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quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22815: O meu sapatinho de Natal (12): Aos 74 anos e com 58 anos de Amador de Teatro sinto-me um homem feliz... Votos de Boas e Felizes Festas para a malta da Tabanca Grande (Eduardo Estrela, Grupo de Teatro Lethes, Faro)



Odemeria > 1968 > Um esepctáculo de fantoches (de luva), pelo então  Grupo de Teatro do Círculo Cultural do Algarve.  hoje, Grupo de Teatro Lethes , com sede em Faro, e de que parte o nosso camarada Eduardo Estrelaa.

Foto (e legenda): © Eduardo Estrela (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1.Mensagem do nosso amigo e camarada Eduardo Estrela (ex-fur mil at inf, CCAÇ 14, Cuntima e Farim, 1969/71; vive em Cacela Velha, (en)cantatada por Sophia, e que pertence a Vila Real de Santo António; um das suas paixões é o teatro amador;

Data - 1 dez 2021 23h31

Assunto - Ribertos
Boa noite companheiro!

A propósito do teu post noticiando o espectáculo de fantoches (*), anexo uma fotografia tirada em 1968 em Odemira durante um encontro amistoso com a criançada daquela localidade.

Na altura o Grupo de Teatro Lethes ainda se denominava Grupo de Teatro do Círculo Cultural do Algarve.

Neste encontro de amigos não participei pois estava na tropa em Tavira. Mas foram muitas as vezes que tive o privilégio de colaborar na comunicação com os miúdos através do Teatro de Fantoches, depois do regresso da Guiné.

Era uma maravilha observar a atenção que dispensavam ao que viam.

Aqui na zona mais ocidental do Sotavento algarvio diz-se que são " treteros " os que manuseiam os títeres.

A partir duma determinada altura o Grupo deixou a prática dos Fantoches.

Mandei-te um mail há alguns dias, onde perguntava pela tua saúde, pela Clarinha e pelo Alfero Cabral. Espero que tudo esteja bem.

Grande abraço

Eduardo

2. Resposta do editor LG, com data de 12 do corrente:

Eduardo, que maravilha. Obrigado. Vou muito oportunamente publicar. O Teatro Dom Roberto, como se diz agora, faz parte das nossas memórias de infância e, felizmente, está a renascer... Hás de contar algo mais sobre a tua experiência no teu grupo de teatro... Bom Natal, espero ainda escrever-te. Luis

3. Nova mensagem do Eduardo Estrela, com data de 16 do corrnte, 17h43

Boa tarde,  Companheiro!

Como tu muito bem sabes, o trabalho realizado por um Grupo de Teatro Amador não se esgota na realização de espectáculos. Extravasa para além do belo e do efémero visual. Consistentemente, fortalece e dinamiza a cultura da sociedade e dos seus próprios elementos.

O Grupo de Teatro Lethes tem sido ao longo dos seus 64 anos de existência, um importante veículo de dinamização do sentir e do acreditar num mundo melhor, ancorado nas palavras de poetas e dramaturgos da literatura universal.

Para mim, tem sido um privilégio viver com a partilha de ideais que consubstanciam solidariedade e fraternidade. Aos 74 anos e com 58 anos de Amador de Teatro sinto-me um homem feliz, pois tenho fortalecido a minha consciência cívica e ajudado a dinamizar valores básicos e essenciais à vida.

O Grupo de Teatro Lethes foi criado em 1957 por José Campos Corôa, Emílio Campos Corôa e Maria Amélia V. C. Corôa, com a designação inicial de Grupo de Teatro do Círculo Cultural do Algarve.

Os seus fundadores foram elementos do Teatro de Estudantes da Universidade de Coimbra ( TEUC), tendo José Campos Corôa sido fundador do próprio TEUC que era na altura dirigido pelo Prof. Paulo Quintela.

A actual denominação resultou do convite feito em 1972 pela Delegação de Faro da Cruz Vermelha Portuguesa, proprietária do edifício do Teatro Lethes, para que o Grupo se transferisse para aquele espaço. A nossa sede social como Entidade com Estatuto de Utilidade Pública continua a ser na Rua de Portugal 50 Faro, endereço que corresponde ao edifício do Teatro Lethes.

Em 64 anos de actividade o Grupo realizou 550 espectáculos sendo 100 de Teatro Infantil. Estreias absolutas foram 18 e tradução e adaptação de textos 9.

No que ao Teatro Infantil diz respeito foram efectuados 52 espectáculos apenas com fantoches de luvas, 31 com peças apenas para a infância, 8 apenas com palhaços e 9 espectáculos infantis não especificados.

Representámos: Abreu e Sousa, Almada Negreiros, Almeida Garrett, Alves Redol, André Brun, António Aleixo, António Ferreira, António Patrício, Aquilino Ribeiro, Ascensão Barbosa, Bernardo Santareno, Correia Alves, Costa Ferreira, D. João da Câmara, Eça de Queiroz, Fernando Dacosta, Fernando de Paços, Fernando Pessoa, Gervásio Lobato, Gil Vicente, Henrique Galvão, Joaquim Magalhães, José Cardoso Pires, José Régio, José Vilhena, Júlio Dantas, Luís Francisco Rebelo, Luís Stau Monteiro, Manuel Córrego, Marcelino Mesquita, Matilde Rosa Araújo, Mendes de Carvalho, Miguel Barbosa, Miguel Rovisco, Pinheiro Chagas, Prista Monteiro, Raul Brandão, Ricardo Alberty, Romeu Correia, Salazar Sampaio, Sidónio Muralha e Teresa Rita Lopes, autores Portugueses.

Dos autores estrangeiros representámos:

Andrés Lizarraga, Calderon de la Barça, Erico Veríssimo, Federico Garcia Lorca, Henri Gheon, Ionesco, Irwing Shaw, Joseph Kesselring, Leon Chancerel, Mayakovsky, Máximo Gorki, Molière, Luigi Pirandello, Saint Exupéry, Shaskpeare, Stefan Zweig, Steinbeck, Synge, Tcheckov, Thornton Wilder, Tone Bruling e autor anónimo do século XV.

Passaram pelo Grupo cerca de 500 amadores, sendo que alguns seguiram uma carreira profissional.

Continuamos a remar contra a maré porque acreditamos num Teatro que continue a apelar para a Igualdade, Democracia e Respeito pelos Direitos do Homem.

É absolutamente lamentável que o poder político nos despreze como faz.

Como diz António Ramos Rosa, " Até quando !? "

Abraço fraterno para ti e demais companheiros/camaradas com muita saúde e votos de Boas e Felizes Festas. (**)

Eduardo Estrela

(**) Último poste da série > 15 de dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22811: O meu sapatinho de Natal (11): Adeus, Guiné!... O regresso da 35ª CCmds, no N/M Niassa, uma viagem horrível, com partida de Bissau a 15/12/1973, e chegada a 22 (Ramiro Jesus, ex-fur mil, 35ª CCmds, Teixeira Pinto, Bula e Bissau, 1971/73)

sábado, 27 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22757: Agenda cultural (790): Camarada, se vives em Lisboa ou na Grande Lisboa, leva amanhá o(s) teu(s) neto(s) à Maratona de Robertos, no Museu da Marioneta... Eu levo a minha neta, que acabou de fazer dois anos..... (Luís Graça)

Teatro Dom Roberto, Porto. Com a devida vénia...


1. Ólh'óó Rrrrrrroberrrrto!!!
Maratona de Robertos


Lisboa, Bairro da Madragoa, Comvento das Bernardas
Endereço: Rua da Esperança 146, 1200-660 Lisboa

Domingo, 28 Novembro de 2021 |
Sessões contínuas :  das 11h00 às 18h00 | Aconselhado a famílias |
Entrada Livre! 

No dia 28 de novembro o Museu da Marioneta festeja 20 anos, mas festeja também a classificação no Inventário do Património Cultural Imaterial do Teatro Dom Roberto, uma das formas mais antigas e mais genuínas de teatro de marionetas português. 

Dom Roberto é direto e rude, mas também simpático e bonacheirão, criando grande empatia nos seus públicos!

Até meados do século XX, era comum encontrarem-se Robertos e as suas coloridas barracas nas ruas, praças, jardins e praias de todo o país. De carácter essencialmente popular e frequentemente ignorada pela maioria dos historiadores e investigadores das artes teatrais, o repertório do teatro de robertos era composto por textos de tradição oral, de sabor popular, com direito a muito improviso. 

Novos e velhos, crianças e adultos, acorriam aos primeiros sons agudos da palheta, prontos a deliciarem-se com os episódios cómicos que aqueles bonecos protagonizavam com ritmo e destreza.

No final do século XX, no entanto, esta forma teatral estava quase esquecida. Foi João Paulo Seara Cardoso, do Teatro de Marionetas do Porto, que primeiro percebeu a necessidade de preservar os Robertos, aprendendo a arte com o marionetista António Dias, ainda em atividade nos anos 80. 

Hoje, em Portugal, há de novo uma família de bonecreiros que percorrem o país com os seus ‘atores de palmo e meio’, as suas guaritas e a sempre característica voz de palheta.

No domingo dia 28 estarão reunidos no Claustro do Museu, para uma Maratona de Robertos. Venha celebrar connosco e assistir ao teatro de marionetas Dom Roberto – pelos roberteiros:

  • Fernando Cunha
  • Filipa Mesquita
  • Francisco Mota
  • João Costa
  • Jorge Soares
  • José Gil
  • Manuel Dias / Trulé
  • Marcelo Lafontana
  • Nuno Pinto
  • Raul Constante Pereira
  • Ricardo Ávila
  • Rui Sousa
  • Sara Henriques
  • Vítor Santa Bárbara 

Vd. também aqui a história do Museu e Página do Facebook do Museu da Marioneta 

 
2. O Teatro Dom Roberto  é um género de espectáculo, teatral, popular,  satírico, itinerante, de bonecreiros, também conhecido como "teatro de fantoches", destinado a todas as idades, mas que faz parte, muito em particular  das nossas melhores recordações de infância...  Era então um dos grandes divertimentos populares, até cair hoje (quase) no esquecimento... Foi recentemente  inscrito no Inventário de Património Cultural Imaterial Português.

Nesse tempo, em que éramos putos,  ainda  não havia a televisão, nem a Net nem muito as redes sociais. Víamos os "robertos", literalmente maravilhados, fascinados, boaquiabertos, assombrados, divertidos, sentados no chão, à volta de uma "barraquinha de feira", montada nalguma praça, jardim,  feira, terreiro de festa ou praia das nossas santas terrinhas...  Infelizmente, esses espetáculos, sazonais, não eram tão frequentes quanto isso...

Citando o sítio das Marionetas do Porto: “Nos finais dos anos 50, ainda os fantocheiros populares calcorreavam terras portuguesas por festas e romarias, divertindo o povo de pequenos e grandes que acorria a ver os seus espetáculos. Os pequenos bonecos de madeira e trapos bailavam caprichosamente ao som dos gritos estridentes produzidos pelo fantocheiro e tudo terminava invariavelmente pela tradicional cena de pancadaria, para grande alegria do público.

"Hoje, o Teatro Dom Roberto é apenas uma imagem feliz da infância de alguns, um traço  vivo de uma preciosa herança cultural que se vai esvaindo com os tempos da 'modernidade' ".
 
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Nota do editor:

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2513: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (19): O Natal de 1969 em Bambadinca e na Ponte do Rio Udunduma

Capa do disco de ópera Carmen, de Bizet, com a Maria Callas... "A prenda que me ofereci no Natal de 1969...É nas andanças da procuração de casamento, em Bafatá, muito perto do Natal, que vou à casa Teixeira onde me mostram um acontecimento musical que acaba de chegar: a última gravação da Maria Callas numa ópera integral. De facto, foi a Carmen a última ópera que a Callas cantou por inteiro. A partir de 1964, a Divina só aceitou actuar em concertos ou em master classes. Esta gravação da Callas foi objecto de apreciações tensas e contraditórias. O fundo orquestral é de uma beleza ímpar (estou à vontade, só como melómano é que de vez enquando oiço a Carmen, que classifico como ópera bonita mas fácil nos seus efeitos), Nicolai Gedda era seguramente um grande tenor do seu tempo, e cumpre a preceito o Dom José. O barítono Robert Massard é para mim o grande achado da ópera, um toreiro fogoso e viril. Gosto da voz assanhada da Callas, mas hoje é um registo bastante ultrapassado. Custou-me 400 escudos, paguei em dois meses, já estava a preparar o casamento em Bissau. A ópera foi muito bem aceite na caserna, o Alf Abel[, da CCAÇ 12,] gostava de a ouvir por sua iniciativa. Veio comigo, é uma relíquia desse Natal de 1969, onde me faltou a festa como nos Açores e em Missirá, as minhas inesquecíveis festas de Natal".

Digitalização da capa: uma gentileza do Humberto Reispara quem vai um abração.

Foto: © Beja Santos / Luís Graça & Camaradas da Guiné (2008). Direitos reservados.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Ponte do Rio Udunduma, na estrada Bambadinca- Xime > Pel Caç Nat 52 (1968/70) > Natal de 1969 (2) > Os bravos soldados do 52, que o Mário considerava os melhores soldados do mundo... O famigerado destacamento da Ponte do Rio Udunduma resumia-se a uns bidões de areia, umas valas, umas chapas ... como tecto e milhões de mosquitos. Este rio era uma fluente do grande Geba... Foto do ex-Fur Mil João Sousa Pires, a quem agradecemos a gentileza de nos autorizar a sua reprodução (LG).

Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.


Texto do Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), remetido em 11 de dezembro de 2007:

Luis, recordo que tens aí a fotografia do dia de Natal na ponte de Udunduma, enviei já as ilustrações do Claude Simon e S. S. Van Dine, tens igualmente a ópera Carmen. Vou começar já o episódio n.º 20, temos que fazer tréguas no Natal. Muitíssimo obrigado pelo teu esforço na recolha e preparação dos materiais que vão ilustrar Na Terra dos Soncó. Segue pelo correio o conjunto de aerogramas que ainda tinha em meu poder, referentes a 1969. Vou telefonar para marcarmos o almoço de Natal. Um abraço do Mário.


Operação Macaréu à vista > Episódio XIX (3)

O NATAL EM BAMBADINCA E NA PONTE DE UDUNDUMA
por Beja Santos


(i) Os preparativos do Natal, a história de um poemacto alucinante

Começam a chegar as iguarias natalícias provenientes de Lisboa, bolo rei, broas castelares e de milho, coscorões, rabanadas, entre outras. Um alferes Rodrigues que até hoje nunca consegui identificar (logo ficou claro que não era o Rodrigues da CCaç 12, esse quando se apresentou de férias vinha com alguns discos de vinil debaixo do braço), deixara em Bafatá um pacote de doces no comando do Agrupamento e lá fui buscá-lo a propósito de mais um episódio com a procuração para o meu casamento, a que se juntou o atestado de residência.

No fim do ano escreverei à Cristina:

“Espero que o Ismael te tenha telefonado em Bissau, aqui os telefones deixaram de funcionar, as minhas insónias têm-me impedido de escrever com regularidade. Não é nada de grave, já não sei se é o desgaste físico que abala o psíquico ou vice-versa. O destacamento da ponte de Udunduma é escabroso, sem qualquer segurança, umas valas mal amanhadas, custa conciliar o sono dentro daquele buraco. O Vidal Saraiva quer pôr-me num quarto de repouso em Bissau, talvez uma semana seja o suficiente para eu recuperar. Parte das minhas economias deste mês foram para substituir a roupa esburacada, calças e camisas na fímbria... Agradeço-te do coração o novo Chopin, mas confesso-te que houve um pequeno desastre, saí uma manhã destas para ir às tabancas próximas, deixei-o fora do estojo, quando voltei estava ondulado. O Samson François não merecia este castigo! Li 'Guerra e Paz' na tradução da Isabel da Nóbrega e do João Gaspar Simões, o português é escorreito mas não sabe a nada. Começaram as medidas de prevenção que irão até ao Ano Novo.

"A grande notícia é que os documentos da procuração estão novamente prontos, não sei se te contei que descobri no meio dos meus livros a procuração anterior, mais uma vez anulada porque faltava a data de nascimento do teu pai. Não percebo porque é que uma procuração tem que ter estes pormenores, em que a data de nascimento do pai da noiva é crucial. Por aqui, não se pode dizer que a guerra se tenha agravado. Há de vez em quando incêndios de moranças nas redondezas de Bambadinca, assaltos aos Nhabijões quando os naturais não oferecem vacas nem outros mantimentos aos rebeldes, houve agora um grande ataque ao Enxalé e pouco mais. O ano está quase a acabar e o futuro espera-nos. Aconteça o que acontecer, confio que Deus nos quer juntos no próximo ano. Peço-te muito que descanses e não te aflijas. Logo que resolva o problema das insónias tudo vai voltar à normalidade”.


Desço a rampa e vou conversar com o Zé Maria. Já sei que o dia de Natal será passado na ponte de Udunduma, a ver se ele consegue preparar uns frangos para eu almoçar com a malta do pelotão no dia 24. É uma negociação difícil, o Zé Maria começa por me pedir o couro e o cabelo, vai descendo, faz as contas a doze frangos, arredondo para quinze, um grande tacho de arroz, canja e depois papaia, sendo a bebida a laranjada, acertamos a verba e subo novamente a rampa para entrar nas lides burocráticas.

Cá em cima, na secretaria, tenho de rectificar nomes de uma proposta feita ainda em Missirá. Enviara o ofício n.º 366, processo 200.03, dirigido ao comandante do BCaç 2852, SPM 5188, com os seguintes dizeres “Em virtude de recentes desfalques nos quadros orgânicos destes dois pelotões de milícias, dada a circunstância de faltar um comandante de secção em Finete e um cabo em Missirá, sugiro a V. Ex.ª se digne promover ao posto de 2º sargento o 1º cabo Ieró Baldé do Pel Mil 102 e a 1º cabo o soldado Dauda Jamanca do Pel Mil 101”. Sempre com o cenho carregado, o tenente Pinheiro argumentava:
- Beja, V. só me dá trabalhos, o homem não se chama Ieró Baldé mas Inderissa Baldé, não é a mesma coisa, fazíamos as folhas de pagamentos e depois tínhamos o Inderissa a pedir um vencimento que só existe para o Ieró, acontece que V. já tem cá dois Ieró para aumentar a balbúrdia!

Se estava de cenho carregado, o semblante do tenente Pinheiro, enquanto eu escrevia ou garatujava uns papéis freneticamente não disfarçava o pasmo:
- Beja, V. está a ouvir-me, o que é que está a escrever?.

Depois de lhe ter perguntado se ele estava mesmo interessado em saber o que se estava a passar na minha cabeça, respondi-lhe na mais completa das inocências:
- Pinheiro, estou a tentar escrever uma carta ao Deus menino, a dizer que o amo muito. Como não sou poeta, vou ajeitando, vou acomodando as palavras nestes papéis, à espera de uma inspiração. Se quer saber, aqui escrevi "aeroplano de papel', “nesta pétala encravada em minas de salgema”, “é uma sarça ardente em labareda, avermelhando o arvoredo”, “daquela fundura, chegam-nos os odores dos mangais e dos limoeiros, é então que me fere uma dor maturescente”, “Bambadinca está acima da savana, vai pipilando entre candeeiros de petróleo, envolvidos no orvalho do amanhecer”.

O rosto do tenente Pinheiro congestionava-se:
- V. veio gozar-me, vem misturar trabalho com coisas da sua cabeça desarranjada. Se isso é cultura, vou ali e já venho. Acabemos por aqui, antes que eu me irrite.

Pôs a boina na cabeça e atirou a porta com todo o estrondo. O 1º cabo Olival parecia estar a assistir a uma cena do outro mundo, inclinava bem a cabeça sobre os papéis, atarefava-se com a sua escrita ornamentada, floreada.


(ii) E chegámos ao poemacto alucinante

Pedi duas folhas de papel ao 1º cabo Olival, arrumei o dossiê dos expediente a tratar, inclusive todos estes rabinhos de palha de Missirá e Finete, há deprecadas urgentes a expedir, também, olhei os apontamentos garatujados, os que estavam em cima da mesa e os que me saíram dos bolsos, pus a Montblanc em movimento:

“Ao meu querido Deus menino, Tu, detentor do mais lindo sorriso do mundo, vê se me podes ajudar com os teus bracinhos abertos lá no presépio, cativado, protegido por teus pais, pastores e reis magos. Conto com o teu lindo, cúmplice sorriso, protegido na noite estrelada que eu desenhava nos presépios da minha infância. Vem dizer-nos que nos protegerás sempre quando partimos nas colunas de reabastecimento ou nos estradões e picadas que levam ao combate, em todos os momentos de dúvida quanto ao nosso feliz regresso. Vem dar-me fé sobre a sumaúma que se desprende dos bissilões, como cabelo ao vento, neste tempo da época seca. Impõe a Tua inocência benfazeja nesta cintura da guerra. Traz-nos o consolo da cola, do sal e do pão ázimo, cuida dos meus soldados, dá um sinal de misericórdia entre os nossos consanguíneos. Sei que Te estou a pedir muito, como se de um milagre se tratasse: Menino amado, ilumina-nos a mata, aparece como sarça ardente, com uma angra de promessas, dá-nos um sinal do teu perdão nesta enseada de sangue coalhado. Assina um lorde gentílico, numa guerra repartida, à espreita de ver o arvoredo com cores de incêndio, dá, imploro-Te, o Teu sinal como sarça ardente nessa noite de Natal”.

O 1º cabo Olival viu-me atarefado, escrevendo e refazendo, deu-me, solícito vários aerogramas aonde se copiou o pretenso poemacto, que seguiu para algumas partidas do mundo. Nalguns casos, nada mais se dizia a não ser o teor da mensagem ao Deus menino. Noutros, escreviam-se algumas outras banalidades, tais como: a existência de boatos de que Amílcar Cabral estava tuberculoso e que já havia uma luta de poder nos bastidores, isto segundo a propaganda emitida pela rádio; que, devido à acção do calor, pois saíra de madrugada e deixara a luz acesa, o disco com trechos de obras de Wagner, a Sinfónica de Chicago dirigida por Fritz Reiner, ficara em gelatina, só me apercebera quando quisera ouvir a Marcha Fúnebre de Siegfried e saíram uns sons cavos; que o jogo do xadrez se presta a agressividades, numa noite atrás dois oficiais, parceiros pacatos, desataram aos gritos e aos insultos, tabuleiro e peças andaram pelo ar, ninguém percebeu porquê, já nos bastam as cenas com a comida em que uma simples observação pode dar dez dias de prisão; que Cibo Indjai, o mais valoroso caçador do Cuor, me veio perguntar se pode voltar para Missirá, tem saudades de caçar, pedi-lhe para esperar, por enquanto há só um furriel, há cabos em falta e soldados doentes, não posso dispensar os melhores soldados; regressou o Campino e temos mais um apontador de bazuca e recebemos um fula educadíssimo, Dauda Bari; que na véspera do dia de Natal almoçaremos juntos, seguiremos para Bafatá onde vou buscar a ópera “Carmen”, que é a prenda que me ofereci, mais os doces, a procuração e o atestado de residência que seguirão directamente para Lisboa; que jantaremos todos muito tarde e que haverá uma consoada no quartel; e que ao amanhecer do dia de Natal partiremos por quatro dias para a ponte de Udunduma; àqueles que mais me estimam ainda sou capaz de lhes confessar o meu sofrimento com as insónias. Só me apetece dormir, a luz fere-me os olhos, todos os sons mudaram de volume. Assim acabei o correio de antes do Natal.

(iii) O dia de Natal na ponte de Udunduma

A 24 [de Dezembro de 1969], coube-nos reabastecer quem estava nos Nhabijões, fomos buscar doentes a Samba Juli para ir à consulta do Vidal Saraiva, levaram-se munições para o pelotão de milícias em Amedalai, seguiu-se para Bafatá, deixei no correio um punhado de cópias do poemacto, tratei dos documentos, voltei ao correio e meti-os numa carta que seguiu para a Cristina, fui buscar a minha prenda de Natal, o Cherno olhava para a senhora do estojo da ópera, eu disse-lhe:
- É a Callas, via-a em Lisboa há onze anos, gosto muito da sua voz.

O Cherno limitou-se a pegar no embrulho e comentou:
- Agora quem ouve a gritaria são os outros lá do teu quarto!.

Seguimos para Bambadinca, ficámos no Zé Maria, onde já estava o resto do pelotão, não sem ter pedido ao Xabregas que trouxesse o Setúbal, os condutores de Missirá pertenciam à família. E tratou-se de uma almoço em família, eles eram a minha gente, eu bem pedia a Deus que não houvesse mais infortúnios nos próximos sete, oito, nove meses em que seria o seu comandante. Agradeci-lhes muito a companhia e o seu heroísmo, a sua capacidade de sacrifício, de tarde ainda iríamos a Galomaro, nessa noite não haveria emboscada nem reabastecimentos, seguiríamos às 7h da manhã para a ponte de Udunduma, revezando um dos grupos de combate da CCaç 12.

Pela meia noite, brindámos na messe de oficias, abriram-se iguarias (da minha parte, escondi ao máximo as minhas para as oferecer no dia seguinte no local mais desagradável que vi a imitar um refeitório), fizeram-se votos, recolhemos cedo, os operacionais sabiam que não haveria tréguas no dia de Natal. Lembro-me de ter conversado com o major Cunha Ribeiro, pedindo-lhe toda a compreensão para o facto de precisar de mais sargentos. Com o novo ano, sairá o Pina e virá o Vitorino Ocante, mais tarde chegará um militar destemido, o sargento Manuel Cascalheira, que tanto me ajudou na operação Rinoceronte Temível.

Vão seguir-se quatro dias de suplício na ponte, um local onde nada acontece, no dia de Natal ainda nadei umas braçadas no rio Udunduma, enquanto houve luz li e escrevi, as noites vou passá-las praticamente em claro, é um período sem história, não consegui ter argumentação para convencer o major de operações a olharmos a ponte de Udunduma doutra maneira, fazer patrulhamentos envolvendo Amedalai, Demba Taco e Moricanhe, na resposta eram só dificuldades, havia sempre obstáculos que tudo inviabilizavam. Com o cansaço, desisti de argumentar. E voltámos para Bambadinca, para o torvelinho das rotinas.

A 30, li num aerograma que mandei à Cristina, visitou-nos o Spínola: “Esteve cá o Spínola depois de ter ido a Missirá. Altivo, monóculo faiscante, perguntas em tom abrupto”. O que eu não disse à Cristina foi que ele se passeou com a sua comitiva e diferentes dos nossos oficiais pelos abrigos, interpelando com contundência Jovelino Corte Real enquanto entravam e saíam dos abrigos. Lá para os lados da caserna dos soldados, à entrada de um desses abrigos um prego apanhou a camisa do comandante no cós das costas, a camisa rasgou-se e transformou-se numa fralda deixando a carne à mostra.

Com toda a dignidade possível, Cunha Ribeiro passou a dialogar com Spínola enquanto Jovelino Corte Real foi mudar de camisa. No fim da visita, o comandante-chefe das Forças Armadas da Guiné bradou que iria voltar em breve e que haveria consequências caso não fossem tomadas as providências que ele exigia.

A 31, pelas 6h da manhã, um jogo de futebol, finalmente o 52 derrotou a equipa da CCS, assisti da bancada, sem qualquer energia para jogar dez minutos. Nessa noite, o conjunto pop do batalhão deu uma récita com guitarras eléctricas e bateria. Por essa altura, recebi muitas cartas amigas, o Ruy Cinatti procurou dar-me estímulo, o Ferreira de Castro pedia notícias. Peguei num jornal atrasado e soube da morte do Alves Redol e do José Régio.

Fui à capela de Bambadinca rezar por todos os meus entes queridos, pedi paz, supliquei para que o novo ano nos trouxesse menos sofrimento. Depois partimos para o Bambadincazinho, vamos fazer a emboscada na missão do sono. Regressarei pelas 6h da manhã com um moribundo nos braços e uma camisa perfurada pelo ocaso das balas. É uma camisa ensanguentada que o Cherno vai exibir por Bambadinca, a sua prova definitiva de que eu sou um baqué, aquele guerreiro mitológico que nenhuma bala pode matar.


(iv) Uma grande descoberta, Claude Simon


Comecei a ler um livro extraordinário, uma prenda da minha Mãe, A Casa Grande de Romarigães, de Aquilino Ribeiro. Leio devagar, a saborear uma prosa alquímica que nos fala do Minho rural, a posse da terra, a construção da riqueza fundiária, os preconceitos, o peso das superstições. Leio e releio, não paro de me assombrar: como é que é possível abrir um romance com este toque mágico, inultrapassável:

“O vento, que é um pincha-no-crivo devasso e curioso, penetrou na camarata, bufou, deu um abanão. O estarim parecia deserto. Não senhor, alguém dormia meio encurvado, cabeça para fora no seu decúbito, que se agitou molemente. Voltou a soprar. Buliu-lhe a veste, deu mesmo um estalido em sua tela semi-rígida e imobilizou-se. Outro sopro. Desta vez o pinhão, como um pretinho da Guiné de tanga a esvoaçar, liberou-se da sela e pulou no espaço”.



Capa do livro O crime do Dragão, por S.S.Van Dine. Lisboa: Livros do Brasil, s/d. (Colecção Vampiro, 97) . "Um grafismo com reminiscências surrealistas, como é compreensível em toda a obra do Cândido da Costa Pinto. A tradução é de Roberto Ferreira. Tive uma grande alegria quando recuperei este livro na Feira da Ladra. Foi uma leitura estimulante, perto do Natal de 1969, livro comprado em Bafatá" (BS).

Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.


É melhor parar aqui, isto é um português de lei que tenho de mastigar, assimilar, respirar todos os odores. Oxalá tenha forças e lucidez para ler, perceber e amar. O livro policial que me acompanhou nas emboscadas foi O crime do Dragão, de S.S. Van Dine. Desta feita, a tragédia inicia-se numa piscina nos arredores de Nova Iorque, num local quase lendário, a Piscina do Dragão, propriedade da família Stamm. Alguém mergulhou e não reapareceu. Tinha havido uma festa e um galã propôs um banho nocturno, a própria vítima. Philo Vance, um detective super chique e super culto, acompanha as investigações e vai deslindar uma trama diabólica em que o Dragão é um mergulhador vingativo que desfaz as suas vítimas e acabará por ser punido, sendo esmagado por um rochedo da piscina. Um dos pontos fortes do romance é Van Dine ir conduzindo a investigação para um falso criminoso invertendo aparatosamente o rumo da investigação até ao desenlace espectacular. Pelo meio, Philo Vance dá uma lição aos polícias e aos leitores sobre a importância do Dragão em todas as mitologias e religiões.

Palace, de Claude Simon, veio lembrar-me a prosa de William Faulkner a embriaguez da palavra, uma narrativa poderosa feita de minúcias em que os actores são o estudante , o homem-espingarda, o americano, o mestre-escola e o calvo. Tudo se passa em Barcelona, durante a Guerra Civil espanhola, o estudante volta lá quinze anos depois e tudo vai relembrar, é um reencontro hipnótico, o estudante vê e revê os ambientes por onde deambulou, o que era o Palace durante a guerra e em que se transformou o Palace, no pós guerra.



Capa do romance de Claude Simon, Palace. Lisboa: Ulisseia, 1966. "Palace é uma escrita arrebatadora,uma grande surpresa.Desconhecia Claude Simon, nunca me impressionou o novo romance, mas este este livro alterou-me o conceito dos cânones literários. Logo a seguir pedi ao meu Padrinho O Vento, que fora publicado na Colecção Contemporânea, da Portugália. Ainda bem que lhe atribuíram o Nobel de 1985. A capa é uma beleza, tem a chancela do Espiga Pinto, que se iria impor nas artes plásticas. A tradução é de ferando Cascais Xavier. Ulisseia,1966" (BS).



Foto : © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


Tudo começa com um inventário minucioso de objectos e detalhes do interior do Palace, dos locais por onde o estudante se passeia, parece que o autor leva um caderno e regista detalhes ínfimos, enquanto se ouvem as vozes da guerra. Segue-se uma narrativa do homem-espingarda, a prosa de Claude Simon torna-se ainda mais densa, chega o americano...

É assim, em linguagem oficinal que o tempo é relembrado até chegarmos ao Palace, em que se encerra a imponente narrativa, olhando a fachada, recordando as marcas das balas, o voo dos pombos ao sol por cima dos telhados, é uma escrita compulsiva como se segue:

“... o Sol desapareça atrás das colinas, a Oeste, por trás das carcassas descarnadas das torres e das grandes rodas do luna-parque abandonado sob o céu agora cor de salmão, a própria cidade também ao abandono, solitária, sob a invariável luz verde-eléctrico dos globos e dos lampadários complicados que se acendem uns após outros como a ribalta de um teatro, semelhante a uma dessas rainhas em parto, abandonada no seu palácio, porque ninguém a deve ver nesse momento, parindo, expulsando dos seus flancos, encharcados pelo suor o que deve ser parido, expulso, algum monstrozinho macrocéfalo, inviável e degenerado - e, por fim, tudo se imobiliza, recai, e ela fica ali, jazendo esgotada, expirante, sem esperança que aquilo venha acabar, esvaziando-se numa ínfima e incessante e vã hemorragia...”.

Fiquei a gostar tanto de Claude Simon que logo escrevi ao meu Padrinho a pedir-lhe que me mandasse O Vento, que fora publicado na Colecção Contemporânea da Portugália Editora. Foi mesmo muito bom acabar o ano de 1969 a conhecer a literatura de Claude Simon.

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Notas de L.G.:


(1) Vd. poste de 3 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2024: A discoteca de Missirá ou alguns dos discos da minha vida (Beja Santos) (1): De Verdi a Beethoven



(2) Vd. poste de 21 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2370: O meu Natal no mato (7): Destacamento do Rio Udunduma, 1969, Pel Caç Nat 52 (Beja Santos)

(3) V. último poste desta série > 1 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2498: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (18): Operação Punhal Resistente