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domingo, 28 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25786: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (31): Sete vidas (1690-2044)



"Painel de azulejos de oficina de Lisboa, da 1ª metade do século XVIII, existente no Museu da Cidade, Lisboa, onde no primeiro plano aparecem tipos populares a comercializam bens de consumo e, no lado esquerdo é representado o Chafariz de Neptuno, equiparado ao dedicado a Apolo, existente no Terreiro do Paço. O Hospital Real de Todos-os-Santos tinha fachada virada para o Rossio e fora mandado erigir por D. João II em 1492, mas a sua construção só terminou no reinado de D. Manuel I, nos primeiros anos do século seguinte. Edifício de vanguarda na época, acolheu os primeiros internamentos em 1502, com regimento e estatuto de Escola de Medicina e o número de enfermarias foi crescendo ao longo do tempo: 3 (1504), 16 (1520) e 25 (1715). O Hospital Real de Todos-os-Santos foi desactivado na sequência do Terramoto de 1755, ocorrido a 1 de Novembro desse ano, o qual foi responsável pela destruição quase completa da cidade de Lisboa e foi substituído depois pelo Hospital Real de São José, no que restou do colégio de Santo Antão da Companhia de Jesus. (Rui Carita)
Data: circa 1740". 

Foto (e legenda): Fonte:  Museu de Lisboa | Wikimedia Commons (com a devida vénia...)



 Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (31): 

Sete vidas (1690-2044)


O Xavier Oliveira não sabia ainda o que gostaria de ser (e de fazer), desta vez, quando voltasse a ser "menino e moço".

Tinha direito a "sete vidas, como os gatos". Era, afinal, o único "privilégio" que podia dar como  garantido na sua existência terrena. 

Era um "homem de fé". Leia-se, crente.  A igreja a que pertencia (e que tinha um templo com pórtico neoclássico, ali mesmo ao pé da sua casa), reunia os metempsicosistas da cidade. 

Não eram muitos. Um "seita", escarneciam os seus detratores, quando lá passavam ao lado. O pior  ainda era o padre, católico, da sua freguesia, a par do pastor, evangélico, na rua mais abaixo, que tinha um "tabernáculo" num antigo armazém, adaptado para o efeito, a que chamava pomposamente... a "catedral da salvação".  (Todas as religiões são salvíficas; se o não fossem, tinham os templos vazios.)

Acreditava na transmigração da alma, mas dentro da espécie humana, incluindo as várias "raças" que se distinguiam umas das outras por diferentes fenótipos, "os brancos, os pretos, os amarelos, os mestiços"... 

Não, não era "racista". Aliás, bastara-lhe ter sido negro e escravo no séc. XVIII, na época em que finalmente o esclavagismo começou a ser posto em causa pelo capitalismo industrial... (Com a máquina a vapor e a maquinofatura, isto é, a "revolução industrial", os ingleses não precisavam mais de escravos "negros", passavam a ter os próprios escravos "brancos", o "proletariado inglês", os camponeses e os artesãos finalmente "libertos" das velhas amarras da sociedade senhorial...)

Nisso distinguia-se de outras correntes afins, de base teosófica. Não havia o risco de reencarnar numa espécie não-humana, animal ou até vegetal, como defendiam certos animistas. "Só dentro da espécie humana"... Tanto podia ser homem ou mulher,  branco ou preto... Era uma verdadeira lotaria. Não havia escolha. Mas o mecanismo da passagem da alma para um novo corpo ainda estava ("e estaria sempre") por explicar.

Os metempsicosistas eram "criacionistas", opositores da teoria da evolução. A metempsicose operava-se dentro das especificações do programa, definitivo e imutável, da criação da vida e do mundo. Era, de resto, um segredo inviolável, a que a ciência humana nunca poderia aceder, sob pena de usurpação do poder divino, ou pecado da húbris. 

Havia a barreira da espécie, tal como no sexo. A alma humana, no "post mortem", só podia transmigrar para uma forma de vida igual ou superior, um outro corpo humano. 

Xavier Oliveira acreditava que, de geração em geração,  a sua alma, a sua verdadeira identidade, arranjaria  um outro "invólucro", feito de "carne e osso".

Era uma forma de expiação terrena. Só os "puríssimos" , os 100% "limpos", tinham lugar imediato no Éden, após a morte física.

Não, não havia Inferno, tranquilizava-se ele. Não havia essa coisa da condenação eterna, "per saecula saeculorum" ou "ad aeternum", com que o aterrorizaram os padres jesuitas na sua primeira vida, quando  se chamava Fernão Ferro (1690-1721), ou melhor, o "Enjeitado" . (Na verdade, Fernão Ferro fora o seu primeiro nome, de batismo.)

Essa ideia, a do Inferno, só por si,  era uma insulto ao Criador da vida e ao grande Arquiteto do universo, e à Sua infinita sabedoria e  bondade. No passado, tinha frequentado uma loja maçónica, iluminista, de que lhe ficara a poderosa imagem do Arquiteto supremo.

Em resumo, havia sete vidas para os seres humanos se poderem "purificar". Sete vidas, umas mais fáceis, outras mais difíceis, umas mais curtas (como a sua primeira, que não ultrapassara a  trintena de anos), outras mais longas, como a quarta, de 1821 a 1891, em que chegou aos setenta. (Nessa altura, chamavam-lhe Joel de Castro mas também William Smith, Son.)

Sete vidas, mas todas elas imprevisíveis. Uma ideia aterradora ?  Penosa, sem dúvida, mas ao mesmo tempo excitante. Sabia-se do passado mas o futuro era uma verdadeira "black box" ou "caixa preta". Um ser humano podia passar de senhor a servo,  de rico a pobre, de bonito a feio, de bom a mau, de herói a vilão, de branco a preto, e vice-versa. Sem nunca se saber porquê... (O Criador nunca quis dar essa elementar explicação às suas criaturas, e muitas estavam longe de serem verdadeiras obras-primas.)

Havia sempre a esperança de se obter uma "melhor condição", de se subir na escala da criação. Mesmo assim , "tinhas que te esforçar por ser melhor", de encarnação em encarnação. Sob pena da alma... se "volatizar".  Havia esse risco. ("Às vezes interrogava-se se valia a pena: por exemplo, ser um bom pobre, um bom escravo, um bom soldado"...).

Era um permanente teatro, com sucessivas recriações, cenários, atores, encenadores, palcos, papéis, guiões. Mas também "brancas e apagões ".  ("De tanto representares, chegavas às vezes a trocar os papéis...")

"A vida era um palco"...  O Xavier não sabia explicar muito bem o processo de purificação. Muito menos a atribuição de papéis. Havia um "deve-e-haver", uma balança para pesar "as boas e as más ações".  Já os antigos egípcios e outros povos tinham essa crença. Mas o que era o bem e o mal ? 

Mas não era isso que o excitava. Estavam-lhe garantidos, em princípio, três ou quatro séculos de transmigrações sucessivas. Estava agora na sexta (renascera em 1945, no final da II Guerra Mundial na Europa). Estava na penúltima vida. Na melhor das hipóteses, na sétima (e última) poderia ainda chegar à alvorada do séc. XXII, seguramente com outro nome que tanto podia ser português, como afro-mandinga ou chinês.

Não estava nada entusiasmado com essa perspetiva, a de chegar ao limiar do séc. XXII.  E, ainda por cima, viver na China. (Não, não era "racista", nem xenófobo, mas também não era "sínico"...)  

E, depois, ainda precisaria de morrer pela sexta vez.  E transmigrar pela sétima. A morte era sempre uma chatice". Nunca se lembra, em todos os aqueles anos, de ter tido uma morte serena, a que no séc. XVIII se chamava uma "boa morte". Reconciliado com Deus e com os homens e com todos os demais seres vivos. 

Nunca ninguém lhe lera o "consentimento informado" do Criador. Nunca morrera em paz. Nem muito menos lúcido. E sempre sozinho. ("Morre-se sempre sozinho, como um cão".) Já morrera de diversas maneiras, todas afinal violentas (por colapso dos órgãos vitais, por causas naturais ou artificiais). Só não morrera de parto, já que nunca fora até então mulher. (Nem gostaria de o ser: não, não era misógino, mas tinha dificuldade em entender as mulheres.)

Agora, aos 70 e muitos anos, estava cansado, confuso, indeciso. Quiçá infeliz. Chegava a pôr a causa a solidez da sua fé. Interrogava-se  como iria morrer desta vez.  Em casa, no hospital, no lar  de idosos, na rua, na autoestrada ?  

De acidente aéreo, não, porque não viajava de avião, a menos que lhe caisse um, em cima do telhado. (E não vivia, de facto, muito longe do aeroporto.) De naufrágio, também não: odiava  o mar, os barcos, e até a maresia... Lembrava-se, ainda hoje, da sua primeira morte em 1721, ao largo das Berlengas. A morte dele, Fernão Ferro, e da sua Lia.  

No campo de batalha, também seria improvável vir a morrer, já não tinha idade para vestir uma farda e empunhar uma espingarda ou uma espada, como na guerra da Patuleia (1846-1847). Ou na Guiné, por onde foi obrigado a passar  um temporada em  1967/69. (Chamavam-lhe,  ironicamente, uma "comissão de serviço".)

O recente tratamento de um  cancro deixara-o de rastos. Passou a cultivar o humor negro.  Tornara-se cáustico, sarcástico. Tinha um cartão de visita em que assinava o nome e por baixo um aviso, a vermelho:  "Radioativo, protésico e parkinsónico"... Percebe-se a reação de repulsa, instintiva, das pessoas quando lhes entregava o cartão...

"Andava preso por arames". O último fora um "pace-maker". E isso "não era mais expiação mas condenação". Cruel. Às vezes parecia querer revoltar-se contra o Criador.   De nada lhe valia. Porque Ele, Criador,  não falava com ele, afinal uma simples criatura. "Não lhe dava troco". Limitava-se a manipular mecanicamente as suas criaturas como se fossem títeres.

Recuou... A ideia em si era blasfema. Húbris. Soberba humana. Penitenciou-se. Pediu perdão. Desceu à terra.  Foi fazer análises clínicas. Os tais "checkups" anuais a que o obrigava a sua seguradora de saúde. Deixou de comer, beber, fumar, fazer sexo. "Tinha saúde,  graças a Deus!", gritava-lhe a médica de família. Ouvia mal e não se adaptava à maldita prótese auditiva que lhe custara os olhos da cara.

 Saúde, doutora ?!

−  Ah, sim, senhor Oliveira. É a competência para saber gerir as suas quatro ou cinco doenças crónicas.

 Quatro ou cinco ?!.. Não sabia que eram tantas... Surdez, diabetes... 

 E por aí fora!... E por aí fora!...

Estava a precisar de um corpo novo. Fizera o testamento vital. Ofereceu o seu corpo à ciência. Era uma boa ação. Tinha horror à ideia de um dia ficar ligado a uma máquina por muito tempo. Como um vegetal.

Tinha uns sacanas de uns amigos que lhe estavam sempre a mandar, por email,  as últimas descobertas da medicina. 

Era hipocondríaco. Tinha medo que se pelava  do cancro do pâncreas. Vários amigos e conhecidos tinham morrido com esse maldito cancro.  Na fase terminal pareciam múmias.

Os médicos procuravam tranquilizá-lo. E, na sua igreja, diziam-lhe os seus irmãos: "Ah!, agora há de chegar a medicina genética que irá substituir a medicina química e ajudar a prevenir muitos dos nossos defeitos de fabrico". 

Ou então:

− Deixa lá, Xavier, vamos rezar para que, para a próxima, tenhas um corpo de atleta!

− Um borracho, ou até uma "barbie", quem sabe?! −  gozavam elas. 

Mas ele não era um otimista por natureza, via a vida como "um mar infestado de corsários e tubarões", uma imagem que o perseguia há séculos.

Já passara por muitas situações-limite, subira os degraus do cadafalso  de que fora salvo "in extremis" por uma intempestiva (mas providencial) tempestade de verão com queda de granizo... Conhecera o navio negreiro... Fora escravo, e depois forro... Sobrevivera ao terramoto de Lisboa... Comandara um bando de guerrilha... Lutara em vão contra uma tuberculose... Estivera num presídio por ser objetor de consciência... Fora cangalheiro... 

Enfim, tinha atravessado épocas  conturbadas, raramente conhecera a paz e a liberdade, muito menos o amor, a riqueza ou o poder... ("Nunca quis ter filhos, e se os teve foi sempre por vontade das mulheres que os geraram", numa época em que ainda não havia planeamento familiar, nem a pílula, nem o aborto terapêutico.)

Apetecia-lhe agora viver os últimos anos ( os últimos cinquenta ou até cem, na melhor das hipóteses) metido entre os  claustros e as paredes de granito da cela de um convento medieval onde pouco ou nada se falasse. Como no útero materno, que era opaco e quente e insonoro. Estava farto do ruído do mundo... ("Mas será que não ficaria louco ?!")

Na presente vida, a sexta, fora batizado e crismado pela Santa Madre Igreja Católica, Apostólica, Romana. Tinha na sua "mother board", num cantinho da sua memória, um "chip" com os dados vitais relativos a toda a sua existência, incluindo o assento dos seus nomes ao longo  das diversas reencarnações: Fernão Ferro, Inácio Medina, William Smith, Joel de Castro ou William Smith Son, Rafael Meneses, Xavier Oliveira...

A alma era sempre a mesma, a sua "alma mater", a sua matriz, o seu protótipo, o que  variava era o corpo. "A alma não tem rugas, nem cicatrizes", dizia o o guru dos metempsicosistas, que, no passado,  tinha sido um dos bravos marinheiros  russos, revoltados do couraçado de Potemkine, em 1905.

Xavier Oliveira sabia, por exemplo,que tinha nascido, da última vez, em 1945,  numa aldeia de Vila Nova de Famalicão, no Minho, em Portugal. Era papa em Roma o Pio XII e cardeal patriarca em Lisboa o Dom Manuel Cerejeira.  A este último conhecera-o pessoalmente. E tratava-o com toda a deferência. Era conterrâneo e amigo de infância do seu avô, António Oliveira.

Foi ele que o crismou numa ida a Famalicão nos anos 50. O avô, colega de escola, tratava o Dom Manuel por "Sua Eminência Reverendíssima" enquanto lhe agarrava a mão e lhe beijava o anel. Lembrava-se do seu avô, embevecido, lhe ter repetido várias vezes as  palavras do seu ilustre amigo, um "verdadeiro príncipe da Igreja":

− Ó Manel, deixa-te disso! Dá cá um abraço!

Não há registo destes factos nem eles são de todo relevantes para a história de vida do Xavier Oliveira. Acabou antes da tropa por afastar-se do catolicismo. E da sua família minhota. 

 Lidava mal com o trilogia "pecado, culpa e confissão". Era monstruoso, para um ser humano (queixava-se  ele ao seu confessor)  ter que assumir e expiar os seus muitos pecados mortais, com um registo de mais de 250 anos. Se calhar, até desde os primórdios, desde os seus primitivos antepassados, o Adão e a Eva, os pais da humanidade!

Foi então que se converteu ao metempsicosismo, que "verdadeiramente não era uma religião". E muito menos "proselitista", como  a dos cristais ou a dos muçulmanos. Não adiantava dar essa garantia ao padre católico e ao pastor evangélico, seus vizinhos, que às vezes encontrava na rua e que à viva força o queriam no seu rebanho. ("Afinal, tinham inveja dele e das suas sete vidas.")

Continuava a acreditar em Deus, Criador do universo e de todos os seres vivos e das coisas inertes. Deus,  Criador e Juiz Supremo.

Azar ou não, tinha nascido em 1690, filho bastardo, ao que saberá mais tarde, de uma filha, também ela bastarda,  de um dos "40 conjurados" de 1640. "Neto de bastardo és, filho de bastardo serás", dizia o povo naquele tempo, sarcástico e cruel, nas costas, mas sempre  temente e reverente, na frente, em relação a Deus e aos poderosos.

Esta foi, pelo menos, a história que lhe contaria mais tarde o seu padrinho de batismo, que exercia o mister de barbeiro, na Mouraria, e de barbeiro-sangrador  no Hospital Real de Todos os Santos.

O avô materno de Fernão Ferro (era assim que ele se chamava na primeira encarnação) , segundo se dizia à boca pequena, terá sido um fidalgo da corte, próximo do Dom João IV e da casa de Bragança. ("Quiçá até com laços de sangue com a família real".)

Hoje sabia-se, pelo que escreviam os historiadores da Academia,  que afinal não eram 40 mas 70  os valentes portugueses que puseram o Duque de Bragança  no trono, depois de correrem com os Filipes. 

Mas para o caso também não  interessava nada. Que importava ao Fernão Ferro ter "sangue azul" (ou até "régio") se nem sequer sabia o nome dos seus avós, do pai, da mãe, dos tios, dos primos ?!... (E nesse tempo ainda não se faziam testes de paternidade.)

Ferro não era apelido nobre, mas plebeu. E isso fazia toda a diferença, ser "filho de algo", Ora ele era filho de ninguém...  Nem no "sinal dos expostos" havia qualquer pista  sobre a sua filiação.  Apenas um pedaço de um tecido de seda da China, que só os ricos podiam comprar naquela época. A mãe, biológica, seria uma representante da nova nobreza bragantina ou, talvez antes, filha de algum burguês enriquecido pelo comércio atlântico do açúcar ou dos escravos.

Não fora deixado na roda dos expostos da Misericórdia ou de um dos muitos conventos da cidade, como era habitual, mas numa cestinha, ao ar livre, discretamente deixada na monumental escadaria que dava acesso à fachada principal, manuelina, do Hospital  Real de Todos os Santos. Um sítio (onde hoje é o Rossio) por onde já então  circulava  muito povo.

Não admira, por isso, que nos primeiros tempos tenha sido criado no Hospital, na "Casa dos Enjeitados". Na capela foi logo batizado pelo capelão. ( "Não fora morrer de repente o anjnho".)

O padrinho de ocasião foi o barbeiro-sangrador que a essa hora e dia estava de serviço. Acabou por se afeiçoar à pobre criança a quem foi dado, por caridade,  o seu apelido, Ferro.  Fernão Ferro foi, pois, o seu nome cristão.

Mas a afeição pelo miúdo ( "um rapaz macho, perfeitinho, ruivo e de olho esverdeado", o que também não era habitual na Lisboa desse tempo) não seria inteiramente desinteressada. 

Recolhida a criança na "Casa dos Enjeitados" e na sequência do seu batismo, o barbeiro recebeu, uns dias depois, a visita de um criado, que ele conhecia de vista, de uma família rica da vizinhança. 

Veio-lhe fazer um "trato sigiloso": recebia, em espécie e em géneros, uma "certa maquia anual"  para cuidar e educar, na sua casa, o "menino"... No Hospital,  era certo e sabido, era maior o risco de adoecer e morrer. O Hospital era um "locus infectus"...

Não tinha, o Fernão Ferro, aos vinte anos, grandes memórias da sua primeira infância. Terá tido uma ama de leite,de fartos peitos, possivelmente negra, fornecida pela Misericórdia de Lisboa, que administrava o Hospital, desde os anos 1560. Fora isso, viveu, desde cedo, na casa do seu padrinho de batismo e pai adotivo. Mas gostava de ir brincar no logradouro do Hospital, com os filhos da criadagem.

A família do  barbeiro Ferrão  tinha uma casa térrea, modesta mas relativamente ampla, com quintal, horta, laranjeiras e limoeiros,  já fora da cerca fernandina, para os lados da Graça.

Talvez o barbeiro-sangrador fosse de origem mourisca ou judia sefardita. Já o pai e o avô  tinham sido figuras populares na Mouraria,  herdando o mesmo ofício e sendo pagos pelo Hospital pelas "sangrias". Também iam a casa de gente de bem, a pedido do físico (médico) ou  do cirurgião. 

Em casa, tinha o Fernão uma escrava, negra,  filha e neta de escravos, que, além das lides domésticas, cuidava do "Enjeitado". Esse labéu ficou-lhe para o resto da vida. Constava do assento de batismo. Nunca conseguiria fazer a sua "árvore genealógica" por causa da sua condição de "exposto", filho de pai e mãe incógnitos.

O Fernão Ferro teve sorte, mesmo assim, em chegar aos trinta.

Como ele, havia centenas de crianças em Lisboa, a maior das quais não não conseguia franquear  a gigantesca barreira dos cinco anos. Era altíssima a mortalidade infantil (neonatal e abaixo dos 5 anos de idade).

Mas um dia o Ferrão partiu na carreira da Índia como cirurgião. Era o seu estágio final, depois de um ano de teoria e prática na escola do Hospital. Já não era novo para semelhante aventura... Podia demorar dois anos a regressar a casa... ("Vá-se lá saber as razões por que um homem deixa o seu doce lar para ir trabalhar para tão longe!"...)

Por volta de 1710, com 20 anos, o Fernão Ferro, depois de ter feito o Colégio de Santo Antão, que era dos jesuítas, acabou por ir tirar, na Universidade de Coimbra, o curso de medicina. O antigo barbeiro-sangrador, e seu padrinho, agora cirurgião, se não rico, pelo menos remediado, mandava-lhe dinheiro da Índia através da Misericórdia de Lisboa que funcionava, nessa época, como  uma espécie de agência bancária.

O Fernão Ferro, se tivesse feito cânones ou leis, teria tido por certo  outras perspetivas de futuro: o funcionalismo régio, a diplomacia, o alto clero... Mas faltou-lhe alguém que o tivesse aconselhado melhor e orientado os seus passos na vida. O padrinho estava longe, trabalhava agora no Hospital de Goa. Já não voltaria, de resto,  a ver mais o afilhado nem a sua  família de sangue. Morreria, aos quarenta anos, de "morbo gálico", ou seja, de sífilis. Era o que constava na nota necrológica que  chegara ao Fernão Ferro com a sua última mesada.

A sua primeira vida também irá ser breve. Fernão Ferro morrerá aos trinta anos, em 1721, já médico (físico) formado por Coimbra, fazendo jus ao provérbio popular que dizia: "aos trinta anos,  quem não é louco é médico".

Teve uma "morte inglória" (como se todas as mortes não fossem, afinal, "inglórias"!) quando  vinha de barco para Lisboa, e foi apanhado por uma tempestade ao largo das Berlengas. 

Trazia com ele uma negra da Senegâmbia, "linda de morrer, da côr de âmbar", que lhe custara uma pequena fortuna.  Era a amante de um cónego da Sé ("que já estava com os pés para a cova")... O bispo obrigou-o a desembaraçar-se da escrava, por causa do "público e notório escândalo de mancebia". 

Para o Fernão Ferro, a Lia "valia ouro", na cama, na cozinha, nas lides domésticas, nas confidências (... e no amor, por que não ?, não amaria ninguém mais na vida como aquela negra dengosa).  O cónego, ao batizá-la,  tinha-lhe posto um nome bíblico, Lia.

Na segunda vida, entre 1721 e 1782, ainda foi negro e escravo de um mercador cristão-novo, de apelido  Medina, em Cabo Verde, que em Lisboa tivera problemas com o Tribunal do Santo Ofício. (Talvez por delação, o que era habitual, de um vizinho, cristão-velho,  a quem emprestara dinheiros a juros.)

Nunca chegará a saber, ao certo, as razões por que o seu amo lhe deu a  carta de alforria. Terá escapado assim ao seu cruel destino que era, seguramente, no Novo Mundo, um engenho de açúcar ou uma mina de ouro no Brasil, quando o Medina o arrematou num leilão, a um "negreiro" de passagem pela ilha de Santiago. (Dizia-se que o navio levava excesso de carga, correndo o risco de naufragar em caso de tempestade tropical.  Em Cabo Verde o esclavagista aligeirou a carga.)

Cristão-novo,  amigo dos jesuitas,  o Medina acabou por se estabelecer no Norte de África, em Tânger onde prosperou  como importador de lanifícios ingleses e de tapetes orientais (nomeadamente otomanos e persas).

O agora Inácio, de seu nome (talvez em homenagem ao outro, Loyola), acabou por morrer de varíola aos 60 anos, no ano  em que  viria também a cair em desgraça o marquês de Pombal. (Ironia: a escassos anos do médico rural inglês Edward Jenner ter descoberto o princípio da imunização, neste caso, contra a varíola, a doença que mais vítimas terá feito em toda a história da humanidade.)

Trinta anos antes trabalhava num barco de cabotagem, ancorado no mar da Palha, no estuário do Tejo, em Lisboa.  Às 9 e tal  da manhã de sábado, do dia 1 de novembro de 1755, foi engolido por uma vaga enorme. Valeu-lhe, literalmente,  uma providencial "tábua de salvação".

 Exausto,  despejado pela violência do tsunami,  acabou por ir dar à praia da Trafaria. Foram dias pavorosos que lhe deram a exata dimensão da precariedade da vida terrena.  

Da margem esquerda do rio, submergido em destroços de toda a ordem (cadáveres, mastros e velame de navios, troncos de árvore, etc.), viu Lisboa arrasada e a arder, durante dias e dias.  Não sobrara nada: o opulento paço real, a patriarcal, a casa das Índias, os conventos,  as igrejas,  as casas dos nobres e dos ricos comerciantes, nada, a quem um náufrago, como ele, pudesse pedir um pão por caridade. 

Passou dias e dias a deambular pelas praias à cata de comida e de trapos com que se pudesse cobrir. Sobreviveu. E foi face ao atroz egoísmo  que atacou os sobreviventes daquele cataclismo, que o Inácio Medina  decidiu inscrever-se numa leva de soldados da fortuna para ir combater na guerra dos Sete Anos (1756-1763). Ao fim de uma marcha forçada até Montemor o Novo, foi riscado da lista de pré. Afinal, aos trinta e quatro anos já era velho.

Há um hiato na sua "fita do tempo". Não sabe, por exemplo, como chegou ao Porto, ao serviço de um  mercador de vinhos, inglês. Por pouco escapou ao cadafalso em fevereiro de 1756. Foi um dos milhares de amotinados contra a Companhia Geral de Agricultura do Alto Douro. Também andou  aos gritos, "Viva o Rei, Viva o Povo, Morra a Companhia, Morra!"

Não  sabe porquê, talvez pelo ambiente de contestação à política pombalina que se vivia nas tabernas do Porto e que ele frequentava, na Ribeira, e também por influência da colónia inglesa com quem ele convivia.

Como falava  razoavelmente  inglês, não foi difícil passar por súbdito britânico, apesar da cor da sua pele, com o falso nome de William Smith. Ficou grato ao seu amo  inglês, para o resto da vida: foi ele que o resgatou das masmorras pombalinas...

Não se estranha, por isso, cinquenta anos depois, ver um tal William Smith, Son,  como intérprete no seio do comando do estado-maior das tropas luso-britânicas aquando da batalha do Vimeiro, em 1807.

Ainda trabalhou na construção das Linhas de Torres e assistiu à retirada das últimas  tropas napoleónicas, em novembro de 1810. Acabou por se sentir  mais britânico do que português e, por volta de 1825, ano da sua morte,  pouco ou nada entendia já do que se estava a passar  no seu país, à beira de um guerra civil. Morreria cego. Talvez providencialmente. ("Deus escrevia direito por linhas tortas".)

Ainda fizera "alguns fretes" aos ingleses como ter de testemunhar  a morte infamante do general Gomes Freire de Andrade no forte Julião da Barra, em 1817.. Suprema humilhação  para um grande militar e patriota, um "mártir da Pátria"!... Por enforcamento!...

"O sabor a sangue quente e o cheiro acre da pólvora" talvez ajudem a explicar por que na sua quarta vida (1825-1891),  ele tenha querido abraçar a carreira das armas e, na revolta da Patuleia (1846-1847), tenha acabado por  comandar um dos bandos  da guerrilha miguelista, sob as ordens  do general escocês MacDonell...  Tão mercenário como ele, afinal. E foi nessa reencarnação que ele mais sujou as mãos "com o  sangue de gente tão portuguesa, tão patriótica e tão boa, afinal, ou até melhor do que ele"...

Não gostava de falar desse tempo... Foi talvez o dinheiro e a "vã glória de mandar" que o terão motivado a seguir a causa dos "legitimistas". Ignorante sobre os acontecimentos passados (a guerra civil de 1828-1834, na verdade uma "guerra duplamente fratricida"), acreditava que desta vez fosse o dele o  partido dos vencedores. 

Nunca chegara a conhecer pessoalmente o  Senhor Rei Dom Miguel, exilado em Viena depois do Tratado de Évora Monte, em 1834, ainda ele era uma criança de nove anos.  Mas no Minho, onde vivia,  falava-se muito de vários sósias  que, explorando a boa-fé do povo, se faziam passar pelo rei, "regressado para resgatar o trono à usurpadora da sobrinha e dos Cabrais"...

Vivia na casa de um abade, com grosso cabedal e farto passal, a quem tratava por sobrinho (as más línguas diziam que era filho). A revolução liberal e sobretudo o triunfo dos "mata-frades" (!) vieram impossibilitar o desejo do tio de ver o Joel de Castro abraçar a carreira eclesiástica. 

Aos vinte e um anos, sem rumo certo na vida, acabou por "andar à traulitada" na revolta da Maria da Fonte, que começou ali mesmo, no concelho vizinho de Póvoa de Lanhoso. Era um bom jogador de pau, bem apessoado, e tinha as costas quentes... Com "gosto por mulheres, jogo e vinho", como o descreveu o seu amigo Camilo, numa das suas novelas... Não admira por isso que passado uns escassos meses se tenha envolvido, por vontade do tio (mas também por paixão sua), na revolta da Patuleia.  

O abade, "corcunda" dos quatro costados (e com um ódio visceral aos "malhados")  confiou o seu querido sobrinho ao general miguelista, que por sua vez lhe entregou o comando de um dos seus bandos de guerrilha. 

Sem o saber esteve ao lado do Zé do Telhado, algumas vezes  (e contra, noutras).  Os setembristas ou "patuleias", da Junta Revolucionária do Porto, reuniam-se sob o estandarte do visconde Sá da Bandeira, na luta contra os cartistas , do partido dos Cabrais. Os "patuleias" fizeram alianças "contra natura" com os miguelistas ou "legitimistas", em Valpaços e outros combates. Mas na retirada para o Porto, através do rio Douro, combateram-se, uns e outros, ferozmente, impiedosamente, em Porto Antigo, já em terras de Cinfães...

Aqui o Joel de Castro adotou o nome de William Smith, Son. Foi ferido, em combate. E aprendeu à sua custa a amarga verdade: que numa guerra civil, não há valores, princípios, bandeiras, família, amigos, camaradas... Nem honra nem glória. Muito menos compaixão. A traição, a lisonja, o oportunismo e o " salve-se quem puder" são moeda corrente... 

Soube mais tarde do destino cruel que foi reservado ao Zé do Telhado, preso na Cadeia da Relação do Porto e desterrado para Angola. Ouvira falar dele, muitas vezes, e dos seus feitos em combate (e depois como chefe de salteadores).  Mas nunca o chegaria a conhecer pessoalmente, aliás com muita pena sua... 

Felizmente  Joel de Castro soube arrepiar caminho a tempo e levar uma vida honesta até ao fim dos seus dias. Morreu sem honra nem glória. Um ano  depois do Ultimato Inglês.

Do Rafael Meneses, de origem goesa (1891-1945),  também não há muito que contar.  Católico, monárquico, alegadamente descendente de vice-.reis da Índia,  apoiou a Ditadura Militar e depois o Estado Novo. Fez carreira na administração colonial em Moçambique. Morreu de tuberculose, em Lisboa,  no final da licença graciosa a que tinha direito. Já de nada lhe valeria a recente descoberta da penicilina, 

Mais de cento e tal anos depois do Ultimato Inglês, não aceitaram, em 1965,  o Xavier Oliveira como "objetor de consciência". Na cerimónia de juramento de bandeira, na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, recusou-se a levantar o braço e a abrir a boca, em plena formatura. Ficou "petrificado" a ouvir os outros soldados-cadetes a "jurar defender a Pátria até à última gota do seu sangue".

O seu comportamento, insólito, desalinhado, de lesa-pátria, gerou logo algum sururu entre a assistência mais próxima,  constituída por familiares dos recrutas e demais povo anónimo.  Alguns, mais exaltados, acabaram por chamar a atenção do oficial de dia que foi logo a correr para sanar o incidente. Com firmeza e descrição,  deu-lhe ordem de prisão,  levando-o rapidamente para fora da formatura. 

Foi tratado, de maneira humilhante, como "testemunha de Jeová". Passou pelo presídio militar para cumprir  a pena de prisão a que fora condenado pelo Tribunal Militar, até ser amnistiado  aquando da visita do papa Paulo VI a Fátima, em 13 de maio de 1967. 

Riram-se dele, os juízes militares, quando lhes disse que era metempsicosista, não tendo nada a ver com as testemunhas de Jeová.

– Metempsi... quê ?

– ...psicosistametempsicosista, aquele que acredita na transmigração das almas  – esclareceu o Xavier.

Não tiveram, suas excelências,  a mínima curiosidade em saber algo mais sobre a a crença do Xavier... Havia mais sentenças a lavrar nesse dia, pelo que,  sem mais delongas,  passaram ao caso seguinte, a de um tipo, desertor, que fora apanhado na fronteira de Vilar Formoso quando tentava fugir, "a salto", para fora do país...

Xavier Oliveira foi amnistiado parcialmente dos seus crimes militares, mas não se livrou da tropa. Acabou por aceitar repetir o juramento de bandeira e ir para o ultramar, não como alferes miliciano, mas como simples soldado básico. Nãoi era o primeiro nem seria o último.

Na Guiné, um capelão mais "porreiro", acabou por aproveitá-lo como "sacristão", mesmo sabendo que ele, embora batizado, não era católico praticante. Calou-se. Aceitou a canga que lhe puseram em cima, como de outras vezes. Só queria que chegasse o fim daquele pesadelo, por volta de meados de 1969 (pelas suas contas). 

De resto, ninguém mais o queria para nada, nem para descascar batatas ou ir à lenha.  "Até parecia que tinha lepra". Toda a gente o rejeitava logo que ele abria a boca para dizer que estava na sexta reencarnação e tinha nascido em 1690. Alguns persignavam-se, julgando estar em frente de um fantasma. Outros chegaram a querer mandá-lo para a psiquiatria. "O gajo é doido varrido!"...

Àparte  alguns ataques e flagelações  a que esteve sujeito o seu aquartelamento no sul da Guiné, nunca pegou na G3 que lhe estava distribuída. Fazia gala em dizer que não sabia usá-la nem muito menos desmontá-la e montá-la. Devolveu-a ao quarteleiro. 

Quando o inimigo atacava, ele atirava-se para as valas e esperava que a tempestade (em geral, breve) passasse. Infelizmente houve quem tombasse a seu lado. E,  enquanto não chegava o cangalheiro de  Bissau para soldar o caixão de chumbo, era preciso limpar,  preparar e vestir condignamente o cadáver. 

Foi-lhe atribuída mais essa tarefa. A princípio custou-lhe muito. Chegou a vomitar ao ver tripas de fora e membros decepados. Mas depois tornou-se banal o que antes era macabro. E até chamava "presuntos" aos cadáveres dos seus pobres camaradas.

Não havia eletricidade, muito menos câmaras frigoríficas. A casa mortuária era a acanhada capela do quartel. Os corpos entravam rapidamente em putrefacção. E o cheiro, nauseabundo, tornava o ar irrespirável. Quando o médico do batalhão estava na sede do batalhão, usava uma mistura de formol e fenol para preservar os cadáveres. O sacana do capelão furtava-se a esta tarefa que não cabia no seu múnus espiritual. Limitava-se a dizer as suas rezas, aspergir o corpo com água benta e fugir o mais rápido possível da  capela.

No fim, o Xavier até acabou, com justiça , por  ter um  louvor,  dado  pelo seu comandante de batalhão, um bom homem.

A sua sétima e última reencarnação tornou-se, entretanto, um incógnita angustiante. Mas  foi uma cigana, quem lhe leu a sina, pegando-lhe na mão direita. 

Tinha ele vinte anos, em 2044. E por ela soube alguns dos eventos mais dramáticos do seu hipotético futuro:

 (i) não chegaria ao séc. XXII (o que o deixou mais aliviado); 

(ii) a linha da vida não era muito legível no que respeitava  a futuras complicações de saúde; 

(iii) tinha uma linha do coração curta, com tendências monogâmicas, mas iria ter um grande amor (o que o deixou intrigado); 

(iv) a linha da cabeça era bem definida, mostrando determinação e lucidez (o que ele interpretou como um bom augúrio); 

e por fim, (v) a linha do destino também não era bem percetível... 

Desistiu de saber mais, quando a cigana pronunciou o topónimo "Cansalá"...Soou uma campainha na sua cabeça... Tinha lido em tempos um conto sobre o fim do império do Gabu e o suicídio coletivo dos seus defensores mandingas ante o cerco, em 1867, do poderoso exército  de Alfa Molo Balde, fula do Futa Djalon.

Cansalá era, de certo modo, a "pass-word", para uma terrível premonição sobre  o futuro da humanidade, que,  tal como ele, trazia ao peito, uma "bomba-relógio" em contagem decrescente...  

O seu atávico, secular, pessimismo veio ao de cima... Teve uma terrível crise existencial... E de fé. Pôs tudo em causa, os seus trezentos e muitos anos de vidas, afinal, todas elas absurdas... 

E numa bela noite de verão, de 2044,  foi até ao alto da praia de Paimogo (onde ele desembarcara, de um vaso de guerra,  com um pequeno grupo de ingleses, em agosto de 1807), perscrutou o vasto mar do Cerco, disse adeus às Berlengas, saudou o farol do cabo Carvoeiro e as traineiras que andavam à pesca da sardinha,  grafitou com "spray" a palavra "Cansalá" nas paredes do forte setecentista de Paimogo,  ligou os faróis do automóvel,  pôs um cêdê com a nona sinfonia de Beethoven, reclinou-se no assento do condutor, fez uma incisão , com um xis-ato,  na pele da zona peitoral, arrancou o "pace-maker",  e deixou-se entrar por aquela noite negra e eterna, que nunca mais teria madrugada... 

Foi a sua singela despedida da Terra da Alegria, como diria o poeta Ruy Belo se fosse vivo, e se ainda passasse o verão, como era seu costume, ali na praia, ao lado, da Consolação...

© Luís Graça (2024). Todos os direitos reservados.

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Nota do editor:

Último poste da série > 18 de junho de  2024 > Guiné 61/74 - P25653: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (30): Caminheiros

sábado, 13 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25380: Os nossos seres, saberes e lazeres (623): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (149): No Museu Militar de Lisboa, o mais antigo da cidade (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Janeiro de 2024:

Queridos amigos,
É de facto o mais antigo museu de Lisboa, e num local cheio de história, por aqui houve arsenais, fundições, estaleiros, até se chegar ao Arsenal Real do Exército, e depois foi a fase de aformosear o interior do edifício, há para ali salas deslumbrantes, combinam a azulejaria e artilharia, a pintura e a escultura. Não deixa de intrigar como houve dinheiro a rodos para tornar todas aquelas salas deslumbrantes e dinheiro para pagar a Sousa Lopes, Columbano, Rafael e Gustavo Bordalo Pinheiro, Malhoa, Carlos Reis, Veloso Salgado, a coleção de peças de artilharia não podem deixar ninguém indiferente, tal como os 26 painéis de azulejos nos esplendoroso Pátio dos Canhões. E ao consultar a publicação Roteiro dos Museus Militares descobri que há um núcleo museológico destinado às Ex-Oficinas Gerais de Fardamento e Equipamento, estou absolutamente seguro que lá irei encontrar a indumentária que usámos entre a cidade e a floresta equatorial.

Um abraço do
Mário


Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (77): No Museu Militar de Lisboa, o mais antigo da cidade - 1

Mário Beja Santos

Vezes que não sei contar que entrei por esta majestosa fachada do Museu Militar de Lisboa, encimada pela escultura de Teixeira Lopes, À Pátria, entrei pelo Pátio dos Canhões, virei à direita, para frequentar o Arquivo Histórico-Militar, estávamos no ano de 2011 e eu ultimava o livro "A Viagem do Tangomau", eram pesquisas sobre unidades militares que tinham passado pelo Leste, antes de 1968, e depois. E não havia um assomo de curiosidade para dar uma volta ao edifício e entrar no museu. E um dia adquiri uma publicação intitulada Roteiro dos Museus Militares, edição By The Book, 2019, ardido pela curiosidade de ter uma cartografia dos ditos museus militares, que os há em Bragança, Porto, Elvas, Alverca e Ovar, Lisboa, Buçaco, não faltam os da Madeira e dos Açores e até a fragata de D. Fernando II e Glória. Creio que estes são os museus que estão na órbita do Ministério da Defesa Nacional, temos também os centros interpretativos, como os do Vimeiro e de Aljubarrota, mas não fazem parte deste roteiro. Fiquei a salivar sabendo que há um núcleo museológico das Ex-Oficinas Gerais de Fardamento e Equipamento, sito no Campo de Santa Clara, espero oportunidade para lhe bater à porta.

Este local do Museu Militar de Lisboa tem mesmo história, aqui assentou o antigo Real Arsenal do Exército, local onde D. Manuel I, cerca de 1488, mandara construir as tercenas (arsenais ou estaleiros), das Portas da Cruz, indo por aí fora, e depois de fábrica de pólvora, oficinas de fundição, em 1760 concluiu-se por ordem do Marquês de Pombal aqui o Real Arsenal do Exército. Os interiores foram enriquecidos com talha dourada, pinturas e murais e estatuária de artistas portugueses. No reinado de D. Maria II, o edifício passou a dominar-se Museu de Artilharia, em 1926 mudou de nome para Museu Militar e em 2006 para Museu Militar de Lisboa.
Neste Pátio dos Canhões há aqui um vislumbre de grandeza, como se pode ler no desdobrável oferecido ao visitante, “A coleção de peças de artilharia em bronze é considerada uma das mais completas a nível mundial, e cujas peças são preciosos documentos históricos, tanto pelas suas inscrições e símbolos heráldicos, como pelas suas ornamentações bem ao estilo das épocas das respetivas fundições. A azulejaria é constituída por 26 painéis de azulejos, dos séculos XVIII, XIX e princípios do séc. XX, que representam os factos mais notáveis da história nacional, no período compreendido em 1139 e 1918.”

A fachada principal, obra de Teixeira Lopes
Pátio dos Canhões, ao fundo era o Arquivo Histórico-Militar e lá em cima vê-se o ponto alto do zimbório do Panteão Nacional, perto do largo de Santa Clara
Pátio dos Canhões, uma mostra do potencial em bronze e uma bela azulejaria de relance
É o mais antigo museu da cidade de Lisboa, o seu valioso património museológico impressiona. O que nos é dado a observar resulta fundamentalmente dos trabalhos desenvolvidos em finais do séc. XIX e inícios do séc. XX em que o então diretor, general José Eduardo Castelbranco, fez decorar novas salas com trabalhos dos nossos melhores artistas da época. E daí este museu arrogar-se a uma vasta compilação de quadros dos nomes mais sonantes da pintura portuguesa do séc. XIX e inícios do séc. XX, caso de Sousa Lopes, Columbano, Malhoa, Carlos Reis ou Veloso Salgado. E há também as peças de escultura executadas por Delfim Maya, Rafael Bordalo Pinheiro e José Núncio.
Na parte mais antiga do museu há equipamentos como esta balança ou carro usado para o transporte das colunas do Arco da Rua Augusta, de dimensão gigantesca, como se pode ver
Berlinda do séc. XVIII, reinado de D. José, restaurada pela Escola Profissional de Recuperação do Património de Sintra
Há muito para ver neste Museu Militar: uniformes, barretinas, capacetes, a evolução das armas, inúmeros objetos que aludem à participação de Portugal em conflitos bélicos. Da coleção de artilharia de bronze já falámos, há depois a profusão decorativa dos tetos, como aqui se exemplifica.
A exuberância azulejar, a riqueza do mármore e a ornamentação de uma peça de artilharia, estamos a passar do rés-do-chão para o primeiro andar.
Outro detalhe, cada sala tem a sua singularidade pictórica, os frescos estão muito bem restaurados.
“Rendição nas Trincheiras”. Soldados portugueses na frente de batalha em França, quadro da autoria de Sousa Lopes
Carvalho Araújo em combate com o submarino alemão, um dos mais significativos episódios de heroísmo da nossa participação na Primeira Guerra Mundial

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 6 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25345: Os nossos seres, saberes e lazeres (622): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (148): No Museu Agrícola da Atalaia, uma obra de respeito (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24726 Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (10): I want you, dead or alive!



O célebre Tio Sam, desenho por J.M. Flagg... Cartaz norte-americano, de 1917, inspirado no original britânico, de 1914. Foi usado pelo exército norte-americano para recrutar soldados tanto para a Primeira como para a Segunda Guerra Mundial. Imagem do domínio público. Cortesia de Wikipedia.


À memória:

do Umaru Baldé,, menino de sua mãe,  que morreu de sida e tuberculose, no terminal da morte que dava pelo nome de Hospital do Barro, em Torres Vedras; membro da nossa Tabanca Grande a título póstumo);

do Abibo Jau (o gigante do 1º Gr Comb da CCAÇ 12, fuzilado em Madina Colhido, logo a seguir à independència da Guiné.Bissau);

do Joaquim de Araújo Cunha (1948-1970), que o Abibo Jau trouxe às costas, da antiga estrada Xime-Ponta do Inglês, até Madina Colhido, o primeiro de seis mortos e nove feridos graves da Op Abencerragem Candente, em 26/11/1970, trágica lista onde se incluem os nomes do Ribeiro, do Soares, do Monteiro, do Oliveira, todos da CART 2715, e ainda o nosso guia e picador Seco Camará;

do cap art Victor Manuel Amaro dos Santos (1944- 2014),  primeiro cmdt da CART 2715, que começou a morrer nesse fatídico dia de 26/11/1970;

do Abdulai Jamanca (cmdt da CCAÇ 21, fuzilado também em Madina Colhido que eu conheci em Fá Mandonga, por ocasião da formação da 1ª CCmds Africanos);

do Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015). membro da nossa Tabanca Grande, e o único comando africano, ao que se saiba, que escreveu e publicou em vida as suas memórias;

do Iero Jaló (o 1º morto em combate, da CCAÇ 12, em 8/9/1969);

do Manuel da Costa Soares (sold cond auto, da CCAÇ 12, morto em Nhabijões, em 13/1/1971, por uma mina A/C, sem nunca ter chegado a conhecer a sua filha);

do Luciano Severo de Almeida (furriel mil, da CCAÇ 12,  que "morreu de morte matada", já como paisano, após o regresso da guerra, em data que ninguém sabe precisar);

do José Carlos Suleimane Baldé (c. 1951-2022), que chegou a estar encostado ao poilão de Bambadinca para ser fuzilado. tendo sido salvo 'in extremis' pelos homens grandes de regulado Badora; membro da Tabanca Grande;

do António da Silva Baptista (1950-2016), o "morto-vivo" do Quirafo, membro da nossa Tabanca Grande;

 de todos os demais camaradas  de armas, brancos e pretos, mortos em combate no TO da Guiné, ou feitos prisioneiros, ou abandonados à sua sorte, depois do regresso a casa ou da independência da Guiné-Bissau;

de todos os soldados desconhecidos de todas as guerras;

enfim, dos mortos da minha terra que lutaram pela pátria na batalha do Vimeiro,  em 21 de agosto de 1808.
 

I want you, dead or alive!


F_d_r_m-te, meu irmão! Enganaram-te, meu irmãozinho! Traíram-te, amigo! Deixaram-te para trás, camarada!

Não, não era este país milenário que vinha no cartaz de promoção turística, com montes, vales,  montados, e charnecas, com rios, praias e enseadas, com fama de gente patriótica, clima ameno e aprazivel, riqueza gastronómica, brandos costumes e forte sentido identitário. 

Não, não era esta a terra prometida onde corria o leite e mel... 

“I want you”, disseram-te eles, e tu respondeste sem hesitar: “Pronto!”. 

Meu tonto, disseste "presente!", mesmo sem poderes avaliar todas as consequências presentes e futuras da tua decisão, em termos de custo/benefício.

Decidiste com o coração, não com a razão, deste um passo em frente, abnegado e generoso, mesmo sem saberes onde era o distrito de recrutamento, e sem sequer conheceres o teatro de operações, o estandarte, o fardamento, a ciência e a arte da guerra, o comandante-chefe ou até mesmo a cara do inimigo. Nem sequer o RDM, o regulamento de disciplina militar nas principais línguas do mundo.

Um homem não vai para a guerra sem fixar a cara do inimigo, sem reconhecer a voz do inimigo, pode ser que seja teu pai, mãe, irmão, irmã, vizinho, amigo, ou até mesmo um estrangeiro, um pobre e inofensivo estrangeiro, apanhado à hora errada no sítio errado, num dos setes caminhos de Santiago ou na peregrinação a Meca. 

Camarada, um homem não mata outro homem só porque é estrangeiro, ou é branco, ou é preto, ou tem os olhos em bico. Ou só porque não pensa ou não sente como tu. Ou não come carne de porco como tu. Um homem não puxa o gatilho ou saca da espada, sem perguntar quem vem lá!

Enfim, não se mata um homem, de ânimo leve, gratuitamente, só porque alguém o elegeu como teu inimigo. Malhado ou corcunda, tuga ou turra, rojo ou blanco, cristão ou mouro, comunista ou fascista, bárbaro ou romano.

Não, meu irmãozinho, não eram estes outdoors e muros grafitados, ao longo da picada, não, não era este trilho, que era pressuposto levar-te do cais do inferno do Xime às portas do paraíso em Bagdá..

Sim, porque no final, meu irmão, há sempre alguém a prometer-te o paraíso, o olimpo, o panteão nacional ou a cruz de guerra com palma, um coro de anjos e querubins, ou a prenda nupcial das 72 virgens  para os mártires.... em troca da dádiva suprema da tua vida, do teu corpo, da tua alma ou da tua liberdade (no caso de teres o azar de ser apanhado à unha pelo inimigo que te espreita por detrás do bagabaga).

Todos te querem, todos te queremos. "I want you”, sim, quero-te, mas por inteiro, quanto mais não seja para tirar uma fotografia contigo, beber um copo contigo, não vales nada cortado às postas, decepado, decapitado, dinamitado, ou, pior ainda, perdido, errático, com stress pós-traumático,  sem bússola nem mapa, levado para o campo de prisioneiros do Boé ou fuzilado no poilão de Bambadinca ou de Madina Colhido. Ou para forca de Ariz dos anos sombrios das nossas guerras fratricidas de 1828-1834.

Fuzilado, és um cadáver incómodo, apanhado, és um embaraço diplomático, pior do que tudo isso, doente psiquiátrico, apátrida, refugiado... Deixas de ter valor de troca, muito menos valor de uso, diz o comissário político da base central do Morés, de Kalashnikov em punho. 

Não, não foi este destino que compraste, com o patacão do teu sangue, suor e lágrimas, enganaram-te, os safados, os profetas, os iluminados, os gurus, os estrategas, os generais e os seus ajudantes de campo, os burocratas da secretaria, os recrutadores, a junta médica, os psicotécnicos, os instrutores e até os historiadores que escrevem direito  por linhas tortas.   Ou a corte que fugiu para o Brasil para que o Napoleão não pudesse apanhar a rainha louca e o seu filho primogénito, João.

“Guinea-Bissau, far from the Vietnam”, alguém escreveu no poilão de Brá ou na estrada de Bandim, a caminho do aeroporto, tanto faz, "Tuga, estás a 4 mil quilómetros de casa”. 

Ou então foi imaginação tua, pesadelo teu, deves ter sonhado com essa placa toponímica, algures, numa noite de delírio palúdico, deves tê-la visto a sul do deserto do Sará no avião da TAP de regresso a casa. Um pesadelo climatizado. Carregaste no botão errado. Ou então foi um erro de casting. Ou um sonho de menino esse de ires para os rangers, os páraa, oa comandos ou os fuzos.

Alguém sabia lá onde ficava a Guiné, longe do Vietname, alguém se importava lá com o teu prémio da lotaria da história, mesmo que em campanha te tenhas coberto de honra e glória!

Acabaram por te meter num avião “low cost” ou num barco de lata, ferrujento, deram-te um pontapé no cu ou cravaram-te a tampa do caixão de chumbo. "Bye, bye, my friend. Fuck you, man”. Nem sequer te desejaram "Oxalá, inshallah, enxalé, que a terra te seja leve!"

“País de merda!"... Tinha razão o polícia, racista, que te quis barrar a entrada no aeroporto de Saigão (ou era Lisboa ? ou era Amsterdão?). 

Quem disse que os polícias de todo o mundo são estúpidos ? Até o polícia racista entende o sofisma do país de merda: “Pensando bem, soletrando melhor, país de merda, país de merda, só pode ser o meu”.  Por que todos os outros fazem parte da rede turística do paraíso. 

Os gajos estavam fartos de ti, meu irmão, meu camarada, meu amigo. Os gajos pagavam-te, se preciso fosse, para se verem livres de ti, vivo ou morto, devolvido à procedência, usado e abusado.

“I want you, alive or dead”, porque na contabilidade nacional tudo tem de bater certo, diz o cabo RM, readmitido. Todo o que entra, sai, é o deve e o haver do escriturário, encartado, mesmo que seja merda: “Garbage in, garbage out”, se entra merda, sai merda, diz o gajo dos serviços mecanográficos do exército.

Procuraram-te por toda a parte, os fotocines, do Minho ao Algarve, do Cacheu ao Cacine, só te queriam fotogénico, bem comportado, escanhoado, ataviado, de botas engraxadas, se possível herói de capa e espada, medalhado, condecorado, de cruz de guerra ao peito, mesmo que viesses amortalhado, as persianas dos olhos fechadas,  as mãos sobre o peito em derradeira oração, o enorme buraco atrás das costas, feito por um bálizio de 12.7, cozido e recozido pelo cangalheiro da tropa.

E tu ? Sabias lá tu o que era a pátria, onde ficava a tabanca da pátria, onde começava e acabava o chão da pátria ?!...

 Muito menos sabias a geografia da guerra, as nossas geografias emocionais,  Aljubarrota, Alcácer Quibir, Vimeiro, Waterloo, Nambuangongo, lha do Como, Gandembel,  Guidaje, Guileje, Gadamael,  Madina do Boé, Ponta do Inglês, Madina/Belel, Morés, Caboiana, Fiofioli... Ah!, e La Lyz!... Ah, e  o desembarque da Normandia!... Ah!, e Dien-Bien-Phu onde combateste pela Legião Estrangeira!...

Conhecias lá tu, da pátria,  a anatomia e a fisiologia , o intestino grosso e delgado, o que é que a pátria comia, o que é que a pátria defecava, ou até mesmo o que é que a pátria sentia e pensava, se é que a pátria deveras sentia e pensava.

Queriam-te sedado, anestesiado, amnésico, de preferência, sobretudo amnésico, alienado, aculturado, desformatado, paisano, só assim eles te queriam de volta ao teu anódino quotidiano, à tua origem obscura, à tua Sintchã qualquer-coisa, ao teu Montijo, â tua Ventosa do Mar...

Meu irmão, meu pobre camarada, fizeste por eles o trabalho sujo que compete a qualquer bom soldado em qualquer guerra. Mas nem como soldado eles te trataram, nem sequer como mercenário te pagaram, em espécie ou em géneros.

Afinal a guerra acabou, como todas as guerras acabam, até mesmo a guerra dos cem anos teve um fim com o seu rol de mortos, feridos e desaparecidos, a sua nave de loucos, a sua vala comum dos esquecidos...

 “Para quê mexer agora na merda, ó nosso cabo ?!”, interpela o sorja da companhia. “Boa pergunta, meu primeiro, mas há muito já que eu não cheiro, a guerra embotou-me os sentidos”.

Luís Graça
Lourinhã, Vimeiro, 18/7/2015.

Reconstituição histórica da batalha do Vimeiro (21/8/1808).

Revisto em 1/9/2023, 84 anos depois do início da II Guerra Mundial.
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Nota do editor:

Último poste da série > 6 de setembro de  2023 > Guiné 61/74 - P24626: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (9): Requiem para um paisano

domingo, 17 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22638: Memória dos lugares (427): Coimbra, cemitério da Conchada, onde repousam os restos mortais do alf mil António Maldonado, morto em combate em Porto Gole, em 4/3/1966 (João Crisóstomo)


Foto nº 5 - Coimbra > Cemitério da Conchada > 22 de setembro de 2021 > Jazido da família de Maria Conceição Maia Antunes. leirao nº 15, nºs 9 e 10. Placa que foi posta na frente, na parede exterior do jazigo, e onde se lê: "Alferes António Aníbal Maia de Carvalho Maldonado, morto em combate na Guiné em 4.3.1966".

 
1. Mensagem, com data de 23 de setembro último, enviada pelo João Crisóstomo, o nosso camarada luso-americano que está de visita à sua Pátria, tendo logo nos primeiros dias ido a Coimbra, a casa de uns amigos, com quem está ligado "por mor de Timor"... Aproveitou para ir ao Bussaco e ao cemitério da Conchada, em Coimbra, à procura do túmulo do nosso camarada António Maldonado, morto em combate em Porto Gole, na Guiné, em 4/3/1966, e que era natural de Coimbra.

O Eduardo Jorge Ferreira (1952- 2019) veio-me à memória outra vez quando visitei o Bussaco. Lá encontrei uma evocaçãoda batalha do Vimeiro, de cuja “reencarnação" o nosso saudoso Eduardo era o um dos interprtes mais entusiastas,. Incluo uma foto dessa pedra onde a evocação da batalha aparece. (Foto nº 1).



Foto nº 1 - Mealhada > Buçaco > Antigo Convento de Santa Cruz do Buçaco > Placa alusiva a Arthur Wellesley, 1.º Duque de Wellington que, no contexto da Guerra Peninsular, em 1810, que comandou as forças anglo-portuguesas contra as do general francês André Massena na batalha do Buçaco, e que esteve ali hospedado.

 

Mas isto foi só a "ponta do fio”. Uma vez que ia a Coimbra, pois queria ver o barco de Timor onde, já faz quatro anos, estão dois contentores cheios de coisas para a escola de S. Francisco de Assis que tanta falta fazem nessa escola e aos seus alunos, eu lembrei-me de ir visitar um nosso antigo  camarada, o infeliz Maldonado. Nunca o cheguei a encontrar pessoalmente na Guiné, mas a sua vida e morte cruzaram-se comigo, conforme posts 22131 e 19517 , em que ele é mencionado pelo Jorge Rosales.

Pelo que depreendo,  o Rosales esteve em Porto Gole até 1964. Porto Gole era um dos destacamentos a que pertencia ao (ou estava a cargo do)  Enxalé, embora os comandantes destes destacamentos fossem de outros unidades ou em rendição individual. 

Quando o Rosales saiu de Porto Gole quem o devia ter substituído era o Maldonado. Que por sua vez iria ser substituído pelo Henrique Matos. Mas por razões que desconheço, o Maldonado não veio logo e, como sucedia com Missirá, antes da chegada dos alferes Marchand e depois Beja Santos, nestes casos o Enxalé servia de “tapa-buracos”. Em ambos os casos ( Missirá e Porto Gole) eu desempenhei esse papel de tapa-buracos mais que uma vez. Estive em Porto Gole umas semanas e, quando o Maldonado estava para chega,  eu voltei ao Enxalé, sem nunca o ter encontrado pessoalmente ( ou pelo menos eu não me lembro dessa “rendição”.)

Uma semana ou duas depois do Maldonado chegar, o destacamento de Porto Gole foi alvo dum ataque violento por parte do IN e o infeliz Maldonado foi atingido por uma granada de morteiro 82 que lhe causou morte quase imediata. 

Por razões que desconheço fui instruido para voltar para Porto Gole mais uma vez, onde fiquei até que o Henrique Matos, do Pel Caç Nat 52, chegou, para assumir o comando desse destacamento. Mas …não me posso esquecer que podia ter sido eu no seu lugar, como podia ter sucedido em outras ocasiões em que as vítimas estavam mesmo a meu lado, como no caso do Queba Soncó em 1966 ou logo no início da minha estadia na Guiné em Agosto de 1965 na operação Avante.



Foto nº 2 -  Coimbra > Cemitério da Conchada > 22 de setembro de 2021 > Talhão dos combatentes, naturais de Coimbra


Foto nº 3 - Coimbra > Cemitério da Conchada > 22 de setembro de 2021 > Lápide fúnebre, evccativa da memória dos  antigos combatentes. Liga dos Combatentes, Núcleo de Coimbra, Talhão dos combatentes: 

"Silêncio… Névoa… Campos sepulcrais 
Ali dormem soldados de alma forte.
Deram à Pátria e vida num transporte
Que foi o seu Deus p’ra nunca mais

Eram Homens… Tornaram-se imortais
Souberam dominar a própria morte.
Na guerra todos são irmãos na sorte!
Na sepultura todos são iguais."



Foto nº 4 - Coimbra > Cemitério da Conchada > 22 de setembro de 2021 >
Jazido da família de Maria Conceição Maia Antunes, onde foi inumado o António Maldonado, leirao nº 15, nºs 9 e 10

 
Foram estas considerações que me levaram a procurar o cemitério da Conchada em Coimbra. Depois de longa e repetida exposição do que pretendia, consegui convencer a pessoa que se encontra na administração do cemitério a procurar o nome do nosso Maldonado que foi encontrado depois de longa procura. Encontra-se no “ leirão" 15, número 9 e 10 deste leirão. (Foto nº 4).

Foi um encontro duro e emocionante para mim. Na pessoa dele eu revia e lembrava o Mano, o Abna na Onça ,o Queba Soncó, o Açoriano e tantos outros que acabaram a sua vida nas terras da Guiné e outros que voltaram mas que também da lei da morte já se libertaram: os Zagalos, os Pires, os Rosales, os Eduardos…

Saí do cemitério em busca de umas flores; e foi pensando em todos aqueles nossos camaradas para quem a memória dos nossos falecidos é algo sagrado que deixei este pequeno ramo de flores na porta/entrada do jazigo onde se encontram os restos mortais do Maldonado (Fotos nºs 5 e 6). Naquele momento o Maldonado não era ele só, mas todos aqueles irmãos nossos , mortos em qualquer situação, incluindo os nossos camaradas nativos que foram vítimas de represálias, depois de já termos deixado terras da Guiné; e por eles todos "elevei o meu pensamento”,  independentemente da sua raça, religião e posição ideológica.



Foto nº 5 - Coimbra > Cemitério da Conchada > 22 de setembro de 2021 > Pequeno ramo de flores o melhor que pude arranjar) que deixei em nome de todos nós, conforme se pode ler no improvisado “cartão" (Vd. Foto nº 6)


 Foto nº 6 > Coimbra > Cemitério da Conchada > 22 de setembro de 2021 > Ramo de flores depositado à pporta do jazigo da família do Maldonado: "Ao Maldonad com saudades. Os teus amigos e camaradas da Guiné, 22/9/2021". 

Fotos (e legendas): © João Crisóstomo (2021).. Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Entretanto o Gaspar Sobral e esposa (, meus amigos, ligados à causa de Timor, ele timorense e ela natural do Sabugal) tinham encontrado uma área grande onde descobriram que "todos as sepulturas são de militares; mas todas as sepulturas são iguais…" E logo me dirigi a esse lugar do cemitério. (Foto nº 2).

Verifiquei que todos aquelas sepulturas ( um total de 75 ) são de militares da região de Coimbra que prestaram serviço nas diversas campos de acção fora de Portugal territorial em Angola, India, Moçambique etc, mas a grande maioria era de militares que estiveram na Guiné. Soldados, sargentos e oficiais de todos as patentes... Na base dum pequeno monumento aí erguido está gravado: "na guerra todos são irmãos na sorte; na sepultura todos são iguais." (Foto nº 3).
Voltei , mas o resto do dia foi um contínuo reviver. (*)

João Crisóstomo



Guiné > Bissau > Praça do Império > Novembro de 1965 > O Jorge Rosales mais o Maldonado, junto ao monumento "Ao Esforço da Raça" ...

De seu nome completo, António Aníbal Maia de Carvalho Maldonado, morreu no dia 4/3/1966. Natural da Sé Nova, Coimbra, foi inumado no cemitério da Conchada. Pertenceu à 1ª CCAÇ / BCAÇ 697 (Fá Mandinga, 1964/66). (**)

Foto (e legenda): © Jorge Rosales (2010).. Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 7 de setembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22520: Memória dos lugares (426): Paço, União das Freguesias de São Bartolomeu dos Galegos e Moledo, Lourinhã, inaugura o seu monumento aos antigos combatentes (46 no total estiveram presentes nos vários teatros de operações do séc. XX, da I Grande Guerra à Guerra do Ultramar)

(**) Vd. poste de 22 de fevereiro de 2019 > uiné 61/74 - P19517: In Memoriam (340): Até sempre, 'comandante' Jorge Rosales (1939-2019)