segunda-feira, 23 de outubro de 2006

Guiné 63/74 - P1206: O passado não me pertence só a mim, é colectivo (Torcato Mendonça)

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Guiné > Zona leste > Sector L1 > Bambadinca > Mansambo > CART 2339 > Candamã > 1969 > O Alf Mil Torcato Mendonça (o primeiro, da fila, sentado) e o seu Grupo de Combate em reforço do sistema de autodefesa da tabanca fula de Candamã, pertencente ao regulado do Corubal (1)

Foto: © Torcato Mendonça (2006) . Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.

1. Belíssimo texto do Torcato Mendonça (ex-Alf Mil, CART 2339, Mansambo, 1968/69) que eu fiz questão de, antes de publicar, partilhar em primeira mão com a nossa tertúlia, os membros da nossa caserna virtual, ligados em rede, por e-mail. É um texto do Torcato, escrito ao correr da tecla, espontâneo, sofrido, sentido, depois de ele ler o dramático testemunho do Amílcar Mendes sobre a batalha de Guidaje (2)… Chamei justamente a atenção para a sua última frase, que dá o título a este post: “O passado não me pertence só a mim. É colectivo!”… Obrigado, Torcato. Um grande abraço, para encurtar a distância entre Lisboa e o Fundão e quebrar, não o frio que sopra da Gardunha e da Estrela, mas o outro, que por vezes nos enregela a alma… LG.


2. Torcato Mendonça:

Chove lá fora, Luís Graça. O frio que sinto não é da chuva, nem do vento. É cá de dentro, um frio e um aperto, uma revolta que não a queria sentir. Mas sinto a revolta, a vontade de vingança, um sentimento diferente e há muito esquecido. Li o que o Mendes, da 38ª de Comandos, escreveu. Não é um relato onírico. Aconteceu mesmo. Ele fez aquela picada. O Pedro Lauret estava no rio. Guidaje a norte , Gileje e Gadamael a sul, são sítios de morte, de sofrimento na recordação. São bocados da nossa história recente, da nossa vida colectiva que muitos desconhecem. Pior, muitos querem apagar.

Aquela guerra foi um crime. Não falem de guerra suja, de guerra limpa, de valores de ética militar quando um Comandante diz: Bombardeiem tudo. É o sacrifício consciente. Antes a morte de todos (NT e IN) que a rendição ou a captura. É justo pensar assim? Não haverá revolta injustificada da minha parte?

Eu sabia. Eu sabia que a guerra na Guiné tem vários períodos, Sempre a piorarem para nós. De 63 a 66; de 66 a 70 – morteiros 120, mísseis, captura do Cap Peralta, de 70 a 73 ou 74 – as grandes ofensivas, os mísseis terra-ar, a independência no Boé…

Eu estive lá (68/69), falei com gentes de períodos piores, li relatos. Eu conhecia e, egoistamente, silenciei. Procurei esquecer. Um dia voltei a ler, a sentir-me por vezes lá dentro, a cheirar os meus mortos. Não só os do meu Grupo mas da minha Companhia e outros que conheci. Hoje não estão connosco. Uns mortos em combate, acidente ou doença. Outros cobardemente assassinados.

O frio não passa. Os músculos das mãos, do pescoço estão tensos… parei um pouco… não quero ler o que escrevi ao correr da tecla. Digo-te, meu caro Luís, com quem certamente me cruzei um dia em África, que, ao fazeres este lugar na Ne, abriste um espaço que vai muito além do simples contar de estórias . Tu, meu camarada de Companhia, C. Marques dos Santos, ao dares-me a conhecê-lo, fizeste bem. Mesmo com o anexo do Galileu…descomprimi um pouco e páro. O Galileu foi uma brincadeira minha para com o CMS. Tem a ver com o modo como encaro a vida… talvez por isso, inquieto-me e revolto-me por ter silenciado uma parte do meu passado. Não me pertence só a mim. É colectivo!

Um abraço,
Torcato Mendonça

3. Comentário do Pedro Lauret:

Luís,

O texto do Torcato reflecte exactamente o meu pensamento. “O passado não me pertence só a mim. É colectivo!”. Subscrevo com toda a convicção. Penso que devemos erguer bandeiras na divulgação destes e muitos outros acontecimentos da nossa História comum. O que hoje Portugal é, a vida que os portugueses hoje vivem, tem que ser compreendida à luz de um sacrifício de gerações que durante 13 anos deixaram parte da sua juventude em picadas, rios e bolanhas. “Um povo sem memória não é um povo livre”, não sei quem o afirmou mas poderia ser um lema do nosso blogue.

Pedro Lauret


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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 11 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1167: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (4): Candamã, uma tabanca em autodefesa

(2) Vd. posts anteriores, com data de hoje, e de ontem.

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