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terça-feira, 21 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27337: Viagens à Guiné-Bissau: Amizade e Solidariedade (Armando Oliveira e Ricardo Abreu) (4): Nova Sintra (Aníbal Silva, ex-Fur Mil Vagomestre)

1. Em mensagem de 19 de Outubro de 2025, Aníbal José Soares da Silva, ex-Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483 / BCAV 2867 (Nova Sintra e Tite, 1969/70), enviou-nos a quarta reportagem das "Viagens à Guiné-Bissau: Amizade e Solidariedade", levadas a efeito pelos nossos camaradas Armando Oliveira e Ricardo Abreu.


VIAGENS À GUINÉ BISSAU: AMIZADE E SOLIDARIEDADE

NOVA SINTRA

Instalações do quartel de Nova Sintra em 72/74 bem melhores que as de 69/70 da minha época

O quartel de Nova Sintra estava situado na parte sul do Setor de Tite, na Península de Gatangó, região do Quinara. Era uma localidade abundante em cajueiros e mangueiros e onde se fazia o cruzamento da estrada “internacional“ que tinha início no Enxudé, porto no rio Geba e ligava Tite a Bolama por São João e Fulacunda até Buba e Catió.

O quartel foi construído entre os dias 6 e 31 de Maio de 1968, pelos sacrificados e abnegados militares da CCAÇ 2314 e CART 1802, com o propósito de obstar ou dificultar o movimento de homens do PAIGC e de material, na direção de Bissássema, localidade junto ao rio Geba, fronteira à cidade de Bissau, de onde poderiam fazer ataques a esta cidade.



VIAGEM DE 15 DE ABRIL DE 2017

Para concluir o périplo do triângulo da região do Quinara, Tite, Fulacunda e Nova Sintra, a crónica de hoje é relativa à visita a esta ultima localidade da Guiné-Bissau, pelos camaradas Armando Oliveira e Ricardo Abreu.

O transporte dos “repórteres” desde Tite, via Fulacunda e até Nova Sintra foi assegurado por uma viatura da Missão Católica de Tite e conduzido por uma freira. Segundo eles, no espaço que fora ocupado pelo quartel nada resta, salvo meia dúzia de edifícios em ruínas (ver fotos) e está totalmente coberto por árvores e densa vegetação, não permitindo identificar o que quer que seja.

No meu tempo, Março de 69 a Setembro de 70, nas imediações do quartel não havia qualquer tabanca que albergasse população, pelo que foi com surpresa e agrado que os “repórteres” me deram a conhecer a existência da Tabanca de Nova Sintra, situada a meio caminho entre o antigo quartel e o “famigerado” cruzamento de Nova Sintra (acesso a S. João, Tite e Fulacunda).

O propósito da visita foi o mesmo que as efetuadas a Tite e Fulacunda, a “amizade e solidariedade” com a entrega de dádivas, tais como: livros, cadernos e material escolar; bolas e equipamentos desportivos, bonés e t-shirts; biberões e comida para bébés; soros e material de aplicação e principalmente medicamentos.

Ruínas de edifícios do antigo quartel de Nova Sintra
Vegetação densa no espaço outrora ocupado pelo quartel
Ricardo entre dois homens que foram do PAIGC, sendo o que tem a espingarda, o que colocava minas na zona de Nova Sintra.
Estrada Tite - Nova Sintra que o Ricardo percorreu de motorizada dois dias depois da visita. Estrada que ele ajudou a desminar, até ao “pontão”, após o 25 de Abrilde 1974.
Tabanca de Nova Sintra
Ricardo Abreu na entrega de sacos com dádivas
Juventude da Tabanca de Nova Sintra
Jovens no centro do famigerado, pela sua perigosidade de outrora, cruzamento de Nova Sintra

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 14 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27316: Viagens à Guiné-Bissau: Amizade e Solidariedade (Armando Oliveira e Ricardo Abreu) (3): Vila de Fulacunda (Aníbal Silva, ex-Fur Mil Vagomestre)

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27336: Notas de leitura (1854): "Um Império de Papel", por Leonor Pires Martins; posfácio de Manuela Ribeiro Sanches; Edições 70, 2.ª edição, 2014 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Dezembro de 2024:

Queridos amigos,
No posfácio desta importantíssima obra que é um "Império de Papel, Imagens do Colonialismo Português na Imprensa Periódica Ilustrada (1875-1940)", a investigadora Manuela Ribeiro Sanches releva a retórica da missão civilizadora, como a do marquês de Sá da Bandeira, e a sua filantropia anti-esclavagista, desmentidas pelas práticas nas colónias, a noção de cristianização que acompanhou o processo missionário, onde estavam ausentes dois fundamentos essenciais: o da igualdade natural de todos os humanos e o do seu estádio civilizacional inferior para justificar o aproveitamento do progresso, uma forma de puxar para cima as raças e as culturas - era como se o colonialismo exigisse a África entrar na Idade das Luzes, isto no século XIX, porque a seguir, com a industrialização maciça, com a valorização das matérias-primas, a intenção libertadora ou filantrópica ganhou outra dimensão. A resposta política que o Estado Novo encontrou, na efervescência dos movimentos anticoloniais, foi o lusotropicalismo, outra ficção, basta pensar na Guiné onde a população branca era mínima e quase sempre de passagem. Procurou-se dar uma imagem de tolerância, catapultar os quadros africanos para lugares intermédios da Administração Pública, subsidiar as peregrinações a Meca, construir estradas a galope, etc. Claro que estamos a falar de uma ou outra história posteriores à de um Império de Papel. E Manuela Ribeiro Sanches observa que cabe à Europa tentar ver no seu passado menos um repositório de glórias e feitos, mas uma oportunidade para reconhecer os limites e ensaiar um pequeno passo para se reinventar a Europa e as suas relações consigo mesma e com o mundo.

Um abraço do
Mário



Um Império ficcionado em jornais e revistas, livros e álbuns, um Império de e em papel (2)

Mário Beja Santos

Trata-se de uma obra esmerada pelo conteúdo e apresentação, "Um Império de Papel", por Leonor Pires Martins, posfácio de Manuela Ribeiro Sanches, Edições 70, 2.ª edição em 2014. A autora visionou e analisou publicações entre 1875 e 1940 e diz que vem ao mesmo tempo propor uma revisitação crítica da iconografia. “Com esse objetivo, procurei fazer um enquadramento histórico de imagens aqui reproduzidas, assinalando as circunstâncias políticas, culturais, mas também da ordem tecnológica, que marcaram – e possibilitaram – a sua produção e circulação. Considerei os temas mais recorrentes e as motivações dos diversos artistas e fotógrafos. O papel diligente e ideologicamente empenhado da generalidade da imprensa periódica ilustrada na disseminação de ideias e conhecimentos.“

Porquê 1875 e até 1940? Em 1875 é criada a Sociedade de Geografia de Lisboa, a quem caberá o papel catalisador para a construção do Terceiro Império, funcionará como o lobby junto do poder soberano, contribuirá para expedições, congregará intelectuais, diplomatas, agentes dos negócios e da finança, escritores, tem no seu comando uma figura excecional, Luciano Cordeiro- 1940 é a data da maior obra ideológica da construção e mentalização de que o Mundo Português ia do Minho a Timor, o regime de Salazar não poupou esforços para o grandioso espetáculo que ofereceu na Praça do Império.

Jornais e revistas contribuem para que os leitores nutram um sentimento de grandeza pelos cerca de 2 milhões de quilómetros quadrados do Império Colonial Português, é graças a esse Império de Papel que se vai tomando conhecimento da ocupação das regiões africanas, do atrativo em emigrar, refazer a vida numa base de prosperidade, tudo parece abrir campo à riqueza daquelas Áfricas, mais a mais o país continua a ser visceralmente de analfabetos, o que realça o peso da imagem.

Mas, como escreve a autora, tudo era relativamente ilusório. “O país não dispunha de meios para explorar e colonizar os seus domínios ultramarinos. Repare-se que na viragem do século a maior parte dos territórios, sobretudo os maiores, não estavam mapeados, não tinham redes de estradas ou caminhos de ferro, nem um sistema de administração unificado e as comunicações com a metrópole eram esporádicas e dependentes da navegação inglesa. As ferrovias existentes, construídas com capitais ingleses e à custa do trabalho forçado imposto aos indígenas ligava não as regiões das províncias ultramarinas portuguesas, mas Lourenço Marques aos Transval e a Beira à Rodésia. Assim, talvez mais do que a deficiente organização do aparelho administrativo colonial, ou as cíclicas crises financeiras nacionais, foi a dificuldade de atrair colones para a África Portuguesa, para a transformar no novo Brasil.”

As publicações esforçavam-se por mostrar as estações zootécnicas, os touros, os pastores portugueses, a produção de açúcar. Dava-se notícia do transporte gratuito de portugueses para Angola e da entrega de terras a esses novos colonos, preferindo-se aqueles que soubesse ofícios mecânicos ou fossem artistas e lavradores. Mas o Brasil continuava a ser um polo de atração.

A Igreja Católica mobilizava padres, freiras e missionários. E, sem tréguas, surgem imagens de construções, plantações, embarques de cacau, as famílias no planalto de Moçâmedes. Andaram a conviver portugueses e bóeres na Huíla, não se misturaram bem na maneira de viver, os bóeres grandes caçadores, os madeirenses dedicados principalmente a culturas alimentares, os bóeres abandonam o planalto da Huíla, houve depois um ambicioso projeto de colonização com transmontanos, estes só chegaram depois da Segunda Guerra Mundial. Também a autora observa que o imediato envolvimento de Portugal na Primeira Guerra Mundial acarretou a deslocação de tropas expedicionárias para o sul de Angola ou norte de Moçambique, estes atos foram decisivos para que o país mantivesse as suas colónias, contudo não ficou afastado o fantasma da expropriação do Império. Para afastar esse perigo criou-se em 1920 o regime dos Altos-Comissários para Angola e Moçambique, conferindo-lhe vastos poderes e maior autonomia de decisão, Norton de Matos foi Alto-Comissário em Angola, tinha um plano bastante ambicioso que previa, entre outros aspetos, a rápida modernização do território, feita através da reorganização das estruturas administrativas, o fomento da economia, a construção de habitações – mas um regime encapotado de escravatura ainda permanecia na colónia.

Há também uma outra observação pertinente que a autora regista:
“A iconografia alusiva à África colonial mascarava as fragilidades do Império: um Império onde as viagens de exploração não trariam grandes vantagens a Portugal no jogo da diplomacia e política coloniais europeias, mas a que as imagens publicadas na imprensa periódica deram uma expressão notável; um Império cujo efetivo controlo foi tardio, apesar das revistas ilustradas confirmarem a presença de regimentos de tropas portuguesas em várias regiões africanas desde os meados da década de 1890; um Império que, década após década, assistiu à falência dos sucessivos projetos do povoamento ‘branco’, mas que os retratos de grupos de colonos pareciam contraditar; um Império que, em termos globais, não gozava de uma economia próspera, mas do qual chegavam notícias e imagens de grandes fazendas agrícolas, empregando mão de obra nativa que era educada na aprendizagem da música europeia…”
Tudo conjugado, estas imagens tinha o poder de ludibriar, o mesmo não acontecia nos altos círculos da política, aí sabia-se perfeitamente que havia ameaças de expropriação estrangeira, e que os governos eram incompetentes para defender, administrar e desenvolver eficientemente as possessões ultramarinas.

Império de ficção, basta pensar na missão civilizadora advogada por Sá da Bandeira, a abolição da escravatura, que se prolongou à sorrelfa do que a lei prescrevia, mascarada de trabalho forçado. O Estado Novo procurou usar todo este material imagético a partir da Agência Geral das Colónias, teve a preocupação de apoiar ou incentivar a publicações periódicas para preparar os quadros da administração colonial (basta pensar no Boletim Geral das Colónias, a revista "O Mundo Português", a coleção "Pelo Império", os "Cadernos Coloniais", as mostras de produtos, os cortejos, as exposições coloniais, eram imagens em que aparecia o ministro das Colónias, Armino Monteiro, no Parque Eduardo VII, onde se realizava a Grande Exposição Industrial Portuguesa, em 1932, ali apareceram grupos de guineenses, depois a exposição colonial de 1934, apresentada publicamente como uma grande lição de colonialismo, faziam-se excursões no centro e no norte do país para ir ver esta gente exótica e as meninas de peito ao léu.

E assim se chegou ao acontecimento mais espetacular do Estado Novo, a exposição do Mundo Português, momento de grande dinamismo do regime, a par das comemorações, iniciava-se a recuperação de vários castelos medievais, o restauro dos chamados “Primitivos Portugueses” (pinturas dos séculos XV e XVI), a construção do Estádio Nacional, da Fonte Luminosa na Alameda D. Afonso Henriques, dos bairros do Restelo e Alvalade, do aeroporto, das gares marítimas e fluvial, de entre outras obras e infraestruturas públicas que mudariam de forma significativa a toponímia e a vida na cidade.

Não voltou a haver elã para repetir tal desafio de desenvolvimento à sombra do Império, nem mesmo nas comemorações do 40.º aniversário da Revolução Nacional. E a autora assim termina:
“Poder-se-á dizer que o Império de Papel aqui referido foi-o sobretudo de papel de jornal e revista. Não chegou a ser sequer um Império, de capa dura ou emoldurado – e muito menos de película.”

Exposição do Mundo Português, indígena Bijagó
Plano geral da Exposição do Mundo Português, 1940
Exposição do Mundo Português, outra vista panorâmica
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Notas do editor:

Vd. post anterior de 13 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27314: Notas de leitura (1850): " Um Império de Papel", por Leonor Pires Martins; posfácio de Manuela Ribeiro Sanches; Edições 70, 2.ª edição, 2014 (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 20 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27333: Notas de leitura (1853): "Os Có Boys (Nos Trilhos da Memória)", de Luís da Cruz Ferreira, ex-1º cabo aux enf, 2ª C/BART 6521/72 (Có,1972/74) - Parte IV: de Figo Maduro a Bissalanca "by air", e depois de LDG até Bolama para a estopada da IAO (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P27335 O vinho... pró branco de 2ª e pró tinto de 1ª (4): transporte e recipientes


Guiné > Zona Sul > Região de Tombali > Pel Rec Fox 42 > 1964 > Fev / mai 1964 >  Ganturé > O sold cond auto Armando Fonseca na hora do repouso do guerreiro  a escrever, sentado, à porta da sua morança; em segundo plano, do lado direito, assinalado a amarelo, um garrafão de 10 litros,  usado pela Manutenção Miliutar para distribuir o vinho pelos destacamentos, guarnições mais pequenas que os aquartelamentos. Eram também usados pelos militares (e pela população) para transporte de água.

Foto (e legenda): © Armando Fonseca (2012). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Região de Tombali > Guileje > Pel Caç Nat 51 (1969/70) > Em 1972/73, a fonte que abastecia o aquartelamento e a tabanca de Guileje, distava cerca de 4 km. Ficava no Rio Afiá. No tempo da CART 2140 (1969/70 e do Pel Caç Nat 51, o abastecimento era manual e fazia-se com recurso a bidões, jericãs e garrafões (de 10 litros) (assinalado um, a amarelo). No tempo da CCAV 8350, a companhia que retirou de Guileje em 22/5/1973, havia já um bomba de água de água, a motor. 

Foto  do álbum do Armindo Batata, comandante do Pel Caç Nat 5 (1969/70)

Foto (e legenda): © Armindo Batata / AD - Acção para o Desenvolvimento (2007). Todos os direitos reservados [Ediºão e legendcagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné

..

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) > O fur mil op esp José Casimiro Carvalho, cuidando do jardim...Em segundo plano um conjunto de barris, já desconjuntados...  No tempo da CCAÇ 3325, em 1971,  terão tido melhor uso...

Foto: © José Casimiro Carvalho (2007). Todos os direitos reservados.  [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.]



Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 3325 > 1971 > O com-chefe gen António de Spínola a chegar (faria duas visitas nesse ano). Originalidade: o pavimento do acesso do quartel à pista de aviação (a chamada entrada VIP) era revestido com milhares de garrafas de cerveja. 

Numa série de barris sobrepostos (de 100 litros, parece-nos), no lado direito, lê-se, em Português, a inscrição a tinta branca "Boa-V(iagem)". Por baixo, a frase árabe بيت السلام (Bayt al-Salam):
  • بيت (Bayt) significa "Casa".

  • السلام (al-Salam) significa "A Paz".


É a nossa leitura com a ajuda da IA (Perplexity  e Gemini).  Ambas as frases exprimem votos, a quem chega,   de boa jornada, estadia e segurança naquele contexto (que era de guerra).

​Foto nº 18 do álbum fotográfico do cor inf ref Jorge Parracho

Foto: © Jorge Parracho (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.]


 Transporte e recipientes do vinho



1. Num excerto do jornal "O Século", de 15 de janeiro de 1899 (citado por José Capela, "O Vinho para o Preto", Porto, Afrontamento, 1973, pág. 61), fomos encontrar expressão "barris de quinto ou décimo". 

O que eram exatamente estas medidas ? 

1. A "pipa"

No comércio vinícola português do século XIX (sobretudo no Norte), a pipa era a principal unidade de medida de capacidade para o vinho, equivalente a cerca de 520 a 550 litros, dependendo da região e do tipo de vinho. No Douro, por exemplo, 1 pipa ≈ 550 litros (às vezes também chamada “pipa de vinho do Porto”). Equivalente a 25 almudes.

A pipa fazia fazia parte do sistema das antigas unidades  de medida de capacidade para líquidos. A unidade da pipa acima era o tonel (2 pipas). O terno ficou no nosso léxico atual
 

Barril de 100 litros,
em castanho,´
já industrial. Dimensões (em cm):;
altura=80; bojo=50,
diâemtro da cabe=40
Fonte: Loja Agropecuaria

2.  “Barril de quinto” e “barril de décimo”

As expressões “barril de quinto” e “barril de décimo” indicam a quinta parte ou a décima parte de uma pipa.

Assim:

  • Barril de quinto = 1/5 de pipa ≈ 105 a 110 litros

  • Barril de décima = 1/10 de pipa ≈ 52 a 55 litros

Portanto, tratava-se de submúltiplos da pipa, usados sobretudo em contextos de comércio, transporte marítimo e exportação, quando não se justificava enviar uma pipa inteira, mais difícil de manobrar e acondicionar nos navios.

Esses recipientes (em madeira, em carvalho ou castanho, feitos pelos tanoeiros) eram menores do que a pipa,por  isso  mais manejáveis nos navios e nos portos africanos, e adequados ao comércio por retalho ou escambo com intermediários locais (muitas vezes “lançados”, afro-luso-descendentes ou comerciantes cabo-verdianos).

Por outro lado, o uso de medidas fracionadas da pipa permitia ajustar melhor os volumes exportados conforme as taxas alfandegárias e o poder de compra nos destinos africanos.

 3.  O transporte de vinho da Manutenção Militar para a Guiné (1961/74)

O fornecimento de géneros alimentícios, incluindo o vinho, ao CTIG, era da responsabilidade do Serviços de Manutenção Militar... No entanto, a forma como esse vinho chegava  ao BINT (Batalhão de Intendência), em Bissau, e às unidades e subunidades no mato,  revela os enormes desafios logísticos daquele teatro de operações.

A Guiné era, de facto, um território logisticamente muito complicado, dependente de transporte aéreo (helicóptero, DO-27, ou paraquedas, etc.), fluvial (lancha da marinha, barco civil ou "barco-turra") ou terrestre (coluna auto,  sujeita a minas e emboscadas).

Tudo indica que o transporte de Lisboa para Bissau fosse feito originalmente em barris (sobretudo de 100 litros) e não em pipas. Mais tarde (não sabemos exatamente quando, mas mais para o fim da guerra) terão aparecido os bidões metálicos, de 200/210 litros. 

Nenhuma das plataformas de IA por nós consultadas refere o transporte do vinho, metropolitano, para o CTIG em navios-tanque ou conbtentores. Será que havia em Bissau infraestruturas portuárias para descarregar esses tanques e esses contentores ? Em Luanda e Lourenço Marques haveria. Mas Bissau  também recebia navios-tanque com combustíveis...E eram as próprias "gasolineiras" (c0mo a Sacor) que abasteciam diretamente as guarnições militares no mato,  pelo menos as mais acessíveis por via fluvial. Enfim, é uma questão que fica em aberto, a do transporte do vinho em navios-tanque.

Na Guiné, o vinho era fornecido pela Manutenção Militar (MM), com origem em Portugal continental. O circuito habitual era:

Portugal → Bissau (por navio) → Depósito do BINT →  Depósitos Regionais (Bissau, Tite, Bula, Bafatá, Farim, Bambadinca e Catió, com os respetivos PINT - Pelotões de Intendência).

Quanto aos recipientes, dependia da fase da guerra, do meio de transporte  e da acessibilidade do local:

  • na origem (Metrópole), o vinho era expedido em barris de 100 litros e, mais tarde, bidões metálicos de 200–210 litros, dependendo do tipo de transporte e destino;
  • os bidões metálicos devem ter aparecido, de facto,  já mais para o fim da guerra: o  nosso camarada João Lourenço, ex-alf mil SAM, cmdt do PINT 9288 ( Cufar, 1973/74), escreveu:  "O vinho era fornecido pela MM [Manutenção Militar] em bidões de 215 lts, salvo erro, e usado assim mesmo, devido ao calor havia por vezes o hábito de usar um bidão sem a tampa onde eram colocadas barras de gelo feitas com água tratada e potável claro, o que dava sobras";
  • nos depósitos regionais (onde havia Pelotões de Intendência: Bissau, Bula, Bambadinca, Tite, Farim, Cufar), o vinho podia ser redistribuído em garrafões de 5 ou 10 litros, de vidro (mas já revestido a plástico, no caso dos de 5 litros, ou vime/tiras de madeira, os de 10 litros); ou seguir em barris de 100 litros e, mais tarde, em  bidões  de 200/210 l (para boa parte dos aquartelamentos);
  • os barris de 50 l ou 100 l (os tais barris de décimo e de quinto), em madeira de castanho ou carvalho, eram uma solução tradicional e robusta para o transporte de vinho; eram relativamente manobráveis; além, náo tinham que ser devolvidos à Intendência: a malta acaba por aproveitá-los para fazer cadeiras reclináveis, bancos, mesas, mobiliário diverso, etc. , ou então comno lenha;
  • nos quartéis e destacamento do mato, os garrafões de 5 e 10 litros eram os mais práticos e comuns, porque podiam ser transportados  por Unimog,  jipe ou até à mão; eram demasiado frágeis para o transporte em condições de guerra (lançamento por paraquedas, transporte em camiões por picadas minadas); eram mais usados para o fornecimento das messes de oficiais ou sargentos, que por vezes recebiam vinhos de melhor qualidade em separado;
  • os bidões metálicos de 200/210 litros (semelhantes aos de combustível, mas estanhados por dentro, para não oxidar o vinho) eram mais utilizados para transporte em massa; esta era, muito provavelmente, a forma mais comum de transportar o vinho  a granel para os depósitos dos PINT (Pelotões de Intendência (Bissau, Tite, Bula, Bambadinca, Bafatá, Farim, Cufar); estes bidões (semelhantes aos de combustível) eram extremamente robustos: podiam ser rolados ou içados  (embora não houvesse monta-cargas na maior parte dos sítios; havia gruas e pequenos guindastes nos portos fluviais, como Bambadinca).
Em suma: o vinho chegava a granel ao teatro de operações da Guiné em barris sobretudo de 100 litros e, mais tarde, bidões metálicos de 200/210 litros; a Intendência fazia a redistribuição para as 220 e tal guarnições militares do território (aquartelamentos e destacamentos). Se o transporte fosse em coluna auto, poderia ir nos próprios barris ou bidões. Se fosse por lancha para sítios mais isolados (rio Cacheu, rio Cumbijã, rio Cacine, por exemplo), o vinho era muitas vezes recondicionado em recipientes mais pequenos e manobráveis: aqui, barris de 50 l ou outros recipientes metálicos robustos (como jerricãs, embora menos comuns para vinho) seriam preferíveis aos frágeis garrafões.

 Os problemas logísticos ditavam que a robustez da embalagem era mais importante do que qualquer outra consideração. 



4. A cor dos bidões metálicos para vinho

 Quando apareceram  os bidões metálicos, de 200/210 litros, para vinho, tinha uma  cor exterior que permitia distinguí-los logo dos restantes bidões usados para combustíveis e óleos:
  • Vermelho = Gasolina
  • Azul = Gasóleo
  • Verde-Claro = Petróleo branco
  • Amarelo = Óleos

Os bidões metálicos de vinho, utilizados durante a guerra colonial na Guiné Portuguesa, mas já mais para o fim (1973/74), tinham geralmente um volume de 200 a 210 litros, eram estanhados por dentro (para evitar a corrosão do recipiente e  a contaminação do vinho) e, no exterior, eram pintados de cor prateada ou cinzento-metálico (ou  cor metálica natural ou tinta alumínio) (vd. imagem à direita, de um bidão moderno, "made in China").

Os bidões para vinho não seguiam o mesmo código cromático que os combustíveis e óleos (vermelho, azul, verde-claro, amarelo), pois não transportavam produtos inflamáveis. Podiam ser  reaproveitados para outros fins, devendo ser em princípios devolvidos à Intentência.  (Ou não ?... Fica para confirmar.)

Em 1969/71, não me lembro de os ver em Bambadinca... Devem aparecido mais tarde. (Mas eu, confesso, nunca fui visitar o destacamento da Intendência, no cais fluvial de Bambadinca,)

 5. 
Conclusão provisória

Segundo a(s) assistente(s)de IA que consultámos, não foi encontrada, nas fontes de acesso aberto,   
descrição normativa padronizada do acondicionamento específico do vinho para a Guiné, ao tempo da guerra colonial (barris de 50 L,  barris de 100 l, bidões de 200-210 L, garrafões de 5 e 10 l, etc.). A Intendència foi-se adaptando também, conforme a tecnologia de acondicionamento dos líquidos, a par da modernização dos portos, da estiva e dos transportes marítimos. 

 Em conslusão, o "vinho ... pró branco de 2ª"  (que foi o Rosinha em Angola e todos nós na Guiné...) era fornecido a granel, em embalagens de grande capacidade, para facilitar o transporte e reduzir custos (inicialmente em barris de 100 l).  Para o interior, para o mato, foi encontrando soluções à medida, conforme as necessidades e os obstáculos. 

Veremos, em detalhe, em poste a seguir, os problemas logísticos que levantavam o abastecimento de vinho às NT.

 (Contimua)

(Pesquisa: LG + Assistente de IA (ChatGPT, Gemini, Perplexity, Meta, Mistral)

(Condensação, revisão / fixação de texto, negritos: LG)

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Nota do editor LG:


Último poste da série > 18 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27330: O vinho... pró branco de 2ª e pró tinto de 1ª (3): a ração diária do "tuga" seria de 1/4 de litro, o que dava 90 litros em média por ano, diz a "Sabe-tudo"

Guiné 61/74 - P27334: O início da guerra (Armando Fonseca, ex-sold cond, Pel Rec Fox 42, mai 62 / jul 64) - Parte IV: Depois de Guileje, Ganturé (fev/mai 1964)





Guiné > Zona Sul > Região de Tombali > Pel Rec Fox 42 > 1964 > Ganturé


Fotos (e legendas): © Armando Fonseca (2012). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Zona Sul > Região de Tombali > Carta de Cacoca (1960) (Escala 1/ 50 mil) > Posição relativa de Gadamael, Ganturé, Sangonhá, Cacoca, rio Cacine, fornteira com a Guiné-Conacri, parte do Quitafine/Cacine e do Cantanhez (e as míticas matas de Camaiucuntane, Catabá, Catonco, Casséfunda)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2025



O início da guerra (Armando Fonseca, ex-sold cond, Pel Rec Fox 42, mai 62 / jul 64)

Parte IV - Depois de Guileje, Ganturé (fev/mai 64)




Armando Fonseca,
o "Alenquer", ex-sold cond,
Pel Rec Fox 42 (1962/64)
Durante a permanência do meu pelotão em Guileje (*), enquanto ia avançando a construção do aquartelamento, nós deslocávamo-nos com frequência a Aldeia Formosa, Buba, Bedanda, etc.

Nessas deslocações sofríamos algumas emboscadas e, como reagíamos de imediato, porque tínhamos um forte poder de fogo, depressa eram aniquiladas.

Lembro-me,  de uma das vezes em que fomos a Bedanda, termos sofrido uma emboscada e na sequência desse ataque, em certa altura ver um arame a ir pelo ar, saindo debaixo da minha autometralhadora. Esse arame não era nada mais nada menos do que o comando de uma mina que,  depois de levantada,  tinha o bonito peso de sete quilos.

Pelo que se deduziu, o arame foi puxado no exacto momento em que uma das rodas o pisava e por isso se partiu e a mina não explodiu. Depois de bem examinado o local, ainda havia mais outra mina idêntica,  uns metros mais à frente, mas que devido à nossa rápida reacção, o IN 
partiu em debandada e não houve tempo de a fazer explodir.

Depois do aquartelamento de Guileje ter condições de alguma segurança para defesa do pelotão que aí se instalou (a CART 495),  nós rumámos para outras paragens.

Em Gadamael Porto encontrava-se uma companhia que se encontrava totalmente isolada por estrada, devido às dezenas de árvores que ocupavam as estradas que comunicavam com essa localidade vindas de Norte. Ali só se chegava de barco ou de helicóptero.

Essa companhia era constantemente flagelada pelos ataques do IN e toda aquela gente vivia em frequente sobressalto, até que foi posta em marcha a Operação “Furão” que tinha por fim pôr transitável a estrada entre Guileje e Gadamael.

Então, a 2 de fevereiro de 1964, lá vamos nós a escoltar os Caçadores e a Engenharia a fim de desobstruir a estrada. Assim: depois de quase um dia, e de várias dezenas de árvores cortadas e retiradas para as bermas da estrada, chegámos a Ganturé que se situa a cerca de três quilómetros de Gadamael Porto.(**)

Ao chegarmos, foram detectados vários vestígios da presença do IN que aí se tinha instalado, porque as tropas que estavam em Gadamael não conseguiam vir até aí sem que sofressem grandes emboscadas que as obrigavam a voltar para trás.(**)

Depois de instalado em Ganturé um perímetro de segurança, o Pelotão de Cavalaria deslocou-se a Gadamael onde foi recebido com pompa e circunstância; havia um grande lanche pà nossa espera com comida e bebida à descrição.

Nesse dia,  eu que nem sou de muitas bebidas, apanhei o maior pifo da minha vida, que nem sei como regressei a Ganturé, nem por onde o carro passou, só sei que acordei no outro dia de manhã debaixo do carro, deitado em cima de um pouco de capim seco que alguma alma caridosa se encarregou de lá colocar.

Durante os próximos dias seguiram-se a montagem do arame farpado à volta do aquartelamento, a escavação de abrigos, a melhoria de habitabilidade das palhotas ali existentes, que eram agora as nossas habitações, e escoltas aos arredores a fim de serem minados os possíveis acessos do IN.

O meu Pelotão deslocava-se a Gadamael várias vezes por dia visto que era lá que funcionava a cozinha e as messes de Sargentos e de Oficiais. Por vezes também nos deslocávamos a Guileje.

Nessas deslocações, nos locais que se julgavam perigosos, fazia-se fogo de reconhecimento e numa dessas vezes aconteceu um caso pouco vulgar:

Ao serem feitas algumas rajadas para reconhecimento, no cruzamento entre Ganturé, Gadamael Porto e Gadamael Fronteira, senti uma leve comichão no pescoço e um liquido viscoso a correr-me pelo peito. Qual não foi o meu espanto ao verificar que já existia uma quantidade de sangue dentro da camisa.

Coloquei um penso e,  ao chegar a Gadamael,  o médico verificou que havia um corte provocado por um objecto metálico. Como não tínhamos ouvido nenhum tiro por parte do IN,  isso criou-nos alguma admiração. No regresso fomos averiguar no local se havia alguns vestígios de algum atirador isolado, mas o que se encontrou foi uma lasca de ferro tirada de um poste dos fios telefónicos que era de ferro, o que nos levou a supor que foi o nosso próprio fogo que me provocou esse ferimento.

Quem havia de dizer que aquela lasca, arrancada pelo fogo das nossas metralhadoras, vinha entrar pela janela de visão do condutor, que é muito limitada em tamanho, cerca de 40 cm x 15cm.

Cerca de um mês depois, quando nos deslocávamos ao encontro de uma coluna que se destinava ao abastecimento do aquartelamento de Guileje vinda de Aldeia Formosa (pois como anteriormente referi, nunca os dois Pelotões de Cavalaria se encontravam do mesmo lado do rio Balana, por causa da possível destruição da ponte), sofremos uma emboscada.  E voltei de novo  a ser ferido por uma rajada que,   batendo na frente da autometralhadora junto da janela, os estilhaços das balas juntamente com tinta vieram.se  espetar na minha cara.

Fiquei com quatro ou cinco ferimentos ligeiros, e o resto eram pedaços de tinta espetados por toda a cara. O alferes,  ao ver a minha cara,  ficou estupefacto, ainda ficou mais preocupado do que eu.

Até esta altura, março de 1964, já com 22 messes de comissão, nunca tínhamos tido ninguém ferido, mas aqui o nosso bom anjo parecia ter-nos abandonado.

Permanecemos em Ganturé até 20 de maio. No dia seguinte fomos para Sangonhá (...)

(Continua)


(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, título: LG)


(**) "Em 19 e 20Fev74, efectuou-se a operação Furão, que consistiu numa  coluna de Aldeia Formosa com destino a Gadamael Porto com apoio aéreo. Foram retirados 50 abatizes; abatido 1 elemento ln e apreendido armamento." 

(...) "A operação Ganturé foi realizada por um Grupo de Combate/CArt 494, Pelotão Rec Fox 42 e um Pelotão da CCaç 555; o Grupo fixou-se, no dia 21Fev64, em Ganturé. O Pel Rec Fox 42 patrulhou até Guileje e regressou a Ganturé. No dia seguinte o Pel Rec Fox e elementos de sapadores, percorreram a estrada Ganturé-Bricama e minaram os caminhos de acesso da fronteira a Gadamael. O Pel/CCaç 555 patrulhou Cabedú Nalú e capturou 3 suspeitos.

Fonte: Excertos de ECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da actividade operacional: Tomo II - Guiné - Livro I (1.ª edição, Lisboa, 2014), pág. 198.

Guiné 61/74 - P27333: Notas de leitura (1853): "Os Có Boys (Nos Trilhos da Memória)", de Luís da Cruz Ferreira, ex-1º cabo aux enf, 2ª C/BART 6521/72 (Có,1972/74) - Parte IV: de Figo Maduro a Bissalanca "by air", e depois de LDG até Bolama para a estopada da IAO (Luís Graça)




Guiné > Zona Oeste >  Região do Cacheu , Có > 2ª C/BART 6521/72 (1972/74) > Messe da caserna do 2º pelotão. O autor em primeiro plano à direita. (Foto, com devida vénia, retirada da pág. 135 e reeditada por LG).



Crachá da 2ª C/BART 6521/72 (Có, 1972/74)


Capa do livro 

1. Continuando a leitura do livro do Luís da Cruz Ferreira, "Os Có Boys" (edição de autor, 2025, il., 184 pp,) 
(ISBN 978-989 -33.7982-0) (*). (Revisão / fixação de texto:  J. Pinto de Carvalho.)


Com a especialidade de auxiliar de enfermeiro feita em Coimbra, no RSS (Regimento de Serviços de Saúde) (jan/mai 1972), o Luís é mobilizado para a Guiné, indo formar batalhão, o BART 6521/72, no RAL 5,  Penafiel (jun / set 1972). 

No seu livro de memórias (elaborado sem recurso a fontes em papel), ele começa por perguntar como se formara aquele batalhão. 

O Luís, chegado a Penafiel, com mais dois camaradas que vieram com ele do quartel da Carregueira, Sintra,  não conhecia mais ninguém. Os três, munidos da respetiva "guia de marcha", acabavam de se apresentar de manhã no RAL 5, a unidade mobilizadora do seu batalhão. 

Chegaram às 3h00 da manhã. Tinham saído da Carregueira  às 11h00 do dia anterior, num dia de junho de 1972. Claro, aproveitaram para pôr o sono em dia, até ao toque de alvorada.  A cama foi improvisada: foram as pedras da calçada, com o saco da roupa a servir de travesseiro.

(pág. 39)


Achámos piada ao termo da gíria de caserna, "atiruense", forma engraçada mas irónica de designar, afinal,  a grande maioria dos militares que iam para o CTIG. Em 1969/71, eram também conhecidos como "amanuenses de gatilho",  enfim a derradeira especialidade que o diabo quereria ter ali, naquele "cu de Judas", a Guiné (hoje, Guiné-Bissau). 

Por outro lado, repare-se na observação sobre o médico e os quatro auxiliares de enfermeiro que em princípio deveriam seguir na 2ª C/BART 6521/72. 

 Médico não havia, e dos quatro 1ºs cabos da secção sanitária só seguia o Luis e o Faleiro. A solução "ad hoc" encontrada,  mais tarde, chegados a Có, foi fazer dois auxiliares de enfermeiro, "de aviário", à pressa, para suprir as faltas. 

Enfim, mais um exemplo do "desenrascanço" à portuguesa (pág. 40).

Estava-se, de resto, numa época em que já ninguém  ligava à qualidade, mas à quantidade. Um país pequeno, com menos de 9 milhões de habitantes e forte emigração (um milhão e meio de portugueses, sobretudo jovens, vão sair de Portugal no período da guerra colonial, entre 1960 e 1975), e que já de si tinha fraca capacidade de recrutamento.

E a prova estava ali, o Luís vai conhecer os seus novos camaradas, os militares da 2ª C/BART  6521/72. Verifica que só tem um militar profissional, em 160 homens: é um graduado do QP (Quadro Permanente), o 1º srgt  António José do Ó, e que era de todos obviamente o mais velho (e respeitado, acrescente-se). 

Era o único, afinal, "que sabia das coisas da tropa" (pág. 42).

A maioria dos militares eram jovens, na casa dos 21/22/23 anos. O capitão nem sequer era do QP, era um miliciano,  com mais cinco ou seis anos do que os restantes. Todos, ao fim ao cabo, iam mal preparados (e por certo contrariados) para aquela guerra e aquele território, do capitão aos quatro alferes, dos furriéis aos cabos. 

Foram de autocarro, de noite, a caminho do aeroporto militar de Figo Maduro, em Lisboa. Para o autor, só podia ser intencional, por parte do exército, a opção pela viagem de noite.  Quase furtiva. "Iam acabrunhados nos seus bancos. antevendo as posições futuras nos seus abrigos de guerra na Guiné" (pág. 43).  Fizeram uma pausa em Pombal, na bomba de gasolina, para a malta se "aliviar". (Ainda não se falava em "áreas de serviço", e a estrada nacional nº 1 era um pesadelo.)

Foi a primeira viagem de avião que o autor fez na vida. Aqueles de nós que foram de barco para a Guiné,  não sabem, naturalmente, "o que perderam"... Em meia dúzia de linhas,  o Luís descreve, com um leve toque de ironia,  o ambiente que viveu nesse já longínquo dia 22 de setembro de 1973, por sinal uma sexta-feira.  Nem sequer iam de camuflado, levavam o uniforme de passeio, mais cinzento e discreto.

(pág. 449

O saco ou mala de viagem não podia ultrapassar os 25 kg. Lá teve que se desembaraçar de alguns livros, uma navalha de marinheiro e uma faca de mato. Em contrapartida, teve a sorte de viajar junto à janela. E, por pouco tempo embora,  conseguir desviar o seu pensamento, o "de que estava a caminho do mais perigoso palco de guerra que o nosso governo nos conseguira arranjar"  (pág. 45).

A meio da viagem , os passageiros especiais daquele Boeing 707 recebem ordens para despirem "o blusão de burel", que serviria para o próximo "desafortunado"  ou iria parar à Feira da Ladra.

A bordo teve direito a um copo de água.

A título de curiosidade, ficamos a saber que os dois Boeing 707 dos TAM, encomendados em 1970 e entregues em finais de 1971, "transportaram nos 3 anos seguintes cerca de 318 mil passageiros do Exército (78%), Marinha (7%) e Força Aérea (15%), além de muitas toneladas de carga. sem que tenham falhado uma missão". Uma história exemplar, os TAM, ao que parece.

Mas o Luís é sincero, quando  escreve, fazendo o resumo dessa viagem, nos TAM, que o pôs no mesmo dia à porta da guerra;

(...) "Gostei da sensação que senti quando o Boeing, de bico empinado, começou a ganhar altitude. (...) Gostei de me sentir por cima das nuvens (...). A viagem decorreu dentro daquilo que julgo ser normal; por mim, não tenho nada a assinalar e gostei tanto que estava prontinho para no mesmo avião fazer a viagem de regresso!" (...) (pág. 45).

Julgo que o Luís interpretava bem o estado de espírito dos restantes passageiros. Ia a "guerra do ultramar" no seu 11º ano...

Na chegada a Bissalanca, e com a abertura das portas da aeronave, o Luís não levou a tempo a dar-se conta de que estava nos trópicos: "entrou um bafo de tal modo quente que, de imediato, começámos a transpirar e a sentir o incómodo que nos iria acompnhar ao longo de dois anos - o tempo que durou a nossa comissão de serviço na Guiné" (pág. 46).

Além desta sensação de calor e humidade extremos,  que todos experimentámos à chegada a Bissau, o Luís dá conta de uma segunda experiência sensorial, "a intensidade dos odores da terra que resulta  das fortes chuvadas sobre os solos sobreaquecidos" (pág. 46).

Foi tudo muito rápido. e já temos os recém-chegados a caminho do Cumeré,  a 30 km a sudeste de Bissalanca. Com o batalhão completo, lá seguiriam,  três dias depois, em LDG, a caminho de Bolama para mais um período de instrução e de adaptação, a IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional)... Enfim, estações do calvário por que todos (ou quase todos) tivemos que passar.

Sentado no chão da LDG, em cima dos seus pertences, o Luís faz um trocadilho que diz muito do estado de espírito daqueles jovens a caminho de um futuro incerto, e longe de pensar que a guerra teria um fim um ano e meio depois:

 (...) "saboreando as primeiras gotas de um fel que nenhum de nós na metrópole saboreara, ante os sonhos justos e devidos de mel que os jovens  (...) de 20 anos esperavam "(pág. 47).

Quatro horas de depois, de noite, "em mar chão e a maré cheia" (pág.47),  chegam a Bolama através do grande canal do Geba.

Vale a pena acompanhar a leitura deste livrinho, singelo e serôdio, mas nem por isso menos interessante (pela capacidade de ajudar a reavivar as nossas próprias memórias da tropa e da guerrra: "Os Có Boys: nos trilhos da memória".

(Continua)


Luís da Cruz Ferreira (n. 1950, Benedita, Alcobaça). 
É membro da Magnífica Tabanca da Linha. 
E esperemos que aceite o nosso convite para se sentar, connosco,
à sombra do poilão da Tabanca Grande

  • nasceu em 2 de março de 1950, mas só  foi registado  seis meses depois, em 4 de outubro;
  • de alcunha o "Beatle", quando jovem;
  • profissionalmente já estava ligado à restauração, antes de ir para a tropa,  tendo trabalhado em diversos estabelecimentos conhecidos da Linha, e nomeadamente em Cascais, a começar pelo famoso  Muchaxo (Guincho).
  • foi trabalhador-estudante;
  • na tropa e na guerra, foi 1º cabo aux enf, tendo sido mobilizado para o CTIG, integrado na 2ª C /BART 6521/72 (Có 1972/74);
  • o  batalhão estava sediado no Pelundo; regressaram a  casa já em finais de agosto de 1974;

(Seleção, revisão / fixação de texto: LG)

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Nota do editor LG:

(*) Último poste da série > 17 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27326: Notas de leitura (1852): "Ecos Coloniais", coordenação de Ana Guardião, Miguel Bandeira Jerónimo e Paulo Peixoto; edição Tinta-da-China 2022 (2) (Mário Beja Santos)