Capa do livro de Anatole France - Os Deuses tém sede. Lisboa: Portugália Editora. s7d. (Contemporânea,38). Tr. do fr [1912]. Capa de João da Câmara Leme.
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Beja Santos (2006). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006
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Texto enviado em 20 de Outubro de 2006. Continuação da publicação das memórias do Mário Beja Santos, como alferes miliciano, comandante do
Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70).
Meu caro Luís, obrigado pelas tuas ilustrações. Para a semana, suspendo os trabalhos para fazer consultas aos meus ex-soldados e a partir de quinta estarei em Roma. Tenho lacunas na minha documentação entre Novembro e Dezembro. 1969 já não trará dificuldades, pois passarei o ano a ferro e fogo, a defender a minha honra, a refazer Missirá, a ir e voltar a Mato de Cão até que finalmente partirei para Bambadinca, como alferes de todo o serviço.
Fizeste bem em convocar o Abel Rodrigues (2). Conservo por ele uma amizade muito especial. Ele era e é reservado, é um daqueles transmontanos incapaz de passar para a face o que lhe vai na alma. Vivemos na mesma camarata com o nosso homem de Matosinhos. Se houver espaço para algumas reminiscências desses tempos, e sem prejuízo do que me competirá escrever ao longo de 70, agradeço que me informes. Vou mandar pelo correio
Os Deuses têm Sede, de Anatole France, edição da época. Abraços do Mário.
Há o ir e o foguear, há o voltar e o cuidar
por Beja Santos
O mês de Outubro de 1968, tal como eu guardo nas minhas memórias, goza de versatilidade e ficou composto de múltiplas mudanças. Por exemplo, naquela noite em que o tempo estava borrascoso, o céu encoberto e pouco convidativo para vigiar os postos de sentinela entre a 1 e as 3 da manhã. Mas eu lá fui, conversei com Saco Embaló, Cibo Indjai, Mamadu Djau, o enfermeiro Adão e, quando cheguei ao posto de vigia sito junto dos depósitos dos combustíveis (separados por 20 metros, não viesse por aí uma granada incendiária produzindo fogueira gigantesca e perda absoluta de gasóleo e petróleo) , encontrei Sadjo Baldé num bom dormitar. Abordei-o falando de trivialidades, o olhar estava fixo e a postura indicava um sono bem ferrado.
Estamos a falar do mesmo Sadjo que vai casar dentro de dias no Cossé e ficar desfeito em 19 de Março de 69 (3). Grito-lhe colérico e Sadjo empina-se do banco de madeira como se tivesse havido uma descarga de 1000 vóltios. Segue-me até ao abrigo e dou comigo a olhar para um Sadjo irreconhecível pois os seus 50 e tal quilos parece que duplicaram, está inchado por infecções, tem as bochechas e o estômago contaminados, explica-me que o Dr. de Bambadinca lhe deu uma mezinha que o põe permanentemente zonzo. Tira do bolso a mezinha, é o mesmo
Fenergan que me faz vergar, pairar entre o céu e a terra. Ele suplica que não o castigue, mais do que a prisão o que ele teme é não partir para férias. Faço a proposta de tudo ficar entre nós:
-Sadjo, o que fizeste é crime, toda esta gente dorme a confiar na tua vigilância. Até partires, tu vais descansar e tratar a doença. Quando voltares de férias, dirás aos furriéis que farás um mês de vigilância diária. Concordas?
Sadjo que era muito elegante nas suas maneiras, extremamente correcto no trato, procurou abraçar-me as pernas, gesto que ao princípio me deixava paralisado e que tomava como uma pura e dura lembrança colonial (como entrar na minha morança e descalçar-se, beijar-me a mão direita ou levá-lo à sua testa...), abracei-o e a noite prosseguiu sossegada.
Como estamos a falar de versatilidade, chegou uma mensagem a exigir que levasse de manhã o régulo Malã, de
Nhabijão Mandinga, pois tinha morrido o seu filho mais novo. Ao amanhecer, peço a Umaru Baldé que prepare torradas com manteiga e doce e chá de cidreira e que peça ao régulo para vir conversar comigo com urgência. Ele chega ataviado na sua bela sabadora e com chapéu colonial. Sentámo-nos na messe, Umaru servia polidamente chá e torradas.
Recorri à velha habilidade de lhe fazer perguntas sobre as guerras entre Infali e Teixeira Pinto, falámos do Rio Gambiel e das suas palmeiras de Samatra, disse-lhe que precisávamos de ir a Bambadinca, a conversa ia deslizando sem porto à vista, e Malã com os olhos bem cravados em mim e nos ziguezagues desta comunicação sem rei nem roque.
-A que propósito é que me quer levar a Bambadinca agora que tenho de tratar da bolanha de Caranquecunda com a minha família e os Mané?
Sorvi o ar num longo hausto, desci a voz ao tom piano e dei-lhe a notícia do falecimento do seu filho mais novo, tanto quanto me recordo teria dois meses, segundo a mensagem recebida.
-Não tenho nenhum filho pequeno, os meus filhos estão em Missirá.
Eu não sabia o que havia de dizer mais, invoquei que certamente Bambadinca sopesara e avaliara quem trouxera a informação. O régulo continuou a tomar chá, o silêncio adensou-se até que ele se levantou atingido por uma recordação súbita:
-Ah, é verdade, comprei uma mulher há um ano e ela pariu. Pode ser que seja assim. Vamos.
E fomos mesmo, e Malã ficou em Bambadinca para o choro. Eu aproveitei para passar pela messe e trazer os últimos despojos esquecidos, móveis oferecidos pelo velho batalhão. Aproveitei para comunicar aos recém-chegados que tinha direitos de saque especiais, preço do isolamento:
-Ficam a saber que levo jornais desportivos para a minha malta, levo a
Flama e o
Século Ilustrado e depois devolvo.
Nasceu o terror da minha entrada na messe, tudo se escondia quando me sabiam em Bambadinca... fiz sempre o possível para que tal terror não fosse excessivo nem perdulário. Depois dos incêndios de Março [de 1969], quando chegámos praticamente nus a Bambadinca, aceitei o pacto de sairmos vestidos e eu pactuei negociando só levar um jornal de cada vez.
Nesse dia, entre os despojos da tropa [, do BCAÇ 1904,] que partira para Brá, aceitei trazer um papagaio de um capitão que se apaixonar por pássaros tropicais. Em Finete pedi ao Mazaqueu para tratar dele e entreguei-lhe dinheiro para comprar sementes. O papagaio chamava-se Pompílio, foi um ingrato, nunca quis comunicar comigo.
Chegou a altura de vos falar na Operação Meia Onça. Consta dos relatórios que tomaram parte as CART 1746, CART 2339, nós e o Pel Caç Nat 53, um grupo de combate da CCAÇ 2401 e uma Pelotão de Artilharia. Estava em Finete, em 12 de Outubro, quando chegou o Almeida que comandava o Pel Caç Nat 63. Comecei por barafustar:
-Almeida, estou farto de pedir para que quando vocês vêm fazer vigilância a Mato de Cão nos informem do dia e da hora. Pode muito bem acontecer que nos encontremos numa picada qualquer e quero saber quem vai responder pela mortandade deste triste incidente.
O Almeida respondeu descontraído:
- Pá, eu não vou nada para Mato de Cão, eu vou para Missirá e tu vais para o
Burontoni.
Assim era, embora eu nada soubesse. Partimos para Missirá, alojei o pelotão do Almeida depois de lhe apresentar os meios de defesa, preparei 35 homens e nessa tarde apresentei-me em Bambadinca, tendo imediato pedido uma entrevista ao novo Major de operações, de nome Viriato Pires da Silva. Era um oficial extrovertido e com vozeirão:
-Ah, quer saber o que vai fazer ao Burontoni, não é? Não se preocupe que daqui a um bocado vou fazer a apresentação da operação, espere um pouco -. Respondi-lhe:
-Não, meu Major, antes do Burontoni vamos falar das idas a Mato de Cão. Eu e as milícias vamos lá praticamente todos os dias. Faz sentido, eu trabalho no Cuor. Se tenho outra missão fora do Cuor, eu devo saber quem vem, em que dia e a que horas. Entre Finete e Missirá, qualquer encontro é motivo de tiroteio. Em Finete não há rádio, se eu andar a patrulhar, poderá ocorrer uma calamidade. Proponho que ninguém entre no Cuor sem sua autorização e sem me dar conhecimento. Imagine que eu hoje estava acima de Mato de Cão e de repente me encontrava com a tropa do Almeida?
Diga-se em abono da verdade, que nunca mais houve deslocações aleatórias e espontâneas. Foi um bem para todos nós.
Por volta das 6 e meia da tarde, teve lugar a apresentação da operação. Recordo que o Burontoni foi apresentado como um santuário quase inexpugnável, dotado do melhor armamento, bem posicionado dentro de uma floresta, o Baio, entre vários rios. Sei que ia dentro do destacamento A, seis pelotões, parámos em
Amedalai, e em Taibatá partimos a corta-mato acompanhados por dois guias.
Primeira surpresa: os guias informaram que não sabiam entrar na mata à noite, estavam desorientados. Irrompeu entretanto uma chuva torrencial, lá fomos a passo de caracol, de madrugada fez-se um alto para repouso e ao amanhecer continuámos a progressão. Talvez aí pelas 9 horas chegámos perto de um rio, o nosso guia disse que não podíamos passar não só porque o rio era profundo como tínhamos em frente uma ampla bolanha, havia que a flanquear dentro da mata. É precisamente quando estamos a entrar na
mata do Baio que toda a floresta é sacudida de explosões. Parecia que uma aviação invisível lançava tapetes de bombas a 10 Km de distância. Pela rádio procurámos saber o que se passava e pouco depois a notícia chegou, estarrecedora:
Mansambo estava a ser severamente flagelada. Ora toda a companhia de Mansambo estava nesta operação, o aquartelamento ficara entregue a milícias e à população civil. O estado de espírito da tropa era de cortar à faca. Do comando, por via aérea, chegou a ordem de retirar para Taibatá, o que veio a acontecer, e lá fomos a patinar na lama e depois regressámos a Bambadinca.
Ainda hoje me interrogo sobre a forma como se preparou esta ida ao Burontoni, independentemente do triste acaso da flagelação a Mansambo, que marcou a corrente do jogo. Voltámos a Missirá, reacendeu-se o meu entusiasmo pelas obras, pelas aulas, pelas emboscadas nocturnas, eu estava cada vez mais disponível para ouvir as histórias dos Soncó, as suas origens, as suas lutas e alianças, o derrube da vida do regulado após a luta armada.
Episódios empolgantes estão para vir. O saudoso Pimbas [, o tenente-coronel Pimentel Bastos, cmdt do novo batalhão, BCAÇ 2852,] vem visitar dentro de dias o regulado. Vou descrever os preparativos para a pompa e circunstância. O Teixeira com os pés embrulhados em ligaduras vai refazer o plinto destruído à morteirada na curta flagelação de 26 de Setembro. Os metais vão ser brunidos, as fardas vão ser desencardidas, as botas engraxadas, Missirá e Finete serão engalanadas com os nossos parcos recursos.
Mas não menos importante que esta efeméride, lá para os fins de Novembro deu-me para uma odisseia: saímos de Missirá pela
velha estrada que liga Enxalé a Porto Gol, vamos com duas viaturas a resfolegar mas cheias de vida, e aquela estrada que estava fechada desde 1964, juncada de viaturas retorcidas e casas arruinadas, vai ter visitantes deslumbrados. Foi um acto temerário, premiado com galinha frita em
Enxalé. A gente de Madina/Belel [, base do PAIGC,]não gostou, nem sei mesmo se pensaram que a estrada estava a ser revitalizada, e flagelaram Missirá e Finete.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Posições das NT e da guerrilha (1969/71)
Fonte: História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1971
Infografia: ©
Luís Graça. Direitos reservados
Quero igualmente informar que só agora dei conta que ainda não vos falei da minha música, do meu Vivaldi e do meu Mahler. Se queremos ir ao fundo das coisas, aqueles sons musicais que atordoam em Missirá, têm que ser aqui convocados.
Ando cheio de entusiasmo com uma obra prima que estou a reler:
Os Deuses Têm Sede, por Anatole France. Há quem o destaque entre os dez mais belos romances da literatura francesa de todos os tempos. Aborda a trágica grandeza e servidão dos homens que constróem história e por ela são devorados, tal como acontece em todos os países revolucionários.
A acção decorre no período da revolução francesa, no curto espaço que medeia entre o julgamento, o triunfo e depois o assassinato de Marat, a república democrática do Ano II e o 9 de Termidor quando Robespierre é guilhotinado. Emprestei este livro de Anatole France a muitos amigos depois do 25 de Abril, para verem que, para além das nossa originalidades, as revoluções somam e seguem..
O anti-herói deste romance é Evaristo Gamelin, um pintor imbuído pelos ideais revolucionários. Vamos assistir à escalada do terror e acompanhar a lógica fria deste revolucionário que aceita a sua imolação para que a república prossiga livre. Antes da sua execução, à volta do 9 de Termidor ele diz à sua noiva, Elódia:
-Não me censuro em nada. O que fiz, tornaria a fazê-lo por causa da pátria, excomunguei-me, sou amaldiçoado. Pus-me fora da humanidade, não reentrarei nela nunca mais. Mas a tarefa ingente ainda não terminou. Ah, a clemência, o perdão... Os traidores perdoam? Os conspiradores são clementes? Os parricidas crescem em número sem cessar... Imolamo-los, e logo os vemos em maior quantidade. Compreendes agora que deva renunciar ao amor, à alegria, ao encanto da vida, à própria existência.
Que grande tirada para justificar crimes monstruosos com a consciência serena do dever cumprido.
Hoje não vos falo do que ando a poetar, que não tem préstimo mas é sinal do tempo. O que vem aí é o entusiasmo da visita do comandante do batalhão. Ele vai ouvir, bem jantado, e na companhia do David Payne Pereira [, o oficial miliciano médico,] a versão integral da ópera Aída, com um elenco estrondoso, com um volume de som elevadíssimo para se sentir a magnificência da Marcha Triunfal e a despedida dilacerante de Radamés e Aída no fundo da cripta. Não resisto a contar.
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Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 6 de Novembro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1252: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (19): O Soldadinho de Fogo em Missirá
(2) Vd. post de 13 de Outubro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1171: Abel Rodrigues, o primeiro ex-oficial miliciano da CCAÇ 12 a entrar para a nossa tertúlia
(3) Vd. post de 19 de Outubro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1191: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (17): A visita a Missirá do Coronel Martiniano
(...) "Regressamos a Missirá e tenho uma pequena encrenca à minha espera. Ao armar as coisas na minha casa, Sadjo Baldé entrega-me uma folha e afasta-se rapidamente enquanto eu leio o seguinte:
"- Agradecia o obséquio por amor de tudo o que é mais sagrado neste mundo e especialmente sua Excelentíssima esposa. O pedido é o seguinte: como o meu Alferes disse que tenho de ir gozar licença, gostaria que lembrasse aos meus colegas que me devem dinheiro desde o ano passado, e que até agora não pagaram, que eu não posso ir gozar licença sem levar dinheiro para os meus assuntos particulares que tenho que realizar na minha terra. Peço para fazer um desconto de 900 escudos ao soldado Mamadu Camará. Desde já, meu senhor, fico muito grato pela sua costumada atenção para comigo e obrigado" (...).