terça-feira, 31 de outubro de 2006

Guiné 63/74 - P1229: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (18): Não fujam, nós não somos bandidos!

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Guiné > Região Leste > Sector L1 > Bambadinca > Mato Cão > Pel Caç Nat 52 > 1973 > O novo destacamento do Mato Cão, no tempo em que o Pel Caç Nat 52 era comandado pelo Alf Mil Joaquim Mexia Alves (1971/73). No tempo do Beja Sanmtos, a segurança às embarcações de passagem pelo Geba Estreito, em Mato Cão, era assegurado por diversas forças, que estavam sob o comando do batalhão sediado em Bambadinca, desde a CCAÇ 12 até aos Pel Caç Nat (52, 53, 54, 63). O Joaquim Mexia Alves sucedeu ao Wahnon Reis e ao Beja Santos no comando do Pel Caç Nat 52 (1)

Foto: © Joaquim Mexia Alves (2006). Direitos reservados.




Guiné > Região Leste > Sector L1 > Bambadinca > Rio Geba > 1968 > A necessidade faz o órgão: com três pirogas, o Beja Santos fez uma jangada e, perante a incredulidade geral, levou um velho reboque para a outra margem do Rio Geba e dali até Missirá... Ele tinha fama de levar tudo o que encontrava à mão, já que em Missirá não tinha nada: por isso o pessoal de Bambadinca gritava uns para os outros, mal avistavam o Pel Caç Nat 52 a atravessar a bolanha de Finete: "Eh, malta, em guarda, vem aí o Tigre de Missirá!"...

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.


Texto enviado em 17 de Outubro de 2006, peloBeja Santos:

Caro Luís, adianto já o texto referente à semana de 30 de Outubro. De 26 a 29 estarei numa conferência em Roma sobre educação do consumidor, os próximos fins de semana são passados numa pós-graduação em Carregal do Sal, e a partir da próxima semana estou em pleno funcionamento universitário. Penso que tu terás duas boas ilustrações para este texto, ou mesmo três: tens aí a minha fotografia a cambar o atrelado; mando-te pelo correio uma preciosidade bibliográfica que é o Dicionário crítico de algumas ideias e palavras correntes que o António José Saraiva escreveu no início dos anos 60 e que a censura de vez em quando retirava do mercado; mas também tens Mato de Cão que hoje é palco de um episódio burlesco que hoje vou contar. Como te disse ao telefone, ainda esta semana seguirá outro texto e prevejo a elaboração de outro em breve pois na última semana de Novembro estarei a fazer um curso em Bruxelas. Não te incomodo mais e recebe um abraço do
Mário.


Continuação da série Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (2). O Mário Beja Santos foi Álf Mil, Cmdt do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) .

"Não fujam, nós não somos bandidos!"

por Beja Santos

São quatro da manhã, chove desalmadamente para que não nos esqueçamos que daqui a um bocado se seguirá uma cacimba, depois uma fornalha que deixará a lama seca no nosso camuflado. Não caibo de contente, pois hoje vamos trazer um atrelado, oferta do batalhão que parte e que descobriram este apêndice a mais. Não lhes faz jeito nenhum, e para nós é precioso para transportar petróleo e outras cargas . A operação de partida está normalizada: dois cantis, comida em autogestão, dois apontadores de dilagrama, um morteiro 60, uma bazuca, uma metralhadora ligeira, um cortejo de dose equilibrada de caçadores nativos e milícias. Não vejo indumentárias, muitos deles irão vestidos com roupas civis, boinas e gorros multicolores, calças amarelas, colares cheios de enfeites onde não faltam as tampas de cervejas ("manga de ronco!")

Elegi para tema de reflexão para os 12,5 Km que se vão percorrer encontrar o ponto de equilíbrio e a boa comunicação entre os caçadores nativos que têm uma surda guerra de classes com os milícias e deixar o aquartelamento com totais garantias de resistir a uma qualquer flagelação consistente. Não descobri a pólvora, muitos outros terão centenas de civis a ficarem intranquilos quando metade da guarnição parte para estes patrulhamentos diários.

Bambadinca não deu resposta a mais tropa, a mais morteiros e a equipamento mais moderno. Não deu, nem dará. Até agora os ânimos andam acalmados, uns a caiar, outros a pregar chapas na garagem, outros a carpinteirar e a cimentar, não foi fácil instalar os sanitários para civis e militares. Depois de falar com o 2º Comandante que dentro de dias parte, tomei a decisão de não apoiar a proposta do régulo Malã em criar em Canturé uma tabanca em auto-defesa. A concretizar-se este sonho do régulo, teríamos que encontrar mais armamento à altura das circunstâncias e um novo pelotão de milícias. Acontece que não há meios, não posso tirar efectivos a Missirá nem a Finete.

Continuando as minhas cogitações, está resolvido o problema do equipamento perdido, desgastado e até inútil, está feito o abate do tripé de morteiro que eu nunca vi. Quando regressei de Bambadinca da última vez vinha aliviado com os autos de incapacidade e ruína, desde tachos de 20 litros até 108 lençóis. As arrecadações foram limpas de ferros retorcidos, candeeiros sem candeia e peças de viatura sem nenhum préstimo. Estamos outra vez sem petróleo, hoje é preciso trazer mais tinta e estou cheio de curiosidade em saber o que vai fazer o Marcelo Caetano.



Guiné-Bissau > Região de Baftá > Bambadinca > 1997 : O que restava da antiga escola... e da casa onde vivia, no tempo em que alguns de nós por lá passaram, em 1968/71, a professora Dona Violette da Silva Aires, de origem cabo-verdiana, aqui tão justa e oportunamente evocada pelo Beja Santos (3).
Foto: © Humberto Reis (2005) (com a colaboração do Braima Samá)


Preciso de mais uma embalagem de Fenergan para tratar os meus inchaços e entretanto começa a doer-me o joelho direito (serei operado a uma exostose em Março próximo). E é no somatório destes factos e eventos que se entrou na estrada de Gambana, Mato de Cão está já bem próximo. É um lindo amanhecer, avisto o Geba barrento com o tarrafe quieto e túrgido. A tropa fica em vigia na colina e junto à estrada. Ao longe vejo o ponto crescente da LDM e na curva do rio, mas lá longe, aparecem seis embarcações. Eu já sabia desta movimentação incomum, estão a chegar os equipamentos do novo batalhão e a partir para Bissau as bagagens de quem os antecede. Acresce que os djilas andam a levar fazendas e a trazer óleo de palma. Compete a Missirá garantir uma livre circulação do Geba sem que os RPG 2 atemorizem ou lancem o caos.

Na posição interesseira de quem quer uma boleia para Bambadinca, ponho-me isolado no pontão, cumprimento o oficial e a guarnição da LDM, eles passam e afastam-se e dirijo depois a palavra ao Comandante do primeiro barco, o mais bojudo e praticamente sem passageiros.
-Somos 25, preciso da sua ajuda, tenho a viatura do outro lado de Bambadinca e carregamentos a fazer.

Sim, podemos ir, 15 no primeiro barco, 10 no segundo. Chamo a tropa e não me apercebi que vieram a correr aos gritos, de armas em riste, um autêntico ulular bélico. A LDM lá vai serena quando se começam a ouvir nas plateias dos terceiro e quarto barcos expressões como cubano, bandidos, desgraça. Quando olho para o espectáculo do pânico instalado, sabe-se lá quem lançou o rastilho do falso alarme, usei a única instância que considerei capaz de travar o pavor generalizado: subi para o tejadilho da cabina, gritei-lhes a plenos pulmões que não éramos bandidos, que, como podiam ouvir, eu não tinha sotaque cubano, pedíamos desculpa pelo susto devido a uma entrada tão desaforada. Os soldados perceberam desta vez que há limites para os clamores desatinados E no porto de Bambadinca tive que cumprimentar todas as tripulações e passageiros. Descobri que de futuro devo aparecer com mais brancos e exigir uma entrada disciplinada do pessoal.

Conheci hoje a Sra Dona Violete, a professora de Bambadinca. Preciso de informações sobre os programas escolares, pedi-lhe mesmo se podia aceitar que o nosso professor bem como o Zé Pereira ali estagiassem por algum tempo. É uma senhora fora do tempo, que fala com brandura, aconchegando o cabelo, recortando a melodia das palavras e que quando conversa avança para o interlocutor. Dei comigo encostado à parede, ela olhava-me em derriço como se eu fosse o primeiro alferes que lhe aparecesse à frente. Esta aparição vai-me custar bem caro em 1970, quando o Comandante me pediu que lhe levasse um ramo de flores e pusesse todos os nossos préstimos à sua disposição. Mas, tirando um episódio trágico-cómico de solidão, será a Dona Violete quem em traços rigorosos me vai explicar o que é hoje Bambadinca. Prometi voltar para conversarmos mais.

Depois de todas as andanças do aprovisionamento, avançamos para uma garagem onde nos aguarda, meio adormecido, o nosso atrelado. Há interjeições, risada e súbito toda a massa do reboque entra em movimento até ao cais. Depois de se parlamentar com Mufali, o canoeiro, apura-se que estamos na vazante, que o reboque não pode ir em cima de uma piroga, com fatalismo assegura-me que não há condições para tirar o reboque desta margem para a outra do Geba.

Mas havia. Olhei para três pirogas ao mesmo tempo, perguntei se elas não podiam estar amarradas e levar toda a carga equilibrada lá dentro. Foi o que aconteceu, como uma fotografia certifica que este atrelado a atravessar o Geba não é fruto do delírio. Ao fim de uma hora, aquela jangada muito especial aterrou no lodo de Finete e toda a tropa o puxou para terra. O guincho do Unimog 411 concluiu a operação que culminou com uma salva de palmas. Ganhei coragem para loucuras maiores que vêm por aí: os balneários de 8 bidões articulados, o nosso precioso chuveiro, passará por esta odisseia, e numa jangada mais sofisticada.

Mais tarde, quando eu perder a vergonha nos meus pedidos e sugerir levar viaturas a partir do Enxalé, encontrarei novas facilidades em jangadas mais possantes que me serão disponibilizadas a partir do porto de Bambadinca. Nesse dia despedi-me do velho batalhão, regressarei a 27 para ouvir o discurso da tomada de posse de Marcelo Caetano. Esse dia será marcado pelo reencontro com o David Payne Pereira, que terá uma importância fundamental para mim. Será o meu arrimo nas horas de desânimo. Aturou-me e tratou-me toda a população civil de Missirá e Finete. Quando, em Abril próximo, o Adão aparecer aos gritos em Bambadinca a dizer que eu não tenho temperatura e devo de estar a morrer e que já não articulo palavra no meu catre, ele virá a correr. Será o padrinho de casamento da Cristina.

Regressamos exaustos mas com petróleo, vitualhas e muitos objectos desirmanados das cantinas de oficiais, sargentos e praças. Nesta sociedade de consumo nada se sabe sobre aqueles microcosmos em que os copos podiam ser pedaços de garrafa, se desconheciam toalhas, travessas e garrafas para água. Missirá, aos poucos, passou a ter baixela, cozinheiros, forno de pão e descobrimos o prazer de estarmos à mesa sem a necessidade de comer à pressa algo de desenxabido antes de se passar ao loto a feijões e analisar as tarefas do dia seguinte.

A verdade é que ainda não me despedi do velho batalhão [, CCAÇ 1910]. Na véspera de partirem, Missirá será brevemente flagelada, o depósito de géneros ficará destelhado e o plinto em cimento para hastear a bandeira destruído. Não haverá vítimas com excepção dos pés feridos do Teixeira das transmissões.

Vão passar-se dois dias calmos. Já temos um gongue para chamar as tropas, é uma velha roda de ferro pendurada num gancho, dispara-se uma martelada com a manivela e Missirá começa a trabalhar. Persuadi Quebá Sonco que não se podem todas as noites fazer morteiradas de reconhecimento para lá dos cajueiros. Bambadinca quer 40 granadas à carga, não nos podemos dar ao luxo de fazer estrondos à menor suspeita. Os livros à carga já começaram a funcionar: armas, cantis e marmitas, até um par de binóculos faz parte da existência do aquartelamento.

Binta, a opulenta mulher de Madiu, e minha distinta lavadeira, andou à pancada com algumas comadres e foi o cabo dos trabalhos para serenar os ânimos. O caderno reivindicativo dos dois bazuqueiros chegou a bom termo, já possuem pistolas para se defenderem caso as bazucas emperrarem.

Nos tempos livres, li O Cavalo Espantado, de Alves Redol e O Deserto dos Tártaros de Dino Buzatti. Antes tinha relido com satisfação duas obras indispensáveis: Dicionário Crítico de Algumas Ideias e Palavras Correntes, de António José Saraiva, e O Hóspede de Job, de José Cardoso Pires. José António Saraiva sempre me mereceu a admiração pelas suas investigações na cultura portuguesa. Este dicionário é uma análise ao conteúdo de certos termos para nos precaver "contra a prestidigitação verbal e contra todas as tentativas de subjugação pela palavra". Ele analisa, por exemplo os conceitos de esquerda e direita, laicismo, tradição e liberdades. Fixei para todo o sempre os conceitos de: "país real", "país legal" e "país fabuloso". Lançando uma crítica implícita à ideologia salazarista, o país real em que vivíamos era a boa gente das vilas e aldeias ordeira e inimiga das novidades. Era um país real afinal utópico. Estabelecera-se numa imaginação de cúpula um país fabuloso constituído por pessoas felizes, trabalhadoras e encantadas pelos discursos oficiais de apelo à ordem. Este país fabuloso pode ser uma perigosa realidade tornando mais dolorosa a marcha do país real.

Quanto ao Hóspede de Job é uma saga do Alentejo sem trabalho e de um par de amigos que peregrinam os seus sonhos pela terra amada, o velho Tio Aníbal e o jovem Janico, João Portela que desespera com a falta de trabalho. José Cardoso Pires entusiasmara-me com o seu O Anjo Ancorado, talvez a primeira obra que anuncia o triunfo do desenvolvimento urbano e a latência de uma sociedade de consumo, contrariando usos e costumes da tradição e da obediência. Uma enorme surpresa está para vir e que vai marcar a ferro quente a minha visão de Portugal: O Delfim, lançado em 1968. Perderei toda a minha biblioteca em breve, subsistirá esta obra-prima da literatura portuguesa contemporânea, pois andará sempre no meu saco.

E eis senão quando os ponteiros do destino lançam-se numa nova vertigem: Marcelo Caetano vai falar ao país; as flagelações entram no barro do quotidiano de Missirá; o Alferes Almeida e o seu pelotão de Caçadores Nativos 54 chegam aqui sem pré-aviso para eu partir para a segunda operação ao Burontoni. Ando feliz com as obras de Missirá e os sinais de conforto e bem-estar. A guerra parece estar longe, mas todo o mês de Outubro vai ser palco de pequenas e grandes guerras. Não resisto a contar.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de

4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1024: Pel Caç Nat 52, destacamento de Mato Cão (Joaquim Mexia Alves)

29 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1039: O Pel Caç Nat 52 no Mato Cão (Joaquim Mexia Alves)

(...) "O Pel Caç Nat 52 esteve largo tempo em Mato Cão, chegou comigo, salvo o erro, um mês ou dois antes do Natal de 72 e por lá foi ficando ao longo de 73. Eu fui para a CCAÇ 15 [, em Mansoa,] em meados desse ano de 1973 e o Pelotão ainda lá ficou" (...)

A propósito da ida do Meixa Alves para a CCAÇ 15, ele já me pediu para esclarecer (e rectificar) a informação (errada) que foi veiculada no blogue segundoa qual ele foi depois capitão miliciano... Ele, de facto, chegou a comandar a CCAÇ 15, mas sempre como Alferes Miliciano. O seu a seu dono... As minhas desculpas, Joaquim!

(3) Vd. post de 18 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P882: Infali Soncó e a lenda do Alferes Hermínio (Beja Santos)
(...) "Deambulo aos solavancos e o meu sonho vai até Bambadinca, do cemitério à vila. Bato à porta de Dona Violete da Silva Aires, professora, cabo-verdiana de pele clara, que me aguarda numa sala ampla, ao pé de um piano a cair de podre, com uma boquilha na mão. Serve-me uma infusão, faz-se silêncio, Dona Violete olha em direcção ao Geba. É uma mulher que esconde a devastação do tempo com camadas absurdas de pó de arroz e traços grossos de rímel. O cabelo oxigenado sai-lhe de um lenço vistoso, de cores fosforescentes, amarrado em laços grotescos sobre o carrapito. Tudo nela é amolecimento, solidão, alguma sensualidade mal contida" (...)

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