quinta-feira, 2 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1238: David Payne Pereira, um gentleman luso-britânico e um grande médico em Bambadinca (Beja Santos)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Dezembro de 1969 > A equipa de futebol de oficiais de Bambadinca que acabara de jogar contra uma equipa de sargentos (1). Na fotografia aparece, na segunda fila, de pé - devidamente assinalado com um círculo a azul - o médico David Payne (já falecido), tendo a seu lado, à direita, o major Cunha Ribeiro, 2º comandante do BCAÇ 2852 e, à sua esquerda, o capitão Brito, comandante da CCAÇ 12.

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.




Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Estrada Finete-Missirá > 1969 > O Alferes Miliciano Médico David Payne integrou a coluna que partiu de Bambadinca (2º Gr Comb da CCAÇ 12 e Pel Rec Inf da CCS do BCAÇ 2852) em socorro do Beja Santos e dos seus militares do Pel Caç Nat 52, vítimas de emboscada com mina anticarro, no dia 16 de Outubro de 1969, por volta das 18h00, na zona de Canturé, entre Finete e Missirá.

Na foto, o Fur Mil Reis (à esquerda) e o Alf Mil Carlão (à direita), do 2º Gr Comb da CCAÇ 12 vistoriando os restos da viatura (Unimog 404). Deste episódio de guerra resultou um morto e três feridos graves, entre o pessoal que seguia na viatura.

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.


Texto do Beja Santos:

Caro Luis, o Payne, mais do que meu amigo, foi um missionário e a imagem ao vivo dos médicos tipo João Semana. Ele merece entrar pela porta alta do nosso blogue. Aqui vai e recebe um abraço do Mário.


Algumas notas vibrantes para um luso-britânico e médico no Sector L1, algures entre 1968 e 1969

por Beja Santos

Tocou-me profundamente as lembranças que o Torcato Mendonça (2) veio aqui trazer sobre o primeiro médico do BCAÇ 2852, David Payne Pereira. Conhecemo-nos em 62, à volta dos nossos protestos estudantis. E foi com muita alegria que o revi no dia 24 de Julho de 1968, a bordo do Uge.

Falámos de tudo e de nada e quando nos despedimos, já na madrugada de 29, mal sabíamos que nos iríamos encontrar tão regular e intensamente, a partir de Setembro. Apanhei-o ainda na inocência, e saquei-lhe um acordo quanto a receber as populações civis de Missirá e Finete, pelo menos duas horas de uma manhã à sua escolha.

Eram tantas as doenças, tanto o sofrimento e tantos os doentes que as duas passaram para três e mesmo quatro horas, e em determinada altura mesmo todos os dias havia lista de espera para a consulta da gente do Cuor.

O Payne era um luso-britânico. Quero eu com isto dizer que bebia chá sem macaquear a finesse, acreditava nas instituições multisseculares, fora educado por uma mãe inglesa a cumprir horários, a amar a música e a tratar toda a gente com deferência.

Tínhamos vários ídolos em comum, sendo o principal Gerald Moore, talvez o maior pianista acompanhante de todos os tempos. Quando eu procurava surpreendê-lo propondo-lhe ouvirmos a Sinfonia Ressureição, de Mahler, na versão de Otto Klemperer à frente da orquestra Philarmonia, ele respondia-me com versões surpreendentes dos Concertos Brandburgueses de Bach.

O Torcato Mendonça refere as suas deambulações/visitas de trabalho pelas unidades do sector, o que era um facto e emanava da sua personalidade e sentido do dever: um médico está disponível e mostra que antecipa tal disponibilidade.

Quando havia feridos, ele apresentava-se. Assim vai acontecer na noite de 15 de Outubro de 69, quando ele for a Finete cuidar dos meus feridos graves e fechar os olhos ao nosso condutor que não resistiu ao impacto da mina anticarro (3).

Em 69 ele vai trabalhar para Bissau e, em 70, por meu convite, ele e a Isabel (a sua mulher), foram padrinhos de casamento da Cristina, em Abril. Regressámos, e a nossa amizade fortaleceu-se. Visitava-o frequentemente na Avenida António Augusto Aguiar, e enquanto os miúdos brincavam nós ouvíamos Gerard Moore a acompanhar vozes divinas e bebíamos chá.

Duas doenças traiçoeiras foram minando-o, numa altura em que ele fazia uma carreira brilhante na psiquiatria. Ele partiu na força da vida e cheio de coisas para fazer. Perdemos um camarada da Guiné que recordava amíude, e com uma saudade nada lamechas, a vida de caserna, as consultas, os tratamentos de urgência e o crédito das boas amizades firmadas.

Fiquei-lhe a dever inestimáveis atenções e permito-me propor que de vez em quando ele entre em cena. Da minha parte, vou distingui-lo em determinados momentos na Operação Macaréu à Vista: a noite da visita triunfal do Pimbas ao Cuor; o seu comportamento aquando a companhia do Paulo Raposo foi sujeita ao doloroso traumatismo das vidas perdidas no Rio Corubal, em Cheche (4); a visita de urgência que me fez quando em Abril de 69 eu julguei que tinha a vida por um fio; a sua elegância no acolhimento que me fez na sua casa em Bissau quando em casei.

Toda aquela imagem que temos do médico devotado, materialmente desinteressado e incapaz de receber dinheiro pelas consultas, e cujas estátuas encontramos em tantas localidades do nosso País, reconhecidos como anjos tutelares por aqueles que foram suavizados no seu sofrimento, enquadra perfeitamente na postura exemplar do David Payne Pereira no Sector L1. E um obrigado ao Torcato Mendonça por me ter ajudado a remexer nos escaninhos da memória.
________

Nota de L.G.:

(1) Bd. post de 21 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1096: O álbum das glórias (5): Futebol em Bambadinca, oficiais contra sargentos (Beja Santos)

(2) Vd. pots de 28 de Outubrod e 2006 > Guiné 63/74 - P1219: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (5): Um médico e um amigo, o Dr. David Payne Pereira

(...) "Não se acomodava ao conforto de Bambadinca e ia visitar as Companhias [do Sector L1]. Aqui, [na foto,] veio tratar da saúde do pessoal de Mansambo. Á luz de fraca lâmpada faz uma pequena cirurgia a um sobrolho de um militar.

"Tive agora conhecimento do seu desaparecimento. Lastimo profundamente" (...).

(3) Nesse fim de tarde, o autor sofreu uma violenta emboscada com mina anticarro, na estrada Finete-Missirá.

Vd. posts relacionados com este episódio da mina com emboscada ao Beja Santos e ao seus homens:

24 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P904: SPM 3778 ou estórias de Missirá (3): carta a Alcino Barbosa, com muita intranquilidade (Beja Santos)

24 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P905: A morte na estrada Finete-Missirá ou um homem com a cabeça a prémio (Luís Graça)

26 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P911: Uma mina para o 'tigre de Missirá' (Luís Graça)


(...) Era voz corrente que o Beja Santos, conhecido entre os seus camaradas milicianos como o tigre de Missirá, tinha a cabeça a prémio no regulado do Cuor... Exagero ou não, o próprio Beja Santos reconhece publicamente este facto (...) (1): A 15 de Outubro devíamos ter regressado mais cedo. O Comandante local do PAIGC, Corca Só, já me tinha ameaçado de morte, tendo mesmo deixado um bilhete na estrada. Saímos tardíssimo de Finete, o sol a cair a pique, como acontece nos trópicos (...).

"Não foi a 15, mas sim a 16. O Corca Só não levou para Madina/Belel o escalpe do Beja Santos. E isso é o mais importante: ele hoje está vivo e entre nós, partilhando connosco as alegrias e as tristezas de um tempo e de um espaço que nos coube em sorte, nos nossos verdes (e loucos) vinte anos" (...).


(4) A CCAÇ 2405, aquartelada em Galomaro e Dulombi (1968/70), e a que pertenciam os nossos tertulianos Paulo Raposo, Rui Felício e Victor David, perdeu 17 dos seus homens, na travessia do Rio Corubal, em Cheche, na sequência da retirada de Madina do Boé, em 6 de Fevereirod e 1969 Vd. entre outros os seguintes posts:

7 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P853: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (10): A retirada de Madina do Boé

12 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXVI: O desastre do Cheche: a verdade a que os mortos e os vivos têm direito (Rui Felício, CCAÇ 2405)

6 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - D: Madina do Boé, 37 anos depois (Luís Graça / Xico Allen / Albano Costa)

3 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCV: Madina do Boé: 37º aniversário do desastre de Cheche (José Martins)

8 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXXI: Comentário de Afonso Sousa ao texto sobre a retirada de Madina do Boé

8 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXX: A retirada de Madina do Boé (José Martins)

2 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXIII: O desastre do Cheche, na retirada de Madina ...

17 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIX: Antologia (7): Os bravos de Madina do Boé (CCAÇ 1790)

Sem comentários: