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sábado, 21 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26944: Os nossos seres, saberes e lazeres (686): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (209): Algures, na Renânia-Palatinado, em Idstein, perto de Frankfurt – 9 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Março 2025:

Queridos amigos,
É o derradeiro dia desta viagem que teve imperativos lutuosos, mas cujos familiares de uma grande amiga entenderam que se devia converter no conhecimento de lugares esplendentes, como procurei revelar em Idstein, Limburgo ou agora no Mosteiro de Eberbach, isto para já não falar nas escapadelas a lugares de algum modo bem conhecidos em Frankfurt. Despeço-me mostrando algumas imagens do mosteiro fundado no século XII, veremos a transição do românico para o gótico, da severidade iremos ver que se evoluiu da arte gótica até se chegar ao barroco. Na Idade Média, estes monges cisterciense meteram-se na cultura do vinho e reza a história que se tornaram nos mercadores mais influentes da Europa Central dos século XVI para o século XVIII. E na visita às suas instalações vê-se que a viniviticultura é a primordial riqueza do mosteiro. Acabou-se a festa, sou levado ao Aeroporto Internacional de Frankfurt, não escondo o meu pesar. Felizmente que os anfitriões deixaram a porta aberta. Qualquer dia dou-vos notícia do meu regresso.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (209):
Algures, na Renânia-Palatinado, em Idstein, perto de Frankfurt – 9


Mário Beja Santos

Encaminho-me para o Mosteiro de Eberbach, também no Estado de Hesse, com dissimulada tristeza, já trago a trouxa feita, aqui se passará a manhã, almoça-se, serei depois transportado para o Aeroporto Internacional de Frankfurt, tem uma dimensão desmesurada, à frente só Heathrow. À porta lê-se uma divisa: Porta Patet, Cor Magis, isto é a nossa porta está aberta e ainda mais o nosso coração! O visitante é assim calorosamente recebido nesta muito abadia cisterciense. Foi fundada em 1136, Bernardo de Claraval enviou um punhado de monges que aqui viviam em ascese e muito trabalho. Graças a uma eficaz gestão económica, o mosteiro transformou-se rapidamente na Idade Média numa empresa próspera, graças à cultura da vinha, importada da Borgonha; no fim da era medieval o mosteiro ganhara a reputação de ser o mais importante negociante de vinho da Europa Central. O mosteiro albergava duas comunidades especialmente separadas: os monges de que alguns eram sacerdotes e o grupo dos irmãos laicos ditos irmão conversos. Rezar e trabalhar era o seu mandamento maior. Monges e irmãos eram maioritariamente originários das camadas pobres.
Que edifícios iremos ver? Temos aqui os tempos primitivos, é patente a reforma cisterciense, nada de embelezamento artístico e ornamental, a imagem da igreja dá-nos exatamente essa perceção. Iremos ver o traçado românico e depois o gótico em salas tal como dormitório dos monges, a sala do capítulo, a construção nova do claustro e até nas capelas funerárias. Até muito tarde, estes monges resistiram aos caprichos do embelezamento, mas deixaram-se depois inspirar pelos esplendores barrocos, como veremos nas últimas imagens.

Arrumada a viatura, avista-se num plano superior a dimensão imponente deste mosteiro com as suas cúpulas bolbosas, impressiona desde logo o bom estado de manutenção.
No caminho para a entrada, uma imagem do transepto
No passeio pelos jardins, não resisti a subir a um patamar que permite ter a dimensão da igreja
Pormenor do claustro
Arte românica, sem equívocos
A chegada do gótico à sala do capítulo
Chamo-lhe igreja mas é verdadeiramente uma basílica abacial. São igrejas que impressionam precisamente pela sua simplicidade, foram concebidas para convidar ao recolhimento, à meditação e à oração. Esta tem 80 metros de comprimento, construída em duas fases, de 1145 a 1160 e de 1170 a 1186. É uma basílica românica de fortes pilares e três naves. As capelas laterais têm elementos góticos. As grandes janelas ao alto conferem à igreja uma luminosidade intensa.
À direita, Adolfo II de Nassau, à esquerda o arcebispo Gerlach de Nassau.
Estamos agora na parede esquerda e temos os túmulos de um religioso proeminentes e de Adolfo II de Nassau. O primitivo túmulo deste arcebispo foi considerado um dos mais monumentos funerários da Idade Média na Alemanha.

Cruz do altar-mor da igreja no Mosteiro de Eberbach
O visitante é convidado a deter-se junto das pedras tumulares. Os membros da nobreza e da burguesia piedosa foram autorizados a enterrar-se na abadia de Eberbach a partir do século XIII, depois de levantada a interdição de sepulturas nas igrejas cistercienses. São às dezenas esta pedras tumulares, algumas magnificamente decoradas, muitas foram destruídas quando se extinguiu o mosteiro em 1803.
Pormenor da arte gótica a caminho do dormitório
Todo o visitante é avisado logo na receção de que não deve perder os lagares e as adegas, bem como o dormitório dos monges no andar superior, aqui pontifica a arte gótica.
Um pormenor da abadia junto de uma bela porta românica de ligação ao claustro.
Um outro ângulo do mosteiro, vê-se a igreja e duas torres
Estas últimas três imagens marcam o contraste entre a simplicidade medieval e a atração pela decoração barroca. Se o refeitório primitivo tem decoração medieval, este novo foi construído no princípio do século XVIII, é a única divisão do mosteiro que deixa perceber a alegria festiva barroca, contraste mais gritante com a severidade do passado não podia ter acontecido.

O passeio prosseguiu até aos locais de vendas, daqui se partiu para uma refeição ligeira, guardei no meu caderninho de viagem que no século XII era uma vida severíssima, 150 monges e 300 irmãos, do século XIII ao século XVI reduziram-se as restrições e começou a cultura da vinha, que se tornou prodigiosa; o século XVIII é marcado pela prosperidade; no século XIX assiste-se à secularização, dissolve-se o mosteiro por ordem do príncipe Frederico Augusto von Nassau-Usingen, na década de 1860 este ducado de Nassau é anexado ao reino da Prússia, em 1946 torna-se propriedade do Estado de Hesse, a partir de 1998 surgiu uma fundação. E acabou-se a viagem, bem triste foi a razão que me trouxe a este rincão da Alemanha, mas não posso esconder que os meus anfitriões me asseguraram uma esplêndida estadia, como procurei registar nestas notas de itinerância.
Até à próxima!

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Nota do editor

Último post da série de 14 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26920: Os nossos seres, saberes e lazeres (685): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (208): Algures, na Renânia-Palatinado, em Idstein, perto de Frankfurt – 8 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 20 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26943: Notas de leitura (1810): A presença portuguesa no Gabu, a relação colonial com os Fulas, por José Mendes Moreira (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Abril de 2025:

Queridos amigos,
Este artigos de divulgação escrito pelo antigo administrador que produziu uma monografia sobre os Fulas do Gabu, elucida-nos de como nos apropriamos tão recentemente de cerca de um sexto de território da atual Guiné-Bissau, como se desenvolveu um relacionamento amigável entre as etnias Fulas e a administração portuguesa que, em parte, nos leva a compreender como, iniciada a luta armada, a esmagadora maioria das etnias Fulas se puseram automaticamente do lado da soberania portuguesa, e até ao fim do período colonial, oferecendo-lhe todo o apoio militar. Releva também do trabalho de Mendes Moreira a figura do régulo Monjur, que aparecerá por várias vezes ao lado das tropas portuguesas, em campanhas de pacificação. Esta revista Império, de 1951, era-me totalmente desconhecida, este artigo surge nos primeiros números, vou ler o que ainda falta, pode ser que tenha ainda mais uma agradável surpresa.

Um abraço do
Mário


A presença portuguesa no Gabu, a relação colonial com os Fulas, por José Mendes Moreira

Mário Beja Santos

O administrador José Mendes Moreira escreveu em 1948 uma monografia sobre os Fulas do Gabu, ainda hoje trabalho referencial. Encontrei há dias uma revista intitulada Império, teve curta existência, mas teve um arranque prometedor, em 1951. No número desse ano de setembro/outubro José Mendes Moreira ocupava-se do Gabu, vale a pena citá-lo:

“Gabu, o antigo Cabo, tão bem conhecido dos nossos exploradores do século XVI, não passava ainda de uma nebulosa no quadro da ocupação efetiva da província (século XIX, entenda-se). Fomos absolutamente estranhos às sanguinolentas lutas entre Mandingas e Fulas que culminaram pela conquista da supremacia por parte dos últimos. Ao contrário do que afirmam algumas crónicas e relatos orais dos nativos, a região nunca foi desabitada mesmo recuando no tempo até à Pré-História. A recente descoberta da estação de Nhampassaré, atesta a existência de homens pré-históricos, embora de proveniência e raça ignoradas.

Já nos tempos históricos, teriam por aqui passado algumas tribos, hoje acantonadas no litoral da província: os Bagas, os Banhuns ou Cassangas, os Felupes, os Bâmbaras e os Biafadas, tendo estes últimos sido desalojados pelos Mandingas Soninqueses, a partir do século XIII. Posteriormente, atravessaram a região os Fulas de Coli Tenguela, verdadeira tromba humana de que André Álvares de Almada nos conservou a memória.

Na primeira metade do século XIX, são ainda os Soninqueses os denominadores do Cabo (de Kabu – guerra) de onde o nome de “kabunkas” por que ainda hoje são designados pelos seus irmãos de além-Geba e Farim, por sua vez designados de “braçunkas” (de Braço – rio Farim ou Cacheu).

Contra o animismo turbulento dos kabunkas ia surgir em breve uma ameaça: o proselitismo religioso, fanático e avassalador, dos Fulas-muçulmanos do Futa-Jalom, já senhores de um império que atingia a Gâmbia pelo norte, a Serra Leoa pelo sul e se estendia para o oriente, quase até à curva do Alto Níger. É inevitável o choque entre as duas ideologias adversas e as crónicas relatam porfiadas lutas que terminam na epopeia sangrenta de Cam-Salá, numa guerra de extermínio entre duas raças e dois credos opostos.

Venceram os Futa-Fulas embora a vitória representasse um golpe profundo no seu poderio militar, golpe de que nunca mais se recompuseram, pois os franceses avançavam já com passos seguros por todo o seu domínio, enquanto os Fulas-Pretos de Alfá Moló e Mussá Moló, de vitória em vitória, completavam numa guerra de libertação a queda do carcomido tronco da poderosa monarquia religiosa e feudal do Futa-Djalon.

Alfá Bácar Guidáli completava a ocupação de Gabu pelos Fula-Forros, os Mandingas homiziavam-se para Farim e Casamansa, e o forte militar de Geba pairava já como sombra fatídica sobre o imenso território.

Entretanto, celebra-se a Convenção de 12 de maio de 1886 e todo aquele território correspondendo ao Gabu é considerado esfera de influência dos portugueses. Os franceses estavam persuadidos de que a Convenção de 1886 deixava na zona francesa os territórios do Forreá e Pachisse, incluindo Kadé e Canquelifá, mas brevemente reconheceram o erro. De facto, Kadé, inegavelmente sobre a influência francesa ficava a 20 km para o ocidente do meridiano 16ºW de Paris. Após intermináveis discussões, recomeçaram-se os trabalhos de 1898 concluidos em 1903, conduzindo à assinatura de um processo verbal que deixava à França os territórios de Kadé e Binane e a Portugal o Forreá e a parte ocidental de Pachisse, incluindo Canquelifá. Como compensação, foi-nos atribuído ao Sul uma extensão igual de território. Tudo decorreu sem quaisquer atritos.

Foi assim que Gabu entrou na órbita da ocupação portuguesa.
De 1905 a 1919, Gabu não tem qualquer autonomia administrativa. Faz parte da antiga circunscrição civil de Geba. Porém, Geba, antigo baluarte militar, foco de um intenso e profícuo missionarismo, sentinela vigilante da soberania e da civilização na parte oriental da província e centro comercial de primeira categoria, entra em decadência. É que, na margem esquerda do rio a que dera o nome começa a surgir, numa promessa de grande prosperidade, um novo foco de civilização – Bafatá. Situada na confluência dos rios Geba e Colufe, em breve destrona a velha e gloriosa povoação afortalezada. Em 1912, já é sede de circunscrição, que ainda se domina circunscrição civil de Geba. É Bafatá a porta de saída dos produtos naturais da região. É Bafatá que arrecada o imposto de soberania e todos os rendimentos públicos. No Gabu impera, quase soberanamente, o prestigioso régulo Monjur Embaló, filho do fundador do regulado, Alfá Bacar Guidáli, sucessor de Seilú Coiada, o régulo que acompanhara os trabalhos de delimitação de fronteiras.

Mais para o ocidente, o gentio insubmisso reclamava o emprego das nossas armas enquanto Monjur, nosso amigo e colaborador em campanhas, cobrava os impostos que vertia no todo ou em parte nos cofres da Fazenda, guerreava os potentados vizinhos do território francês e cercava-se de uma auréola de fastígio e de poder e granjearam o ser reconhecido como o maior de todos entre os régulos que ainda imperavam dos dois lados da fronteira.

Os centros comerciais de Oco, Piche, Sonaco e Canquelifá esboçavam ainda timidamente os primeiros passos. Um português de nome Lança abrira o primeiro estabelecimento comercial em Oco. Em 1912, começa a infiltração de comerciantes sírios e libaneses. São eles que efetivam a ocupação comercial da região.

Com as fulgurantes vitórias de Teixeira Pinto, a província foi completamente pacificada. Da ocupação militar passa-se à ocupação administrativa. Em junho de 1919, o território do Gabu é desanexado da circunscrição civil de Bafatá, constituindo a décima circunscrição civil. O administrado Alberto Gomes Pimentel vem instalar em Oco a sede dos serviços da nova circunscrição. O tenente Adolfo de Jesus Leopoldo transfere a administração para Lenquerim, na margem esquerda do Colufe mas, a breve trecho, reconhece que Gabu-Sara, povoação fronteira na margem direita, oferece melhores perspetivas ao desenvolvimento de um centro urbano comercial que combina os comerciantes libaneses de Oco a transferência do centro comercial para Gabu-Sara, onde, em 1921, já se encontram em funcionamento os primeiras estabelecimentos comerciais e iniciada a constrição do edifício da administração.

Monjur é ainda o maior de todos, mas com a velhice as intrigas dos próprios irmãos começam a minar-lhe o poderio. Respeitado e temido por todos, não faz concessões, as nossas autoridades administrativas, recentemente instaladas, não dão conta dos trabalhos que se lhes levantam debaixo dos pés e cometem erros de gravidade por desconhecerem a índole da população e o espírito intrigante do Fula. Monjur luta sempre, indomável, contra as intrigas dos seus irmãos de raça e de sangue e contra a incompreensão do branco outrora tão seu amigo. É sucessivamente destituído e reposto no cargo, vê o seu território esfacelado e de novo unificado sob a sua égide.

Quando uma nova divisão estava iminente, Monjur vai a Bolama pedir justiça, que é feita e, no regresso, morre pouco tempo depois em Coiada, donde o seu cadáver é processionalmente transferido para Oco perante incontáveis multidões de gente vindas de todos os pontos da Guiné e do vizinho território francês.

Estamos em 1929. De então, até 1935, Gabu atravessa um período crítico em que a confusão reina soberanamente e despovoa-se de tal forma que, de 30 mil impostos que se arrecadavam nos tempos áureos de Monjur, desce para 11 mil e pouco em 1934. Contudo, nunca foi necessária a força armada para restabelecer a ordem. Em 1936, repartiu-se o território pelos chefes dos diferentes ramos da família Embalocunda, a dinastia reinante, voltou a tranquilidade. Hoje a população nativa anda à volta dos 60 mil quando em 1934 mal aflorava aos 30 mil. Fulas-Forros, Futa-Fulas e Fulas-Pretos vivem em paredes meias com Mandingas, Jacancas, Saracolés. Sossos, Torancas e outros grupos étnicos, sem atritos de qualquer natureza.”


José Mendes Moreira dá-nos depois a relação das benfeitorias desde a assistência sanitária, a assistência agrícola, a construção de edifícios, um bairro cívico em Sonaco, novos edifícios para a administração, uma central elétrica em Nova Lamego, melhoria das estradas, etc.


A antiga Nova Lamego
Pista aérea de Nova Lamego, 1971
Uma galeria de mulheres Fulas numa festa do Cupilon de Baixo, 1973, RTP Arquivos
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Nota do editor

Último post da série de 16 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26925: Notas de leitura (1809): Guiné - Os Oficiais Milicianos e o 25 de Abril; Âncora Editora, 2024 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P26942: As nossas geografias emocionais (53): Arábia Saudita, Mar Vermelho, Jeddah, "a porta de Meca", 2023 (António Graça de Abreu, Cascais)





Arábia Saudita > Mar Vemelho > Jeddah (ou Gidá) > 2023... Nas duas fotos de cima, a esposa do nosso camarada, Hai Yuan. médica.


(...) Gidá se chama o porto aonde o trato / De todo o Roxo Mar mais florescia, / De que tinha proveito grande e grato / O Soldão que esse Reino possuía. / Daqui aos Malabares, por contrato / Dos Infiéis, fermosa companhia / De grandes naus, pelo Índico Oceano, / Especiaria vem buscar cada ano. (...)



(Luís de Camões, "Os Lusíadas, canto IX, estrofe 3. Fonte: Luís de Camões: Diretório de Camonística)

Fotos (e legenda): © António Graça de Abreu  (2012). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





1. Mais um "postal" enviado pelo nosso  incansável, (e)terno viajante António Graça de Abreu (aqui na foto à direita com a sua Hay Yuan),.

(Publicado originalmente na sua página do Facebook em 2 de junho de 2025, 20:36, enviado no dia seguinte,  3/06/2025, 15:42.)





Jeddah, Arábia Saudita, 2012

por Antóni0 Graça de Abreu


Na esteira das palavras de Claude Roy (1915-1997), grande senhor das letras francesas, concluo que já viajei por tantos países que sou capaz de falar estrangeiro na perfeição.

Nesta passagem por Jeddah, segunda maior cidade da Arábia Saudita com quase cinco milhões de habitantes, centro económico e logístico deste país, vou conversar com quem, em que língua, eu que do árabe tenho na memória uns lampejos de meia dúzia de palavras? 

Talvez seja melhor eu permanecer calado, e olhar simplesmente para Jeddah.


Posição relativa de Jeddah no Mar Vermelho.
 Fonte: Wikipedia (com a devida vénia...)
Debruçada sobre o Mar Vermelho, a cidade tem sido ao longo dos séculos um importante porto de comércio e a porta de entrada para muçulmanos vindos de todo o mundo que se dirigem à sagrada cidade de Meca, situada a apenas 88 quilómetros de distância. Chegam para cumprir um dos cinco pilares do Islão.

A importância de Jeddah está assim intimamente ligada a esse caminho terrestre, às estradas que daqui abrem para Meca. Todos os anos, todos os meses, todos os dias,  milhões, centenas de milhares, milhares de muçulmanos procuram a divina Meca, a Kaaba, o imponente edifício no centro de Meca a rodear em marcha apressada ou mais lenta por sete vezes, circundar o cubo em pedra negra erigido em outras eras que se crê ter sido inicialmente levantado pelo profeta Abraão há três mil e oitocentos anos atrás, restaurado por Maomé no século VII e casa sagrada, desde sempre, onde reside o espírito de Alá, o Deus Supremo.

Hoje, o acesso a Meca está proibido a todos quantos não são muçulmanos. 

Fiquemo-nos então pela Cidade Velha de Jeddah e pela Porta de Meca, tudo Património Mundial pela Unesco. Comecemos com a ruína bem conservada mas desinteressante do portão do burgo, aberto para Meca e logo depois avancemos para os antiquíssimos casarões com três ou quatro andares, alguns mal se sustentando em estacas para não cair. 

Numa arquitectura não muito trabalhada são edifícios com varandas, sacadas e janelas de madeira, as portas abertas para permitir a entrada e visita rápida do turista de passagem, conforto no interior da casa, poucos móveis, tapetes, alfombras, tapeçarias cobrindo as paredes. 

Na rua, os homens, quase todos vestem o thobe, uma túnica branca com um lenço na cabeça chamado shemagh, um turbante que tradicionalmente protege os sauditas, do vento, do calor e das areias do deserto. 

As mulheres, que quase não vemos percorrendo as velhas ruelas, usam a abaya preta que as tapa da cabeça aos pés.

Depois Jeddah espraia-se por quilómetros e quilómetros, a cidade cresceu aos poucos em cima da areia dos desertos, tendo hoje por horizonte, bem mais para leste, os 142 poços de petróleo que fazem destas terras inóspitas, abrasadas em calor,  lugares onde vicejam algumas das maiores fortunas da terra. 

Que o diga o futebol e o nosso Cristiano Ronaldo, há anos a chutar a bola e a marcar muitos golos no campeonato da Arábia Saudita. E a encher merecidamente o bolso no seu Al-Nassr, de Riade, a capital do petróleo, da bola e dos ricaços. 

Nassr, a equipa do Ronaldo significa “Vitória”. Estão a ver como eu, de tão viajado, quase falo todas as línguas?

António Graça de Abreu

(Revisão / fixação de texto,  título: LG)
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Nota do editor:

Último poste da série > 13 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26915: As nossas geografias emocionais (52): Welcome to New York (António Graça de Abreu, Cascais)

Guiné 61/74 - P26941: In memoriam (551): J. L. Pio Abreu (Santarém, 1944 - Coimbra, 2025): ex-alf médico, CCS/BCAÇ 3863 (Teixeira Pinto, 1971/73): quatro referências no "Diário da Guiné" (2007), de António Graça de Abreu



José Luís Pio Abreu (Santarém, 1944 - Coimbra, 2025): referência maior da psiquiatria, da saúde mental, do SNS - Serviço Nacional de Saúde e da Academia Portuguesa (Universidade de Coimbra e Universidade de Lisboa), foi nosso camarada de armas, no CTIG, na qualidade de alf mil médico, BCAÇ 3863 (Teixeira Pinto, 1971/73)... 

O seu funeral realiza-se hoje, sexta,  às 16h00,  para o Crematório Municipal de Coimbra, segundo informação do "Diário de Coimbra".

Era da geração que  protagonizou a crise estudantil de Coimbra, 1969;  foi contemporâneo em Teixeira Pinto, do cirurgião Luís Tierno Bagulho, também ele alf mil da mesma unidade, mas mais velho (é protagonista da crise estudantil de 1962, em Lisboa; voltou à Guiné como cooperante médico no pós-independência, tendo morrido de doença de evolução prolongada, em finais da década de 1970; era filho,  se não erramos, do almirante  António João Tierno Bagulho, n. Elvas, 1911, e falecido em data que não sabemos).

Fonte: Just News > 25 de novembro de 2023 - 15:28 > José Luís Pio Abreu homenageado no Congresso Nacional de Psiquiatria (Foto reeditada pel0 Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, 2025),.
 



1. O Pio Abreu tinha consultório em Coimbra, na Rua Doutor António José de Almeida, nº 329 2º andar, Sala 68...  

E na sua página apresentava-se nos seguintes termos (não há quaisquer referência à sua experiência como alferes mil médico no CTIG, em 1971/73, na altura ainda era um jovem médico, acabado de se licenciar em 1968):

PSIQUIATRA COM MAIS DE 50 ANOS DE EXPERIÊNCIA


José Luís Pio Abreu é psiquiatra clínico.

Fez o Doutoramento em 1984, com uma tese ligada à Psiquiatria Biológica, e a Agregação em 1996, com uma lição sobre perturbações de ansiedade.

Foi médico no Centro Hospitalar da Universidade de Coimbra (CHUC) e professor associado da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra , sendo ainda membro do Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa (CFCUL).

Ao longo dos 50 anos da sua actividade profissional tem desenvolvido e orientado investigação nas áreas da Psicopatologia e psicoterapias, com centenas de artigos publicados em revistas científicas e conferências. Também se tem empenhado nas psicoterapias, tendo sido Presidente da Sociedade Portuguesa de Psicodrama (SPP).

Publicou doze livros em Portugal (alguns destes foram também publicados no Brasil, em Espanha, na América Latina e Itália) e orientou a tradução de um livro de Neurofisiologia. Três deles foram premiados em Portugal e Itália.

O mais conhecido é: "Como Tornar-se Doente Mental". Nos seus escritos, dedica-se também a uma reflexão crítica da Psiquiatria e tenta abordar o enigma da Mente a partir das suas patologias. 

Foi sempre um cidadão ativo, com diversas intervenções, artigos de opinião e colunas em jornais nacionais e regionais.


 

Capa do livro de António Graça de Abreu, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura". Lisboa: Guerra e Paz. 2007, 220 pp. il.


2. No Diário da Guiné, do António Graça de Abreu (alf mil, CAOP1,  Teixeira Pinto / Canchungo, Mansoa e Cufar, junho de 1972/abril de 1974), há algumas referências  ao J.L Pio Abreu, ex-alf mil médico do BCAÇ 3863 (Teixeira Pinto, 1971/73), falecido na passa quarta, dia 18.

Uma delas  (e justamente a última, 1 de fevereiro de 1973) está associada a uma tragédia  que atingiu os nossos camaradas da 38ª CCmds... 

Tudo começou com uma partida de futebol entre os  camaradas de Bachilé (CCAÇ 16, formada por graduados e especialistas de origem metropolitana, e praças do recrutamento local, de  maioria manjaca) e os de Teixeira Pinto (CCS/BCAÇ 3863), na região de Cacheu... 

Pio de Abreu também estava em Teixeira Pinto, em 31 de outubro de 1972, aquando a emboscada, entre Pelundo e Có, a uns quinze quilómetros do Canchungo, a um coluna de cerca de 40 viaturas, e em que seguiam vários oficiais superiores, incluindo o comandante do CAOP1 (o famoso coronel pqdt Durão), e em que houve cerca de 10 feridos, alguns com gravidade,

Nessa data, há no "Diário da Guiné"  uma referência à atuação do alf mil médico Pio  Abreu, na tentativa de salvar a vida a um fuzileiro do PAIGC, atingido por estilhaços de uma bala de helicanhão. 

Há mais 2 referências: 22 de julho de 1972 e 16 de agosto de 1972. 

Estas quatro referências são  suficientes para documentar algumas das  vezes em que o médico Pio Abreu esteve exposto  ao horror da guerra. A seguir se reproduzem essas quatro entradas do "Diário da Guiné", com a devida vénia.


Referências ao J. L. Pio Abreu no "Diário da Guiné" (2007), de António Graça de Abreu


(...) Canchungo, 22 de Julho de 1972

Fui hoje jantar com os dois alferes médicos no único tasco onde se pode comer cá na terra. Um bife duro, batatas mal fritas, um ovo estrelado, 45 escudos.

Os dois médicos são gente interessante, inteligentes, cabeças abertas para o mundo. Conversámos sobre a guerra, sobre as nossas vidas. 

 [Luís Tierno]  Bagulho  [já falecido, c. 1980] atem trinta e tal anos, é já cirurgião em Lisboa, esteve detido em Caxias quando da crise académica de 1962. 

  [José Luís] Pio Abreu  [Santarém, 1944 - Coimbra, 2025] ainda não tem trinta anos, é de Coimbra e faz parte daquele grupo de quarenta e nove estudantes da Universidade que, em 1969, na sequência das greves e desacatos na academia coimbrã, foram alistados coercivamente no exército.

Nenhum tem hoje qualquer actividade política nem de contestação do regime, mas carneiros não somos. É pena para mim – não para eles -, estarem em fim de comissão, só mais dois meses para o Bagulho.

São ótimos médicos, segundo a opinião de toda a gente. Dão consulta à população, com intérprete, tratam das milhentas doenças que afligem este povo manjaco e são os médicos militares, cuidam da tropa aqui estacionada e prestam assistência aos feridos em combate que chegam a Canchungo vindos diretamente do mato.

Têm uma casa grande apenas habitada por eles, fora do quartel, na avenida principal em frente ao hospital. Uma casa bonita com uma sala de estar confortável, com móveis e tudo. (pp. 31/32)

(...) Canchungo, 16 de Agosto de 1972

Hoje, o resultado das brincadeiras com as armas. Ouvi um tiro e gritos na caserna dos soldados do Batalhão [BCAÇ 3863], aqui diante do meu quarto, a uns quarenta metros. 

Fui dos primeiros a chegar, a ver o sucedido. Um soldado, quando brincava coma espingarda, esfacelara o pé direito de outro soldado com um tiro de G3. Tiraram a bota ao pobre rapaz que guinchava de dores, e meu Deus, como estava o pé, destroçado, atravessado de lado a lado, com os ossos e os tendões despedaçados, tudo à mostra, escorrendo sangue. 

Estava convencido de que era pouco impressionável, mas tive uma tontura, vi tudo branco. Recuperei rápido e ajudei a levar o rapaz em braços para a enfermaria. O Pio, o médico, fez o que pôde. Uma hora depois uma DO evacuava o soldado para o hospital de Bissau.

Em Bafatá, caiu um das avionetas DO ao levantar voo, parece que por acidente, descuido do piloto, um alferes que eu não conhecia. Morreram o piloto e um cabo mecânico. (pp. 43/44).


(...) Canchungo, 31 de Outubro de 1972


(…) Quando acontecem estas coisas, pedem-se logo os helicópteros de Bissau para a evacuação dos feridos e vem também o helicanhão que faz fogo sobre os itinerários de retirada do IN. 

Foi então abatido um guerrilheiro que veio de héli para aqui. Eu sabia que havia feridos e lá estava na pista. O fuzileiro do PAIGC chegou ainda vivo, com um uniforme azul manchado de sangue e um estilhaço na cabeça de bala de helicanhão. 

O médico [Pio Abreu]  e um furriel enfermeiro fizeram-lhe massagens no coração que de nada valeram, o homem morreu. Foi o primeiro guerrilheiro que vi, e logo agonizando numa maca de lona. (pág. 62)


(...) Canchungo, 1 de Fevereiro de 1973

É uma hora da manhã, escrevo sereno, lúcido, sem paixão, tudo de enfiada.

Ver viver, ver morrer, três homens mortos, sete feridos graves, quatro ligeiros. A causa próxima foi um desafio de futebol, a causa remota foi o destino e o facto de estarmos numa guerra.

Esta tarde houve um jogo de futebol entre o pessoal branco do Batalhão, CCS/BCAÇ 3863,  e a tropa branca e negra do aquartelamento do Bachile [CCAÇ 16, constituida sobretudo por militares manjacos, do recrutamento local. 

Não sei se por culpa dos brancos ou dos negros, decerto por culpa de ambos, o jogo descambou em grossa pancadaria o que levou o coronel [pára, Rafael Durão, comandante do CAOP1,] a intervir, a assestar uns tantos socos em não sei quem e a dar voz de prisão a dois negros.

Cerca das oito da noite, foi recebida aqui uma comunicação rádio do capitão branco do Bachile, a braços com uma insubordinação dos militares negros. Quarenta africanos armados haviam saído do aquartelamento e marchavam a pé para Canchungo, a fim de tirarem da prisão os seus dois camaradas detidos. 

Aprontaram-se imediatamente cerca de cinquenta comandos da 38ª. Companhia e o coronel seguiu com eles.

Na ponte Alferes Nunes, já próximo do Bachile, os Comandos ficaram e o coronel avançou sozinho, no jipe, ao encontro dos soldados africanos. Graças à sua coragem, ao respeito que impõe a toda a gente - é o “homem grande” branco -, à promessa de libertar os presos, os soldados negros regressaram pacatamente ao Bachile.

Aqui em Teixeira Pinto estávamos na expectativa, não sabíamos o que ia acontecer. Em frente do edifício do CAOP, eu conversava com o major Malaquias, com um alferes da 38ª [CCmds] e outro do Batalhão quando ouvimos um grande rebentamento muito próximo. 

Que será? Um minuto depois chegou a informação, via rádio. Era preciso preparar imediatamente o hospital, havia mortos e feridos.

No regresso dos comandos, à entrada da vila, rebentara uma caixa cheia de dilagramas – granadas disparadas pelas G 3 com um dispositivo especial – em cima de um Unimog onde vinham catorze homens. Dois mortos de imediato, os restantes feridos vinham a caminho. Corremos para o hospital. Os comandos chegaram.

Como vinham, meu Deus! Um furriel morria na sala de operações. As suas últimas palavras para o Pio [Abreu], o médico, foram: “Doutor, cuide dos outros, eu estou bem.”

Nas macas, no chão de pedra do hospital jaziam feridos graves, corpos semi-desfeitos, barrigas, intestinos de fora e quatro rapazes só com alguns estilhaços. Não ouvi um queixume, mas havia muitos homens a chorar.

Era preciso evacuar os feridos para o hospital de Bissau. Onze horas da noite, iluminámos a pista com os faróis das viaturas e com as mechas acesas em muitas garrafas de cerveja cheias com petróleo, distribuídas aí de dez em dez metros ao longo do campo de aviação. Aterraram quatro DO. Ajudei a transportar feridos entre o hospital e as avionetas, num dos nossos Unimog. Dois deles iam muito mal, cravados de estilhaços, em estado de choque ou coma, não sei se escaparão.

O condutor do Unimog em cima do qual as granadas rebentaram é um dos meus soldados, do CAOP 1, Loureiro de seu nome, com apenas oito dias de Guiné. Ia a conduzir, não sofreu uma beliscadura. Trouxeram-no cambaleando, o espanto, incapaz de falar. Evacuados os feridos, fui buscá-lo, abracei-o, sentei-o na minha cadeira na secretaria, animei-o, bebemos quatro águas Castelo.

Foi um acidente de guerra. Corpos ensanguentados, dilacerados, muitos homens destruídos, não apenas os mortos e os feridos.

Reações de alguns dos nossos soldados. “Tudo por culpa dos cabrões dos negros, filhos da puta, só fuzilados!”...

Quem resiste aos corpos esventrados dos companheiros de armas?!...As razões sem razão porque se avivam ódios, porque se morre! 

Não sei que horas são, deve ser tarde, não tenho ponta de sono. Já ouço os galos cantar. Um novo dia nasce. (...) (pãg. 70).

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Fonte: Excertos de: António Graça de Abreu - "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura". Lisboa: Guerra e Paz. 2007. 220 pp., il.

(Seleção, revisão / fixação de texto: LG)


3. Dias depois, a 3 de fevereiro de 1973, o António Graça de Abreu é transferido, com o CAOP1, para Mansoa (que tinha a grande desvantagem, em relação a Teixeira Pinto/  Cachungo, de “embrulhar uma vez por mês”, pág. 73).

Perdemos então o rasto do Pio Abreu, que, como já dissemos, pertencia à CCS / BCAÇ 3863, com sede em Canchungo (Teixeira Pinto). Não sabemos se chegou a trabalhar no HM 241, como é provável, já que era cirurgião.

Mobilizado pelo RI 1, o BCAÇ 3863, esteve sediado (o comando e a CCS) em Teixeira Pinto. A comissão de serviço na Guiné foi de 17/9/1971 a 16/12/1973. Foi comandado pelo Ten Cor António Joaquim Correia. Era composto pelas CCAÇ 3459 (Bassarel), 3460 (Cacheu) e 3461 (Carenque e Teixeira Pinto).

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Nota do editor LG:

Último poste da série > 19 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26937: In Memoriam (550): José Luís Pio Abreu (Santarém, 1944 - Coimbra, 2025), psiquiatra, foi alf mil médico, CCS/BCAÇ 3863 (Teixeira Pinto / Canchungo,1971/73)

Guiné 61/74 - P26940: (De) Caras (235): Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades... (Alberto Branquinho, ex-Alf Mil Art)

Mafra > Escola Prática de Infantaria (EPI) > 1968 > Cerimónia do Juramento de Bandeira > Desfile dos novos militares, onde se integrava o nosso camarada Paulo Raposo, frente ao Convento de Mafra.

Foto (e legenda): © Paulo Raposo (2006). Todos os direitos reservados: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Em mensagem de 19 de Junho de 2025, o nosso camarada Alberto Branquinho, ex-Alf Mil Art da CART 1689 / BART 1913 (Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos este curioso texto com o título:


MUDAM-SE OS TEMPOS, MUDAM-SE AS VONTADES…

Março, talvez Abril, de 1966. Escola Prática de Infantaria (instalada nas traseiras do Convento de Mafra.)

Uma formação militar de soldados-cadetes saiu do portão lateral direito do Convento, de farda cinzenta e com a velha Mauser em posição de marcha, no ombro esquerdo. Marcham ao som de banda militar (com o som amplificado) instalada em frente ao Convento. Passados cerca de três meses de instrução militar, vão fazer o chamado “Juramento de bandeira”.

Em pé, a meio da escadaria frontal ao Convento e de costas para o mesmo está Sua Excelência o Chefe de Estado, Almirante Américo Thomaz, ladeado por Altas Individualidades.

A banda militar parava de onde em onde (ou, talvez, baixasse a intensidade do som), ao mesmo tempo que se ouvia uma voz ampliada pelo microfone: “Angola é nossa, Angola é nossa, Angola é nossa…”, repetida várias vezes, em que os sons “gó” e “nó” eram ampliados pelo bater mais forte dos pés esquerdos dos cadetes em marcha. Depois de acabar a repetição da frase, a banda voltava a tocar.

Quando cada pelotão ia passar em frente ao Almirante Américo Thomaz, o comandante de cada pelotão dava a ordem de “olhar à direita”. O Almirante respondia em cumprimento militar, levando a mão direita à pala do boné.

Depois de toda a formação militar ficar parada no largo em frente do Convento e em frente às individualidades, ouviram-se os discursos habituais. Acabada a cerimónia, os vários pelotões marcharam em direcção ao portão lateral esquerdo ao Convento. Lá dentro, na parada existente nas traseiras, foi dada ordem de “Destroçar” e cada um recolheu às suas “instalações privadas”. (No nosso caso uma cama e um armário metálico colocado à cabeceira de cada cama, tudo integrado em cinco ou seis filas de camas e armários, que iam do altar da capela-dormitório até à parede, onde se encontrava a porta de entrada; a todo esse conjunto acrescentavam-se mais duas camas e respectivos armários, colocadas dentro da estrutura metálica que separava que separava o altar do restante espaço e protegidas por duas cabeças aladas de dois anjos rechonchudos.)


-----***-----

Passados cerca de dez anos sobre o que vai escrito acima, um antigo soldado-cadete, que estava incorporado naquela formatura, passeava com uns amigos, ao entardecer, em Copacabana. Olhou sobre a esquerda e viu o Almirante Américo Thomaz passando em sentido contrário, em traje civil simples, acompanhado pela filha. Chamou a atenção dos amigos e, quando todos olhavam, o Almirante viu-os e fez-lhes um cumprimento com a cabeça. Todos retribuíram. Apesar de lhe ter apetecido marchar, batendo com o pé no chão ao ritmo de 1966, não o fez.

(“…Malhas que o Império tece…”)

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Notas do editor

Vd. último post de Alberto Branquinho de 11 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26485: Humor de caserna (102): o macaco-fidalgo ou "fatango"... "ó meu alferes, parecia que era um gajo... dos turras!" (Alberto Branquinho)

Último post da série de 16 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26926: (De) Caras (234): o nosso Raul Solnado da Guiné... o Abílio, Valente e Magro, ex-fur mil amanuense, CSJD/QG/CTIG (Bissau, 1973/74)

Guiné 61/74 - P26939: Parabéns a você (2388): Cherno Baldé, Amigo Grã-Tabanqueiro, Gestor de Projectos na Guiné-Bissau

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Nota do editor

Último post da série de 19 de Junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26935: Parabéns a você (2387): Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68) e Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2726 (Cacine, Cameconde, Gadamael e Bedanda, 1970/72)

quinta-feira, 19 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26938: Ser solidário (285): Bilhete-postal que vai dando notícias sobre a "viagem" da campanha de recolha de fundos para construir uma escola na aldeia de Sincha Alfa - Guiné-Bissau (14): Mercado de venda de produtos em segunda-mão no dia 21 de junho na cidade de Bressanone – Região Italiana do Alto Adige (Renato Brito)

1. Mensagem com data de 16 de Junho de 2025 do nosso amigo Renato Brito, voluntário, que na Guiné-Bissau integra um projecto de construção de uma escola na aldeia de Sincha Alfa, trazendo até nós a Cartolina número 14:

Boa tarde Carlos Vinhal,
Com a presente venho por este meio partilhar a “cartolina” que prossegue com a campanha de angariação de fundos para construir uma escola na aldeia de Sintcham Arafam – Guiné-Bissau.
Desta feita mais um mercado de venda de produtos em segunda-mão no dia 21 de junho na cidade de Bressanone – Região Italiana do Alto Adige.

Cumprimentos,
Renato Brito

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Nota do editor

Último post da série de 15 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26802: Ser solidário (284): Bilhete-postal que vai dando notícias sobre a "viagem" da campanha de recolha de fundos para construir uma escola na aldeia de Sincha Alfa - Guiné-Bissau (13): Apresentação do projecto na Sede da Associação Macaréu, dia 31 de Maio de 2025, pelas 18h30, Rua João das Regras, 151 - Porto. Também uma oportunidade para experimentar a gastronomia e ouvir música da Guiné-Bissau (Renato Brito)

Guiné 61/74 - P26937: In Memoriam (550): José Luís Pio Abreu (Santarém, 1944 - Coimbra, 2025), psiquiatra, foi alf mil médico, CCS/BCAÇ 3863 (Teixeira Pinto / Canchungo,1971/73)


Capa do livro de J. L. Pio Abreu (1944-2025), "Como tornar-se doente mental", 18ª ed, Lisboa, Dom Quixote, 2008. (Prémio Città delle Rose, 2006). (O livro foi um sucesso editorial: lançado em 2006, já teve pelo menos 26 edições)

Citando e parafraseando o autor  (pp. 155/156, negritos nossos), podemos dizer:

  • se não mentires a ti próprio, descobrirás que és uma pessoa com limites e deixarás de querer ir a todas, como fazem os fóbicos;
  • também não serás dono da verdade nem tão importante como são os paranóicos;
  • não serás o mais perfeito, o que fica para os obsessivos;
  • nem tão brilhante ou poderoso como os histriónicos e psicopatas;
  • não serás uma pessoa muito especial, como os esquizofrénicos,
  • nem um génio, como os maníaco-depressivos;
  • serás apenas uma pessoa comum que aceita os desafios e os paradoxos da vida, faz o possível para, em cada momento, dar o que pode e actuar em conjunto com os outros;

No entanto, tens de assumir a responsabilidade completa pelas tuas acções:

  • afinal, todos fomos expulsos do Paraíso e condenados à solidariedade;
  • fizemos das fraquezas forças e, uns com os outros, construímos coisas admiráveis;
  • convenhamos entretanto que tudo isto é muito complicado, pouco gratificante e difícil de fazer;
  • fácil, fácil, é mesmo tornares-te um  doente mental.


1. José Luís Pio Abreu foi alf mil médico, CCS/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1971/73 (*), ao tempo dos nossos grão-tabanqueiros António Graça de Abreu e Mário Bravo. Foi, portanto,  nosso camarada de armas.

Morreu ontem.  Nunca foi membro da nossa Tabanca Grande, nem sabemos se alguma vez nos leu. Tem 4 referências no nosso blogue. Não temos nenhuma foto dele. Merece, no mínimo, que a gente se lembre dele, neste dia triste, em que se despede da Terra da Alegria (**).

Psiquiátra e psicoterapeuta, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra,  onde se licenciou (erm 1968), se doutorou (em 1984) e fez a agregação (em 1996), publicou diversos livros ligados à psiquiatria, com destaque para:

  • "Como Tornar-se Doente Mental“ (2006); 
  • “Quem Nos Faz Como Somos“ (2007);
  • “Estranho Quotidiano“(010);
  • "O Bailado Da Alma“ (2014);
  • “A Queda dos Machos (2019);
  • “Pequena História da Psiquiatria“ (2021).

Outras frases do nosso camarada médico (teve  um papel ativo na crise académica de 1969, em Coimbra) que nos obrigam a pensar:

  • “Quando o medo se torna o solo em que se pisa, o pensamento abandona a razão e regressa ao instinto.” In: O Bailado da Alma (2014)
  • “Não há loucura maior do que manter-se são num mundo insano.” In: Como Tornar-se Doente Mental (2009).

Guiné 61/74 - P26936: A Bissau do Meu Tempo (Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) - Parte IIIc: O "Clube Militar de Oficiais" de Bissau, QG/CTIG, Santa Luzia (Fotos de 18 a 24)




F18 – A escrever para a familia, no bar do clube de oficiais do QG. Abril68



F19– No bar da Messe escrevendo à familia. 01Abril68.


F20 – Na relva da piscina, com um camarada frequentador, conversando, mas não me lembro do nome. Março68


F21 – Junto à Messe de oficiais, na minha motorizada, com o amigo alferes  Soutinho. 04fev68.


 F22 – No Bar do Clube Militar de Oficiais, com um camarada de que não sei o nome. Set68


F23 – Um convivio com dois camaradas, no Bar do Clube Militar de Oficais,  no QG/CTIG,  à noite, após refeição, já em 1969, não sei o mês, mas já estava esperando o embarque.

Ao meu lado o alferes Camelo, que foi meu companheiro na EPAM (Escola Prática de Administração Militar). A seguir um alferes miliciano da Chefia de Contabilidade, vestido com uma polo branca da Fred Perry, comprada também no Grande Hotel. Não me estou a lembrar do nome dele, mas era já conhecido do Porto ou da Faculdade de Economia ou do Instituto Comercial.

Quanto ao alferes Camelo, durante a especialidade, não sei qual foi a dele, fazíamos muita
aividade não só de ginástica como aplicação militar, marchas, corridas pelos campos de
Alvalade, lembro-me que eram em terra de tijolo, e desciamos por valas às cambalhotas, depois passávamos por valas de porcaria de esgotos. O Camelo, que era de Matosinhos, pesava aí uns 100 kg, não conseguia correr nem mesmo marchar, e muito menos carregar com o seu equipamento.

Era eu o "levezinho" que,  além do meu equipamento,  carregava com o dele, que suava por todos os poros, eu facilmente carregava tudo e chegava ao fim, nem ponta de suor. Acho que ele deve ter ficado agradecido, pois foram muitas vezes, depois de acabar o curso, e nunca mais nos vimos, exceto neste encontro na messe do Clube.

Mais tarde cheguei a cruzar-me com ele no Porto, mas acho que ele me evitava, devia ser de
uma familia de comerciantes burgueses, tinha uma loja onde hoje funciona em Brito Capelo,
na Loja do Andante do Metro do Porto.

Falei com outros camaradas e disseram que ele tinha a mania das grandezas. Nunca mais o vi. 



F24 e 24A – A estrada de Santa Luzia à noite,  vendo-se  ao fundo &CTIG Porta de Armas do QG e do Clube Militar de Oficiais.


Uns 100 metros antes, para quem sobe do lado esquerdo, tinha ali a casa da minha primeira amiga, cabo-verdeana, que conheci no dia em que cheguei, cuja história não é para contar agora neste tema. Foto tirada em 1969, terá sido no 2º trimestre antes de embarcar


Guiné > Bissau > Santa Luzia > QG/CTIG > 1968 >  A piscina  do "Clube Militar de Oficiais"  


Fotos (e legendas): © Virgílio Teixeira (2025). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1.  Continuação da publicação de uma seleção de fotos do álbum do Virgílio Teixeira (ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69). Última parte, fotos de 18 a 


1.1. Comentário do autor (enviado por email, 
17 jun 2025, 12:25) ao poste P26928 de 18junho2025 > O Biafra » O Clube de Oficiais de Santa Luzia (*)

(...) Estive a ler o texto do coronel de transmissões, Jorge Sales Golias, um trabalho de louvor, sem exageros, que infelizmente não o tinha lido. [Memórias do Agrupamento de Transmissões e Histórias de Guerra na Guiné – 1972/74 ].

Desde logo me chama a atenção de comparar o clima que encontrou quando chegou à Guiné no velho DC6 em 1972 (tal como eu o descrevi, o flagelo do clima, a sair de um frigorifico que era o frio dentro do avião, e entrar num forno instantaneamente) e tudo o resto destas experiências, que só sabe quem por elas passou.

Dizia eu, comparar alhos com bugalhos, o Regimento de Transmissões do Porto, sediado em Vale Formoso, por onde andei em menino e moço, nos anos 50, quando o meu pai lá estava a prestar serviço, quando morávamos a umas poucas centenas de metros. Nessa época e durante muito tempo, era o Regimento de Engenharia 2. (...)

Em 1972, o ano a que se refere o nosso coronel Golias, já eu tinha chegado da Guiné em 1969, casado em 1970, e em 1972 a caminho do segundo de 3 filhos, vivendo então nessa época noutra casa do Porto, e depois Vila do Conde, onde me hospedei desde então.

A reportagem desta história  é tão minuciosa, e completa, que até me sinto desconfortável ao contar algumas façanhas, triviais, face a este conteúdos, de outras esferas superiores e de outros tempos, mais modernos num caso, mas mais difíceis nos anos 73 e 74. Os meus parabéns para começar. Não tenho infelizmente nada tão parecido como esta narrativa.

Muitos dos aspectos também se passaram comigo em 1967 e até 1969, mas não tenho descrições disso tudo.

Indo directo ao assunto, o coronel "Lavrador", salvo seja, não me cheira nada o nome de Saraiva. Tenho um nome algures escrito e na memória, que não me parece esse, o pai da Suzi. Eu só o vi uma vez, e nunca faláos, nem nos zangámos.(Eu frequentava aquilo, ou à civil, ou com farda normal, nunca de camuflado.)

E tenho a ideia, não certezas nenhumas, que o chefe daquilo tudo  (o CMO - Clube Militar de Oficiais), seria um coronel de Administração Militar, até porque um coronel de infantaria não era a melhor opção para esta função. Digo eu.

E fala-se em duas filhas adultas... Durante dois anos só conheci esta das fotos, a Suzi, nunca me apercebi que ela tivesse outra irmã, e ainda por cima a viverem permanentemente em Bissau, durante anos.
 
Basicamente já está tudo esclarecido quanto ao Biafra e o CMO, depois de se ler os textos do coronel Jorge Golias e do Abilio Magro,  entre outros.

Estive a ver agora a foto da construção da piscina dos Sargentos, atrás das suas sumptuosas instalações dormitórias, que pelo que me parece não chegaram a ter grande utilidade para os nossos sargentos, pois entretanto acontece o 25 de Abril.

Diga-se de passagem, que,  como se pode ver, de "Biafra" não tinham nada, as instalações de madeira e zinco, boas para habitáculo de baratas, para os oficiais milicianos, leia-se, alferes milicianos, podemos até dizer sem exageros, que parecem melhores do que os quartos do Grande Hotel, e que tínhamos de pagar e não havia piscina. (Era só elitista, para uns, e um local de convívio para quem pudesse pagar.)

Quanto ao relato do Abilio Magro, destaco a foto com a legenda:  Guiné > Bissau > QG/CTIG > "O "Biafra" dos Sargentos > c. 1973/74 > "Eu junto às obras da piscina de sargentos que estava a ser construída nas traseiras dos nossos quartos"... Não sabemos se chegou a estar pronta, se foi estreada e usada... Era uma alternativa à piscina do Clube Militar de Oficiais (CMO), a que os sargentos só tinham acesso muito limitado. (...)

Mas para terminar, eu voltei a este local por 4 vezes em 1984 e 1985. Fiquei hospedado no sitio onde era o nosso Biafra de 67, com moradias novas. A piscina, que por acaso nunca tinha água, estava tudo abandonado, era a mesma que eu conheci.

Provavelmente estas instalações (dos sargentos), de 1973-74, ficavam noutro local, que não cheguei a visitar! (..)

(Seleção, edição das fotos, revisão / fixação de trexto: LG)
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Guiné 61/74 - P26935: Parabéns a você (2387): Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68) e Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2726 (Cacine, Cameconde, Gadamael e Bedanda, 1970/72)


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Nota do editor

Último post da série de 17 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26927: Parabéns a você (2386): Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872 (Galomaro, 1971/74)