quinta-feira, 2 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1236: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (2): Do Alentejo à África: do meu tenente ao nosso cabo

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Évora > A Praça do Giraldo em 2006 > "De Maio a Agosto, sob os calores secos de Évora, não houve monte que não fosse visitado, noites e dias, pelas tropas peregrinas e desafortunadas, enquanto os serenos alentejanos de Évora se regalavam, ao anoitecer, com a bica aromática ou imperial na esplanada mítica da acolhedora praça do Giraldo" (Mendes Gomes)…

Foto: Luís Graça (2006). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.

O Palmeirim de Catió é o Joaquim Luís Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins (Catió, 1964/66). Publicamos hoje a segunda parte da sua crónica. Continuamos a aguardar fotos do seu álbum do tempo da Guiné (1).


Segunda Parte > 2. De Évora para a Guiné


2.1. Sorte ou destino ?

As últimas semanas de Évora redobraram em esforço e penar, quando se soube o destino que nos calhara.

Das três hipóteses, a Guiné era, à partida e em abstracto, a mais receada por toda a gente. Pior clima, risco muito maior, segundo se dizia. Além disso, a Guiné só tinha uma cidade que merecesse o nome: Bissau. O resto era mata e campos de arroz.

O fascínio de Angola e Moçambique compensava, um pouco, o que de mau pudesse esperar-se. Tantos continuavam a escolher aquelas paragens para viver. Depois, os testemunhos, directos e de portas travessas, abonavam uma passagem por lá, apesar dos riscos.

A grandeza de África, nos rios e matas, nas montanhas e na riqueza natural, a vida selvagem, a variedade da população nativa emprestavam um apelo forte àquela sorte. E as muitas cidades, erguidas à boa maneira africana, como réplicas de cidades da metrópole lusíada!…

Na Guiné, só a beleza natural e étnica prometiam lenitivo para a tormenta certa.



2.2. R.I. 16 - ÉVORA

De novo, uns dias de descanso, para mim, em terras de Pedra Maria, à espera do embarque.
Em dia certo de Agosto, teríamos de regressar ao quartel de Évora. A partida para o barco, no cais de Alcântara, far-se-ia de lá, Évora, em comboio especial.

Unidos pela sorte comum, estávamos condenados a ser bons camaradas e, de preferência, melhores amigos.

Era a guerra, imaginada em pesadelos, que nos esperava nas matas tenebrosas da Guiné.
A experiência viva da instrução militar, nos montes e caminhos perdidos no vasto Alentejo, não deixava espaço para grandes esperanças, numa luta de guerrilha traiçoeira.
- Seja o que Deus quiser -, pensava eu e poucos mais.

A maioria dos soldados eram alentejanos, para quem Deus pouco ou nada dizia. Para eles, era só a sorte e esta, o destino de cada um. E qual seria?…

A cerveja, essa, haveria de ajudar a passar o tempo. O resto se veria.

Uma coisa parecia certa e não querida. Aquele batalhão tinha à frente de cada uma das três companhias de infantaria um dos três mais temíveis oficiais, dizia-se, nunca antes saídos da Academia Militar. Chamavam-lhe os Três Mosqueteiros.

Na semana de Évora que antecedeu a incorporação dos recrutas no R.I.16, a dúzia de aspirantes milicianos, os designados comandantes de pelotão do batalhão que iria formar-se com destino para o ultramar, foi um joguete nas mãos daqueles figurões.

Na preparação física, o tenente Pinto pôde demonstrar, à saciedade, todo o capital acumulado de recordes, em flexões de braços e pernas, abdominais, saltos, corridas e demais proezas e de toda a panóplia muscular, religiosamente esquartejada nas longas horas académicas. Para além da ufana exibição de resultados através das linhas do seu físico escultural…

Na preparação ético-militar, era o tenente Varão quem dava cartas. O tenente Varão, o mais bravo, era comandante da minha companhia, a 728.

De porte garboso, longos braços e pernas, bamboleantes, gerindo muito bem a sua estatura, excepcionalmente elevada, bastante acima da nossa média, cultivava, sem esforço, uma eloquência fácil, onde procurava realçar uma escrupulosa propriedade de termos, em discurso que procurava ser demonstrativo da grande cultura geral que lhe atribuíam.

Rosto, oval e afilado por um nariz comprido e adunco; olhos mortiços, embora aquilinos; boca em forma de y, sugerindo a de um tenro golfinho; cabelo claro, curto e hirsuto, mas obrigado a formar madeixa ao lado; tez pálida e tristonha, onde o sorriso nunca se abria, apenas se esboçava.

Parecia querer incarnar, em si, o protótipo do verdadeiro militar, na decisão, na autoconfiança, na disciplina e na valentia. Pronto a subir até ao generalato. Iríamos ser, por certo, um chicote implacável, nas suas mãos, em terras de África.

O outro, o tenente Cavaleiro parecia ser o mais normal e aproximado do padrão miliciano. Mais dialogante e menos castrense. ( Só este viria a chegar a general…)

Toda a experiência de instrutores, desenvolvida nos vários quartéis, como simples aspirantes, ia ser posta à prova. Em proveito próprio, também. Tratava-se de preparar o pelotão que ia ser levado até às matas da guerra.

A seriedade e densidade da aprendizagem que, pelos seus 4 aspirantes teria de ser incutida aos soldados da companhia, teve no comandante Varão, um incansável e obssessivo mentor. A distância entre ele e os seus aspirantes e sargentos estava fora de dúvidas. Relacionamento, só em serviço e de serviço…e, muito respeitinho pelos elos da hierarquia…

Os montes secos e tórridos do Alentejo, de Maio a Agosto, ajudaram a causticar a modelação pretendida. A única saída residiu no espírito de corpo que se desenvolveu, apesar de tudo, entre os 4 oficiais milicianos e respectivos sargentos da 728.

O Mário Sasso, um moçambicano (da Beira) radicado há uns bons anos, na boémia e no fado alfacinha, de Lisboa, era o comandante do 1º pelotão.

Tinha feito um bom curso em Mafra e, por feitio, tinha de ser o melhor em tudo. Brioso, procurava ter uma conduta semelhante à figura. Quis ingressar nos comandos, mas o coração não lhe aguentaria o esforço.

Versátil e sensível, tocava viola e acordeão e cantava o fado castiço, ajudado por uma voz rouca, mas afinada. Era o mais citadino dos 4.

O Arlindo Santos, bairradino de origem, aparentado ao famoso José Cid, então na berra, era de feitio fleumático, calado e observador. Bom conversador, quando se dispunha a isso, embora limitado e concentrado numa temática, balizada pelo sensacional e fantástico. Quem quisesse saber as últimas, verdadeiras ou, por vezes, fantasiosas, era procurá-lo.

Eu tinha o 3º pelotão à minha conta: 90% de alentejanos, lentos, mas dóceis. Melancólicos, por natureza. Só o furriel Brás, tripeiro de gema, conseguia quebrar aquele bloco desvitalizado com a sua viola inseparável e um reportório vasto de desgarradas nortenhas.

O 2º sargento Gaspar, mais velho uma dezena e meia de anos do que todos, já ia na 2ª ou 3ª comissão de ultramar!…Modos de vida. Era casado e com filhos na metrópole.

Corpo e espírito de orangotango, haveria de dar os seus problemas, em teatro de guerra. Na véspera das operações, não havia doença que aquele corpanzil não tivesse. Para o fim, o pelotão já lhe perdoava e até preferia que ele ficasse no quartel. Um peso morto. Mas refilão, de sobra…Ah! Ainda conseguia fazer flic-flac, à rectaguarda…e era bom a contar anedotas. No final, já as repetia. Dizem que voltou para Angola, noutra missão e acabou chefe de posto…Uma Autoridade Administrativa.

O cabo Augusto era empregado de mesa no hotel Ritz. Revelar-se-ia um prestimoso cozinheiro de caldeiradas…Pacato e sempre pronto a avançar, muito dialogante. Os soldados gostavam dele. O cabo Madaíl, aveirense castiço, muito frontal, parecia ser destemido. À última da hora, os cuidados do pai, muito bem relacionado nas terras e salinas da ria, conseguiu comprar-lhe a sua substituição. Não foi promovido a furriel… Daí o ter surgido o 2º sargento, Leonel, um coimbrão, pacato, repetente, em mais uma comissão. Vidas. Também era casado e com descendentes.

No 4º pelotão, estava o Aspirante Gonçalves. Alentejano das raias de Espanha, em Campo Maior. De porte pequeno, ratinho, de olhos azuis, caracoletas alouradas, mas voz barítona. Era bravo e vivaço. Sempre, um leal amigo…Já nos conhecíamos das românticas guerras no B.I.19 da Madeira…

Falar-lhe da sua Passarinho foi sempre o ponto fraco…Então, com uma cerveja a mais, era um livro aberto… Ainda hoje, aquela felizarda é a sua feliz cara-metade…

De Maio a Agosto, sob os calores secos de Évora, não houve monte que não fosse visitado, noites e dias, pelas tropas peregrinas e desafortunadas, enquanto os serenos alentejanos de Évora se regalavam, ao anoitecer, com a bica aromática ou imperial na esplanada mítica da acolhedora praça do Giraldo…

Só aos fins de semana, poucos, foi possível partilhar aquela calma, quase a roçar uma tristeza lânguida.

A rica Sé e o seu tesouro quase milenar, o resto das colunas de sabor grego do templo de Diana, a capela dos ossos, de gosto irreverente, dedicada sei lá porquê, a São Francisco, o verde jardim, viçoso e labiríntico de D. Manuel I, as ruelas brancas e estreitinhas, autênticos pedaços das urbes mouriscas, as formosas e arabescas chaminés no cimo das casas, onde parecia ninguém habitar, pelo calor constante, foi o repasto turístico da maioria, ali deslocada, originária das terras buliçosas do norte.

O quartel era quase moderno nas suas enormes casernas, que as camas de 2 e 3 andares multiplicavam, sabiamente, o reduzido espaço para tanta gente: As salas de oficiais, sargentos e praças eram verdadeiros bares, cá de fora; a cozinha monacal, de grandes panelões a fumegar e um refeitório amplo, com as terrinas metálicas sobre mesas, compridas, de mármore; a cadeia castrense para serenar os ânimos mais exaltados; uma enorme parada calcetada a granito, servindo de altar quotidiano à indispensável mística militar... são as reminiscências que ficaram a perdurar na lembrança dos candidatos forçados à guerra de África…

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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1194: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (1): Os canários, de caqui amarelo

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