Lisboa > s/d (c. 1964/65) > O A. Marques Lopes, jovem estudante, à civil, antes da tropa. Fotos do álbum da página do Facebook. (Com a devida vénia...)
Fotos: © A. Marques Lopes (2023). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. O nosso querido amigo e camarada A. Marques Lopes despediu-se da Terra da Alegria no passado dia 5 do corrente, aos 80 anos, perfeitamente consciente de que iria fazer a sua derradeira viagem, aquela que, para nós, mortais, não tem regressso. Reler os seus escritos é, para nós, uma forma de fazer o luto pela sua perda e mitigar a saudade...
No RI 1 teve uma surpresa. Encontrou lá o Gonçalves, o amigo do seminário, assim que entrou na porta de armas. Vinha a passar e logo que o viu correu para o Aiveca.
Afastou-se apressado. Aiveca foi fazer a apresentação da praxe ao comandante do RI 1.
– Vai dizer ao capitão Ferreira para chegar aqui – ordenou-lhe.
Bonito, a minha fama já chegou aqui, pensou Aiveca. O coronel continuava.
– Você vai ficar na CCS da unidade, o capitão Ferreira é o comandante. Ele, depois, vai dar-lhe a indicação das suas tarefas.
O capitão compareceu nessa altura.
– Ó Ferreira, está aqui o aspirante Aiveca, tem a especialidade de atirador mas vai ficar na CCS. Integre-o lá e diga-lhe o que é que ele vai fazer – parou um pouco – e , olhe, depois diga a alguém para o levar às instalações dos oficiais. É isto, podem ir.
– Ó Faustino, arranje aí um faxina que vá buscar a mala do nosso aspirante que está na porta d’armas. Que a leve até à porta do meu gabinete e espere lá.
Chegado ao gabinete, o capitão esparramou-se ruidosamente na cadeira fazendo-a gemer.
– Então, nosso aspirante, o que é que sabe fazer?
É mesmo palerma, disse Aiveca para si mesmo. Aqui na tropa e para a tropa o que é que acha que eu faça?
Não sabia o que era isso de CCS, nunca ouvira falar de tal em Mafra. Mas, pronto, nada do que aprendera servia ali. A expressão Ultramar é que o alertou.
– Diga lá – insistiu ele.
A resposta pareceu agradar ao capitão.
– Meu capitão, posso fazer-lhe uma pergunta?
Mirou-o com ar de comiseração, como quem observa alguém ingénuo ou atrasado mental. Sentiu isso e ele percebeu. Falou-lhe com voz calma:
Ao almoço, na messe de oficiais, ficou na mesa dos aspirantes, com o Gonçalves e mais outros dois. Falaram de Mafra, da «aldeia dos macacos», dos instrutores que tinham tido, de coisas agora já triviais para eles. Aiveca acabou por saber que um deles era do seu curso, tinha chegado há uns dias, tinha estado na 1ª companhia do COM, não na dele, e não o conhecia, nunca se tinham encontrado lá.
Página do Facebook do A. Marques Lopes | 19 de janeiro de 2022, 22:00 e livro "Cabra Cega" (2015, pp. 160/165)
(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, itálicos, parênteses retos: LG)
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O A. Marques Lopes, cadete, COM, EPI Mafra, jan/jul 1966 |
1. O nosso querido amigo e camarada A. Marques Lopes despediu-se da Terra da Alegria no passado dia 5 do corrente, aos 80 anos, perfeitamente consciente de que iria fazer a sua derradeira viagem, aquela que, para nós, mortais, não tem regressso. Reler os seus escritos é, para nós, uma forma de fazer o luto pela sua perda e mitigar a saudade...
É também uma forma de o homenagear: o que ele deixou escrito na Net bem como o seu livro "Cabra Cega" (Lisboa, Chiado Editora, 2015, 582 pp.) continuam a falar por ele. Estamos a selecionar algumas das melhoras páginas que ele nos deixou.
O A. Marques Lopes era coronel art, DFA, na situção de reforma, foi alferes miliciano da CART 1690 (Geba, 1967/1968) e da CCAÇ 3 (Barro, 1968), era membro, em 2005, da direção da delegação do norte da Associação 25 de Abril (A25A) e, em termos históricos, o nosso quarto grã-tabanqueiro mais antigo, depois do fundador, Luís Graça, do Sousa de Castro e do Humberto Reis; entrou para a nossa tertúlia em 14/5/2005...
É autor de "Cabra-Cega: do seminário para a guerra colonial" (Lisboa, Chiado Editora, 2015), autobiografia escrita, com recurso ao artifício lietrário do "alter ego": o livro é escrito sob o pseudónimo João Gaspar Carrasqueira, que por sua vez conta a história do seu amigo e confidente António Aiveca...
Sofrendo de uma doença crónica de evolução prolongada, o A. Marques Lopes, apesar de sre um homem lutador e otmista, sabia que a vida se lhe ia escapando... Na sua página do Facebook, foi assumindo cada vez mais de maneira explícita e consciente, que o "António Aiveca" era ele, António Marques Lopes.... Aiveca era uma alcunha, do seu pai, alentejano, que veio para a cidade grande para fugir da miséria dos anos 40, em plena segunda guerra mundial. O A. Marqes Lopes nasceu em Lisboa, na Mouraria, em 1944.
Sofrendo de uma doença crónica de evolução prolongada, o A. Marques Lopes, apesar de sre um homem lutador e otmista, sabia que a vida se lhe ia escapando... Na sua página do Facebook, foi assumindo cada vez mais de maneira explícita e consciente, que o "António Aiveca" era ele, António Marques Lopes.... Aiveca era uma alcunha, do seu pai, alentejano, que veio para a cidade grande para fugir da miséria dos anos 40, em plena segunda guerra mundial. O A. Marqes Lopes nasceu em Lisboa, na Mouraria, em 1944.
Este excerto do seu livro de memórias, é composto por duas postagens na sua página do Facebook (de 7 de abril de 2022 e de 23 de setembro de 2022), escritas já na primeira pessoa do singular. lCorrespondem às páginas 160/165 do seu livro, que reproduzimos, na íntegra, com a devida vénia...
Até sempre António Aiveca, até sempre amigo e camarada A. Marques Lopes, "requiescat in pace"
Depois de Mafra, o RI1, como aspirante miliciano, à espera da mobilização paar o ultramar
No RI 1 teve uma surpresa. Encontrou lá o Gonçalves, o amigo do seminário, assim que entrou na porta de armas. Vinha a passar e logo que o viu correu para o Aiveca.
– É pá! Como é que vieste aqui parar?
– Como tu, Gonçalves, com certeza. Mandaram-me para cá.
– Não é isso, pá. Também saíste dos padres pelos vistos.
– Claro, há mais de dois anos.
– Há já dois anos?! - admirou-se. - Não sabia. É que eu escrevi-te, até te dei a minha morada em Lisboa, mas tu nunca disseste nada.
– Não deu. Quando recebi a tua carta andava grandemente atormentado e não tive cabeça. Depois de sair a minha vida tomou certos rumos, tive de tirar o 7º ano, estive na Universidade, baralhei-me também com algumas coisas. Não me dava para mais nada.
– Ok. A gente há-de falar depois do almoço, se eu puder. Agora tenho aí umas coisas para fazer. Depois conversamos.
– Já sei quem você é. O coronel da EPI falou-me de si.
O coronel carregou num botão que tinha na secretária e entrou logo a seguir uma ordenança.
– Vai dizer ao capitão Ferreira para chegar aqui – ordenou-lhe.
Bonito, a minha fama já chegou aqui, pensou Aiveca. O coronel continuava.
– Você vai ficar na CCS da unidade, o capitão Ferreira é o comandante. Ele, depois, vai dar-lhe a indicação das suas tarefas.
O capitão compareceu nessa altura.
– Ó Ferreira, está aqui o aspirante Aiveca, tem a especialidade de atirador mas vai ficar na CCS. Integre-o lá e diga-lhe o que é que ele vai fazer – parou um pouco – e , olhe, depois diga a alguém para o levar às instalações dos oficiais. É isto, podem ir.
O Ferreira era um tipo gorducho e andava com ar pesadão. Depois da sala contígua ao gabinete do coronel enveredaram pelo corredor que lhe estava em frente. O capitão balançava o corpanzil e ele, magro, ia ainda estilo cadete instruendo, quase que em marcha de desfile. O capitão parou quando se cruzaram com um sargento e virou-se para ele:
– Ó Faustino, arranje aí um faxina que vá buscar a mala do nosso aspirante que está na porta d’armas. Que a leve até à porta do meu gabinete e espere lá.
Chegado ao gabinete, o capitão esparramou-se ruidosamente na cadeira fazendo-a gemer.
– Então, nosso aspirante, o que é que sabe fazer?
Que raio de pergunta, apeteceu-lhe dizer. Mas teve calma.
– Meu capitão, eu sei fazer o que aprendi na EPI.
É mesmo palerma, disse Aiveca para si mesmo. Aqui na tropa e para a tropa o que é que acha que eu faça?
– Isso para aqui não adianta nada, só quando for para o Ultramar… talvez. O que eu quero saber é o que fazia na vida civil.
Não sabia o que era isso de CCS, nunca ouvira falar de tal em Mafra. Mas, pronto, nada do que aprendera servia ali. A expressão Ultramar é que o alertou.
– Diga lá – insistiu ele.
– Desculpe, meu capitão, estava a pensar – não lhe disse em quê –, fui estudante na Faculdade de Letras, foi o que fiz.
Não tinha nada que saber que trabalhara num armazém, senão ainda o ligava à malfadada arrecadação de material, nem que estivera no seminário, se calhar ainda o punha a organizar missas e coisas do género.
A resposta pareceu agradar ao capitão.
– Ainda bem. Ando há algum tempo a pensar numa coisa e você é a pessoa indicada para isso, estou a ver. Fica encarregado de fazer um jornal de parede para a companhia. Venha cá depois do almoço para falarmos sobre os conteúdos desse jornal. Além disso, é claro, vai ser integrado nas escalas de serviço dos oficiais da unidade e da companhia. Prontos, veja se o faxina já está aí fora com a sua bagagem e diga-lhe para ir consigo até aos quartos dos oficiais. Você vai ficar num dos que há com duas camas, veja em qual há uma vazia.
– Meu capitão, posso fazer-lhe uma pergunta?
– Diga.
– O meu capitão falou no Ultramar de uma forma que eu fiquei com a ideia de estar decidido que eu vou para lá. Já está, meu capitão?
Mirou-o com ar de comiseração, como quem observa alguém ingénuo ou atrasado mental. Sentiu isso e ele percebeu. Falou-lhe com voz calma:
– Tem de estar preparado para tal, Aiveca. Todos estão sujeitos, muito mais você que é atirador. Estou a ver que aqueles artistas de Mafra não lhe disseram porque é que veio para aqui, enfiaram-lhe burocraticamente nas mãos a guia de marcha e disseram-lhe toca a andar, sem mais nada. Mas eu vou-lhe dizer. Você e mais três ou quatro que andam aí foram mandados para cá para ficarem à espera de ser mobilizados. Vai ficar aqui uns meses até receber ordens para se apresentar noutra unidade, até pode ser nesta, não sei, para ser integrado numa companhia operacional formada para o Ultramar. É assim. Bem, vá lá ver onde vai ficar.
Agradeceu as explicações e saiu. Não ficou admirado, já sabia o que o esperava, mas, de facto, aqueles tipos de Mafra bem lhe podiam ter logo explicado que o esquema era este.
Ao almoço, na messe de oficiais, ficou na mesa dos aspirantes, com o Gonçalves e mais outros dois. Falaram de Mafra, da «aldeia dos macacos», dos instrutores que tinham tido, de coisas agora já triviais para eles. Aiveca acabou por saber que um deles era do seu curso, tinha chegado há uns dias, tinha estado na 1ª companhia do COM, não na dele, e não o conhecia, nunca se tinham encontrado lá.
– E tu, há quanto tempo estás cá? – perguntou ao Gonçalves.
– Estamos cá há seis meses, eu e este – apontou para o que estava à frente dele.
– Mas, então, vocês devem estar a ser mobilizados, não?
– É claro. Há-de ser já um dia destes Não se esqueceram de nós, com certeza.
– Não pensei que se esperava assim tanto tempo.
– Não me digas que estás com pressa, pá. Está descansado que há-de chegar a tua vez. Não é tarde nem cedo para morrer.
– Deixa-te de agoiros, pá –disse o que estava à frente dele, batendo com os nós dos dedos na mesa. –Este gajo está sempre com estas merdas. É sempre muito animador. (...)
António Marques Lopes
Página do Facebook do A. Marques Lopes | 19 de janeiro de 2022, 22:00 e livro "Cabra Cega" (2015, pp. 160/165)
(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, itálicos, parênteses retos: LG)
Capa do livro "Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial", de João Gaspar Carrasqueira (pseudónimo do nosso camarada A. Marques Lopes)
(Lisboa, Chiado Editora, 2015, 582 pp. ISBN: 978-989-51-3510-3,
Colecção: Bíos, Género: Biografia).
Breve apontamento biográfico do A. Marques Lopes até à partida para o CTIG:
(i) 1944-1951 – Nascido em Lisboa, na Mouraria, acabou por ir viver no Alentejo, até aos 7 anos (Penedo Gordo, arredores de Beja), por razões de saúde da mãe;
(ii) 1951/1955 – Instrução Primária nas Oficinas de S. José, em Lisboa;
(iii) 1955/1964 – Seminário (dos Salesianos);
(iv) 1964/1965 – Trabalha nos Armazéns da AGPL (Administração Geral do Porto de Lisboa) e frequenta a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa;
(v) janeiro 1966/julho 1966 - COM (Curso de Oficiais Milicianos) na EPI (Escola Prática de Infantaria) em Mafra, onde tirou a especialidade de atirador de infantaria;
(vi) julho 1966 / dezembro 1966 – Aspirante no RI1 (Regimento de Infantaria nº 1), na Amadora;
(vii) dezembro 1966 / abril 1967 – Instrutor de um pelotão da CART 1690 (Companhia de Artilharia nº 1690) em Torres Novas e Oeiras, unidade mobilizada para o Ultramar;
(viii) 15abril1967 – Chegada à Guiné como alferes da CART1690.
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Notas do editor:
(*) Último poste da série > 11 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25733: O melhor de... A. Marques Lopes 1944-2024) (3): "A morte da professora de Samba Culo ainda me pesa na consciência"...