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domingo, 17 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27127: Felizmente ainda há verão em 2025 (18): Libanesas de olhos verdes, nunca tínhamos visto... (Valdemar Queiroz, 1945-2025)


Pormenor de "A rapariga com brinco de pérola" (c. 1665)... Uma das obras-primas da pintura de todos os tempos, da autoria do pintor neerlandês Johannes Vermeer (1632-1675).  Óleo sobre tela (44,5 cm x 39 cm). Localização atual: Galeria Mauritshuis, Haia. Imagem do domínio público. Cortesia de Wikipedia

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2025)



Valdemar Queiroz (Afife, Viana do Castelo, 1945 - Agualva, Sintra, 2025).

ex-fur mil at art, CART 2479 /CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70)


1. Morreu em 3 de março de 2025, sem ter completado os 80 anos (nascera em 30 de março de 1945, minhoto de Afife). Um grande perda para todos nós, da família aos camaradas da Guiné. Era uma das figuras mais queridas da Tabanca Grande. 

Cinco meses de saudade!... Como ele gostaria de estar aqui hoje, mesmo dando-se mal com a canícula do verão, por causa da sua DPOC de "estimação"... De vez em quando lá ia de charola para o Hospital Amadora-Sintra... Sempre "preso à "bomba", "agarrado ao blogue", sorrindo com meia-cara à doença,  ao infortúnio, à solidão, e desejando "saúde da boa" a amigos e inimigos (se é que os tinha!)...

Cinco meses de saudade, Valdemar!... Deixaste de aparecer,   ainda estamos todos tristes e inconsoláveis... Estás perto e longe, felizmente não fostes parar á "vala comum do esquecimento"... A gente não se esquece de ti. E tu também prometeste não te esqueceres de nós.  Mas,  sem ti, o nosso blogue já não é a mesma coisa. Nem o blogue nem a Rua de Colaride... 

Olha, fui repescar textos teus, comentários que só tu sabias fazer e que nos encantavam  pela espontaneidade, autenticidade, irreverência,  verve, humor desconcertante, elegância  e alegria de viver que sabias transmitir como ninguém. 

Grande "lacrau", vê se gostas de te rever nestes teus (re)escritos, a que eu dei a forma de prosa poética... Mostra lá ao São Pedro, que até nem é mau rapaz, coitado, mesmo velhote, lá vai cumprindo os pesados deveres do seu ofício, o de porteiro do céu... (É um dos nossos três santos populares, mas não tem a mesma afeição que a gente dedica ao Santo António e ao São João; claro, não lhe diga, seria deselegante e no céu ou no inferno temos que nos dar com toda a gente, santos e pecadores...)

Podes dizer-lhe, da minha parte,  que cá na Terra da Alegria estamos todos zangados  com ele por te ter acolhido tão cedo no Olimpo dos deuses e dos guerreiros!... 

P*rra, meu velho "lacrau", porque é que não fomos todos juntos, à molhada, como no tempo em que nos mandaram para a Guiné... nos T/T Niassa, Uíge, Ana Mafalda ?!...

 Valdemar, podias ter esperado pela gente que ainda cá anda, gemendo e chorando... Na Terra da Alegria, mas que está cada vez mais feia...  

Até sempre, camarada ! Reza por nós à tua maneira...  (LG)


Da rua de Colaride via-se o mundo

por Luís Graça


Uma rua, a rua de Colaride, Agualva-Cacém,
que se tornou famosa,
há uns tempos atrás:
estava no mapa e na blogosfera,
por nela viver (mesmo só podendo assomar à janela...)
um antigo combatente da guerra da Guiné, 
um "lacrau", o Valdemar Queiroz...

Vivia sozinho em casa,
era portador de um doença crónica incapacitante
(o raio de uma DPOC - Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica),
mas não perdia o gosto de viver e, tanto possível, conviver,
e muito menos deixava de cultivar o bom humor de caserna...
Que o crioulo, esse, falava com a empregada
que lá ia a casa fazer a cachupa, a bianda,
e em dias de festa o chabéu de frango...
"Bioxene ? Não, camarada, estou proibido dos médicos.
Agora só água da bolanha!"...

Da sua janela via o mundo... da sua rua.
Era um dos mais antigos moradores da rua Colaride,
que estava então mais bonita do que em 1972/73,
quando um andar do Jota Pimenta
custava 200 contos
(c. 56 mil / 49 mil euros, a preços de hoje...).

Quando o Valdemar Queiroz se casou
e se mudou para Agualva-Cacém, há 50 anos,
a Rua Colaride não era tão bonita
e sobretudo era muito menos "colarida"...
Agora floriam nespereiras e jacarandás nos canteiros.

No país não havia mais do 28 mil estrangeiros
com estatuto legal de residentes...
Há dois anos já eram  mais de 750 mil,
segundo o SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras)
que entretanto foi extinto,
mas continuou a haver estrangeiros e fronteiras,
e cada vez mais fronteiras.

Na Rua de Colaride, havia  gente oriunda de outras terras,
Cabo Verde, Guiné, Angola, por exemplo,
três antigas colónias portuguesas,
que se haviam tornado independentes em 1974 e 1975...
Muitos vizinhos já teriam a nacionalidade portuguesa,
outros bem a queriam ter,
para não terem um dia destes a desagradável surpresa
de virem a ser corridos da rua de Colaride...
Que era maneirinha, pacata, "multicolarida"...

As fotos que o Valdemar ia tirando à varanda,
com um telemóvel fatela,
não nos diziam tudo, mas diziam algumas coisas,
dele, dos vizinhos, dos fregueses, dos transeuntes...
Bem, não se via o mundo todo,
via-se só uma nesga, o que era melhor que nada.

E sobretudo deram origem a umas tantas blogarias.
O Valdemar gostava de blogar,
dizia ele que até fazia bem à saúde,
que até se esquecia que estava agarrado à "bomba".

Às vezes, demasiadas vezes, lá sobrevinha uma crise.
Lá vinha o tinonim do 112
e lá ia ele de charola para o hospital.
"Parece que me safei desta, camaradas!"

Da última vez, no dia 1, há 2 dias,
escreveu, no blogue, a partir do tal telemóvel fatela:

"Caro amigo Vinhal... 
Eu estou de cama
sem poder deslocar-me em casa 
por estar ligado a uma máscara de oxigénio.
É uma merda estar nestas condições da doença, 
e magro, como um cão, só pele e osso.
Neste mês vou ao hospital, consegui !!!, com os bombeiros,
para ser visto o pacemaker.
Obrigado pelo teu cuidado, ´
abraço e saúde da boa. 
Valdemar Queiroz".

Morreu o Valdemar, 
o último tuga da rua de Colaride.

"Desta vez não me safei, camaradas,
mas já tinha pedido ao meu filho, que está na Holanda,
para vos avisar, quando a pilha falhasse.
Não se esqueçam de mim,
eu não vos esquecerei".

Minhoto de nascimento, 
alfacinha por criação, 
avô de netos holandeses, aliás, neerlandeses...
Uma história de grande humanidade, 
um exemplo (tocante) para todos nós,
antigos combatentes,
seus camaradas de armas,
que somos representantes de uma "espécie" 
em vias de extinção...

Luís Graça

3 de março de 2025,22:00


  Libanesas de olhos verdes, nunca tínhamos visto

por Valdemar Queiroz (1945-2025)

Que pena tenho eu de não estar em Nova Lamego,
em 1972/74,para ver as libanesas,
porque em 1969/70
tinhamos que ir a Bafatá ver os seus olhos verdes.

Ó Marcelino Martins, tens toda a razão
e eu, em 1969/70, também não me lembro 
de estabelecimentos de libaneses, no Gabu.

Havia a casa do sr. Caeiro.
Vendia tudo, p
omada prós calos,
ventoinhas, frigoríficos a petróleo,
e até material militar (facas de mato) 
pra algum 'piriquito' despassarado.

Também havia, no Gabu, outro português,
que fazia uns frangos de churrasco, de cair pró lado.
Era na saída, para Bafatá e lembro-me 
que o empregado, um africano, tinha hora de saída.
E o patrão dizia:
“Vocês é que são os culpados, 
destes gajos terem horário de saída”…
O que nós fomos 'arranjar'!

Mas, José Marcelino Martins,
nunca vi nenhuma libanesa em Nova Lamego
e eu não era cego.
Lembro-me da filha do Sr. Caeiro, 
aparecia poucas vezes,
era de cair pró lado, boa como o milho,
rapariga prós vinte e poucos anos, 
sempre à espera dum capitão.

Mas, para ver as libanesas, de olhos verdes, raparigas bonitas,
tinhamos que ir a Bafatá.
Quem me dera, estar em Bafatá naquele tempo,
tinha vinte e poucos anos.

(...) Não me lembro das libanesas em Nova Lamego. 
Lembro-me do tal fim de ano (69/70) no cineclube, 
mas não me lembro das libanesas, 
também não me lembro de quantas garrafas de 'bioxene' 
foram deitadas a baixo, se calhar foi por isso.

A filha do sr. Caeiro, de que me recordo, 
era uma bem jeitosa que andava sempre 'doente' 
atrás do tenente médico, 
mas ela queria era um capitão, 
a outra, a “rebenta-minas”, 
era gordinha mas fazia torcer o pescoço à rapaziada.

Mas das libanesas de Nova Lamego não me lembro 
e naquela altura tinha boa memória.

(...) Quanto eu gostava de saber o que é o belo, 
agora que em toda a zona da Agualva/Mercês 
há um florescer de plumas, milhares de plumas
é uma beleza de ver
(ou são só as 'Meninas de Avignon', do Picasso,
ou 'As meninas' ,de Botticelli, que são uma beleza de ver?)

E por que razão as raparigas/mulheres libanesas 
de Nova Lamego ou Bafatá, não seriam uma beleza de ver? 
Que mal estaria a rapaziada a fazer, 
se só apreciassem os olhos verdes das libanesas? 
Cometiam um grave sacrilégio de apreciar a sua beleza,
ou, querendo lá saber disso,
teriam que apreciar o saber do passar a ferro, 
o mudar a água às azeitonas, 
o fazer uma sopa de beldroegas e esperar?

Acho que não, 
a rapaziada gostava de ver raparigas bonitas, 
libanesas, fulas, mandingas 
e até as filhas dos da metrópole que eram mais finas. 
Não havia nenhum mal nisso, era absolutamente normal.

Quem, em 1969/70, na Guiné, 
não gostava de ver uma mulher de olhos verdes, 
sem estar a pensar nas mulheres 
de olhos castanhos, azuis ou pretos 
para fazer comparações...
e também pensar que todas as mulheres têm olhos bonitos,
que elas haveriam de ser um dia as nossas companheiras
e as mães dos nossos filhos?

Pois é, caro Luís, naquele tempo, há 45 anos, sem querer, 
já nós apreciávamos a 'Mulher com brinco de pérola', de Vermeer , 
sem com isso desgostar da 'Mulher de Afife com arrecadas', 
da 'Mulher com o joelho à mostra na Pastelaria Suíça', 
ou 'A Vera de biquini amarelo na Caparica'.

Pois é, caro Luís, isto do belo dá pano para mangas 
e é só escolher, 
pra nós as libanesas chegavam: 
libanesas de olhos verdes, nunca tinhamos visto.

(Condensação de vários comentários do VQ, 
publicados no blogue | Revisão / fixação de texto: LG)
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Nota do editor LG:

Guiné 61/74 - P27126: Memórias da tropa e da guerra (Joaquim Caldeira, ex-fur mil at inf, CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834, Tite e Fulacunda, 1968/69) (7): A noite de consoada de 1968 em Fulacunda: houve batatas com bacalhau e couves, sessão de cinema (um grande filme de cobóis de 1959...), um ataque à canhoada pelos "vizinhos" que eram belicosos, e até "fake news", a de que o quartel tinha caído em poder deles...



Cartaz do filme "O Homem das Pistolas de Ouro" (título original: "Warlock", EUA, 1959, 115 minutos)... Passou no "cine-ao-ar-livre" de Fulacunda, na noite de natal de 1968. Mal começou o filme, ouviram.se as primeiras canhoadas do PAIGC. (Os "turras" sempre foram uns desmancha-prazeres e, neste caso, queriam ver o filme à borla; não havia cinema nas "áreas libertadas")

Imagem e sinopse: Cortesia da RTP Programas (com a devida vénia)


Sinopse 

Um "western" clássico, com Henry Fonda, Richard Widmark e Anthony Quinn : Warlock (título original do filme, EUA, 1959; realização de Edward Dmytryk) é uma pequena cidade dominada por um bando de pistoleiros. Depois de numerosos assassinatos, os cidadãos elegem Clay Blaisdell (Henry Fonda), como xerife da cidade. Clay é um pistoleiro profissional, sempre acompanhado pelo seu fiel amigo Tom Morgan (Anthony Quinn), e Johnny Gannon (Richard Widmark), que tinha em tempos, pertencido a esse bando.

Jessie Marlow (Dolores Michaels), conhecida como "Angel de Warlock", apaixona-se por Clay, mas este tem, acima de tudo, a sua atenção centrada no confronto com o líder do bando de pistoleiros, Abe Mcquown (Tom Drake).




1. Mais um pequeno texto do Joaquim Caldeira, grão-tabanqueiro nº 905, ex-fur mil at inf,  CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834 (Tite e Fulacunda, 1968/69); vive em Coimbra; é autor do livro "Guiné - Memórias da Guerra Colonial", publicado pela Amazona espanhola (2021)



A Noite de Consoada de 1968

por Joaquim Caldeira (*)


O bom do capitão tudo fez para que a consoada fosse a mais parecida possível com a tradicional. Até conseguiu arranjar batatas, bacalhau, couves, nozes, castanhas e vinho.

Após a ceia, seria projetada num lençol preso a uma das paredes de uma caserna desativada, uma película cinematográfica, cujo tema estava mesmo a condizer: “O Homem das Pistolas de Ouro”. Protagonizado por, entre outros, os grandes actores Henry Fonda e Anthony Quinn.

Pobre cabo Lima. Era sempre a ele que se pediam sacrifícios na hora de comer. Teve por missão chefiar uma equipa que cozinhava para aquela tropa toda. E às vezes nem o furriel Estanqueiro sabia o que mandar cozinhar porque não havia o quê.

Mas naquela noite até havia batatas com bacalhau e couves, seguidas de nozes, castanhas e vinho. Tudo regado com azeite. E tudo a postos. Houve tempo para comer, beber com moderação, até porque a ração de bebida era muito curta, mas de boa vontade.

Depois, enquanto as sentinelas eram substituídas para a refeição, deu-se início à projeção do filme para o que havia dois homens do serviço de fotocine do exército, cuja missão era projetar o filme e não se borrarem de medo.

E começou o filme e começaram a ouvir-se tiros de canhão. Eram demasiado ruidosos para serem do filme. E fizeram tanto estrago que o filme prosseguiu sozinho e penso que só acabou quando faltou a corrente elétrica que era desligada sempre que ocorria um ataque.

Cada qual correu já de arma na mão, que também jantou ao nosso lado, em direção ao abrigo mais próximo e vai de defender a pele o melhor que podia e sabia.

Ao fim de cerca de meia hora, o rescaldo era do quartel quase destruído, vários feridos. Não havia mortos militares, mas na tabanca havia mortos provocados por uma canhonada que rebentou numa habitação.

O resto não conto. É trágico demais para ser lembrado. Apenas uma homenagem ao cabo Melo que passou a noite a chorar por ter que construir os caixões para os mortos e nem madeira tinha para tal. Serviu-se da madeira das caixas do bacalhau. Foste um herói, grande amigo.

De manhã, ainda cedo, tocou o meu telefone - depois conto o episódio do telefone - e quando atendi era a minha namorada que já sabia do que tinha acontecido. Queria saber notícias mais próximas do real daquelas que, prazenteiramente, foram transmitidas por Manuel Alegre, na sua Rádio Argel.

Mas naquela noite e naquele local, haviam 180 homens que tinham em Portugal os seus familiares e amigos e que alguns destes ouviriam a falsa notícia de que o quartel de Fulacunda tinha sido ocupado pelo PAIGC.
 
(Texto enviado em 9/8/2025, 17:28 | Revisão / fixação de texto: LG)

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 4 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27089: Memórias da tropa e da guerra (Joaquim Caldeira, ex-fur mil at inf, CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834, Tite e Fulacunda, 1968/69) (6): A noite do Adriano, um herói desconhecido

Guiné 61/74 - P27125: Parabéns a você (2405): José Manuel Cancela, ex-Soldado Apontador de Metralhadora da CCAÇ 2382 (Aldeia Formosa, Contabane, Mampatá e Buba, 1968/70)

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Nota do editor

Último post da série de 10 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27105: Parabéns a você (2404): Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor Auto da CCAÇ 84 (CTIG - Bissau, 1961/63)

sábado, 16 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27124: Os nossos seres, saberes e lazeres (696): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (217): Nenhum museu tem tanta História de Portugal como este – 2 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Junho 2025:

Queridos amigos,
Bem vistas as coisas, este museu organizado no que foi o Palácio Alvor tem um impressionante património que justificaria um conjunto de visitas e dezenas de textos e ilustrações em conformidade com a vastidão das coleções. Tudo começou com a extinção dos conventos, juntaram-se as peças provenientes do espólio da rainha Carlota Joaquina vendido em hasta pública, como consequência da derrota miguelista, há as peças adquiridas com as verbas oferecidas pelos reis D. Fernando II e D. Luís, também as peças adquiridas pela Academia de Belas-Artes, peças adquiridas em leilões, peças provenientes de vários legados; depois da implantação da República, uma nova leva de peças provenientes dos palácios reais, bem como das sés e palácio episcoais, peças depositadas (caso das 1500 esculturas da coleção Vilhena), doações relevantes como as feitas por Calouste Gulbenkian. É impressionante o acervo de arte religiosa, da pintura portuguesa, recorde-se Frei Carlos, os mestres flamengos, Hans Holbein, Lucas Cranach, Dürer, Bosch, Velásquez... E grande escultura, desde o Torso de Apolo, a peça mais antiga do museu, passando por Rodin, alfaias religiosas, a Custódia de Belém, a Baixela Germain, mobiliário ímpar, como o hindoportuguês, os trabalhos escultóricos de Benim, loiça Ming, os biombos Namban. Enfim, comprometo-me a voltar.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (217):
Nenhum museu tem tanta História de Portugal como este – 2


Mário Beja Santos

Que o leitor me desculpe, finda uma pausa lancei-me ao trabalho, voltei à escadaria principal, gosto muito destas linhas dinâmicas que nos levam até à escultura religiosa, é a partir daqui que vou a deambular sem preocupações de roteiro quanto às escolas europeias, nada de catalogar cronologicamente o que vai do pré-românico ao oitocentismo, ainda tive o impulso de parar diante dos painéis de São Vicente que há quem garanta a pés juntos que foram pintados por Nuno Gonçalves, embora não haja nenhuma certeza documental.
O meu amigo José Luís Porfírio, que dirigiu esta casa e que dela foi conservador dedicadíssimo, escreveu com a chancela da Editorial Verbo, em 1977, no belo livro dedicado a este museu nacional:
“Se quiséssemos ser polémicos, poderíamos dizer que a pintura portuguesa começa e acaba aqui, nestas seis tábuas com cerca de 60 figuras, num tipo de expressão que, salvo duas ou três aproximações com tábuas da mesma época, desapareceu da pintura feita em Portugal sem deixar grandes vestígios, assim como pouco se conhece em Portugal ou no resto da Europa que possa servir de preparação ou de introdução a esta pintura. Não, evidentemente que se não se possa estabelecer analogias com o Sul da Espanha, ou com a composição das tapeçarias borgonhesas; não, também, que na pintura portuguesa do século seguinte se não possa detetar uma linha de atenção ao concreto, muito especialmente no retrato, que possa aqui ter origem. No entanto, esta pintura, se acaba alguma coisa, não sabemos o que acaba, e não foi, certamente, o princípio de coisa nenhuma; trata-se, antes de mais, de uma das numerosas sendas perdidas na arte europeia do século XV, experiência sem seguimento, ainda que cheia de possibilidades, tal como aconteceu noutros centros marginais ou marginalizados da cultura europeia da época. Descobertas em 1882, cerca de quatro séculos depois de pintadas e quase outro tanto de esquecidas, estas seis tábuas viriam a transformar-se no caso, ou na questão, da história da arte portuguesa. Têm estas seis tábuas praticamente mais literatura escrita sobre elas do que toda a restante pintura portuguesa junta”.
Vou passar adiante deste mistério dos painéis de São Vicente, vamos então ver outras obras de inquestionável valor.


A imponente escadaria da entrada principal que permite ao visitante ir direto à escultura medieval, tendo à esquerda uma pintura icónica, o Ecce Homo.
Fonte bicéfala, em calcário, 1510-1525, oficina ativa em Lisboa
Biombos Namban, produzido entre 1570 e 1616. Os biombos eram utilizados para dividir espaços, e normalmente eram realizados de dois em dois. O tema mais recorrente no século XVI eram as cenas do cotidiano. Nos biombos do museu vê-se a chegada festiva dos portugueses no barco negro, ao que os japoneses chamavam de a chegada dos namban jin, ou bárbaros do Sul, isto é, os Portugueses e, mais tarde, os Espanhóis. Os namban eram homens de grandes narizes, de olhos negros e estranhos, usando uma indumentária singular onde se evidenciavam as calças tufadas e os chapéus de copa redonda. É assim que os nossos capitães e marinheiros surgem retratados nos biombos, executados sempre aos pares e reportando-se a cenas de aportagem e desembarque da nau de comércio e há o desfile pelas povoações.
Pormenor da chegada dos portugueses ao Japão nos biombos Namban
Arte muçulmana vinda de Damasco, o esplendor do azulejo
Continuação do esplendor do azulejo muçulmano
Paisagem de inverno (Neve), por Gustave Courbet, 1868
Santo Agostinho, Piero della Francesca, c. 1465. Um santo, um bispo, impõe a sua figura contra uma balaustrada e o céu azul, segura um báculo com cabo de cristal e enverga uma capa que narra a história de Cristo. Aqui, nesta narração, em cada uma das suas cenas, está um dos grandes motivos de interesse desta pintura, não só porque são réplicas de pinturas, conhecida uma, outras perdidas, da oficina do pintor, mas também pela conceção espacial que propõem.
Danaide (A Fonte), por Auguste Rodin e Pierre, o seu ajudante, 1893. Esta deusa aquática, de uma tradição literária e figurativa que remonta à própria Grécia, ao mesmo tempo emerge e regressa ao seu reino do incerto e da mudança constante, reino que também é o da relatividade e não o da certeza sacral. Com Rodin está acabando um grande ciclo da escultura. Este regresso ao material anuncia de certo modo os monólitos do século XX.
Interior de taberna, autor não identificado, 1664 (?)
Homem cozinhando, Jan Steen, c. 1650 (?)
Obras de misericórdia, Bruegel, o Moço, depois de 1564/65-1637/38. A família Bruegel criou uma firma de reputação europeia. Bruegel, o Moço, imitador do seu pai, e também conhecido como especialista de infernos, numa tradição boschiana, produzidos em série para um público numeroso e não muito exigente. Este quadro Obras de Misericórdia é uma curiosa descrição da vida e da miséria da Flandres, aponta para um novo tipo de pintura que o século XVII vai desenvolver e cultivar: a pintura de género, ou seja, a representação de cenas da vida quotidiana, burguesa e popular, de grande divulgação e permanente consumo até ao nosso tempo.
Pormenor do tríptico das Tentações de Santo Antão, Jheronimus Bosch, c. 1500. É, porventura, o mais procurado quadro de autor não português (neste caso, um tríptico) tanto por visitantes nacionais como estrangeiros. Toda a pintura de Bosch foi produzida numa obscura cidadezinha da Flandres, acaba por se apresentar como o último grande inventário da Idade Média. Inventário de conhecimentos, de imagens, de espetáculos, de espetáculos e procissões de rua, inventário de medos passeando-se, reunindo-se, dispersando-se como as ideias confusas do espírito, no espaço poderosamente unificado das três tábuas. Mesmo que os contemplemos até à exaustão, fica-nos uma inquietante certeza: o sonho, a imaginação, o inconsciente, são também uma realidade.
Anjo da Anunciação (fragmento), autor flamengo desconhecido, c. 1500
Rei Mago Baltasar, século XVIII, oficina de Joaquim Machado de Castro
Presépio Kamenesky, século XVIII, c. 1783, por Faustino José Rodrigues
Milagre de Santo Eusébio de Cremona, por Rafael Sanzio, 1502-1503

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 9 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27103: Os nossos seres, saberes e lazeres (695): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (216): Nenhum museu tem tanta História de Portugal como este – 1 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P27123: As nossas geografias emocionais (537): EUA, Flórida, Key West: passei à porta do José Belo, meu camarada (António Graça de Abreu, Cascais)


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4


Foto nº 5


Foto nº 6


Foto nº  7

Key West, Florida, Estados Unidos da América


Fotos (e legenda): © António Graça de Abreu (2025). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1.  Texto ("Em Key West, Flórida, Estados Unidos da América") enviado na  quinta, 14/08/2025, 23:51  


EUA, Flórida, Key West, 2025: passei à porta do José Belo, meu camarada

por António Graça de Abreu


Agora, peregrino, vago e errante
Vendo nações, linguagens e costumes,
Céus vários, qualidades diferentes
.

Luís de Camões


 António Graça de Abreu, ex-alf mil, CAOP1, 
Teixeira Pinto / Canchungo, Mansoa e Cufar, 
junho de 1972/abril de 1974; 
sinólogo, escritor, poeta, tradutor; 
tem c. 380  referências no blogue


Alugo carro no aeroporto de Miami e avanço com o meu filho João para uma grande volta pela Florida (Foto nº 1)
.
Começamos pelos jacarés e crocodilos em Everglades (Foto nº 2), nós pendurados num airboat, um hidroplanador que flutua suspenso sobre os muitos canais nas zonas pantanosas e nos leva a saudar os simpático
s répteis que aparecem um pouco por todo o lado, até no meio do asfalto da estrada por onde circulamos. 

Seguimos para a cidadezinha de Naples, dormida em motel, não muito caro, 70 dólares pelas duas camas. Os americanos da Flórida vivem bem, habitações de luxo por tudo quanto é sítio, a terra está cheia de Ferraris e Porsches, uma panóplia de automóveis caríssimos. 

Donald Trump, presidente dos EUA, também tem por aqui uma enorme mansão. 

Seguimos para São Petersburgo, não a Petrogrado dos russos, mas o burgo norte-americano plantado pelas gentes vindas da terra dos czares que desaguou em solos floridos. 

A cidade alberga hoje um extraordinário museu dedicado integralmente às obras surreais de Salvador Dali, o catalão genial de bigodes revirados, génio desbragado e pincel mágico (Fotos nºs 6 e 7). Diante de mim, 96 quadros, memórias vivas, coloridas da arte de Dali;
  • pintando a curvatura dos montes com o corpo cheio das mulheres da Catalunha, enlaçando céu e a terra;
  • os olhos de Gala, a amante exuberante e elanguescente, capazes de trespassar paredes;
  • uma lagosta suada está ao telefone;
  • naturezas mortas renascem todos os dias no pincel de Dali;
  • uma menina de caracóis perde-se nas lonjuras de Castela, meu Deus, as nádegas como dois sóis;
  • a grande tela com Colombo descobrindo as américas, as velas da nau enfunadas pelo sopro de serafins e arcanjos, o pintor humildemente ajoelhado em terra segurando um crucifixo;
  • depois, Cristóvão Colombo, tão jovem, levantando um pendão com a imagem da deusa que conduz os homens ao encontro de mais mundo;
  • Gala ou a Virgem Maria.

Atravessamos a Flórida. Em Orlando passamos ao lado da Disneylândia, já somos gente crescida, não existe vontade de ir cumprimentar o Pato Donald ou o Mickey. Acabamos por abancar em Cabo Canaveral (Foto nº 3). 

 Daqui partem os foguetões que levam a espécie humana para viagens espaciais, especiais, rumo à lua e a infindáveis órbitas terrestres. A fantástica aventura, o engenho das gentes.

Dormir em Miami e seguir para Key West, outrora uma ilha, mas há já umas boas dezenas de anos ligada ao continente por uma estranhíssima Overseas Highway, uma fantástica estrada levantada sobre rochedos, pequeníssimas ilhas e sobretudo por cima de pontes e aterros lançados sobre o mar. A estrada estende-se por 256 quilómetros. 

Em Key West, porto de cruzeiros, terra de turistas, de gente boa e de desvairadas criaturas, estamos apenas a pouco mais de 100 quilómetros de Cuba (Fotos nº  4 e 5).

 Nos anos trinta do século passado, Ernst Hemingway aqui construiu uma magnífica casa  (Fotos nºs 6 e 7) a que a sua esposa de então acrescentou uma enorme piscina. 

Tudo se mantém impecavelmente conservado, até os muitos descendentes dos incontáveis gatos de Hemingway, nascidos e criados no lugar, continuam a habitar o casarão.

Em Key West mora hoje o José Belo, ex-capitão de infantaria, militar de armas aperradas comigo nos distantes anos da nossa guerra na Guiné-Bissau, anos 1968/70.

Pós-conflitos bélicos, eu segui para as terras da China, o José Belo estacionou e fez vida nas paragens frias da Lapónia, no norte da Suécia. Depois voou para a América. 

Não consegui encontrá-lo em Key West, não tinha o seu contacto. Mas sei que estava por perto. Um abraço ao camarada da Guiné.

(Revisão / fixação de texto, título, negritos, edição de imagem: LG)

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Nota do editor LG:

Último poste da série > 29 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27064: As nossas geografias emocionais (536): a Nhacra que eu conheciu no final da guerra (Eduardo Campos, ex-1º cabo trms, CCAÇ 4540, Cumeré, Bigene, Cadique, Cufar e Nhacra, 1972/74)

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27122: Notas de leitura (1831): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 7 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Julho de 2025:

Queridos amigos,
Não querendo ser repetitivo quanto aos propósitos a que se associa este projeto, recordo que aqui se procuram mostrar documentos numa certa sequência cronológica das sucessivas viagens de exploração e instauração de portugueses na Costa Ocidental africana até chegarmos à Senegâmbia. Presença inequivocamente nas orlas dos rios e rias, nunca houve objetivo de ocupação, cedo houve entendimento de que se impunha fazer acordos e superar as atmosferas de hostilidade. Houve que fazer a fortaleza de Arguim por motivos de segurança, pelo adiante se irá falar de entrepostos. Neste texto faz-se uma síntese dos seis importantes capítulos enumerados por Magalhães Godinho, destaca-se a carta do genovês Usodimare aos seus credores, referindo o desastre na primeira viagem e esperançado no êxito da segunda. Como já nos habituámos, as notas de Magalhães Godinho são altamente explicativas, Usodimare e Cadamosto vinham ao mesmo, procuravam o ouro e a malagueta, o historiador mostra que há muitos elementos errados de Usodimare quanto às distâncias e dá-nos um apreciável quadro explicativo quanto aos mitos e mistificações à volta do lendário Preste João.

Um abraço do
Mário


Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 7

Mário Beja Santos

Os dois primeiros volumes de Documentos sobre a Expansão Portuguesa, de Vitorino Magalhães Godinho, foram editados na década de 1940, este terceiro, que vamos hoje falar, foi dado à estampa em 1956, não pela Gleba, mas pelas Edições Cosmos. O seu conteúdo é de uma extrema variedade e riqueza.
O primeiro capítulo aborda a pirataria e o comércio, um vasto leque de assuntos desde a importação de cereais, a partilha de escravos, a guerra de Corso no Mediterrâneo, a viagem ao Rio do Ouro, os assaltos às Canárias para aprisionar escravos, o comércio com Marrocos e Guiné.
Segue-se um capítulo dedicado à primeira navegação de Usodimare e Cadamosto, em 1455, navegação que vai das Canárias a Porto Santo e Madeira, ao Cabo Branco e à ilha de Arguim, e, com destaque para o propósito que mantemos nestes comentários, a viagem em que eles analisam os Azenegues, o Reino do Senegal, no país de Budomel.
No terceiro capítulo o historiador analisa a navegação segunda de Cadamosto e Usodimare, o tão controverso descobrimento das ilhas de Cabo Verde, a viagem pelo Rio de Casamansa e já dentro do território da atual Guiné.
O capítulo quarto é dedicado à toma de Alcácer Ceguer.
No capítulo seguinte, faz-se a apreciação num conjunto de documentos como os de Duarte Pacheco Pereira, Valentim Fernandes e João de Barros.
No sexto e último capítulo, Magalhães Godinho disserta sobre a exploração do litoral africano desde o Rio Geba até à Mata de Santa Maria, aqui se fala da navegação de Pedro de Sintra, por exemplo.

Dada a riqueza deste acervo, entendi que se impunha uma escolha de vários textos que ajudem a compreender como se processou a presença portuguesa desde a segunda metade do século XV aos inícios do século XVI.

Começa-se com uma carta de Antoniotto Usodimare dirigida aos seus credores, tem a data de 12 de dezembro de 1455:
“Respeitáveis irmãos. Quanto de mim devem estar descontentes, posso-o bem calcular, visto que não basta ter o que é vosso, como ainda é necessário dar-vos notícias más acerca das vossas coisas. Quis esta minha sorte que eu me fizesse passar numa caravela às partes da Guiné. E cheguei aonde nunca qualquer cristão chegará; e encontrado o Rio de Gâmbia, que tem uma boca larguíssima, entrei nele sabendo que nesta região se colhe ouro e malagueta. Os pescadores da região atacaram-me com arcos e com setas envenenadas, julgando que fôssemos inimigos.

E eu, vendo que não nos queriam receber, vi-me obrigado a regressar, e a cerca de setenta léguas daí um nobre senhor negro deu-me quarenta escravos e alguns dentes de elefante, papagaios e um pouco de almíscar, em troca de alguns panos que lhe apresentámos. E conhecido o meu desejo, mandou comigo ao senhor Rei de Portugal um secretário seu com alguns escravos. Este secretário compromete-se a tratar paz com aquele Rei de Gâmbia.

E o senhor Rei, vendo o que se passava, queria excluir-me de tal empresa, mas graças aos rogos de tal secretário, concordou que eu vá a essas partes com esse secretário. Por isso, em nome de Deus, volto a fretar uma caravela, na qual seguirei, e levarei um carregamento dos servidores do Senhor Infante, e espero com o negócio equilibrar todo o meu futuro. E dentro de menos de dez dias enviarei este embaixador numa caravela a fim de que vá tratar a paz; entrega-me todos os seus haveres para que eu os leve na minha caravela. Por tal razão convém-me, senhores, ver por esta vez ainda o que fará esta minha sorte; se me não tivesse sido até aqui tão adversa, viver podia com grande esperança pelo que me narra este secretário, coisas que vos pareceriam vãs se vo-las escrevesse.

Na verdade, pela terra firme faltavam menos de trezentas léguas até o país do Preste João, não digo até à sua pessoa, mas sim até onde começa o seu território; e se me tivesse podido demorar, teria visto o Capitão do Rei de Melli, o qual se encontrava a seis jornadas de nós com cem homens, e com ele estavam cinco cristãos do Preste João, e falei com alguns do seu exército. Encontrei um da nossa nação, creio que das Galés Vivaldi, as quais se perderam há 170 anos, o qual me disse, e assim o confirma este secretário, que da sua estirpe só ele restava. E outro falou-me dos elefantes, unicórnios, gatos da algalia e outras coisas muito estranhas e de homens com cauda e que comem os filhos. E a razão por que não pude demorar foi porque me faltaram os víveres e dos seus [dos negros] mantimentos não podem os homens brancos de modo algum alimentar-se sem adoecer e morrer, só os podem comer os negros que lá nascem. O ar, porém, é ótimo, e a terra a mais bela que há sob o céu e está quase no equinócio; no mês de julho os dias têm doze horas e meia e as noites onze horas e meia.

Escrevo-vos todas estas coisas se bem que esteja certo de que vos seria mais grato receber o que é vosso e dos outros [credores] do que ouvir tais notícias. É necessário que tenham paciência durante seis meses, tanto mais que me inscrevo no seguro, o que certamente não seria necessário dado que aqueles mares são como as águas do porto daí.

A presente carta destina-se a todos os credores; estes devem convencer-se, e vós com eles, que se eu tivesse podido contentá-los pagando-lhes não me teria metido em tal aventura com uma só caravela. Talvez venha a acontecer pelo melhor; por isso tenham paciência, pelo amor de Deus. Vosso Antonius Ususmaris.”


Magalhães Godinho fala-nos da família de Usodimare, uma antiga família genovesa. Voltará a Génova desafogado graças aos lucros da segunda viagem à Guiné. Godinho estranha a referência que ele faz ao Rio Gâmbia, já fora descoberto pelos portugueses, considera que as distâncias que ele refere são erradas. O ouro e a malagueta eram também os objetivos do veneziano Cadamosto, o que comprova que o comércio italiano estava interessado no descobrimento desta nova rota. Cadamosto irá também referir na sua relação de viagem que quando estava para partir para o sul do Cabo Verde chegou Usodimare, seguiram viagem juntos, e confirma que foram hostilmente recebidos no Rio Gâmbia. A carta de Usodimare aos credores omite o encontro. De forma detalhada, Godinho debruça-se sobre o Preste João, quando começaram as referências a este, as lendas e mistificações. Recorde-se que durante os séculos XII e XIII os cristãos procuraram-no e localizaram-no na Ásia; Marco Polo identificou-o como um chefe turco. Os Mamelucos do Egito impediram durante as cruzadas a entrada na Abissínia aos cristãos, com o receio de uma coligação que os colocassem entre dois fogos. Oito dominicanos enviados por João XXII conseguiram em 1316 penetrar na Abissínia e realizar conversões ao catolicismo. Em 1402 Veneza recebia uma embaixada enviada pelo négus David I, a qual trazia leopardos e arómatas (bálsamos) para presentear os europeus.

Iremos seguidamente ver o relato da navegação primeira de Cadamosto.


(continua)
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Notas do editor

Vd. post da 15 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27100: Notas de leitura (1829): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 6 (Mário Beja Santos)

Último post da série de 18 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27130: Notas de leitura (1830): "África Contemporânea", por Castro Carvalho, editado em S. Paulo - Brasil, 1962 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P27121: O segredo de... (51): Virgínio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS/BCAQÇ 1933 (Nova Lamego e Sáo Domingos, 1967/69), economista, consultor, gestorempresário: como perdi dois mil contos, em 1985 (c. de 46,5 mil euros, a preços de hoje), com o projeto




Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Dmingos, 1967 /69); economista, empresário, gestor, consultor de projetos; natural do Porto, vive em Vila do Conde; voltou à Guiné-Bissau, em viagem de negócios, em 1984/85 (*). 





Guiné-Bissau > Bissau > Cumeré > 5 de janeiro de 1985 > O Virgílio Teixeira (Vt)  junto a um complexo agroindustrial, inacabado e abandonado: tratava-se de uma fábrica de descasque de arroz... 

Fotos (e legendas): © Virgílio Teixeira (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1.  O Virgílio Teixeira já aqui nos contou como foi o seu regresso à Guiné--Bissau, no tempo de 'Nino' Vieira, em 1984 e 1985 (*)

 Guiné 1967/69 - Álbum de Temas:

T999 – O regresso à Guiné em 20out84;
- 10 anos após a independência em 74set24
- 15 anos depois da minha saída em 4ago69;
- 17 anos depois da minha primeira chegada, em 21set67.

Do seu texto de 13 ou 14 páginas ficou por publicar a última parte. Mas o assunto volta agora à baila.

Em 1984/85 o Vt regressou à Guiné-Bissau, em duas viagens de negócios,  como consultor de um projeto de investimento, com financiamento estrangeiro, que acabou mal, devido à conjuntura interna. (Julgamos que o Vt se refere ao chamado "caso 17 de outubro de 1985", que acabou com o fuzilamento, entre outros, do destacado e brilhante dirigente, de origem balanta, Paulo Correia, membro do Governo, que geria a pasta da justica, e era vice-presidente do Conselho de Estado).

Como o Vt  nos disse em 2019: 

(...) "O final do projecto não foi muito feliz, e contém tanta coisa pessoal e que tenho de preservar. Acho que, no final de tudo, quase desgracei a minha vida, e já se passaram 35 longos anos, desde que iniciei esta loucura. 

Em todo o caso, é parte da vida de um camarada da Guiné, e julgo que tem interesse para quem quer perceber o curso que seguiu aquele novo país de língua portuguesa. "  (...) (***)


2. Comentário do Virgílio Teixeira ao poste P27098 (**):

A foto nº 2  onde está um Bar Baiano, colado a um prédio colonial cor tijolo, na porta 12, é o edifício onde tínhamos (a minha equipa de projectos),  em 1984 e 1985, a sede das nossas sociedades.

Era a casa de um homem branco, ou nem tanto, residente que depois também fazia parte do nosso eventual negócio.

Já a partir de 1985, começámos a utilizar as suas instalações, para albergar a malta, era eu, o técnico I...,  depois veio a mulher, o filho e a filha, naturais de Coimbra ou arredores.

Vivemos lá por duas vezes, parte em janeiro de 85 e no fim de tudo em junho 1985.

Nunca mais vi ninguém porque viemos embora (os sócios principais, o V.L.  incluído), todos deram os frosques, pois a resposta ao alegado golpe de Estado foi a matar a torto e a direito a mando de 'Nino' que  também era nosso sócio.

O I..., a mulher, o filho e a filha ficaram lá, pois já tinham avançado com a desmatação na zona de Bafatá, e havia uma sociedade com o meu nome, e outros, que não sei hoje o que se passou.

Como confidência, o I...,  que não tinha já nada aqui em Portugal, com a familia toda lá, ficou...

Nunca nos disse nada, e já éramos muitos, ele terá se aproveitado da sociedade, para levar por diante o seu projecto de vida.

Há aqui uma grande confusão , pois acho que ele teria algumas cartas na manga que nunca soubemos, eu pelo menos e o V. L.  com quem falei durante muitos anos.  A sociedade foi legalmente constituída, eu próprio fiz a minuta e tratei de toda a burocracia - e não era pouca - para para pôr aquilo a andar.

Ainda assinei com os outros um tipo de empréstimo de adiantamento, e cedência de máquinas e pessoal, e às tantas ainda sou devedor de alguma coisa ...

Vim a saber por outros capitalistas mais adiantados, que o sócio I... terá,  depois de nos virmos embora, feito uso  da própria filha 
como moeda de troca,  com alguns comandantes. (Não posso comprovar a veracidade deste facto, no mínimo insólito; o que um homem pode fazer por dinheiro!)

É verdade que todos nós nunca mais contactámos com ele, e a morada era Rua Eduardo Mondlane, nº 12 Bissau, à saída para o aeroporto. 

Não confirmo nada disto, sei é que perdi do meu dinheiro,  2 mil contos, sem nada receber. Era um risco calculado, devido aos diferenciais de ofertas e orçamentos, tratados maioritariamente pelo I..., porque ele é que sabia da matéria de plantação de arroz em sequeiro. (LG: 2 mil contos em 1985 equivalem, a preços de hoje, a 46,5 mil euros)

A parte industrial do projecto era uma empresa alemã de reputação, que iria dar seguimento ao descasque, branqueamento, embalagem e exportação do arroz, tudo com o aval do nosso Banco de Portugal e da Guiné-Bissau.

Mas toda esta história, que era comandada pela Guiné, com o aval dos cooperantes dos paises de Leste, que sempre colocaram reservas e pareceres desfavoráveis, para benefício de outros.

Foi uma grande experiência, onde se via já o poder a funcionar, a corrupção, os interesses, a política e a polícia.

Tive a preciosa ajuda, com pareceres, do Ministro das Finanças da Guiné, convivi na sua casa, ele que foi meu conterrâneo no Curso de Economia na Faculdade de Economia do Porto, e unha com carne com o V.L.  que era o tutor dos filhos no Porto.

Falo nisto com uma certa nostalgia, pois as coisas não correram bem, não por minha culpa (afinal, o cérebro do projecto económico e financeiro, que recebeu um louvor escrito do Banco de Portugal, e outro verbal do Ministro do Desenvolvimento Rural da República do Senegal, onde fomos lá para vender o projecto).

Tudo se projectou no abismo após o alegado atentado ao 'Nino' que, em resposta, mandou fuzilar uma série de malta da alta politica do Estado, onde se incluía um nome importante que era o ajudante de campo do 'Nino'. (***)

Luis, se puderes publica neste poste , com fotos de coisas que já não conheço, e outras que, como é obvio,  ainda reconheço.

 
Grande Abraço, Virgilio Teixeira


2. Comentário do editor LG:

(i) Em mail de segunda feira, 11/08/2025, 21:27, disse ao Vt:

Virgílio, a publicar, como me pedes, vou fazê-lo na série "O Segredo de..." (...)

Como envolve nomes de terceiros, e ainda vivos, temos de ser cautelosos... Tenho também que te proteger: tens o coração demasiado ao pé da boca... Já falaste em tempos desta história que pode parecer algo "mafiosa" para os leitores do blogue... mas que ficou incompleta. 

Talvez possas ser mais claro, conciso e preciso...Não tens que mencionar nomes, a não ser o teu e o do 'Nino' e pouco mais (dos outros que estão vivos, não tens a devida e competente autorização; como sabes, há a figura, jurídica, do "direito ao esquecimento", que é reconhecido na UE e na Internet)...

Quanto ao golpe de Estado do 'Nino' não estás a referir-te ao de 14 de novembro de 1980... (E depois houve a guerra civil de 1998/99;  pelas minhas contas, deve tratar-se do chamado caso "17 de outubro de 1985"; Paulo Correia acabou por ser a vítima inocente... )

Revê essa história e depois manda-me uma segunda versão... Pode vir a ser partilhada como um "segredo teu" (*), ligado à Guiné-Bissau...



(ii)  O Vt achou por bem não rever nada...Com a sua autorização, omitimos os nomes dos intervenientes. Aparecem aqui apenas em iniciais. Disse-nos ele:
  • sobre o V. L., direi apenas que era um amigo do meu pai; tinha faro para os negócios e ótimas relações com o poder em Bissau;
  • o resto do grupo incluía empresários e técnicos agrícolas de cultivo de arroz, fugitivos em 1975 de Angola, onde tinham grande peso;
  • o nosso projeto deu voltas por Portugal, Espanha, Alemanha, Guiné-Bissau e Senegal;
  • o resto vem no meu livro de memórias de 6 mil páginas, que nunca hei de publicar...
  • longa história, esta, a culminar com a minha assistência no Raly Dakar, quando lá estava em 15 e 16 de janeiro de 1985.

(Revisão / fixação de texto: LG)



(***) Vd. postes de;




(...) O nosso projecto transitou pelos serviços governamentais, sob a designação inventada por mim, de “AGRINÉ – Agricultura da Guiné, Lda.,“ e ocupava uma zona previsional de 7000 hectares de terreno [mais do que 7 mil campos de futebol...], já inscritos a nosso favor, e com mapa registado, na zona de Cabuca, nas margens do Rio Corubal, que eu tão bem já conhecia.

Bem, como um elevado montante de investimento nacional e internacional, eram 20 milhões de USD que ao câmbio daquela época, já tinha baixado de 200 para 180, dava em dinheiro português cerca de 3,5 milhões de contos.

Aquele valor a preços atuais com a inflação de mais de 30 anos, e com as mudanças de Escudos para Euros, significava algo como 70 milhões de euros!... [Em rigor, 3,5 milhões de contos, em 1985, dava qualquer coisa como 69,6 milhões de euros, a precos de hoje, usando o conversor de moeda da Pordata. ] E fosse o que fosse era sempre muito dinheiro, e da parte do Estado da Guiné significava pouco mais do que a cedência do terreno.

Andei um ano às voltas com este projecto, e para elaborar o estudo tive de me deslocar 2 vezes àquele país. A burocracia era tanta que quase dava para desistir, formámos a empresa local, arranjámos sócios locais – o próprio 'Nino' Vieira, presidente da república, também entrava através do sogro, e mais um brigadeiro local, ajudante de campo do 'Nino'... E cada viagem custava uma pequena fortuna, era arriscar muito. (...)