terça-feira, 16 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25749: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (4): Depois de Mafra, o RI1, Amadora, como aspirante miliciano, à espera da mobilização para o ultramar



Lisboa > s/d (c. 1964/65) > O A. Marques Lopes, ainda jovem estudante,  algures numa esplanada.


Lisboa > s/d  (c. 1964/65) > O A. Marques Lopes, jovem estudante, à civil, antes da tropa. Fotos do álbum da página do Facebook. (Com a devida vénia...)

Fotos: © A. Marques Lopes (2023). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 

O A. Marques Lopes,
cadete, COM, EPI Mafra, jan/jul 1966 

1.  O nosso querido amigo e camarada A. Marques Lopes despediu-se da Terra da Alegria no passado dia 5 do corrente, aos 80 anos, perfeitamente consciente de que iria fazer a sua derradeira viagem, aquela que, para nós, mortais, não tem regressso. Reler os seus escritos é, para nós, uma forma de fazer o luto pela sua perda e mitigar a saudade... 

É também uma forma de o homenagear: o que ele deixou escrito na Net bem como o  seu livro "Cabra Cega" (Lisboa, Chiado Editora, 2015, 582 pp.) continuam a falar por ele. Estamos a selecionar algumas das melhoras páginas que ele nos deixou.   

 O A. Marques Lopes era  coronel art, DFA, na situção de reforma, foi alferes miliciano da CART 1690 (Geba, 1967/1968) e da CCAÇ 3 (Barro, 1968), era membro, em 2005, da direção da delegação do norte da Associação 25 de Abril (A25A) e, em termos históricos, o nosso quarto grã-tabanqueiro mais antigo, depois do fundador, Luís Graça, do Sousa de Castro e do Humberto Reis; entrou para a nossa tertúlia em 14/5/2005...

É autor de "Cabra-Cega: do seminário para a guerra colonial" (Lisboa, Chiado Editora, 2015), autobiografia escrita, com recurso ao artifício lietrário do "alter ego": o livro é escrito sob o pseudónimo João Gaspar Carrasqueira, que por sua vez conta a história do seu amigo e confidente António Aiveca...

Sofrendo de uma doença crónica de evolução prolongada, o A. Marques Lopes, apesar de sre um homem lutador e otmista, sabia que a vida se lhe ia escapando... Na sua página do Facebook, foi assumindo cada vez mais de  maneira explícita e consciente, que o "António Aiveca" era ele, António Marques Lopes.... Aiveca era uma alcunha, do seu pai, alentejano, que veio para a cidade grande para fugir da miséria dos anos 40, em plena segunda guerra mundial. O A. Marqes Lopes nasceu em Lisboa, na Mouraria, em 1944.

Este excerto do seu livro de memórias,  é composto por duas postagens na sua página do Facebook (de 7 de abril de 2022 e de 23 de setembro de 2022),  escritas já na primeira pessoa do singular. lCorrespondem às  páginas 160/165 do seu livro, que reproduzimos, na íntegra,  com a devida vénia...  

Até sempre António Aiveca, até sempre amigo e camarada A. Marques Lopes, "requiescat in pace"


Depois de Mafra, o RI1, como aspirante miliciano, à espera da mobilização paar o ultramar


No RI 1 teve uma surpresa. Encontrou lá o Gonçalves, o amigo do seminário, assim que entrou na porta de armas. Vinha a passar e logo que o viu correu para o Aiveca.

– É pá! Como é que vieste aqui parar?

– Como tu, Gonçalves, com certeza. Mandaram-me para cá.

– Não é isso, pá. Também saíste dos padres pelos vistos.

– Claro, há mais de dois anos.

– Há já dois anos?! - admirou-se. - Não sabia. É que eu escrevi-te, até te dei a minha morada em Lisboa, mas tu nunca disseste nada.

 Não deu. Quando recebi a tua carta andava grandemente atormentado e não tive cabeça. Depois de sair a minha vida tomou certos rumos, tive de tirar o 7º ano, estive na Universidade, baralhei-me também com algumas coisas. Não me dava para mais nada.

– Ok. A gente há-de falar depois do almoço, se eu puder. Agora tenho aí umas coisas para fazer. Depois conversamos.

Afastou-se apressado. Aiveca foi fazer a apresentação da praxe ao comandante do RI 1.

 – Já sei quem você é. O coronel da EPI falou-me de si.

O coronel carregou num botão que tinha na secretária e entrou logo a seguir uma ordenança.

– Vai dizer ao capitão Ferreira para chegar aqui
 ordenou-lhe.

Bonito, a minha fama já chegou aqui, pensou Aiveca. O coronel continuava.

 Você vai ficar na CCS da unidade, o capitão Ferreira é o comandante. Ele, depois, vai dar-lhe a indicação das suas tarefas.

O capitão compareceu nessa altura.

–  Ó Ferreira, está aqui o aspirante Aiveca, tem a especialidade de atirador mas vai ficar na CCS. Integre-o lá e diga-lhe o que é que ele vai fazer  – parou um pouco  – e , olhe, depois diga a alguém para o levar às instalações dos oficiais. É isto, podem ir.

O Ferreira era um tipo gorducho e andava com ar pesadão. Depois da sala contígua ao gabinete do coronel enveredaram pelo corredor que lhe estava em frente. O capitão balançava o corpanzil e ele, magro, ia ainda estilo cadete instruendo, quase que em marcha de desfile. O capitão parou quando se cruzaram com um sargento e virou-se para ele:

–  Ó Faustino, arranje aí um faxina que vá buscar a mala do nosso aspirante que está na porta d’armas. Que a leve até à porta do meu gabinete e espere lá.

Chegado ao gabinete, o capitão esparramou-se ruidosamente na cadeira fazendo-a gemer.

   Então, nosso aspirante, o que é que sabe fazer?

Que raio de pergunta, apeteceu-lhe dizer. Mas teve calma.

–  Meu capitão, eu sei fazer o que aprendi na EPI.

É mesmo palerma, disse Aiveca para si mesmo. Aqui na tropa e para a tropa o que é que acha que eu faça?

–  Isso para aqui não adianta nada, só quando for para o Ultramar… talvez. O que eu quero saber é o que fazia na vida civil.

Não sabia o que era isso de CCS, nunca ouvira falar de tal em Mafra. Mas, pronto, nada do que aprendera servia ali. A expressão Ultramar é que o alertou.

– Diga lá  insistiu ele.

– Desculpe, meu capitão, estava a pensar –  não lhe disse em quê –, fui estudante na Faculdade de Letras, foi o que fiz.

Não tinha nada que saber que trabalhara num armazém, senão ainda o ligava à malfadada arrecadação de material, nem que estivera no seminário, se calhar ainda o punha a organizar missas e coisas do género.

A resposta pareceu agradar ao capitão.

– Ainda bem. Ando há algum tempo a pensar numa coisa e você é a pessoa indicada para isso, estou a ver. Fica encarregado de fazer um jornal de parede para a companhia. Venha cá depois do almoço para falarmos sobre os conteúdos desse jornal. Além disso, é claro, vai ser integrado nas escalas de serviço dos oficiais da unidade e da companhia. Prontos, veja se o faxina já está aí fora com a sua bagagem e diga-lhe para ir consigo até aos quartos dos oficiais. Você vai ficar num dos que há com duas camas, veja em qual há uma vazia.

–  Meu capitão, posso fazer-lhe uma pergunta?

– Diga.

– O meu capitão falou no Ultramar de uma forma que eu fiquei com a ideia de estar decidido que eu vou para lá. Já está, meu capitão?

Mirou-o com ar de comiseração, como quem observa alguém ingénuo ou atrasado mental. Sentiu isso e ele percebeu. Falou-lhe com voz calma:

– Tem de estar preparado para tal, Aiveca. Todos estão sujeitos, muito mais você que é atirador. Estou a ver que aqueles artistas de Mafra não lhe disseram porque é que veio para aqui, enfiaram-lhe burocraticamente nas mãos a guia de marcha e disseram-lhe toca a andar, sem mais nada. Mas eu vou-lhe dizer. Você e mais três ou quatro que andam aí foram mandados para cá para ficarem à espera de ser mobilizados. Vai ficar aqui uns meses até receber ordens para se apresentar noutra unidade, até pode ser nesta, não sei, para ser integrado numa companhia operacional formada para o Ultramar. É assim. Bem, vá lá ver onde vai ficar.

Agradeceu as explicações e saiu. Não ficou admirado, já sabia o que o esperava, mas, de facto, aqueles tipos de Mafra bem lhe podiam ter logo explicado que o esquema era este.

Ao almoço, na messe de oficiais, ficou na mesa dos aspirantes, com o Gonçalves e mais outros dois. Falaram de Mafra, da «aldeia dos macacos», dos instrutores que tinham tido, de coisas agora já triviais para eles. Aiveca acabou por saber que um deles era do seu curso, tinha chegado há uns dias, tinha estado na 1ª companhia do COM, não na dele, e não o conhecia, nunca se tinham encontrado lá.

 – E tu, há quanto tempo estás cá?  – perguntou ao Gonçalves.

– Estamos cá há seis meses, eu e este  – apontou para o que estava à frente dele.

– Mas, então, vocês devem estar a ser mobilizados, não?

– É claro. Há-de ser já um dia destes Não se esqueceram de nós, com certeza.

– Não pensei que se esperava assim tanto tempo.

– Não me digas que estás com pressa, pá. Está descansado que há-de chegar a tua vez. Não é tarde nem cedo para morrer.

– Deixa-te de agoiros, pá disse o que estava à frente dele, batendo com os nós dos dedos na mesa.  Este gajo está sempre com estas merdas. É sempre muito animador. (...)

António Marques Lopes

Página do Facebook do A. Marques Lopes | 19 de janeiro de 2022, 22:00 e livro "Cabra Cega" (2015, pp.  160/165)


(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, itálicos, parênteses retos: LG)



Capa do livro "Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial", de João Gaspar Carrasqueira (pseudónimo do nosso camarada A. Marques Lopes) 
(Lisboa, Chiado Editora, 2015, 582 pp. ISBN: 978-989-51-3510-3, 
Colecção: Bíos, Género: Biografia).


Breve apontamento biográfico do A. Marques Lopes até à partida para o CTIG:

(i) 1944-1951 – Nascido em Lisboa, na Mouraria, acabou por ir viver no Alentejo, até aos 7 anos (Penedo Gordo, arredores de Beja), por razões de saúde da mãe;

(ii) 1951/1955  – Instrução Primária nas Oficinas de S. José, em Lisboa;

(iii) 1955/1964  – Seminário (dos Salesianos);

(iv) 1964/1965 – Trabalha nos Armazéns da AGPL (Administração Geral do Porto de Lisboa) e frequenta a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa;

(v) janeiro 1966/julho 1966 - COM (Curso de Oficiais Milicianos) na EPI (Escola Prática de Infantaria) em Mafra, onde tirou a especialidade de atirador de infantaria;

(vi) julho 1966 /  dezembro 1966 – Aspirante no RI1 (Regimento de Infantaria nº 1), na Amadora;

(vii) dezembro 1966 / abril 1967 –  Instrutor de um pelotão da CART 1690 (Companhia de Artilharia nº 1690) em Torres Novas e Oeiras, unidade mobilizada para o Ultramar; 

(viii) 15abril1967  – Chegada à Guiné como alferes da CART1690.

Guiné 61/74 - P25748: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte VII: "Bom dia, professor!"



Timor Leste >Liquiçá > Manati > Boebau > Escola de São Francisco de Assiz, "Paz e Bem"  (ESFA) > Alunos e professores. Foto da página do Facebook do João Moniz ("Eustáquio"), publicada em 22 de março de 2023. (Com a devida vénia...)



T
Timor Leste >Liquiçá > Manati > Boebau > Escola de São Francisco de Assiz, "Paz e Bem"  (ESFA) > 2024 > Aspeto exterior da Escola. Foto da página do Facebook do Rui Chamusco,, publicada em 5 de maio de 2024. (Com a devida vénia...)



Timor Leste > Liquiçá > c. 1936-1940 > Residência do Chefe de Posto de Liquiçá, na época colonial... Liquiçá  é hoje um dos 13 municípios de Timor Leste (c. 63 mil habitantes). Ficou tristemente famosa pelo massacre perpetrado pelas milícias pró-indonésias em 1999 ("massacre de Liquiçá") .

Foto do Arquivo de História Social > Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa > Álbum Fontoura. Imagens do domínio público, de acordo com a Wikimedia Commons. 

Editada por Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024). Com a devida vénia...



Timor Leste > Liquiçá > 2016 > Vista aérea da cidade costeira de Liquiçá > Foto de Jorge Santos (aka Jrg Snts), publicada no belíssimo álbum  "Timor - a ilha feiticeira". Esta foto aérea está alojada na Wikimedia Commons.  

A vila de Liquiçá é rodeada por  duas ribeiras que vêm da montanha, à esquerda  Gularkoo, e à direita Lacló.  A cidade,  sede de município do mesmo nome, tem 19 mil habitantes.

Foto: © JgrSnts (2016) / This file is licensed under the Creative Commons Attribution-Share Alike 4.0 International license.
 



Lourinhã > 2017 > Rui Chamusco e Gaspar Sobral

1. Continuação da publicação de uma selcção das crónicas do Rui Chamusco, respeitantes à sua segunda estadia em Timor Leste (janeiro / julho de 2018) (*).

Membro da nossa Tabanca Grande desde 10 de maio último, é cofundador e líder da ASTIL (Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste), criada em 2015 e com sede em Coimbra.
 
Professor de música, do ensino secundário, reformado, natural do Sabugal, e a viver na Lourinhã, o Rui tem-se dedicado de alma e coração aos  projetos  que a ASTIL tem desenvolvido no longínquo território de Timor-Leste.

O Rui Chamusco partiu para Timor, em 25 de janeiro de 2018, com o seu amigo, luso-timorense, Gaspar Sobral, cofundador também da ASTIL. Em Dili ele costuma ficar na casa do Eustáquio, irmão (mais novo) do Gaspar Sobral, e que andou, com a irmã mais nova, a mãe e mais duas pessoas amigas da família, durante três anos e meio, refugiado nas montanhas de Liquiçá, logo a seguir à invasão e ocupação do território pelas tropas indonésias (em 7 de dezembro de 1975) (tinha "apenas" 14 anos...).

Voltamos à Escola de São Francisco de Assis, localizada em Boebau, Manati, município de Liquiçá, em plena montanha.


II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL)


Parte VII -  "Bom dia, professor!"



Dia 16.04.2018, segunda feira - Reunião Geral


A fim de se esclarecerem algumas situações e alguns pequenos conflitos foi convocada uma reunião geral na escola neste dia 16 de abril. 

Depois de ouvidos todos os intervenientes pudemos pôr a água na fervura e acalmar as hostes. A minha presença e do Eustáquio trouxe a compreensão e a paz a esta gente. Claro que seria melhor que este conflitos não aparecessem. Ou se calhar até não. Tudo isto ajuda a crescer e a ser mais forte, tal qual como quem nasce e aprende a dar os primeiros passos em ordem a um longo caminho que tem de fazer.

A proteção de São Francisco ajuda-nos a compreender e até a rezar a sua oração: onde houver guerra que haja paz; onde houver ódio que haja amor; onde houver ofensa que haja perdão, etc... 

Há gente que me identifica com esta personagem recorrente e este espírito franciscano. Que hei-de dizer? Eu não posso deixar de ser aquilo que me ensinaram a ser ao longo da vida. Mas quem sou eu para ser comparado com tal santo? Um grande pecador que, por mais que disfarce, nunca chegarei aos seus calcanhares. Por isso peço constantemente a sua proteção, para mim e para os outros.


 A alegria e a vontade de aprender



Hoje foi a primeira aula (se assim se pode dizer). A sala de São Francisco estava repleta de crianças de todas as idades, algumas ao colo de suas mães, para aprenderem a falar o português. 

Há crianças de 10 e 11 anos que nunca foram à escola. Estou certo que para a maioria delas terá sido a primeira vez que balbuciaram tais palavras. Imitando, cantando, soletrando por mais de duas horas estivemos “online”, com a vontade enorme de saber, de aprender, de comunicar em português. 

O facto de as escolas estarem de férias em Timor (final do 1º período) trouxe-nos ainda mais afluência à nossa escola. Por isso, organizamos um turno de tarde para os mais crescidos, jovens e adultos. Ou seja, um dia bem cheio de atividades. Valeu-me a ajuda preciosa da professora Rita, que dá aulas de manhã na escola mais próxima, e de tarde na nossa escola.

Já sei, por experiência da minha avançada idade, que todas as atividades têm um início empolgante, e que depois sofrem de algum desinteresse e entusiasmo. Mas não deixa de ser compensador a alegria sobretudo das crianças ao repetirem palavras, gestos, sons que lhes são propostos. E então o entusiasmo com que cantam e dançam o malhão, deixam-nos o coração em pedaços.

Dizem e desejam que “se o Tiu Rui cá estivesse todo o ano a gente aprendia depressa o português”, talvez porque é ensinado a cantar. 

Pois é! A idade não perdoa e não será fácil tal decisão. Mas, enquanto houver forças, o meu apoio nunca faltará. Não há por aí voluntários e voluntárias que queiram experimentar?...


Arco iris, símbolo da esperança


Não é nem de longe a primeira vez que contemplo este fenómeno da natureza. Todos sabemos como ele se forma, mas cada vez que com ele nos encontramos ficamos atónitos, a olhar para a sua beleza. Pois em montanhas timorenses sim que é o primeiro encontro. Agora imaginem a beleza e encanto neste quadro tão elegante da natureza. 

À semelhança de São Francisco, contemplo embasbacado esta beleza e dou por mim a louvar o Senhor que criou tanta beleza: “Louvado sejas meu Senhor pelo nosso irmão o arco iris, que fizeste tão belo e esplendoroso. De Ti Senhor ele é a imagem.”

A policromia das suas cores faz-me lembrar a harmonia dos sons, das notas musicais. Um tema forte para uma criação musical, que talvez um dia aconteça, em terras de Boebau. A harmonia é o símbolo forte da nossa escola, que se pode traduzir em cores, em sons, em relações sociais e atitudes individuais. A esperança, essa virtude tão humana e tão divina, será um farol que, com as cores do arco iris, nos iluminará e guiará rumo a um futuro cada vez melhor para estas crianças e toda esta gente. Assim cremos e queremos...

 Colia... colia... colia...

Estamos aqui em Timor, em tempo de campanha eleitoral para o Parlamento. Não sei de nada, mas vou ouvindo. Tal como aí ou em qualquer parte do mundo civilizado, multiplicam-se os pregadores e anunciadores de programas, tentando convencer o eleitor de que o seu partido é melhor do que os outros. Falam...Falam...Falam...! (colia...colia...colia...).

É fácil falar... É difícil dizer algo com substância... É difícil fazer... É muito mais difícil fazer bem... Como diz o ditado:” Não faças como o Tomás. Olha para o que ele diz e não para o que ele faz.”  (...)


Dia 17.04.2018 - Presente!...



Mais ou menos 50 crianças e alguns adultos disseram “Bom dia,  professor” ao entrarem ordenadamente para a sala de São Francisco. Depois, seguem-se as palavras de identificação de objetos, as expressões e frases mais usuais em português, as canções, as notas da música. 

Durante duas horas estivemos ensinando e aprendendo. É certo que a missão do professor é ensinar, mas também se aprende muito com esta gente. Aprender até morrer, uns com os outros.

Como o lenço não é objeto que se use por estas bandas, o mais comum é recebermos o cumprimento das crianças (o beija-mão) entre ranho e lágrimas, Nada que nos incomode, porque este viver é tão natural que o nosso corpo tudo aguenta e suporta. E mesmo que alguns hábitos culturais, por exemplo o mascar do betel (malus+areca+cal), a vontade de aculturação é tão forte que tudo suporta. È uma questão de pensarmos no essencial da vida.

De tarde, antes do turno da tarde às 16.00 horas, quis ir conhecer a escola mais próxima, a escola de Fatu. Acompanhado do Laurindo, percorremos a distância que nos separa, parando aqui e acolá para cumprimentar amigos do Laurindo. 

Há crianças que chegam a fazer 7,50 quilómetros por dia para frequentarem esta escola. A carência desta gente é tanta, devido ao isolamento e falta de meios económicos, que algumas famílias queriam oferecer o café aos visitantes mas não puderam, justificando-se “não temos café nem açucar”. Assim, pude sentir na pele as dificuldades do caminho a que estes alunos estão sujeitos, com sol que foi o caso, ou com chuva.

Dia 18.04.2018, quarta feira  - Um almoço inesperado


Devido às dificuldades de comunicação digital por não haver rede elétrica disponível, e a conselho do amigo Laurindo, fomos até à casa ainda em fase de acabamentos do sr. Manuel dos Santos, ou como eu gosto de o chamar comandante Sarunto Limurai. 

Já falei com ele várias vezes, cumprimentando-nos sempre com um caloroso abraço. O meu comandante estava ausente devido ao trabalho, mas o seu filho João recebeu-nos com toda a simpatia. O objetivo da visita era carregar o meu telemóvel através do gerador ali em funções. 

Telemóvel à carga, umas cadeiras para descansar e um pouco de conversa como aqui é habitual. E, enquanto esperava pelo sinal de partida, eis que chega a ordem da casa: “Vamos comer!...” 

Já vou entendendo esta gente e o seu modo de ser. Chegando a hora da refeição, esteja quem estiver a refeição é para todos. Há sempre lugar para mais um, para mais dois ou para mais três. Já me vou habituando a não recusar e a aceitar toda esta hospitalidade. Claro que almoçamos, com todo o prazer, e que bem me soube aquele invariável arroz, acompanhado de peixe e folhas de mandioca, com o remate do bom café timorense. 

Já no final do almoço aparece o nosso herói que, surpreendido, manifestou efusivamente a sua alegria de nos ter em sua casa através de um forte abraço. Obrigado,  amigo e família. Com certeza que celebraremos mais vezes esta amizade sincera.


Restos mortais e outras coisas...


Junto à escola estão umas quantas campas dos antepassados das famílias que aqui moram e que, por uma questão de respeito, nós prometemos que iríamos reparar. Hoje, olhando em pormenor este espaço com a ajuda de alguns dos trabalhadores na terraplanagem (feita a pulso sem qualquer máquina) da escola, vim a saber algo inesperado.

 Foram encontrados uns quantos cadáveres, alguns ainda bastante recentes, que depois de serem contactadas as famílias foram deslocados para o sítio do cemitério familiar que queremos reparar. Os cadáveres não identificados foram sepultados em campa comum, supondo-se até que haja alguns de soldados indonésios.

 Precisamente em primeiro plano a seguir à escola está um espaço demarcado sem qualquer elemento identificativo que afirmam estar sepultado o Mau Quinta, aquele de quem já falei nas primeiras crónicas e que durante a guerra, num gesto de desespero e vingança, cortou com a sua catana a cabeça do seu comandante por este o ter tentado matar. Este espaço é um símbolo de que a traição não é coisa boa, e de que a confiança mútua é sempre o melhor caminho.


Dia 19.04.2018, quinta feira - O Hino da escola


Não sei porquê, mas a insónia desta noite levou-me a estar em alerta várias horas, pelo que tive tempo de mentalmente percorrer muitos caminhos e projetos. Foi então que surgiu a ideia: e se fizesse um hino da escola para que todos possam cantar? 

Vira e revira, põe e tira, de trauteamento em trauteamento vou criando a melodia, a letra, a forma. Às sete horas da manhã já estava na escola tentando concretizar a respetiva partitura que, com inspiração ou sem ela, ficou pronta num instante.

Pelas dez horas chegam as crianças que, acompanhadas de alguns adultos, enchem literalmente a sala de São Francisco. À semelhança dos dias anteriores, começaram as saudações, as palavras, as frases em português, seguidas de canções. 

E pronto, aparece o hino da escola que, com facilidade é assumido na sua letra, música e gestos. Esta gente de Boebau, tal como qualquer timorense, tem cá um ouvido de invejar. Em poucos minutos tudo canta com entusiasmo o hino da escola. Não posso esconder que senti alguma emoção ao ouvir estas vozes cristalinas cantando “Obrigado! Obrigado! Obrigado com amor... Obrigado Obrigado! Obrigado meu Senhor!...” E, já agora, a letra do hino:


HINO DA ESCOLA DE SÃO FRANCISCO BOEBAU / MANATI

Letra e música:  Rui Chamusco

1. A escola de São Francisco,
Um projeto de Paz e Bem,
Para o povo de Boebao/Manati,
Um presente que a gente tem.

Por isso cantamos:

Refrão:

OBRIGADO! OBRIGADO!
OBRIGADO COM AMOR...
OBRIGADO! OBRIGADO!
OBRIGADO, MEU SENHOR!.
..


2. São Francisco lá na glória,
Lá nesse formoso céu,
Protege a nossa escola,
Protege este povo teu.

Por isso cantamos:

Refrão (...)

3. Vamos todos contribuir
Com amor e confiança,
Construir um mundo novo
Para todas as crianças.

Por isso cantamos:


Refrão (...)

(Ver aqui na página da ASTIL os miúdos da ESFAMB (Escola São Francisco de Assis. de Manati, Boebau) a cantarem  o seu hino. Uma ternura!... Vídeo: 4' 44''. Data: 8 de dezembro de 2020.)

 (Título, seleção de excertos, revisão / fixação de texto, negritos: LG)

_____________

Nota do editor:

(*) Vd. poste de 8 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25724: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte VI: Uns com tanto, e outros com tão pouco

segunda-feira, 15 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25747: Fotos à procura de... uma legenda (182): O meu pimeiro telemóvel, o AVP1 ou "banana", lembram-se ?!... "Diga se me escuta, oubo!!!"... (César Dias, ex-fur mil sapador, CCS/BCAÇ 2885, Mansoa, 1969/71)

 



O César Dias, com o AVP1, ou "banana" (na gíria da tropa)...

Foto (e legenda): © César Dias (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



César Dias, 2013

1. O César Dias (ex-fur mil sapador, CCS / BCAÇ 2885, Mansoa, 1969/71) tem 75 referências no blogue; está aqui connosco desde 30/1/2007... Tem página no Facebook, começou a trabalhar na Petrogal em 1977...


Das suas fotos de capa fomos buscar esta, publicada em 22 de janeiro de 2013- Legenda: "Este foi o meu primeiro telemóvel, grande companheiro."

Trata-se do AVP1, o famoso "banana"... Quem não se lembra dele ? E das "anedotas" que se contavam dos 
seus "operadores" ? A mais célebre era talvez aquela: "diga se me escuta, oubo!" (diga se me ouve, escuto!).

Os nossos leitores são convidados a acrescentar mais legendas à foto... LG

Guiné 61/74 - P25746: (De)Caras (211): Quem seria o instruendo nº 821, do 3º turno de 1968, 3ª Companhia de Instrução, Centro de Intrução de Sargentos Milicianos (CISMI), Tavira ? Pergunta ao César Dias, que era o nº 847/3ª, desse turno (Eduardo Estrela, ex-fur mil, CCAÇ 14, Cuntima e Farim, 1969/71)



Bilhete de identidade militar do César Vieira Dias, sold do CSM nº 197356/68, emitido em 16/7/1968. Ao alto do lado esquerdo,  há um nº, o 847,  escrito a lápis, que correspondia ao  número interno do CISMI, atribuído ao César Dias na recruta...

Foto (e legenda): © César Dias (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


(...)





Excerto de um documento  interno, com as instruções para o pessoal incorporado na 3ª Companhia, CISMI, Tavira, 3º turno de 1968... Quem seria o soldado-recruta nº 821 / 3ª ?


Fotos (e legendas): © César Dias (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem de Eduardo Estrela (ex-fur mil at inf, CCAÇ 14, Cuntima e Farim, 1969/71; vive em Cacela Velha, Vila Real de Santo António):


Data - domingo, 21/04, 19:31
 

Boa tarde, 
companheiro!

Acabo de fazer uma visita ao blogue.

Na pesquisa coloquei CISMI e deparei com uma ficha assinada pelo capitão Eduardo Fernandes (um dos militares mais sensatos e educados que conheci), onde está identificado o instruendo nº 821 que deverá apresentar-se ao aspirante Sousa e Silva , comandante do sexto pelotão.

Eu era do sexto pelotão. 
Há possibilidades de saber quem era o instruendo?

E,  em caso afirmativo,  há possibilidades de saber se há forma de o contactar?

Abraço fraterno, Eduardo Estrela 

2. Resposta do editor LG:

Eduardo: 

O teu pedido é uma ordem. Mas só agora te posso responder... Encontraste essa informação no poste P12779, de 27 de fevereiro de 2014 (*) , donde consta um documento recolhido e digitalizado pelo nosso amigo e camarada César Dias, que fez a recruta no 3º turno de 1968, do CSM, no CISMI, Tavira, e que internanente, na recruta, tinha o nº 847. É um "rapaz" do nosso tempo... e fdoi meu vizinho na Guiné...ele em Mansoa, eu em Bambadinca.

No documento que se reproduz  acima, parcialmente, podemos ler  instruções dadas ao sold recruta nº 821/3ª, assinadas pelo comandante, o cap inf  Eduardo José Moreira Fernandes. Ficamos a saber que esse era um número particular ou interno, usado pelo CISMI, atribuido aos soldados-recrutas. Não sei se o César Dias conseguirá responder-te... 

Quem seria, afinal,  o camarada da 3ª Companhia de Instrução, a quem foi atribuido o nº 821/3ª. (**)

Vou contactar o César Dias. Abraço  para os dois. 




Tavira > CISMI > Parada > Outubro de 1968 >"Os 'galardoados' com a especialidade de atirador de infantaria que tinham acabado a recruta integrados no 6º Pelotão da 3ª Companhia" > Da esquerda para a direita, de pé:

(i) Estrela (1), Fonseca (2), Pereira (3), João (4), Torres (5), Chichorro (6) e Joaquim Fernandes (7)

(ii) Santos (1a), Chora (2a), Salas (3a), Paulo (4a), Loureiro (5a), Saramago (6a)

Foto (e legenda): © Eduardo Francisco Estrela  (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 27 de feverero de 2014 > Guiné 63/74 - P12779: CISMI - Centro de Instrução de Sargentos Milicianos de Infantaria, Tavira, 1968: Instruções ao sold recruta nº 821, do 3º turno de 1968, incorporado na 3ª Companhia, assinadas pelo comandante, cap inf Eduardo José Moreira Fernandes (César Dias, ex-fur mil, sapador, CCS / BCAÇ 2885, Mansoa, maio de 
1969/março de 1971)

(**) Último poste da série > 29 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25700: (De) Caras (300): A emboscada, na picada de Mampatá-Uane, em 20 de maio de 1968: além de 4 mortos, foram feitos pelo PAIGC 8 prisioneiros, cinco dos quais sabemos que foram o Rui Rafael Correia (CCS/BART 1896, Buba, 1966/68), José M. Medeiros, José M. de Susa, Manuel da Silva e Agostinho Duarte (CART 1612, Bissorã, Buba e Aldeia Formosa, 1966/68)

Guiné 61/74 - P25745: Notas de leitura (1709): "Missões de Um Piloto de Guerra", por Rogério Lopes; edição de autor, 3.ª edição, 2019 - Memórias de um piloto nos primeiros anos da guerra da Guiné (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
São memórias de um piloto que combateu na Guiné e Angola, um feixe de peripécias de situações omnipresentes em todo o tempo que aquela durou, desde aviões avariados, ao nascimento de crianças a bordo, o transporte de prisioneiros ou de sacos de cadáveres vitimados por uma daquelas explosões do combustível que pôs os corpos em tocha. Lembranças amargas umas, porque morreram pilotos heróicos e devotados, histórias de sobressalto, como uma cobra metida num sapato, a revelação de um sabotador em Bissalanca, os bombardeamentos noturnos, permanecer uma noite no quarto com um avião avariado e levar com uma flagelação, os T-6 na Operação Tridente, apanhando os guerrilheiros em plena praia, e não podemos deixar de gargalhar com a mulher do Governador Schulz levada pela multidão, a senhora a gritar e o Governador a pedir para apanharem a velha... Leitura que não vou esquecer tão cedo, até porque me assaltou à memória as ajudas recebidas da Força Aérea na evacuação dos meus feridos, pilotos tão solícitos e enfermeiras tão dedicadas.

Um abraço do
Mário



Memórias de um piloto nos primeiros anos da guerra da Guiné (2)

Mário Beja Santos

Rogério Lopes, (2.º Sargento Piloto, Guiné, 1963-1965), nascido em 1939, tirou a primeira licença de piloto civil em 1959 através da Escola Aeronáutica da Mocidade Portuguesa e nesse mesmo ano entrou na Força Aérea. Durante 3 anos esteve colocado na base aérea de S. Jacinto, parte para a Guiné em 1963. Passou à reserva em 1970 e foi trabalhar para a aviação civil. Das suas missões em dois teatros de guerra deixa-nos este relato que já vai em 3.ª edição, Missões de Um Piloto de Guerra, 2019.

São narrativas versáteis, revelam memórias de um espírito otimista, entusiasta, dotado de grande espírito de corpo, de muitas coisas nos falará, desde o seu batismo de fogo, a missões de socorro, o seu apreço pelos heróis do ar, avarias que não acabaram em desastre, bombardeamentos noturnos, evacuações de uma atmosfera de tempestade, crianças que nasceram a bordo, episódios picarescos, vale a pena contar um pouco de tudo, são os primeiros anos da guerra da Guiné.

Obviamente que conheceu voos acidentados e alguns deles com a fuselagem crivada de tiros. Era um piloto bem preparado e não perdia o sangue frio, veja-se este episódio:
“Aconteceu-me um incidente numa missão de correio e transporte de Auster para Gadamale-Porto, cujo quartel ficava junto a um rio com um cais no fim da pista. Acontece que a dita pista era um caminho de terra e lama, onde só se podia aterrar na maré-baixa, tendo apenas 600 metros de comprimento. Ora, nesse dia, a maré já estava a encher, o que estreitava a faixa de aterragem e aumentava o perigo de derrapagem. Depois de uma passagem baixa resolvi aterrar, correndo todos os riscos inerentes, e porque tinha uma evacuação a fazer e isso podia custar a vida a alguém. Tudo correu bem até ao preciso momento de aconchegar os travões, que eram ao contrário de qualquer outro avião, que são na ponta dos pedais, enquanto estes eram nos calcanhares. Aí é que foi o diabo, o avião começou a dar ao rabo como uma dançarina de rumba, e lá vou eu, deslizando como sabão sobre azulejo molhado. Os 600 metros acabaram, consegui apontar à rampa de 5 metros de largura que dava acesso à doca e… entrei deslizando por ali dentro, gerando a confusão total. Soldados, civis, brancos, pretos e mestiços pareciam baratas aterrorizadas. Eu é que não estava pelos ajustes que só me restava uma solução: provocara um cavalo-de-pau, ou seja, rodar 360 graus, e assim fiz.”

Guarda saudades da Aldeia Formosa, o régulo recebia-o sempre prazenteiramente. Foi inevitável, nasceu-lhe uma criança a bordo, tudo aconteceu num Do-27, voou para Farim, a bordo seguia um mecânico e uma enfermeira paraquedista, tratava-se de um parto complicadíssimo. 

“No regresso e no eclodir dos primeiros gritos a bordo, a enfermeira-paraquedista, apesar dos seus temores, arregaçou as já curtas mangas, desinfetou-se, calçou luvas próprias, ordenou ao mecânico que agarrasse a mulher e mergulhou as suas mãos energicamente. Entre os gritos da paciente, da transpiração da enfermeira e da boca aberta do mecânico, esgazeado por todo aquele aparato a que nunca tinha assistido, eu ia tentando, com o meu feito brejeiro, amenizar um pouco todo aquele stress, dizia que ia sair do meu lugar para ajudar, o que deixava a pobre paraquedista ainda mais nervosa. Depois de uma hora de luta intensa, de berros, suores e cabelos em desalinho, finalmente ouvi um grito de jubilo: Ó Lopes, olhe, já se vê a cabecinha! O nosso cabo mecânico, com uma cara assaz comprometida, continuava a desculpar-se com o seu pouco ou nenhum auxílio, dizendo que não tinha luvas para tal tarefa. Quando aterrámos o bebé acabava de nascer.”

Uma vez foi a Tite levar passageiros e correio, quando este lhe foi entregue tentou ligar o motor, nada, como último recurso rodou a hélice à mão com os magnetos ligados, nada, ali ficou à espera de auxílio, no dia seguinte. Nessa noite houve flagelação, a sua grande preocupação era o avião, saiu ileso daquele confronto, em compensação parte do telhado da caserna tinha desaparecido. Ele fora bem recebido por um Furriel vagomestre, soube na manhã seguinte que tinha sido atingido à saída do quartel. 

Também passou por peripécias com jagudis intrometidos, houve um que lhe entrou no avião com uma bala de canhão, passou um mau bocado, mais tarde recebeu um jagudi embalsamado, “oferta dos nossos soldados do quartel de Binar para o aviador que nesse dia ia perdendo a vida ao tentar entregar o correio por que tanto ansiavam e não receberam, por este ter encontrado no caminho o guerreiro jagudi”.

E vem agora o episódio mais hilariante da narrativa, intitulado “A visita oficial do Governador”:
“Bem cedo, pela manhã, com o Dornier já preparado, pouco esperei pelo Governador e comitiva, que constava apenas da esposa, que aparentava ser mais velha do que ele e tinha dificuldade em andar, e o oficial de operações às ordens.
A viagem de Bissau a Bafatá era de mais ou menos uma hora. Nos bancos de trás, ia o oficial de operações e a senhora e, ao meu lado, o general. Como simpatizávamos um com o outro, aquela hora foi passada de forma e conversa agradável, até a nossa vista alcançar a pista de dois quilómetros de terra batida, mas em bom estado, ladeada pela formação das tropas dos três ramos das Forças Armadas. Todos eles com as suas melhores fardas e ostentando orgulhosamente as medalhas. A separar a população nativa havia um cordão da polícia militar para impedir a invasão da pista. Aterramos no meio de todo aquele aparato festivo, com o clamor de palmas, gritos, fanfarra, rufar tambores, guizos indígenas e bandeiras flutuando ao sabor da agitação de centenas de mãos; assim que parámos, um diligente oficial veio rapidamente abrir a porta de trás do Dornier, para ajudar e facilitar a saída da esposa do Governador.

Ainda hoje, não sei dizer ao certo como tal aconteceu, mas a verdade é que a populaça rompeu o cordão de segurança e, rodeando o Dornier, sacou rapidamente a senhora, levando-a em ombros, acompanhada de gritos festivos, para o meio da multidão em delírio.
A senhora olhava para trás e gritava para o marido a tirar dali, e ele, por sua vez, dizia para mim, com ar assustado: Ó Lopes, eles levam-me a velha!
Depois, gritando o mais que podia, para ser ouvido pela tropa que estava tão desnorteada como nós, repetia incessantemente: Apanhem a velha, apanhem a velha!
E lá se foi todo aquele aparato disciplinar por água abaixo. As alinhadas formaturas desfizeram-se, a multidão branca e preta corria para apanhar a senhora, que continuava a gritar para o marido, no meio daquele mar colorido de civis, militares, bandeiras, estandartes e fanfarra à mistura.”


Dedica um texto e muito emotivo à morte do alferes Pité, como igualmente nos relata a tragédia de fuzileiros falecidos mortos a caminha de Madina do Boé. Uma bazucada rebentara o depósito de combustível de um dos carros e todos os que ali iam foram consumidos pelas chamas, tiveram uma morte horrorosa. Os camaradas eram uma máscara de dor, com os seus gritos dilacerantes. E Rogério Lopes, pesaroso, descreve os voos para transportar os cadáveres envolvidos em enormes sacos de plástico preto. “Foram quarenta atrozes minutos em que as minhas narinas ficaram impregnadas de um cheiro que jamais esquecerei, assim como a pena por aqueles infelizes fuzileiros, que não conhecia pessoalmente, mas que admirava pela coragem demonstrada no campo de combate.”

Em maio findou a sua comissão, em junho foi condecorado no Terreiro do Paço com uma Cruz de Guerra, ao lado do seu Comandante na Guiné. Sentiu uma saudade imensa por aqueles que jamais voltariam.

Não vou esquecer tão cedo tão memorável, dura narrativa, recheada de peripécias inusitadas e outras não tanto, onde paira sempre o sentido de ver alanceado pelo otimismo.



Cruz de guerra, 3.ª classe
T-6 em pleno voo
O Do-27
O Auster
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Notas do editor:

Post anterior de 8 DE JULHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25726: Notas de leitura (1707): "Missões de Um Piloto de Guerra", por Rogério Lopes; edição de autor, 3.ª edição, 2019 - Memórias de um piloto nos primeiros anos da guerra da Guiné (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 12 DE JULHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25738: Notas de leitura (1708): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1867 e 1868) (11) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25744: In Memoriam (507): António Carlão (Mirandela, 1947 - Esposende, 2018), ex-alf mil at inf, CCÇ 2590 / CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadina, 1969/71) (Jorge Alvarenga, amigo da família)


Helena e António Carlão (1947-2018).
Foto dapágina do Facebook
da Helena Carlão, com
a devida vénia

1. O António Carlão (Mirandela, 1947 - Esposende, 2018) foi alf mil at inf da CCAÇ 2590 / CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71). Soubemos tardiamente,  cerca de dez depois da sua morte em 14/11/2018 (*). 

Muito recentemente foi postado um comentário no poste P20164 (*), de alguém que conviveu com ele e a família. É dirigido à sua filha Cristina Carlão, que, tanto quanto julgamos saber, tem página no Facebook aqui: Cristina Carlão Areias

Publicamos os comentários de ambos, na "montra grande" do blogue. De outro modo, já ninguém os iria ler (**).  Ficamos a saber, pelo Jorge Alvarenga, amigo da família, que o nosso António Carlão, depois de vir da Guiné, foi viver para Moçambique,  tendo regressado em 1975. 

A última vez que tivemos com ele (e com a Helena) foi em Fão, Esposende, em 1994, quando ele organizaou o 1º encontro anual do pessoal de Bambadinca (1968/71). A Helena (ou Lena) foi "uma das mulheres que foi à guerra", passou parte da comissão do marido
em Bambadinca (c. 1970/71).


(i) Cristina Carlão (*)

Obrigada, fiquei muito comovida, o meu pai falava com muita saudade de todos,a vida deu muitas voltas, mas continuou a amar o próximo e deixou muitas saudades
Filha Cristina

Nota:  vim da guerra na barriga da minha mãe Helena


(ii) Jorge Alvarenga (*):

Menina Cristina Carlão,

Homenagem póstuma ao seu pai... Honra e Glória ao 'Tony'!

Espero que a sua mãe Lena esteja bem..., cumprimentos sentidos e afectuosos do "Hóspede" da sua avó Palmira, Quinta do Canal, Mirandela.

Lembro-me bem das narrativas heróicas do seu pai, estilo cowboy/Chuck Norris,  para sair de Moçambique após a Independência de 1975, dos saltos para o rio Tua e da última prancha (uma brutalidade de altura) no Clube Atlético (Náutico?/Sport?) de Mirandela...

Agora e lendo este Blog, percebo donde lhe vinha a genica e fibra de Herói, não sabia desta sua passagem pela Guiné (um Inferno).

Um dia (há mais ou menos 46 anos):

– Jorge, atira-me esta maçã ao ar e bem alto!!!

Assim fiz, de imediato dois  tiros de caçadeira (uma Santétienne de canos sobrepostos, presumo) soaram e a maçã desfez-se no ar, ainda antes de iniciar a curva descendente em direcção ao solo.

Mais tarde, e noutro episódio memorável, "obrigou-me" (conveceu-me com muita simpatia) a comer da raposa que tinha caçado e que a D.ª Palmira tinha com soberba mestria cozinhado (no forno?)... Estava deliciosa, pese embora eu não quisesse,  porque dizia que era o mesmo que comer cão (tinha 15 anos)..., Foi a primeira e única vez que o fiz.

Por último, ainda guardo os bilhetes do KateKero que ele me vendeu..., jogo de pirâmide, na altura na moda, e que prometia,  aos seus compradores/jogadores, fortunas miríficas e ganhos sem fim... Fiquei sempre com a sensação de que era um Grande Otimista e Sonhador, assim como eu, ainda hoje.

Paz à sua Alma!

Felicidades mil e muita Saúde, para si,  Cristina e toda a família.

Os melhores cumprimentos,
Jorge Alvarenga, "O Hóspede"


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(**) Último poste da série > 11 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25734: In Memoriam (506): Armando Carvalhêda (1950-2024), "um senhor da Rádio", que passou pelo Programa das Forças Armadas da Guiné, o "PIFAS", entre Abril de 1972 e Setembro de 1973, morre aos 73 anos (Hélder Sousa, ex-Fur Mil TRMS - TSF)

domingo, 14 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25743: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (26): "Metade com outros tantos"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


Metade com outros tantos

- Está tanto frio…
- Se calhar é do tempo, D. Matilde.

Essa foi a conversa que ouvi entre o empregado e uma idosa senhora ao sentar-me numa esplanada da praia de Labruge. A D. Matilde, dos seus noventas ou noventas e tal, era uma senhora muito magra, toda aperaltada, casaco de pele pelos ombros, um fino colar ao pescoço e um reluzente copo de tinto à sua frente.
Ninguém mais, além de nós os dois e o empregado.
Aproveitávamos a réstia de sol que este generoso dezembro oferecia de mão beijada.

- É tudo do tempo, tu também me saíste cá um pândego!… E, pensando bem, até é verdade. Não tanto do tempo em termos meteorológicos, mas do tempo dos anos, do frio da vida a chegar ao fim, do tempo frio da mentira e da desilusão.
- Isso é que é falar, mas a senhora ainda tem muitos anos à sua frente.
- Claro que tenho…!
- Mas olhe, D. Matilde, que essas notícias que está a ler no jornal são de ontem. Esses mortos todos são de ontem.
- Eu quero lá saber dos mortos. Sempre me preocuparam os vivos e nem esses agora me preocupam, embora não seja indiferente ao que se passa. Olhe, olhe, está a ver esta pouca-vergonha? Mais um padre preso por pedofilia, por abusar sexualmente dos seus alunos.

O mar imenso está muito calmo na sua maré cheia.
As pequeninas ondas parecem brincar, enrolando as cristas brancas, de lés-a-lés ao longo da praia. À tona de água, espreitam as pontas negras das rochas, denunciando os enormes rochedos submersos.

- É sempre assim e sempre assim foi. Olha, tu estás a ver as pontas daquelas rochas? Isto é o que a gente vê, mas os grandes rochedos estão escondidos. Sabes o que eu quero dizer, ó Macedo? São todos uns malandros, uns hipócritas, uns falsos. Não temos o direito de generalizar, mas neste caso… é que não é só aqui e ali, é em todos os sítios, em todas as nações, em todos os continentes…e aos milhares! Vergonha das vergonhas!
- Ó D. Matilde, a senhora foi professora, não foi?
- Durante mais de meio século.
- O que é que ensinava aos seus alunos? A dizer tão mal dos padres e dos bispos… neste andar ainda vai parar ao Inferno…
- Não me obrigues a pedir outro copo de vinho. Não quero nada com eles. São uns falsos e uns hipócritas. Se soubesses o que é aquele Vaticano! A minha fé é cá comigo. No Inferno estamos nós. Eles inventaram essa treta para criarem terror nas pessoas. Olha que eles não têm medo do Inferno, o Inferno é para os outros. Quanto aos meus alunos, o que sempre lhes ensinei foi que pensassem antes de acreditar no que quer que fosse, e que considerassem como seus maiores inimigos a mentira e a falsidade. Ensinei-lhes a descobrir que a razão é a sua maior riqueza.
- Quantos anos tem a senhora, D. Matilde?
- Metade com outros tantos.

Vale a pena chegar a esta idade com a lucidez desta pacata velhinha, um inesperado e verdadeiro achado entre os humanos nesta tarde cinzenta. Não resisti a dirigir-lhe a palavra:
- A senhora desculpe eu meter-me na conversa, mas gostava de lhe dar os meus parabéns pela sua cabeça tão limpa, sobretudo nesta sua idade de metade com outros tantos. Confesso que estou plenamente de acordo consigo e gostei muito de a ouvir.
- Nesta paz da beira-mar, eu lhe digo, meu caro senhor, que se o senhor não estivesse de acordo, para mim era igual ao litro. Mas se está de acordo, é bem mais agradável. Ao longo da minha vida, e sobretudo da minha vida de professora, sempre lutei contra a falsidade, a hipocrisia e o obscurantismo, venha ele de onde vier.

Do mar soprava agora uma brisa leve com forte cheiro a maresia. O sol espreitou de novo como que agradado com a conversa. Ainda continuámos a falar por algum tempo, o tempo de mais um copo, sem que sentíssemos qualquer ponta de frio.
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Nota do editor

Último post da série de 7 DE JULHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25723: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (25): "Será que não aperto bem?"