segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16450: Notas de leitura (877): Ida à Feira da Ladra, sábado, 27 de Agosto: a Guiné estava à minha espera, antes, durante e depois da guerra (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Agosto de 2016:

Queridos amigos,
Há largos anos que andava na peugada de "O descascar da pele", de Sérgio Matos Ferreira, um furriel artilheiro que andou por Buruntuma, Dara e Mansabá, entre 1972 e 1974. Trata-se de uma pesquisa na arquitetura literária com reminiscências acentuadas do novo romance, do surrealismo e do construtivismo. Foi processo literário de pouca dura, os escritores mais persistentes, entre as décadas de 1970 e 1980 viram-se forçados à reconversão.
Destino esta pesquisa a um ajuntamento o mais completo quanto possível de tudo quanto se escreveu sobre a guerra e a despeito da profunda deceção que a leitura me provocou sinto-me contente de constar no blogue mais esta referência.

Um abraço do
Mário


Ida à Feira da Ladra, sábado, 27 de Agosto: a Guiné estava à minha espera, antes, durante e depois da guerra (2)(*)

Beja Santos

“O descascar da pele”, por Sérgio Matos Ferreira, Coleção O Chão da Palavra, Veja, 1982, aparece referido em “Os anos da guerra”, de João de Melo, na obra se inclui o seguinte texto deste autor que foi furriel de artilharia de campanha, na Guiné, entre 1972 e 1974 e a assistiu à transmissão de poderes:
“A bandeira arpoada num falo direito, rijo, dedilhava palavras surdas auxiliada por um sorriso fraco de vento, que acordado em sobressaltos estrebuchava soluços de pano bicolor, murcho, à espera da estocada final. Num berro sem esforço o clarim tocou firme e um pulsar de cascata segredou no sangue que o colonialismo se dissolvia, o sopro de metal continuou pleno de satisfação vibrando nas lâminas quentes do dia o tom do sentido, e sentimos na mais escondida célula que a salada da guerra se fechava na caixa da memória. A bandeira escorregava lentamente pelo fio da história em pequenas convulsões, hesitando, agarrando-se em jeito de lapa à madeira inchada e sem resistência poisou suavemente numas mãos esburacadas, ansiosas de remendar essa prisão de mato com a sombra do seu país. Esticada, dobrada em guardanapo aconchegou-se, isolada, entre a camisa e as costelas da fome de um militar que num estilo impecável deu meia-volta, arrumando-se no seu lugar estudado há longos meses. Agora África subia sem dificuldade pelo poste de braços abertos, hélice de espigas doiradas a cuspirem sementes, catana vigorosa de carne a cortar o último nó do cordão umbilical. És independente, meu nervo, Guiné de todos”.

Intrigava-me o texto, chegara finalmente a ocasião de ler a obra na íntegra, ademais a Coleção O Chão da Palavra irrompera no início de 1980 com um conjunto de livros que fazem hoje parte da história da literatura, basta pensar em Memória de Elefante, Os Cus de Judas, Conhecimento do Inferno e Explicação dos Pássaros, de António Lobo Antunes e Contos da Sétima Esfera, de Mário de Carvalho.

A escrita de Sérgio Matos Ferreira é vibrátil, sensorial, dominada por laivos poéticos, tem uma arquitetura afim do novo romance, trata-se de uma sequência de textos encadeados, mas encontramos outras referências na obra como o surrealismo, o expressionismo e o construtivismo. Isto para significar que há uma inegável pesquisa laboratorial, hoje completamente datada e fora de uso. Procura exemplificar:
“Bissau, miscelânea de idiomas a saltitar e de carne saturada do protecionismo, saboreava o andar quente da mulher, destapava o homem a amarrotar o tempo encostado à maresia, rasgava o sorriso manchado do puto meio nu, a correr pelo chão amarelo com tiras de barro, esburacado, solto pelo vento húmido que borrifava as mudanças e ameaçava os músculos baratos na arquitetura pesada, colonial, enquadrada por ruas adobadas de saibro, cortadas em ângulos de fraco recorte ou espalhadas em tímidas películas de alcatrão. A avenida principal, larga, arejada, símbolo da presença portuguesa com o Palácio do Governador, escorregava de cafés sufocados de militares a devorar a sede, vendia distrações empacotadas em filmes pensados, medidos, tragados num cinema de idade insuspeita. Trituravam-se algumas ideias retrógradas auxiliadas no ambiente fresco, requintado, caro do melhor restaurante”.

O destino do artilheiro foi inicialmente Buruntuma, partiu de Nova Lamego e fez a quilometragem passando por Piche e Camajabá. Vai situar o espaço da sua primeira morada de combate:
“Cavalgando para poente, nascia a porta de armas, marco parado no tempo, ferida aberta na nossa imaginação. Nadando para Norte ou remando para Sul, espelho direto da mesma intenção, arame torcido para torcer a vida, espaço partido no intervalo da morte para conter os assaltos de África…"

Contempla o duche, descreve o abrigo, a vida na messe, os jogos de cartas, solta-se o jargão da caserna, não se esquecem os assaltos constantes dos mosquitos e a ansiedade pela chegada do fogo inimigo, como observa:
“Quando a tarde estava lançada e o sopro morno tateava as nossas emoções, o PAIGC penava e muito bem bater a zona com os potentosos morteiros 120 e 82 mm, ou dar um ar da sua graça mostrando a eficácia do canhão 85 mm”.

Deu aulas regimentais da primeira à quarta classe aos africanos que pertenciam ao pelotão. Não esquece o rebentamento de minas, as informações que circulam entre aquele ponto ermo separado por uma bolanha da República da Guiné Conacri. De Buruntuma segue para Dara, nova escala. Daqui ouvem-se os ataques a Canquelifá e Copá. Mais tarde, dão-lhe como destino Mansabá. E um dia chega o 25 de Abril, segue-se Bissau e um transporte aéreo para Lisboa. Foi aquela guerra que lhe descascou a pele, daí o sensorial de toda esta prosa poética, o retorcer e quase apedrejar as palavras, a cuidada escolha que faz em posicionar-se como observador, o vestir a farda do anti-herói, e o seu regresso à procura de apaziguamento, como ele desenha a sua chegada a casa:
“Fechei a porta, tirei a mala tuberculosa do porta-bagagens, subi nervosamente as escadas do prédio, desenrolhei as chaves e respirei as paredes numa só golfada. Liguei para a companheira, não estava, sentei-me no quarto e repousei a vista na janela, quadro aberto na recordação a salpicar cones de luz ainda frescos que estalavam nos ouvidos e saltavam para a minha frente em movimentos de som e imagens de cor”.

É a procura do repouso do combatente, a memória precisa de ganhar alguma distância, a literatura virá depois. Tomou-se esta escrita de Sérgio Matos Ferreira como um anúncio de inovação literária. Não foi o que aconteceu, a porta que abriu este experimentalismo cedo se fechou. Há limites para a prosa poética e acontece que naquela década de 1980 parturejavam-se obras de inolvidável interesse, assinadas por Cristóvão de Aguiar, Álamo de Oliveira e José Brás, referências obrigatórias da literatura da guerra da Guiné. Nestas coisas da escrita, há uma regra implacável em que o que promete ser novo se torna em pouco tempo num irremediável tecido velho e imprestável. Li e reli este “O descascar da pele” e só encontrei um processo literário fora do mundo.

(Continua)
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Notas do editor:

(*) Poste anterior de 2 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16439: Notas de leitura (875): Ida à Feira da Ladra, sábado, 27 de Agosto: a Guiné estava à minha espera, antes, durante e depois da guerra (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 2 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16441: Notas de leitura (874): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte IX: o caso do clínico geral Amado Alfonso Delgado (V): Finalmente o regresso a casa, depois do pesadelo do Fiofioli, na margem direita do Rio Corubal... Este homem, hoje professor universitário (?), tem histórias para contar aos netos...

3 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Só tu, Mário, sabes fazer, como ninguém, este trabalho de garimpeiro e de sapador literário, desencantando (e encantando-nos com) estas pérolas da Feira da Ladra… Quem disse que não havia manuscritos da guerra colonial nas gavetas do pré e do pós 25 de abril ?

Obrigado pelo teu meritório labor, que é também um suplício de Sísifo... Na idade média, imagino-te o copista e bibliotecário do convento...

Antº Rosinha disse...

O Mário contradiz aquela meia verdade que se espalha constantemente, ninguém quer falar da guerra.

Há muitíssima gente a falar da guerra, não há é quem queira ouvir falar dela.

E quem andou lá, pode em maioria afirmar que ninguém tem "pachorra" para o ouvir se ele quiser falar dessa guerra.

E como o pós guerra foi uma festa para nós aqui, (até agora) mas foi uma tristeza o que ficou por lá, abafa-se o assunto para descargo de consciências dos que não estiveram lá, estiveram para lá dos pirineus.

BS sempre!

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Bolas, há mais de 12 anos que estamos aqui a falar da guerra, da "nossa" guerra, da nossa experiência pessoal e coletiva de guerra... E eu e o Beja Santos e outros camaradas temos escritos dos finais dos anos 70, princípios de 80...

Como sempre, convém relativizar... Temos tendência para as frases feitas...