Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
terça-feira, 31 de outubro de 2006
Guiné 63/74 - P1224: Histórias de Vitor Junqueira (5): Não ao politicamente correcto
Autorização (provisória) de domicílio em França, dada em 4 de Outubro de 1967, pelas autoridades policiais francesas (DGSN - Direcção Geral da Segurança Nacional), ao português Victor Junquueira Anastácio, nascido em Lisboa, a 20 de Janeiro de 1948, e residente em Le Mesnil, St Denis, Yvelines.
Inscrição do Vitor, em 22 de Dezembro de 1969, no Consulado-Geral de Portugal em Paris. Como ele já explicou em post anterior (1), "estávamos em Dezembro de 1969 e eu já então sabia que o meu destino era a Guiné, pois essa havia sido a minha opção. Pelos carimbos poderás também constatar que ainda cheguei a tempo para a ceia de Natal! Logo nos primeiros dias de Janeiro embarquei para os Açores a fim de constituir a minha unidade (2)"...
O Vitor faz questão de lembrar que, na tropa, não teve "tratamento especial". Do seu currículo consta que foi "trabalhador rural, vendedor ambulante, empregado de balcão, operário da construção civil, contrabandista, marinheiro e médico". Além disso, gosta de sublinhar: "Nunca fui bufo, nem agente infiltrado ou pide à paisana. Considero-me um homem de palavra, a quem a Pátria sempre tratou como filho e nunca como enteado. Deu-me mais do que eu merecia. Quanto aos dois anos que passei na Guiné, foram de facto os melhores da minha vida, só comparáveis àqueles em que andei lá por fora".
Texto e fotos: © Vitor Junqueira (2006). Direitos reservados. Fotos alojadas no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.
O Vitor Junqueira foi alf mil da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72) (1). Vive hoje em Pombal, onde é médico e... avô babado.
Continuação da carta que o Vitor Junqueira me escreveu, em 23 de Outubro de 2006, publicada em 27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74: P1215: Vitor Junqueira: Irmãos de sangue, suor e lágrimas (Vitor Junqueira)
Caro Luís,
A continuação de uma excelente tarde de trabalho, com algum lazer pelo meio são os meus votos. Já agora, permite-me esta observação. Nos teus mails aparece sempre a referência a este binómio: bom trabalho/boa saúde. Se é verdade o que dizem (o trabalho dá saúde), não seria melhor dar alta aos doentes e pô-los a bulir? Não leves a mal. Isto são lérias do Zé Povo aqui da minha zona.
Vamos ao assunto. No meu último e-mail dizia-te que as tais imagens - que estive hoje a digitalizar - seguiriam logo, logo. Pois aqui vão elas. Provavelmente não te dirão nada e com toda a franqueza, também acho que não terão grande interesse para a nossa comunidade. No entanto, a motivação que me levou a pregar-te esta grande seca, foi tentar demonstrar que nem tudo o que por aí se diz a propósito daqueles que se escapuliram à tropa é verdade.
Parece que, como eu de certo modo antecipei, o pessoal começa finalmente a abrir o saco. Já hoje recebi um e-mail daquele camarada que, ao correr da tecla, descarregou a sua revolta (3). E isso é muito bom, pois é a melhor forma de terapia até agora ensaiada para combater as feridas da alma que, passados mais de trinta anos, ainda incomodam muita gente.
Tocou-me particularmente a reacção daqueles dois camaradas que, em Montemor, aproveitando talvez o aconchego da família (nós todos), não tiveram qualquer prurido em deixar escapar um pouco da pressão (4). Se não tivessem outro mérito, estes encontros são extraordinariamente benéficos na área da recuperação das pessoas afectadas pelo stress traumático.
Também gostei do e-mail do Vacas de Carvalho, aquele do provérbio árabe (5). Se interpretei bem, ele quis dizer que esperava mais frutos, mais reacções, mais intervenção. Estarei enganado?
E para terminar aqui vai mais uma da minha lavra. Se quisermos que a nossa tertúlia se transforme em algo menos efémero, crie raízes baseadas na confiança mútua e na reciprocidade e possa evoluir, dando vida a uma autêntica comunidade, temos que mudar de agulha!
Discutamos, defendamos os nossos pontos de vista sem receio do inoportuno ou politicamente incorrecto. Com urbanidade e gentileza. E se alguém ficar com o burro e quiser ir tomar ar durante uns tempos, tudo bem. Voltará mais tarde!
Mas acima de tudo, temos de conhecer o Homem que está por detrás de cada endereço de e-mail. A ele, à família, aos seus projectos, aos seu êxitos e percalços, aos seus sonhos ...
Pela minha parte, considero que estou a dar início às hostilidades. Quem quer seguir-me?
Esguenta pêssoal.
Vitor
2. Comentário de L.G.:
Meu caro Vitor: Tu deixaste soltar o homem, o português e o patriota que há em ti; depois de ti, outras histórias de vida serão bem-vindas e aqui publicadas: o convite está feito, a porta entreaberta... Na realidade, todos temos um rosto, um bilhete de identidade, um percurso, uma história de vida, antes, durante e depois da Guiné... Eu já tinha em tempos lançado o desafio, quiçá a provocação, para falarmos dos nossos amigos, refractários e desertores... Eu sei que os combatentes têm dificuldade em olhá-los de frente até mesmo aqueles que, tendo objecções de consciência ou discordando da política ultramarina, envergaram a farda e pegaram na G-3...
Um dia gostava de ver aqui no blogue o testemunho de alguém que nos viesse dizer, cara à cara: eu desertei; ou eu fugi a salto para França, porque não queria fazer a guerra, ou tinha medo de ir para a guerra... Tu, pelo contrário, vens dizer, em voz alta na caserna, que nas vésperas de ires para a Guiné andavas em Paris, tranquilo, com passaporte e tudo, e não desertaste... Eu não condeno ninguém: os refractários, os desertores ou os combatentes... Só quero compreendê-los...
No nosso blogue não há tabus. E se eu usei o termo politicamente correcto, foi só por brincadeira, a respeito da tua afirmação: A Guiné foram dois dos melhores anos da minha vida (4)... Eu acho que a nossa cultura de pluralismo e de tolerância, que temos vindo aqui a criar e a alimentar, já deu os seus frutos: somos capazes de viver com as nossas afinidades, com as nossas diferenças e até com os nossos conflitos...
Com o teu testemunho de vida, com a tua já reconhecida frontalidade, ajudaste-nos a não perder de vista o essencial desta tertúlia... Da tertúlia à rede social, à comunidade, vai um passo: já comprovámos isso na Ameira...
No essencial, estou de acordo contigo e subscrevo a tua proposta: "Discutamos, defendamos os nossos pontos de vista sem receio do inoportuno ou politicamente incorrecto. Com urbanidade e gentileza (...). Mas acima de tudo, temos de conhecer o Homem que está por detrás de cada endereço de e-mail. A ele, à família, aos seus projectos, aos seu êxitos e percalços, aos seus sonhos"...
Quanto ao binónimo saúde-trabalho, é defeito profissional: uma das minhas áreas de interesse, estudo, ensino e investigação é precisamente a protecção e promoção da saúde no local de trabalho. Como tu sabes na nossa cultura judaico-cristã, o trabalho e a saúde não combinam bem (contrariamente, a na ética protestante, calvanista e luterano, trabalho é realização, prazer, riqueza, talk na ética confuciana)... Nas línguas latinas a palavra Trabalho, em português (Trabajo, Trebal, Travail, etc., em castelhano, francês e catalão, respectivamente) vem do latim tardio 'tripalium', instrumento composto por 'tres pales', três paus, que no tempo dos romanos servia para 'tripaliare', ou seja, torturar, castigar ou justiçar... os escravos).
Temos expressões deliciosas (e racistas) sobre esta repulsa por (e desvalorização social de) o trabalho (manual): Trabalhar é bom para o preto, Trabalhar que nem um mouro, e por aí fora... No Rio de Janeiro, o malandro carioca dizia: Trabalho se fez para burro e português... Tens diversos textos meus sobre as representações sociais a respeito da saúde, da doença, da morte, do trabalho, do hospital, dos médicos e outros profissionais de saúde... Desculpa lá esta minha manifestação de erudição que te poderá parecer pretensiosa...
_________
Notas de L.G.:
(1) Vd. postes de:
18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1083: Histórias de Vitor Junqueira (1): Os Barões da açoriana CCAÇ 2753 (Madina Fula, Bironque, K3, 1970/72)
e
Guiné 63/74 - P1084: Histórias de Vitor Junqueira (2): O guerrilheiro desconhecido que foi 'capturado' no K3 por um básico da CCAÇ 2753
23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1110: Histórias de Vitor Junqueira (3): Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoriana CCAÇ 2753 pela região de Farim
27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74: P1215: Histórias de Vitor Junqueira (4): Irmãos de sangue, suor e lágrimas
"Também espero poder falar-te um dia da minha experiência como emigrante em terras de França e do chorrilho de mitos e, principalmente estereótipos, que surgiram a respeito daqueles que aí procuraram melhores condições de vida. O fado estafadito de la valise à carton, dos bidonvilles de Champigny e outros sítios, assim como as propaladas fugas em massa à guerra colonial não traduzem a realidade da emigração portuguesa nos finais da década de sessenta. É que eu estive lá!" (...)
(2) Vd. posts de
10 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1163: Destacamento temporário do Bironque, inaugurado pela madeirense CART 2732 (Carlos Vinhal)
(3) Vd. post de23 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1206: O passado não me pertence só a mim, é colectivo (Torcato Mendonça)
(4) Vd. post de 15 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1177: Encontro da Ameira: foi bonita a festa, pá... A próxima será no Pombal (Luís Graça)
(5) Vd. post de 24 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1208: Eu ouvi o passarinho, às quatro da madrugada (J.L. Vacas de Carvalho / Fernando Calado)
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