hoje 56 anos.(**)

Virgílio Teixeira