1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Agosto de 2016:
Queridos amigos,
Assim se põe termo a uma safra variegada de materiais adquiridos na Feira da Ladra: fotografias bem impressivas de uma unidade militar que andou pela Guiné entre 1959 e 1961, parece da maior utilidade comparar o que eles viram com o que experimentamos; um texto literário do início da década de 1980 assinado por Sérgio Matos Ferreira, muita poesia em prosa, trabalho de laboratório que constituiu moda mas que não resultou; e um texto panfletário assinado por uma senhora que hoje tem assento na Academia Brasileira de Letras e o seu marido diplomata, deviam ser ao tempo em que andaram na Guiné-Bissau (1975) dois utópicos que confundiam à vista desarmada os desejos com as realidades. Também assim se faz a vida.
E a seguir vou-vos falar de alguém que foi para a Guiné em 1961, acabou a comissão e ficou como chefe de posto. Há neste relato muito prosaico informações surpreendentes, como irão ver.
Um abraço do
Mário
Ida à Feira da Ladra, sábado, 27 de Agosto:
a Guiné estava à minha espera, antes, durante e depois da guerra (3)
Beja Santos
“Guiné-Bissau: reinventar a educação”, por Rosiska e Miguel Darcy de Oliveira, Sá da Costa Editora, 1978, é um panfleto político grosseiro, documentalmente incorreto em que os autores se arrogam ao direito de falarem de processos de alfabetização sem oferecerem uma simples proposta à autoridade da Guiné-Bissau que os convidou a visitar o país para contribuir no desenvolvimento de um programa nacional de alfabetização de adultos. Os autores trabalhavam em 1975 no IDAC – Instituo de Ação Cultural, em Genebra onde Rosiska Darcy de Oliveira, cidadã brasileira, se doutorou. Mário Cabral, então ministro da Educação, convidava Paulo Freire, expoente mundial em pedagogia de alfabetização e a equipa do IDAC a visitar a Guiné. Apanhamos de chofre a exaltação da luta do PAIGC, no momento em que esperávamos perceber a missão dos peritos:
“Um povo, um partido e um homem que souberam enfrentar os bombardeios de napalm, o deslocamento forçado das populações, a tortura e o terror, a agressão indiscriminada à população civil. O dilúvio da violência cega e desesperada de um exército colonial dirigida contra um povo organizado não impediu o surgir, por todo o lado, no campo, nas zonas libertadas do país, de escolas sob as árvores, de postos médicos móveis e de armazéns do povo. Enquanto os portugueses procuravam matar e destruir o povo, os animais e as plantas, o camponês guineense combatia, produzia e educava-se, criando no fogo dos combates as instituições anunciadoras de uma nova sociedade”.
O casal aceita com toda a alegria o convite e partem de Genebra, cidade rica de um Ocidente, pontuam os autores, cheia de mal-estar, onde se procura uma felicidade fugitiva e fugaz, uma civilização que falhou. E é com este menosprezo pela cidade em que estudam que vão aterrar em Bissau e descrevem o país com um grande entusiasmo militante, ali camaradas não quero somente indicar que pertencem a um partido, são camaradas porque se conhecem há muito tempo, lutaram juntos e enfrentam hoje, sempre juntos, novas tarefas. Ainda há marcas de opressão colonial, os portugueses não foram só colonialistas, foram também imperialistas. O PAIGC não é um partido como há tantos no Ocidente, longe de ser uma estrutura rígida, burocrática e inatingível, é verdadeiramente a expressão e o instrumento de realização de uma vontade e de uma consciência comuns.
Chegou o momento de falar de educação e de dois sistemas contraditórios, o da dominação colonial e o das zonas libertadas, houve que encontrar um compromisso, ademais, nos territórios da luta armada havia internatos organizados pelo PAIGC e o estudo estava ligado ao trabalho produtivo e os alunos participavam plenamente da gestão da escola, processo de educação dinâmico e aberto que cria tensões com a sociedade tradicional e com o sistema educativo colonial. No primeiro ano escolar, o PAIGC sentiu-se limitado a assegurar o funcionamento das escolas outrora monitoradas pelas autoridades portuguesas. Inopinadamente, vem nova lengalenga propagandística, as FARP são apresentadas como um caso bem-sucedido de alfabetização, agora, depois da independência encarava-se o papel das FARP num duplo objetivo no trabalho da alfabetização: permitir a redescoberta e a elaboração teórica de toda a experiência política e cultural acumulada pelos combatentes na sua prática de luta; favorecer a sua preparação política e qualificação técnica para novas tarefas, sobretudo a pensar-se na sua reinserção no meio rural. Como é de todos sabido, nada disto aconteceu, os antigos combatentes tiveram que ganhar a vida a lavrar bolanhas e adaptando-se aos mais humildes ofícios.
Teorizando sobre a alfabetização, os autores condenam os métodos conducentes ao individualismo e propugnam uma alfabetização que se torna um instrumento quotidiano de trabalho, há que pensar globalmente na educação, tomando em conta o projeto de sociedade e o modelo de desenvolvimento que se quer construir e para cuja realização a alfabetização e a educação devem contribuir. Como é também sabido, estas preocupações saíram muito cedo da agenda política do PAIGC, antes e depois do corte da Guiné com Cabo Verde.
Retomando a exaltação eufórica do projeto de sociedade guineense, os autores desdobram-se em situações de Amílcar Cabral, no modelo dos armazéns do povo que constituíam uma melhoria concreta da vida quotidiana da população e revelavam aos olhos de todos o fim da exploração do homem pelo homem (sabemos o descalabro em que acabaram os armazéns do povo e os diferentes negócios estatais montados no tempo de Luís Cabral). Chegamos assim à análise concreta do papel que a educação (e dentro dela a alfabetização) pode desempenhar para a realização do desenvolvimento. Há que excluir um sistema educativo que recrie estruturas de classe, que privilegie o sucesso individual, fugir a um sistema educativo de formação de pequenas elites, aproveitem as experiências das zonas libertadas e enraízem a escola no campo e na ligação entre o estudo e o trabalho. Esta reorientação, recordam os autores não é fácil e levanta uma quantidade grande de problemas concretos. Mas eles estão confiantes pois verificaram que na Guiné estão a ser empreendidas as primeiras experiências de união entre estudo e trabalho.
E chegamos assim ao ponto crucial da alfabetização. Aqui a linguagem dos autores modera-se: é preciso proceder por etapas, e justificam:
“Querer iniciar imediatamente uma campanha massiva de alfabetização seria recair na perspetiva errónea que consiste em reduzir a aquisição da leitura e da escrita a um esforço isolado, como se fosse um fim em si mesmo. Se recusamos esta conceção que conduz apenas ao desperdício de recursos, qual é a alternativa? Como definir as etapas do trabalho a realizar, como identificar as zonas prioritárias por onde começar, como determinar o conteúdo da alfabetização e como encarar os seus prolongamentos?”.
As perguntas são pertinentes mas os autores não têm resposta para qualquer delas, dizem expressamente que têm umas pistas de trabalho. Mas mantêm-se ideologicamente firmes:
“A nossa premissa de base continua a ser a de que a alfabetização só tem sentido lá onde ela se torna um instrumento de trabalho na vida quotidiana da população, instrumento que permite ao grupo que se alfabetiza elaborar o conhecimento da sua realidade, visando aumentar o seu poder de transformação dessa realidade”.
Voltam a invocar o trabalho das FARP (que se demonstrou de importância ínfima), agarram-se a expressões vagas e genéricas do tipo “a alfabetização pode articular-se com o processo que leva a comunidade a assumir a organização e execução de determinados serviços sociais de base. Especialmente no terreno da saúde pública, ela pode associar-se à realização de campanhas de prevenção sanitária e higiénica”.
E alegam não ter respostas porque continuam a fazer análise de um processo em aberto, convidando mesmo os leitores a acompanharem o desenvolvimento desta experiência da escola, da educação e do saber.
Desconhecemos se a análise dos autores prosseguiu sobre as novas etapas de alfabetização na Guiné-Bissau. Houve projetos de doadores para a alfabetização, de um modo geral não resultaram por falta de continuidade, por não adesão das próprias autoridades guineenses. Ao longo dos anos foi a cooperação sueca quem pagou aos professores, depois desistiram quando descobriram que o dinheiro era desviado para outras necessidades da administração, ficando os professores mais de meio ano sem receber o seu salário. E a alfabetização tornou-se um epifenómeno, uma quase excrescência do sistema educativo.
De qualquer modo, tem utilidade lermos estes panfletos exaltados e perceber como faltou gente capaz na cooperação internacional para se inserir nos grandes problemas sociais e económicos da Guiné-Bissau e saber abrir portas para o futuro.
Para que conste.
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Nota do editor
Último poste da série de 5 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16450: Notas de leitura (877): Ida à Feira da Ladra, sábado, 27 de Agosto: a Guiné estava à minha espera, antes, durante e depois da guerra (2) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
Para saber mais sobre a escritora Rosiska Darcy de Oliveira que entrou para a Academia Brasileira de Letras (ABL), em 14 de junho de 2013...
http://oglobo.globo.com/rio/o-tempo-particular-da-imortal-rosiska-darcy-de-oliveira-14923084
BS,que conhece os fracassos internacionais das ajudas à Guiné-Bissau, traz-nos estas leituras que nos ajudam a compreender as dificuldades da África para sobreviver ao "novo" colonialismo que substituiu o tuga.
Os guineenses não são um Estado falhado como diz a "comunidade internacional", porque falhados foi o PAIGC e a comunidade internacional que se juntou ao PAIGC, e esqueceu-se que havia ali um povo.
A Guiné é um exemplo que se pode aplicar a quase toda a África sub-sariana onde temos apenas pequenos sucessos pós-coloniais como Senegal de Senghor, a Gâmbia e a terra de Mandela.
Mas aqui, houve a inteligência para evitar ajudas desconhecidas e estranhas como aconteceu na Guiné-Bissau.
É fácil de explicar.
Cumprimentos.
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