quinta-feira, 2 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1239: Recordando o meu pai: era o silêncio o que mais custava ouvir-lhe (Ana Ferreira)

Amigos & camaradas:

1. Segundo os nossos usos e costumes de cristãos (e antes deles, os antepassados dos nossos antepassados, recolectores-caçadores do Paleolítico Superior), hoje que é dia de lembrar todos os nossos entes queridos que partiram desta vida, incluindo os nossos camaradas que morreram na Guiné, incluindo as centenas que terão ficado enterrados, longe de casa, como o Lourenço, o Peixoto ou o Victoriano (Guidaje, Maio de 1973), ou muitos outros cuja nome a terra e os vivos já apagaram (em Bissau, em Bambadinca, e tantos outros 'cemitérios' militares, já aqui abundamente evocados (1) ...

Mas também podemos e devemos lembrar todos os que morreram precocemente, a seguir à guerra, ou muitos anos depois da guerra, na lassidão da paz que nunca chegaram a conhecer, vítimas de doença física ou mental, vítimas incluindo as do stresse pós-traumático de guerra...


2.
Hoje que é de dia de lembrar, de maneira muito especial, os nossos mortos, mando-vos em primeira mão o testemunho de Ana Paula Ferreira, filha do nosso camarada, o cabo Ferreira, carinhosamente conhecido como o cabo 14... A Ana Ferreira, que eu não conheço pessoalmente, é professora e, além disso, é membro da nossa tertúlia, uma das poucas mulheres, de resto, que têm enviado os seus escritos para o nosso blogue.

É mais um testemunho puro e duro de alguém, de nós, da nossa tertúlia, a quem a guerra dói, ainda dói, e continuará a doer... Emocionou-me o seu testemunho e transmiti-lhe isso, a par do convite para aparecer num próxmo encontro da nossa tertúlia: todos gostaríamos, seguramente, de a poder conhecer.

3. Texto de Ana Ferreira (2):


"Quando regressei estava convencido que ia ser fácil esquecer, mas não foi", diz o José Teixeira (3). Acredito. Não o foi para o José nem para ninguém. Não o foi para os que lá estiveram , de facto, nem para os que viveram esta guerra, através dos que amavam.

Nos primeiros tempos, ainda eu não era nascida, sei que o meu pai acordava banhado em suores frios, gritando. Achava que ainda estava lá..... a minha mãe não conseguia perceber as palavras que proferia..... falava a língua de lá, que nós aqui não chegámos a aprender.

Anos depois contava-nos os episódios mais pitorescos... o riso das hienas, o banho de mar surpreendido por alguns tubarões curiosos... e depois a voz ficava grave e soturna quando se lembrava dos amigos com quem tinha partilhado tudo e que não tinham voltado. A fome, a sede, a falta de dinheiro, os aerogramas para a minha noiva querida, as ladaínhas repetidas sem vontade nem coragem de contar a verdade.

Era o silêncio que mais custava ouvir-lhe, era quando se calava que mais doía. A todos. Tenho pena que não tivesse dinheiro e não tivesse fugido para fora; tenho pena que tivesse que pactuar com algo tão errado; tenho pena que ele próprio achasse que já não havia retorno; apesar da guerra ser errada, a lealdade para com os amigos falava mais alto.

Um dia chamaram o seu nome. Chamaram o seu nome para uma curta viagem a Portugal. A Lisboa. Mas foi outro que embarcou. A sua incorrecção com superiores tinha desfeito o prémio do louvor "com indómita coragem...blah, blah , blah". Indómita, significaria na altura, a adrenalina que vem da certeza da morte demasiado próxima. Daí a vontade de ir para o mato. Tantos já lá haviam ficado, porque não ele?...

Pequeno e franzino mas sempre livre, mesmo sem o saber desafiava o destino, os superiores , a estupidez da guerra. Trouxe fotografias que desafiam a moral, a sanidade, a ética. Trouxe histórias que arrepiam. Sendo apenas um miúdo, revolta-me.

Hoje vivemos com uma geração que não sabe, não conhece, não quer conhecer. Sou professora e invariavelmente acabo por falar deste tema. Alguns alunos sabem que algum familiar esteve em África. Alguns falam em guerra colonial mas sem saber o que significa. Faço questão de lhes falar da História, da nossa História. Não são as datas, mas os factos. Peço-lhes para falarem, com tios, avós; alguém que tenha vivido nessa altura e tenha de facto, sabido, o que significava partir para o Ultramar (É claro que tenho de explicar o significado de Ultramar. É claro que tenho de explicar o que significa colonial. É claro que tenho de explicar o que significa guerra).

"Justiça moral"? Ninguém vai pedir desculpas pelas vidas então destruídas. Mas nós podemos continuar a falar. Ninguém, nem nada nos poderá impedir se assim o desejarmos. É um direiro que nos assiste e não reconhecerei a ninguém, nunca, o direito de mo retirar. Alguém roubou ao meu pai e a milhares de outros Portugueses, Homens e Mulheres, o direito de escolherem as suas próprias vidas. A esses desejo-lhes o Inferno: a falta de paz, de serenidade, de tranquilidade.

Não estou a ser ambiciosa. Lamento apenas, a nível pessoal, que o meu pai não tenha sobrevivido até hoje, para eu lhe poder contar, como tantos outros, ainda hoje se reunem e falam do que ele silenciou durante a sua curta vida. Afinal ele não estava sozinho nas suas recordações. Posso imaginar a sua comoção ao reencontrar amigos desses tempos tão longamente calados.

Obrigada por me fazerem sentir menos sozinha.


Filha do 1º Cabo Ferreira, Ana Ferreira
_________

Notas de L.G.:

(1) Vd., por exemplo, o post de 30 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXIX: Do Porto a Bissau (23): Os restos mais dolorosos do resto do Império (A. Marques Lopes)

(2) Vd. posts anteriores relacionados com a autora e com o seu pai:

8 de Abril de 2006 > Guiné 63/4 - DCLXXXV: Aerograma de Ana Paula Ferreira: o meu pai, o 1º cabo Ferreira (CCAÇ 617, BCAÇ 616, 1964/66)

9 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCLXXXVI: Cabo 14: pergunto-me se ele algum vez regressou, de facto (Ana Ferreira)

4 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1148: Cabo 14, um blogue de homenagem de uma filha a seu pai (Ana Ferreira)


(3) Vd. post de 26 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1214: Tão longe e tão perto, camaradas de Empada, Gandembel, Guileje, Buba, Mejo, Cacine, Tite, Guidaje ... (Zé Teixeira)

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