1. Mensagem de Torcato Mendonça* (ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), com data de 1 de Março de 2011:
Caro Vinhal, Caros Editores
Sempre gostei da Noite.
Há quem a passe de maneiras diversas. Esta que anexo foi assim... passada.
Ia falar de um Bar e lembrei-me logo de outro. São, (será que ainda existem?) em Lisboa. Desisti.
Ainda ontem falei, pelo tele claro, com o Vinhal. Perguntei ao Carlos se ainda estava aborrecido com aquele comentário. Era um convite, um simples convite mais direccionado para camaradas ou camarigos de Lisboa. Lisboa o Centro deste rectângulo cada vez mais inclinado para o Atlântico e sem uma noite tão boa assim... sempre tem algo na macrocefalia de certas mentes... ou egoísmo...
Tudo bem com o convite, voltei a receber hoje e os lisboetas irão delirar. Mais um evento! Eu mandarei um abração ao meu Amigo Mário.
Disse ao Carlos Vinhal: logo te mando um escrito... uma estorieta. Vai esta. É longa. Mais de mil palavras é estopada para ler. Quinhentas a mil... no meio... as virtudes e eteceteras estão sempre no meio.
Olha meu Caro aí vai. É Tua e ou Vossa. Não foi bem condensada. Está aí uma mas ainda necessita... uns cortes para não me baterem... vidas...
E vai um abraço colectivo
(Carlos se for recebida... Agradeço um - recebida OK)... logo falamos da noite...
Abraço do T.
ESTÓRIAS DE MANSAMBO II - 26
Chuva em Noite escura
Passava das nove da noite e veio para o abrigo.
Preparou o resto do material. Vestiu-se e, sem o dólmen, deitou-se em cima da cama.
Ia ouvindo a chuva a cair forte, tabaqueava mais um cigarro e, mais uma vez, tentava memorizar tudo o que lhe tinha sido dito.
Noite boa para mais uma operação. Logo agora que os fulanos deviam andar a querer vingança. Saldavam-se as contas de vez. Era assunto sem fim. Bater forte, forte mesmo era preciso. Nós. Eles pensariam igual? Certamente.
Se saíssem à meia-noite, ao alvorecer deviam estar lá. Com aquele tempo era difícil. Além disso não devia haver “tecto” e tanto apoio aéreo ou evacuações “ká tem”. Pior, bem pior. Para depois se ver e não pensar nisso agora.
Chovia muito, demasiado para se puder progredir com segurança.
Podiam adiar a operação. Não era tão importante assim. Se ainda fosse lá um major ou tenente-coronel… agora arraia miúda. À medida que se alargavam os galões nos ombros menos saídas para o mato. A idade claro, a idade e as comissões uma e depois outra.
Nem sempre isso acontecia. No dia que fez cinquenta e um anos um tenente-coronel, o actual Comandante deles, fez uma operação, com contacto, ao Galoiel. Há sempre excepções à regra. Ali é local de regras rígidas e excepções, pois então.
Agora, sem excepções ou regras, ali estava ele esperando, fumando, sem nada ter a ver com aquilo. Talvez tivesse. Talvez naquele momento sentisse que sim, que fazia parte daquilo, uma peça, reles peça da engrenagem.
Mesmo hoje, já depois de ter terminado a primeira década do Século XXI, pensa, tenta recordar aquele período e não entende como se deixou amarrotar tanto.
Porquê? Porque ouve tanto comentário de inverdade ou de incompreensão sobre o que, pelo menos na Guiné, aconteceu? Fica bem assim falar. Depois é o momento. Parece que há agora um momento de falar, escrever, recordar, dizer que se tem que fazer algo para reparar muito do que se passou e tanto mal causou. Momentos, momentos a irem e virem.
Ele, naquele tempo, aos poucos pensou ser melhor assim. Aceitar. Procurar respeitar quem o comandava e fazer respeitar essas ordens. Com um ou outro ajustamento é certo. Mas será que houve justificação para tudo. Certamente que não, certamente que não. Porquê e para quê? Durante anos e anos, décadas, tentou viver sua vida longe das recordações desse tempo. Quantos anos por lá passou? Quatro ou cinco? Só? Marcaram assim tanto? Talvez outros períodos, outras vivências, de sua vida claro, foram tão ou mais fortes que as daquele tempo. Porque recorda agora esse tempo militar? Claro que o período militar pouco tem a ver com a vida civil. Pouco ou nada. Gente a pensar de forma diferente. Gente com divisas ou galões, vaidades ou fragilidades, necessidades de, para se sentirem mais gente, depreciavam os outros.
Normal e humano. Certo é que a maioria assim não procedia. Preferia fazer-se respeitar como gente. Temos que ver as diferenças entre a Instituição militar e a vida civil que, efectivamente obrigava o militar, profissional claro, a outro tipo de comportamento. Comportamentos direccionados para a guerra, o confronto, a disciplina e a camaradagem. Seria essa instituição democrática? Nesse tempo nenhuma o era. Mas hoje, agora? Respeito pelas outras instituições democráticas, sim. Agora, penso eu, continua com uma maneira própria de estar na sociedade. Normal? Assunto para posterior reflexão. Certo, certo é que de lá, entre outros, trouxe um ensinamento importante – a disciplina.
Podemos comparar com a vida civil, esta vida dita civil onde existe um amontoado de vaidades, de gentes a treparem, não em valor mas em favor. Gentes que, mesmo olhando de esguelha para a vida militar no seu todo ou só para aquele breve período de outrora, não perdem oportunidade de adularem o galão, a estrela, o título académico e, mais ainda, isso sim é um “posto” civil ou militar, o cifrão, a posição e o penacho. Esta evolução, infelizmente, tem desvalorizado, com muitas excepções e não sendo a regra, a meritocracia e valorizado por baixo. Não avancemos em reflexões ou meditações.
Por ser confuso? Nada disso.
Normal. Era assim, é assim e, por muito tempo, pelo absurdo e não pela normalidade, será assim.
É a Vida… diz “Zé Portuga”, português de Norte a Sul… aqui, como em tudo, com excepções e, felizmente digo eu, muitas.
Nivelar por baixo… boa essa… saída do tema inicial. Perca do norte e entrada em desnorte ou não.
Não perdi a recordação de outrora. A recordação daquela noite de chuva forte. A ela voltamos então.
Noite de chuva forte, escura como breu. Lá foram eles ”em bicha de pirilau”, o detrás agarrando a arma do da frente. De quando em vez a queda, o barulho, o palavrão abafado, a chuva forte a escorrer, a arrefecer e a noite negra a demorar o seu fim.
Pára, alto.
Acomodar o material, compor aquele grupo de homens, aliviar e distender os músculos. Limpa e protege bem a bazooka (8.9) na zona do disparo eléctrico.
- Está a andar. Palmada no Lhavo, o guia, e os tropeções a voltarem.
A chuva forte a não abrandar e a noite negra a não querer desmaiar e a ser, assim, mais difícil a progressão para eles.
A marcha a parar novamente, a noite a desmaiar e a claridade, ainda muito ténue a aparecer.
Pára e descansa um pouco. Ajeita o material e descansa. Só um pouco.
-Não se consegue ainda ver a carta, só a bússola. Esperamos um pouco e protege depois para ver isto. Chamem o Lhavo porque devemos estar perto.
Efectivamente estamos perto, muito perto já. Vamos esperar um pouco pela claridade e vamos montar a emboscada e esperar pelo trabalho do outro Destacamento.
- Já se vê melhor. Vamos para aquela mata. São cinco horas. Esperamos já lá o contacto rádio.
Passa o tempo e os rádios nada dão. Esperamos. Escolheram um bom sítio. Daqui temos um bom campo de tiro. Está tudo montado. Nada de descuidos agora que a chuva está a abrandar.
O tempo passa lento, lento e o relógio é constantemente consultado.
De repente, não muito longe, os rebentamentos, tiros, aquele “brua” em espiral, o ruído do tiroteio a envolver a madrugada fria e a aumentar e a diminuir. Armas mais aperradas, mais prontas, olhares mais despertos, músculos mais tensos e ouvidos a destrinçarem os sons:
- São mais nossos, são mais nossos - e a madrugada, como por magia, aquece um pouco mais.
-Cuidado agora, se vierem vêm por além. Só dispara à voz.
O rádio manda aguentar. O tempo passa lento e eles aguentam, aguentam e desesperam com tanta tensão.
Ouve-se o ruído da avioneta PCA e esperam. Ouvem pedirem a vertical aos outros e continuam a esperar.
- Cuidado agora que se eles vêm para aqui podemos ser descobertos.
- São dez horas. O PCA diz que vai sair e já volta.
Que se passa? Felizmente o tempo passa e não se ouve barulho de hélis.
- Bom sinal, bom sinal. Não há feridos.
Aguentamos. O corpo dói, as dormências aparecem aqui e ali.
- Mexe e não faças barulho. Isso passa. Aí está a avioneta a voltar. Demorou. Se ele passar na vertical não digas nada e espera.
-Dizem algo pelo rádio.
- Mandam regressar.
-Que porra é essa? São três horas. Chama o Lhavo.
- Vamos pela picada antiga e depois viramos para a estrada. Ele e dois picadores atrás e a malta logo a seguir.
- Há malta com cãibras.
-Estica e pica. Vamos devagar. Parar é pior.
Andam depois mais rápido com mil olhos e ouvidos atentos a tudo.
A bússola. Eu vejo e já está a virar para a estrada, mais um pouco e paramos.
Está tudo bem.
- Dói-me tudo e não consigo comer.
- Estamos perto e come quando lá chegar… falta pouco. Todo o cuidado agora é pouco.
Pois é, mas pouco a parecer uma eternidade. Finalmente aí estão as luzes do aquartelamento. Finalmente, banho e roupa lavada.
- Arruma o material e podem destroçar.
Está tudo estoirado com o efeito da chuva.
- Há comida quente daqui a uma hora.
- Estão a chamá-lo.
Já? Esperem que estou ainda nu. Deve haver bronca.
Fnd –Fev/11
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Nota de CV:
Vd. poste da série de 23 de Fevereiro de 2011 >
Guiné 63/74 – P7849: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (25): Amuleto