terça-feira, 18 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19900: Notas de leitura (1188): Uma história antiga, do livro "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia", da autoria de Francisco Baptista, com lançamento no próximo dia 24 de Agosto de 2019, pelas 15 horas, no Salão Nobre da Câmara Municipal de Mogadouro

1. Mensagem do dia 13 de Junho de 2019 do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), autor do livro "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia", trazendo até nós um trecho deste seu livro que vai ser lançado no dia 24 de Agosto próximo, pelas 15 horas, no Salão Nobre da Câmara Municipal de Mogadouro.

Tenho recordações vagas e difusas desse meu antepassado que sempre procurou viver a vida com independência e liberto de amarras de qualquer espécie. Talvez por isso nunca tenha casado, entre o falar do povo e a lenda diz-se que terá tido um filho de uma mulher casada, que por via das dúvidas nunca assumiu. Aliás ao tempo, as leis dos Estados seguindo um pouco a lei natural da maioria das espécies animais reconheciam as mães sem se preocuparem com a paternidade a não ser que houvesse casamento, sendo nesses caso os maridos legalmente obrigados a assumi-la.
Alguns sobreirais, alguns olivais, alguns lameiros (prados para o gado), uma boa horta e algumas terras de cultivo de cereais, que herdou dos pais, ajudaram-no a viver dentro dessa liberdade que ele apreciava.

Era meu tio-avô por ser irmão do meu avô paterno e padrinho e nessa qualidade tinha comigo uma ligação e um poder protector logo abaixo do meu pai. Sem ser muito falador, assumia a sua responsabilidade de padrinho, dentro da sua filosofia de vida sem se intrometer na minha vida de garoto, sem conselhos desnecessários, sem dinheiro nem rebuçados. Um padrinho era uma figura tutelar, bastava-lhe existir e ser nosso amigo para sentirmos a sua protecção benfazeja.
Dava-me castanhas piladas (secas), fosse primavera ou verão, que levava sempre nos bolsos quando íamos os dois com as vacas do meu pai, e com a égua dele para o lameiro (prado de pastagem) dele de Vale da Nina..
Nunca me esqueci dessas castanhas piladas e pela vida fora sempre agradeci essa dádiva e a bonomia, sem palavras desnecessárias, com que me tratava. Os meus cinco ou seis anos de vida davam-me a intuição e o entendimento para o saber interpretar e estimar. Sonhadores, distraídos ou dorminhocos, sei que por vezes chegávamos a casa sem vacas, que se tinham perdido.

Nas noites longas de inverno ia muitas vezes para casa dum rico da aldeia, segundo dizia, rezar a coroa (equivale a três terços). Conta-se que enquanto rezavam iam bebendo vinho, de que ambos gostavam, duma caneca próxima da lareira, para aquecerem.

Era um homem de estatura média, forte, largo, lembro-me ainda de o ver em dias de verão ou de inverno, em tronco nu, a lavar-se na fonte da bica, perto da casa dele.

Até ao dia da sua morte que ocorreu subitamente num dia 29 de Agosto, na festa da Senhora do Caminho, em Mogadouro, viveu sempre sozinho em casa dele, casa que o meu pai depois herdou e reconstruiu para nós. Gostava de festejos, folguedos e dos excessos que os banquetes que lhe estavam associados proporcionavam.
Os sobrinhos fizeram-lhe um funeral digno além do mais porque preservou todos os bens que tinha herdado.
Eu, nos meus nove anos de idade, ele faria sessenta e sete, quando a minha mãe me disse que o meu padrinho tinha morrido, senti uma tristeza desprendida, sem dor e sem mágoa, como quem se despede dum companheiro valente que não gosta de lágrimas.

Do meu livro " BRUNHOSO, ERA O TEMPO DAS SEGADAS" 
" NA GUINÉ O CAPIM ARDIA"
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19898: Notas de leitura (1187): “Deixem a Guerra em Paz: Guerra Colonial – Guiné”, Edições Partenon, 2019 - Sempre na caçoada, zombeteiro quanto baste, subtil apurado: Alberto Branquinho

Guiné 61/74 - P19899: 15 anos a blogar desde 23/4/204 (9): o ataque a Sare Banda, destacamento da CART 1690 (Geba, 1967/69), em 8 de setembro de 1968: o alf mil Carlos Alberto Trindade Peixoto e o fur mil Raul Canadas Ferreira jogavam às cartas, à luz de petromax, foram mortos por uma roquetada (A. Marques Lopes)



Guiné > Região de Bafatá >  Sector L2 > Geba > CART 1690 (1967/69) > Destacamentos e aquartelamentos > 1968 > A CART 1690, com sede em Geba, tinha vários destacamentos: Banjara, Cantacunda, Sare Banda, Sare Ganá... Os destacamentos não tinham luz eléctrica e as condições de segurança eram precárias. O IN tinha uma importante base em Sinchã Jobel, a oeste de  Geba, a sul de Banjara, a sudeste de Mansabá. (*)

Infografia: © A. Marques Lopes (2005). Todos os direitos reservados.





Guiné > Região de Bafatá >  Sector L2 > Geba > CART 1690 (1967/69) > Destacamento de Banjara > 1968 > O destacamento não tinha população civil e era defendido por um pelotão da CART 1690. Distava 45 km de Geba. O ataque a Banjara, a 24 de julho de 1968, às 18h00, já aqui foi descrito há 14 anos por A. Marques Lopes.


As instalações que se veem na foto pertenciam à antiga serração do empresário Fausto Teixeira ou Fausto da Silva Teixeira,
um dos primeiros militantes comunistas a ser deportado para a Guiné, em 1925,  dono de modernas serrações mecânicas aqui, em Fá Mandinga e em Bafatá, a partir de 1928, exportador de madeiras tropicais, colono próspero e figura respeitável na colónia em 1947, um dos primeiros a ter telefone em Bafatá, amigo de Amílcar Cabral, tendo inclusive ajudado o Luís Cabral a fugir para o Senegal, em 1960...




Guiné > Região de Bafatá > Sector L2 > Geba > CART 1690 (1967/69) > Destacamento de Banjara > 1968 > O abastecimento das NT era deficiente, pelo que se recorria aos "produtos naturais" da região...

Fotos (e legendas): © A. Marques Lopes (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Região de Bafatá > Sare Banda > 2001 > Restos do antigo destacamento de Sare Banda > Na foto, o ex-presidente da Câmara Municipal de Chaves Altamiro Claro, membro da nossa Tabanca Grande, ex-alf mil op esp, CCAÇ 3548 / BCAÇ 3884 (Geba, 1972/74).

Foto (e legenda): 
© Altamiro Claro (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Jobel > 22 de abril de 2006 > Uma bomba da FAP (Força Aérea Portuguesa), das muitas que foram lançadas sobre a base do PAIGC, durante a guerra colonial, e que não chegaram a explodir. Na foto, o nosso amigo e camarada A. Marques Lopes. Em finais de 1967, Sinchã Jobel passou a ser uma ZLIFA (Zona Livre de 
Intervenção da Força Aérea). Ficava no regulado de Mansomine, entre Mansabá e Bafatá. A foto, histórica, é do organizador desta viagem, do Porto a Bissau, em abril de 2006, o Xico Allen [ex-1.º cabo at inf, CCAÇ 3566, Os Metralhas, Empada, 1972/74]. Levou o jipe, que lá ficaria para futuras viagens. O grupo regressaria depois de avião. Acompanhou, em 22 de abril de 2006, o A. Marques Lopes neste regresso, emocionante, à mítica Sinchã Jobel. (*)

Foto (e legenda): © Xico Allen (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Região de Bafatá > Sare Banda > 2001 > Restos do antigo destacamento de Sare Banda > 22 de abril de 2006, "a caminho de Sinchã Jobel"


Fotos (e legenda): © A, Marques Lopes (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Um ataque a Sare Banda, em 8 de setembro de 1968

por A. Marques Lopes


(i) amigo e camarada, um histórico da nossa Tabanca Grande, com 240 referências no blogue;

(ii) lisboeta, filho de pais alentejanos, que vive em Matosinhos;

(iii) cor art DFA, na reforma, ex-alf mil art, CART 1690, Geba, e CCAÇ 3, Barro (1967/68)];

(iv) ferido em combate e evacuado para o Hospital Militar Principal, na Estrela, onde esteve em tratamento durante nove meses, voltando depois ao TO da Guiné para completar a sua comissão de serviço; 

(v) em abril de 2006, (re)visitou Guiné-Bissau, num viagem de grupo organizada pelo Xico Allen; 




Sare Banda estava perto de Sinchã Jobel, e é natural que fosse atacada. O alferes morto foi o Carlos Alberto Trindade Peixoto, o meu segundo substituto [, o "Aznavour", por ser parecido com o Charles Aznavour, sendo natural de Moçamedes, Angola]. O outro morto foi o fur mil Raul Canadas Ferreira [, natural da metrópole]. Mas as circunstâncias da morte deles não estão devidamente relatadas. (**)


Foi assim: este, como todos os destacamentos da CART 1690, não tinham luz eléctrica, nem mesmo um miserável gerador. Eles estavam os dois numa tenda a jogar às cartas, com um petromax aceso. Para os guerrilheiros foi muito simples, foi só apontar o RPG. 

As fotografias de Sare Banda que mando tirei-as em Abril 2006, quando a caminho de Sinchã Jobel, passando por Geba, Sare Ganá e Sinchã Sutu.

8 de setembro de 1968 : desenrolar da ação

(i) Acção inicial do IN

Em 8 de setembro de 1968, às 20h21, um numeroso grupo IN, estimado em cerca de 100 elementos instalados em semi-círculo nas direcções NE-SW e SE-NW, atacou o destacamento de Sare Banda com o seguinte armamento:

- Canhão s/recuo- Morteiro 82
- Lança granadas RPG-2
- Lança granadas P-27 "Pancerovka"
- Metralhadoras pesadas
- Metralhadoras ligeiras
- Armas automáticas
- Armas semi-automáticas



O ataque foi iniciado com um tiro ao canhão S/R e dois Lança Granadas Foguete, dirigidos contra a cantina e depósitos de géneros que atingiram mortalmente o Alferes, Comandante do Destacamento e um furriel e provocaram ferimentos numa praça. 

Estes tiros iniciais do IN atingiram e destruíram ainda o mastro da antena horizontal do rádio, ficando assim o destacamento de comunicações cortadas com toda a rede de Geba. 

No seguimento da acção do IN atingiu com uma granada incendiária uma barraca coberta por 2 panos de lona de viaturas pesadas, onde costumavam dormir vários elementos das NT por não caberem todos nos abrigos, o que provocou a destruição de todo o material lá existente e iluminação das posições das NT.


(ii) Reação das NT


a) Das forças do destacamento



Após a surpresa inicial, os elementos que se encontravam fora dos abrigos correram para os mesmos e reagiram imediatamente ao ataque IN. Não obstante terem ficado sem o seu Comandante e sem comunicações logo aos tiros iniciais, nunca perderam a calma e o moral, opondo tenaz resistência aos intentos do IN. 

Refira-se que, logo no início da reacção, as NT atingiram com tiros de morteiro a guarnição IN do canhão s/r,  calando-o definitivamente, e em determinada altura do ataque repeliram energicamente uma tentativa de penetração de elementos IN ao destacamento, que para o efeito haviam conseguido chegar junto da rede do arame farpado. 

Essa reacção, feita só à base de tiros de espingarda G-3 e granadas de mão em virtude de se ter avariado o Lança Granadas Foguete (bazuca, 8.9), foi verdadeiramente eficaz e decisiva para o desenrolar dos acontecimentos, pois o IN foi obrigado a recuar deixando no terreno 3 mortos, além de armamento e arrastado consigo outros elementos feridos e mortos.

O IN sempre perseguido pelo fogo das NT recuou cerca de 200 metros, instalando-se entre Sare Banda e Sinchã Sutu, donde continuou a flagelar o destacamento até cerca das 22h30 (1 hora e 30 minutos depois do início do ataque), altura em que desistiu dos seus intentos retirando definitivamente.

b)Das forças de Geba (CART 1690)

Em virtude das péssimas condições atmosféricas não foram ouvidos em Geba os rebentamentos de forma a poderem ter sido localizados. Refira-se ainda que o facto do destacamento de Sare Banda ter ficado sem comunicações logo de início do ataque, só permitiu que em Geba se tivesse conhecimento do sucedido cerca das 09h02, do dia seguinte,  de 9 de setembro de 1968, e através de 2 praças do destacamento que haviam vindo a pé voluntariamente comunicar a ocorrência.


Prontamente saiu de Geba uma coluna de socorro que, ao atingir Sare Banda às 017h45, fez um reconhecimento nos arredores seguido de batida de madrugada, mas já não conseguindo contactar com o IN, que havia retirado na direcção de Darsalame e se dirigindo para Sinchã Jobel. 

(iii) Resultados obtidos:

Baixas sofridas pelo IN: 8 mortos confirmados. Muitos feridos sendo possível que hajam mais mortos devido aos rastos de sangue encontrados no carreiro de retirada do IN.


Material capturado ao IN:


- 1 Espingarda semi-automática SIMONOV cal. 7,62 mm
- 1 Espingarda automática G-3 / 7,62 mm
- 1 Granadas de canhão s/r
- 2 Granadas de lança-granadas foguete
- 1 Granadas de morteiro 82 mm
- 2 Granadas de mão ofensivas RG-4
- 8 Carregadores de Met. Lig.
- 2 Fitas de Met. Lig.
- 2 Facas de mato
- 2 Bolsas p/transporte de munições
- 2 Cantis
- Diversas Munições de armas aut.

Além de uma bolsa de medicamentos, com o seguinte material:

- 3 Streptomycin. Sulphite-ampolas de 5.000.000 (Frascos)
- 1 Éter (frasco)
- 1 Mercúrio cromo (frasco)
- 1 Bálsamo (frascos)
- 10 Injecções (desconhecidas em ampolas)
- 178 Aspirinas comprimidos (carteiras)
- 96 Madexposte em comprimidos
- 6 Chinim Sulfur (comp. emb. de 5)
- 5 Codemel (carteiras de 10 Comprimidos)
- 1 Adesivo (rolo)
- 1 Algodão cardado (maço)
- 1 Garrote
- 20 Ligaduras de gaze de 10 cm x 5cm
- 1 Seringa de plástico c/agulha


A. Marques Lopes
Alf Mil da CART 1690 


[Revisão / fixação de texto: LG](***)

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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:


5 de outubro de 2015> Guiné 63/74 - P15202: Os jogos de cabra-cega: Sinchã Jobel (A. Marques Lopes) (Parte V): a partir da Op Invisível, de 18-19/12/1967, passa a ser uma ZLIFA (Zona LIvre de Intervenção da Força Aérea)... O alf mil Fernando da Costa Fernandes, de Santo Tirso, é morto, não sendo possível resgatar o seu corpo, e o soldado Manuel Fragata Francisco, de Alpiarça, é gravemente ferido, aprisionado e levado para Ziguinchor onde é tratado pelo dr. Mário Pádua e mais tarde, em 15/3/1968, entregue à Cruz Vermelha Internacional



(***) Último poste da série > 13 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19887: 15 anos a blogar, desde 23/4/2004 (8): O soldado Machado, de etnia cigana: 'Ó Barrelas, pagas-me uma bejeca ?!'... Uma "estória" bem humorada do Mário Pinto (1945.2019)


segunda-feira, 17 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19898: Notas de leitura (1187): “Deixem a Guerra em Paz: Guerra Colonial – Guiné”, Edições Partenon, 2019 - Sempre na caçoada, zombeteiro quanto baste, subtil apurado: Alberto Branquinho



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Junho de 2019:

Queridos amigos,

As picardias do nosso confrade Alberto Branquinho são como o brandy Constantino, já vêm de longe, ele pertence a essa rara linhagem de quem tece com humor, troçando dos escriturários e suas bravatas. Temos aqui uma novela que mete respeito, este major de operações vai passar à história e nunca saberemos, e talvez também não tenha importância nenhuma, o que por ali se passou tem algo de autobiográfico.

O que enriquece esta prosódia é a falta de referência quanto a lugares, nomes reais de sítios, rios, dia, mês, ano. É também deste modo que se lê de forma universal as facécias, os absurdos e os permanentes impasses que atravessam a trama daquela guerra ou daquelas guerras, como Alberto Branquinho gosta de sublinhar, para nosso proveito.

Um abraço do
Mário


Sempre na caçoada, zombeteiro quanto baste, subtil apurado: Alberto Branquinho

Beja Santos

O nosso confrade Alberto Branquinho pertence à linhagem daqueles que trabalham no tear com ponto cáustico, fio mordaz e alguma mofa esvoaçante. De parágrafo económico, cortante, sente-se à légua o seu azedume com os operacionais de escritório, oficiais, sargentos e praças. E não fala da guerra, é tudo no plural, as múltiplas e variegadas guerras, como ele observa: “A guerra, ela mesma, é composta de muitas outras guerras, que também causam baixas: É a guerra entre as hierarquias, a guerra com as hierarquias, a guerra de militares com aspirações políticas, a guerra entre os que planeiam as guerras e os que têm que as fazer, a guerra entre os que fazem a guerra e os serviços de apoio ou de retaguarda, etc.”.

Acaba de publicar “Deixem a Guerra em Paz: Guerra Colonial – Guiné”, Edições Partenon, 2019.

São guerras universais, a topografia é irrelevante, o que parece funcional, lógico, extraído do melhor pragmatismo acaba no teatro do absurdo. Logo no planeamento operacional, o diálogo entre o oficial de operações e o capitão, o que parece claro deixa de o ser, afinal o homem da PIDE mente ou esconde, o funcionário colonial resguarda-se para o futuro, afinal é cabo-verdiano e o racismo na guerra da Guiné também conta.

Enquanto os homens do PAIGC fazem a cambança é hora de saída lá no batalhão, aquela operação terá de dois a três dias, testam-se as transmissões e logo um pouco mais adiante começam os pequeninos entraves, passa por ali um javali, é um restolho que provoca frémitos, surge o lodo e a malta enterra-se até aos joelhos, o guia anda às apalpadelas, fora aprisionado, parece que vai bem amarrado, nisto ouvem-se uns estoiros, mas são bem ao longe. Primeira cena do primeiro ato, ou coisa parecida. Na segunda cena, o oficial de operações anda para ali inconclusivo mas ansioso, precisa de um sucesso retumbante, um ronco, no posto de informações não lhe dão notícias, no mato ninguém se entende com a escuridão, o melhor é que comece a clarear, continua-se a patinhar na lama, o pessoal vai ensonado, faz-se um alto, quem guarda o prisioneiro pede a um camarada que fique em vigilância, o silêncio da noite interrompe-se com rajadas e disparos de RPG vindos da mata à esquerda, um fogo que vai durar vinte minutos. É nisto que se descobre que o prisioneiro deu às de vila Diogo, o capitão está descorçoado, perdeu-se o efeito-surpresa. Nova cena, o solilóquio do alferes Félix, interrompido por morteiradas, anda tudo num arrebol. O capitão toma decisões, não se pode continuar a operação, vai-se bater a zona, regressa-se ao quartel, fim do primeiro ato.

Novo ato, abre em esplendor, um ataque ao quartel, Alberto Branquinho dá-nos aqui uns parágrafos para antologia:

“O furriel Matos, da secretaria do Batalhão, foi apanhado pelo ataque no exterior do quartel, trajando farda de passeio. Como que indiferente à tanta confusão, vinha caminhando lentamente pela rua da povoação, frontal à porta de armas, entre terror e espanto. Não conseguia correr.
- Apocalipse! – murmurava.
Parou. Sentou-se na soleira da porta fechada de um dos poucos comerciantes que permaneciam na localidade e que ele costumava visitar aos Domingos.
- Minha mãe! Mãe…
Ao ouvir o silvo de uma granada que lhe passava sobre a cabeça, levantou-se. A granada rebentou na bolanha, a pouco mais que uma centena de metros à sua frente, seguida de um clarão que iluminou a noite.
- Ai, minha mãe!
Voltou a sentar-se até que os rebentamentos pareciam ter cessado, embora os obuses do quartel ainda fizessem fogo espaçadamente.
Levantou-se. Lentamente caminhou pelo meio da rua em direção à porta de armas. Ao chegar à porta, o cabo viu-o com a impecável farda de passeio, reconheceu-o entre o pó e o fumo e, em espanto, abriu-lhe a porta.
- Ó meu furriel, o que é que você anda a fazer aí fora?
- Estava a ver…
- Ó meu furriel, entre depressa. Já há dois mortos e uma porrada de feridos. O Posto de Socorros está cheio. Uma granada rebentou com uma caserna.
Já dentro e em fúria, o furriel Matos arrancou a arma das mãos do cabo, apontou, pela porta entreaberta, para o exterior, carregou no gatilho e despejou, de rajada, o carregador. Depois largou a arma no chão e desatou a correr. Só parou junto à cama. Deitou-se e colocou a almofada em cima da cabeça”.

A vida no Batalhão tem peripécias e facécias, todos notam que a relação entre o capitão e o major de operações desferiu, correm murmúrios, trocam-se conversas entre alferes, parece que o comandante de companhia vai partir, terá sido transferido, tudo por se ter recusado a punir ou a propor punição a quem deixou fugir o prisioneiro. E de facto o capitão entrega o comando da companhia ao alferes mais antigo. Muita coisa se irá passar na ausência do capitão. O major de operações informa que se vai voltar à carga, a operação vai ser repetida, escolhe o itinerário, tem informações sobre o local exato do objetivo. E informa o alferes que vai acompanhá-los, levam uma equipa de sapadores. E a tropa fica estarrecida quando o major dos papéis se põe à frente da coluna. Lá chegam junto ao objetivo, quem ali vivia fugiu espavorido, o major mandou deitar fogo às palhotas, o regresso é acompanhado de problemas, rebentamentos próximos, logo um furriel com um pé esfacelado, tempos depois chegou um helicóptero que levou o ferido e desapareceu através das árvores. O major vai derreado, mal entrou no quartel foi tratado no Posto de Socorros.

Já tratado, informou o comandante:

“Foi muito útil esta operação porque cheguei à conclusão que o IN está a passar informações no sentido de encaminhar a nossa atenção e a nossa atividade operacional para zonas que já abandonou”.

Tudo isto aparece escrito de forma séria, a galhofa fica para quem experimentou operações frustradas e comentários ignorantes como este. Muda a cena, regressa o capitão, a companhia arruma a trouxa e parte numa LDG para novo aquartelamento, entremeiam-se solilóquios, estamos agora num quartel que aparentemente tem acalmia, vão começar os males da paz podre até que a companhia regressa a Bissau, daqui se parte para uma missão de apoio à construção de um novo aquartelamento.

Segue-se o humor negro de diferentes quadros de regresso, o destino de cada um, é a última cena do último ato, lá no navio que os transportava de regresso a Lisboa os alferes disparavam frases, interrompiam-se, não é nada como tu dizes, o que se passou foi o seguinte, não, não foi assim, um alferes médico não gostou daquela gritaria com fuzis verbais, pediu-lhes para deixarem a guerra em paz, o alferes Félix respondeu-lhe que não era capaz, não fizeram uma “guerra santa”…

Cai o pano, soube a pouco, exige-se que o Alberto Branquinho volte em breve, depois das brejeirices desta novela.
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19890: Notas de leitura (1186): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (10) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19897: Parabéns a você (1639): Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor Auto do BART 3872 (Guiné, 1971/73)

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Nota do editor

Último poste da série de 14 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19888: Parabéns a você (1638): Francisco Silva, ex-Alf Mil Art da CART 3492 e Pel Caç Nat 51 (Guiné, 1971/74)

domingo, 16 de junho de 2019

Guiné 61/74 – P19896: Estórias avulsas (96): Numa tarde e noite de copos onde tudo acabou à “molhada”. Uma cena que fez tremer o meu amigo Otílio. (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem. 

Numa tarde e noite de copos onde tudo acabou à “molhada”
Uma cena que fez tremer o meu amigo Otílio

Comecemos pelo princípio de uma história a que tive oportunidade em assistir. Recém chegado à Guiné, envergando o rótulo de “piriquito”, eis a malta a caminho do centro nefrálgico da cidade de Bissau. Na altura, creio, que o meu companheiro de aventura era o camarada ranger Ramos, um rapaz de Cabo Verde e cuja façanha por ele protagonizada um dia aqui já comentei. 

Relembro, só num curto atalho de foice, que o Ramos, um dos meus camaradas nas instalações do QG, o Biafra como era apelidado pela malta, foi um rapaz que a certa altura rumou para o PAIGC e que após a Revolução dos Cravos, 25 de Abril de 1974, regressou a Bissau e logicamente ao seu torrão sagrado. 

Passeávamos pela “baixa” de Bissau, neste caso nas proximidades do imenso Oceano, sendo que ali por perto se localizava o cais de Pindjiguiti, local onde se concentravam alguns dos muitos cafés e cervejarias, quando a dada altura nos deparámos com uma enorme algazarra.

Um soldado comando que estava sentado numa das mesas dessas esplanadas, travou-se de razões com o empregado, um rapaz de cor, e a zanga resvalou para o torto, tendo o fim da cena terminado com cadeiras e mesas pelo ar e de vidros partidos, de entre o emaranhado pugilato por nós observado.

Nós, com as divisas ainda luzidias, assistimos impávidos e seremos ao acontecimento que meteu a PM, a ida do soldado comando, já cacimbado devido ao tempo de guerra e de tanta porrada travada nos matagais da Guiné, para o posto policial militar num dos jipes da força da ordem, onde terá sido depois interrogado e mandado embora, penso eu. 

Sei que a cena ficou-me na memória e que no final da minha comissão, reduzida face ao histórico acontecimento de Abril, me vi envolvido numa situação parecida como aquela que tinha visualizado aquando da minha chegada à Guiné.

Numa tarde e noite de copos predispus-me a visitar o meu grande amigo Otílio Costa Guerreiro, meu companheiro dos bancos da Escola Industrial e Comercial de Beja, um rapaz que estava sediado em Bissau como elemento da Marinha Portuguesa e desafiei-o para uma visita à casa das ostras.

Claro que o Otílio, meu camarada da boémia nas noites de Beja, não se fez rogado e caminhámos rumo ao objetivo previamente traçado. Começámos nas ostras, seguiram-se outras viagens de estroinice e terminámos já noite dentro numa marisqueira a saborear o famoso camarão tigre grelhado.

Escusado será dizer que a embriaguez resvalou para uma ocorrência de pancadaria que fez tremer o meu camarada Otílio. Sei que o empregado, rapaz de cor, ter-me-á mandado uma “boca” que não suou bem aos meus tímpanos e a partir dali deu-se um grande desaguisado. 

Lembro-me que em princípio a discussão fora apenas entre os dois, só que o evoluir da agudizada conversa resvalou para o ajuntamento de mais dois ou três amigos do meu rival, sendo que as minhas forças físicas e mentais se tornaram então ferozes perante a quantidade de álcool já ingerido.

Não me importou o número de sujeitos com os quais lutei, sei que saquei do cinturão, enfrentei com audácia os “adversários”, descarreguei umas fortes cinturadas nas costas dos “inimigos”, os rapazes perante a minha agilidade não desarmaram e deram-me de facto luta à séria.

O meu amigo Otílio entrou em pânico, não estava à espera do sucedido e nem tão-pouco conhecia os meandros da “postura” guerrilheira, quer ela fosse no mato, quer ela mourejasse na cidade e só me pedia para ter calma. Eu, qual desenfreado leão à solta, não parava o combate e nem me acomodei diante daqueles rapazolas que me terão tirado do sério.

Recordo ouvir pequenas provocações durante a ocorrência, sendo uma delas do tipo: “o gajo é maluco e é ranger, olhem a placa no ombro que diz operações especiais!”. Tudo dito num português atabalhoado. Fixei a finalidade do palavreado. 

Mas não estava em causa a especialidade, fosse ela qual fosse, todas me mereceram respeito, em causa esteve a forma agreste como fora tratado como cliente a que acresce o efeito da bebida já ingerida e que era já muita.

Tudo porém acalmou e no final pagámos a despesa, os rapazes desobstruíram a nossa saída, aliás, decidiram rumar, quiçá envergonhadamente, aos seus poisos, ficando nos registos que nessa luta deveras titânica não houve vencidos nem vencedores, mas sim um jovem militar que sozinho conseguiu dominar uma situação que bem poderia ter resvalado para males bem piores. 

Ainda hoje Otílio comenta, amiúde, esse acontecimento onde diz “que dentro daquela marisqueira poder-nos-iam ter matado”. Eu, conscientemente, respondo: “Matado? Não! Lembra-te “quem tem cu tem medo” e naquela situação prevaleceu o meu ar cacimbado e o arrojo como enfrentei o inimigo a exemplo, aliás, como a ocorrência observada no início da minha estadia na Guiné.

A cena que relato numa tarde e noite de copos onde tudo acabou à “molhada”, passou-se quando já aguardava transporte que me enviasse de regresso a Lisboa.

Para trás ficaram imensas histórias que são hoje meras lembranças “encaixotadas” numa prateleira já impregnada de corucho, mas que reúne um rol de acontecimentos numa Guiné onde me foi ofertada a possibilidade de conhecer a guerra e a paz.

Num profícuo apronto final sobre o moral de uma história, história esta incentivada com um post de Luís Graça no nosso blogue acerca de uma cena onde a pancada imperou, remeto-vos camaradas para os paradigmas de uma guerra que trouxe dissabores de diversa ordem.


Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em:

Guiné 61/74 - P19895: Blogpoesia (625): "Frente ao mar", "Estão em sentido rigoroso as casas e as janelas da cidade..." e "Espero-te, sol...", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados, entre outros, ao nosso blogue, que publicamos com prazer:


Frente ao mar

Sinto-me minúsculo frente a este mar sem fim.
Uma gotícula apenas deste universo, aparentemente, sem começo e, se calhar, sem fim.
Mas tenho a faculdade de reflectir.
Todas as questões que se põem:
- Donde? Porquê? Qual o fim?
Como eu, a humanidade se interroga, desde quando se viu como parte integrante deste mundo.
São tantas as teorias que o homem fabricou.
Desde a mais simples e elementar
- Que o mundo sempre existiu assim e existirá. Um composto de seres vivos e doutros, aparentemente inertes.
Aqueles brotaram destes e têm a faculdade de evoluirem.
Sua existência, sujeita à morte, está visceralmente dependente dos que lhe parecem inferiores.
Dos vivos, só a humanidade tem consciência dessa dependência.
Por isso, sofre e sente angústia.
Queria ser eterno, pelo menos, como o mundo.
Vê o terror do tempo que os devora.
Para a mitigar, com a ânsia de eternidade, inventou uma panóplia de religiões.
Ainda mais confundem.
- Será verdadeira aquela que crê num Ser Supremo. Criador de tudo quanto existe. Tudo sustenta e governa.
E que, há uns breves milhares de anos, se revelou ao homem, não só como seu princípio e fim, como é seu Deus e Pai...
Nela eu estou.

Roses, 13 de Junho de 2019
10h20m
Jlmg

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Estão em sentido rigoroso as casas e as janelas da cidade...

Estão em sentido rigoroso, aprumadas, as casas e as janelas do Porto, frente ao rio.
Se perfilaram, com todo o garbo, saudando sua visita e passagem para a foz.
Se engalanaram de cores vivas as paredes, as vielas e os recantos, em harmonia maviosa.
Telhados rubros e ameias.
À porfia.
Até a catedral, de provecta idade e curiosa, em homenagem, lá no alto, ergueu as suas torres.
O tempo passa. O rio corre.
Em correria milenar.
Morre a gente.
Se renova.
Fica a saudade.
A saudade morre.
E a cidade inteira,
Em reverente majestade, se rende ao Douro.
Faz parte dela.
Não é hóspede.
É da casa.
É bem verdade.

Roses, 14 de Junho de 2019
9h59m
Jlmg

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Espero-te, sol...

Espero-te, sol na tua imponência avassaladora.
Derrama luz em abundância.
Aquece os corpos transidos de dor pelos ventos da desgraça.
Sacia de pão os campos verdes.
Traz-nos, de novo, a fartura da paz e harmonia em cada lar.

Celebra connosco a festa fraternidade.
Acompanha de perto nossas passadas tímidas pelas veredas deste mundo.
Sê tu o rei deste reinado tão desgovernado.
Brilha e faz brilhar nas mentes as ideias puras e os sonhos que a Natureza delineou para nosso bem.

Acaba de vez a noite, sem estrelas nem luar que parece não ter mais fim...

Ouvindo Chopin - Nocturne op.9 No.2

Roses, 10 de Junho de 2019
9h33m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19873: Blogpoesia (624): "Aldeias suaves, serenas...", "Frescura do bosque" e "Subjectividade...", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P19894: A galeria dos meus heróis (31): Fatumata, a gazela furtiva de Sare Ganá (Luís Graça)

 

Contuboel, c. junho / julho de 1969... Furriel Henriques,
CCAÇ 2590/CCAÇ 12. Foto: Luis Graça
A galeria dos meus heróis > 

Fatumata, a gazela furtiva de Sare Ganá


por Luís Graça






Não, hoje já não saberias lá chegar. Foste de Bambadinca até Bafatá e aí cortaste para a vila de Geba, a outrora praça forte e presídio de Geba, agora em decadência, ofuscada pelo progresso e a beleza de Bafatá, a "princesa do Geba", como lhe chamavam os colonos brancos… (*)

Lembras-te de atravessar a ponte nova, uma bela ponte em betão sobre o rio Geba Estreito… Ponte Salazar, que o homem grande de Lisboa ainda era vivo… Mas já ninguém queria saber dele nem do seu nome. O novo homem grande era o Marcello (com dois ll) Caetano, cujo nome os teus soldados eram simplesmente incapazes de pronunciar e muito menos de soletrar: não falavam português, com exceção do Suleimane (que gostava de ser o teu intérprete, guarda-costas, secretário e cozinheiro). 

Levavas uma secção, 11 militares contigo, guineenses, incluindo um operador de transmissões, metropolitano. Em pleno agosto, no tempo das chuvas. Sare Ganá, no subsector de Geba, a noroeste de Bafatá. Apanhas nos teus papéis, ou no que resta deles, 
num caderno escolar, roído pela traça, as seguintes notas do teu diário de 1969:

“Sare Ganá. A última das tabancas do regulado de Joladu, no subsector de Geba. Estive aqui destacado duas semanas, em reforço ao sistema de autodefesa... O que não é irónico, porque a população é fula, está ao lado dos tugas, seus antigos inimigos e agora aliados".

A mais de 4500 quilómetro de distância, de Lisboa… Será que Sare Ganá ainda existe ou alguma vez existiu ?

"Armadilhada entre as duas fiadas de arame farpado e guarnecida por um pelotão de milícia (o PM nº 109, da Companhia de Milícias nº 3) e grupos civis de autodefesa, Sare Ganá é uma espécie de aldeia estratégica. Aqui termina a nossa soberania territorial, a norte do Rio Geba e começa a zona de intervenção do Com-Chefe que inclui, entre outras, as regiões de Mansomine, Caresse e Óio”.

E acrescentavas:

"É aqui que vive o régulo, uma solitária figura de aristocrata fula, de elevada estatura. A sua cabeça destaca-se acima da cabeça dos demais. Presumo que seja futa-fula. Não fixei o seu nome. Todos os seus súbditos, mandingas, balantas e manjacos, que viviam em Joladu, 'foram no mato' (leia-se: aderiram à guerrilha ou fugiram das NT). Hoje o seu regulado está circunscrito ao perímetro de Sare Ganá e a mais duas ou três tabancas: Sinchã Sutu, Sare Banda"...



Guiné > Carta de Bambadinca (1955) >  Escala de 1/50 mil > Posição relativa de Sinchã Jobel (IN) e de aquartelamentos, destacamentos e tabancas em autodefesa (NT): a sul, Missirá e Fá Mandinga; a leste, Geba, Sare Ganá, Sinchã Sutu... Pelo meio o rio Geba Estreito...Sare Banda ficava mais a norte (vd. carta de Banjara).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2019)


Tinhas chegado a 18 de julho de 1969, a Bambadinca, vindo de Contuboel, do Centro de Instrução Militar de Contuboel, um oásis de paz (**), e a tua CCAÇ 2590 (mais tarde CCAÇ 12) era agora uma companhia de intervenção ao serviço do comando do BCAÇ 2852... Como dizias com sarcasmo, eras um preto de 1ª e os teus soldados pretos de 2ª.

"Quase todos os dias ouvíamos os Fiat G-91 bombardearem Sinchã Jobel, uma base da guerrilha a 10 km a norte, e que é inacessível no tempo das chuvas devido às bolanhas e lalas que a rodeiam”.

“Até Farim é tudo terra para queimar”, diziam-te os milícias locais. “Nenhuma tropa apeada, ao que parece, se atreve a penetrar neste santuário do IN. Fala-se aqui da ‘mata do Óio’, como um misto de temor e de terror, domínio do sagrado e da morte”…

Ainda estava na memória da população o ataque de há um ano atrás, em 12 de agosto de 1968, ao tempo da CART 1690: à meia noite em ponto, um grupo IN estimado em cerca de 60 elementos, ou seja um bigrupo reforçado, vindo de Sinchã Jobel, tinha atacado Sare Ganá.

“Um ataque medonho”, segundo o testemunho de alguns milícias com quem falaste, com o Suleimane a servir de intérprete.  O ataque iniciou-se por tiros de morteiro (82 e 60), lança-granadas-foguete (RPG) e metralhadoras, com uso de granadas incendiárias. O IN conseguiu alcançar o arame farpado do lado Norte,   penetrando na tabanca por este lado e pelo lado Sul. Uma falha de segurança, no perímetro de arame farpado, mesmo armadilhado,  terá permitido a passagem de uns alguns atacantes, empunhando armas ligeiras automáticas. Algumas moranças começaram logo a arder. 


A reação das NT não se fez esperar: os valentes milícias fulas, uns a partir dos abrigos, outros dispersos pela tabanca, reagiram pelo fogo, aguentando o ímpeto inicial do ataque e dificultando o mais que puderam a infiltração dos guerrilheiros. Grande parte da população, os homens, estava armada e colaborou na defesa da tabanca. Mas depressa se esgotaram as munições, obrigando a milícia a recuar. A disciplina de fogo nunca foi apanágio do guineense, quer empunhasse uma G3 quer manejasse uma Kalash.

Em Geba, sede da CART 1690, a escassa meia-dúzia de quilómetros, logo que se ouviram os primeiros rebentamentos, saiu um piquete de socorrro, num viatura: meio pelotão, enquadrado por um alferes e um furriel. Nas proximidades de Sare Ganá, cerca de meia hora de depois, o grupo subdividiu-se em dois ou três, aproximando-se, a pé, da tabanca, com a intenção de procurar surpreender as forças atacantes.

Ao mesmo tempo que apoiavam a retirada da população, as forças da CART 1690 iam abrindo caminho, morança a morança, à força de bazucadas e curtas rajadas de G3. Gente brava!...

Às tantas, o IN, surpreendido pelo contra-ataque, lançou um “very light” e iniciou a sua retirada, arrastando consigo as baixas que sofrera e carregando o respetivo material. Devido à escassez de efetivos e à escuridão da noite, a perseguição encetada pelas NT não terá ido além da orla da mata próxima.

Uma hora depois do ataque chegou uma coluna de socorro, em viaturas, oriunda de Bafatá, composta por cerca de dois pelotões reforçados, da CCS/BCAV 1904, do EREC 2350, e do Pel Caç Nat 64. Normalizada a situação, as forças de Bafatá, com exceção do Pel Caç Nat 64, regressaram com os feridos mais graves da milícia e da população local. Foi montada segurança à tabanca nessa noite e dias seguintes.

Apurou-se então que o IN terá tido 5 mortos e outras baixas prováveis. De entre o material capturado, contaram-se duas armas ligeiras, uma metralhadora Dectyarev, com bipé, uma pistola metralhadora Sudayev PPS-43, uma das lendárias armas ligeiras da II Guerra Mundial (além de uma fita de metralhadora com 85 cartuchos e 2 granadas de mão ofensivas). Do lado dos defensiores, soube-se que tinha havido baixas entre a milícia e a população local. Parte da tabanca teve que ser reconstruída.

“Um ano depois eu aqui estou, periquito, de 5 a 17 de agosto [de 1969], integrado no 4º Gr Comb da CCAÇ 12 que foi reforçar o Sector L2 (Bafatá), sendo destacada uma secção para Sare Ganá e duas para Sare Banda (subsector de Geba). 


“Dias antes [da nossa chegada a Sare Ganá]k  o IN fizera um ataque malogrado à tabanca em autodefesa de Sinchã Sutu. Agora, por causa de um possível ataque da guerrilha, é proibido, à noite, fazer lume ou foguear na tabanca de Sare Ganá.

“Aqui come-se cedo e deita-se cedo. Ficam os vampiros dos mosquitos. Por sorte, não apreciam lá muito o meu sangue. Deve-lhes saber a uísque.” 


E mais à frente escreveste, no teu diário, a 15 de agosto de 1969:

“Destacado ou desterrado ? O que farei eu com uma seção de combate, uma bazuca, um morteiro 60, dez G-3 e um rádio se isto der para o torto ? Depois do ataque malogrado à tabanca próxima, Sinchã Sutu, a população fula anda inquieta... Sinto-me como os bombeiros, atrás da ameaça de fogo-posto, mas ainda não fiz sequer o meu batismo de fogo, contrariamente à maior parte da companhia, que teve os seus primeiros feridos graves em Madina Xaquili, há menos de 3 semanas."


Perguntas-te sobre o sentido e o alcance da tua missão:

“Limito-me a estar aqui: de manhã, durmo como um porco; às dez ou onze levanto-me, porque o calor dentro da minha palhota é já absolutamente insuportável. Devoro o almoço que o Suleimane entretanto já me preparou. Depois oiço velhas lendas dos tempos em que os cavaleiros do Futa Djalon eram donos e senhores destas terras. Ao fim da tarde dou um giro para fingir que me mantenho operacional.”

(Dormir que nem um porco!... Muito anos mais tarde, já como professor de sociologia e de saúde pública, passaste a fazer teu o sábio conselho do provérbio popular: 'Três horas dorme o santo, quatro o que não é santo, cinco o viajante, seis o estudante, sete o porco e oito o morto'... Foi, afinal, na Guiné que aprendeste que dormir muito fazia mal à saúde...)

E relatas, no teu diário, “uma bravata estúpida, bem típica de um periquito”, feita logo no princípio das tuas andanças por aqui. É uma das tuas duas recordações marcantes da estadia em Sare Ganá, uma má, outra boa:

“Fui sozinho com um milícia local fazer o reconhecimento duma aldeia próxima, abandonada pela população e armadilhada. Talvez Sinchã Famora, a sul, não fixei o nome. O tipo ia à frente com uma varinha feita de caule de capim seco (!), tentando detetar os fios de tropeçar que atravessavam os trilhos da aldeia, de resto já pouco visíveis.

" A meio do percurso, apanho um susto: um antílope, que pastava perto, atravesssou-se-nos no caminho, em plena área supostamente armadilhada. Foi mais do que um susto, apanhei um calafrio: é que na noite anterior, um felino que vinha no encalce dos galináceos domésticos, tinha feito acionar um das armadilhas do perímetro de defesa de Sare Ganá. E de pronto comecei a ouvir, de todos os lados, sucessivas rajadas de G-3... O pessoal, assustadíço, anda mesmo nervoso.”

Ainda hoje te perguntas como é que tu arriscaste a tua vida e a do milícia local, nesta estúpida e inútil aventura de ir “reconhecer” uma aldeia abandonada e armadilhada ?!… Não fazia parte da tua missão!... Foi pura bravata!... Ou talvez quisesses provar a ti mesmo que também eras “um gajo com tomaste", tu que nem sequer eras um atirador de infantaria, nem tinhas, ao certo, nem pelotão nem secção...Eras o "pião das nicas", como te chamava o teu capitão, suprias as faltas de graduados, em todos os pelotões...

A outra recordação marcante foi a da visita à tua morança, da “Fatumata, a gazela furtiva":


“ (…) Ainda não me habituei foi ao ‘black-out’ total, imposto por óbvias razões de segurança: não posso ler nem escrever na minha morança (faz-me falta uma pequena lanterna de pilhas), o que torna ainda mais insuportáveis estas longas noites de Sare Ganá (...).

“Resta-me a companhia silenciosa e furtiva da Fatumata, uma das quatro mulheres do comandante da milícia (presumo pou supeito): logo ao segundo ou terceiro dia, introduziu-se-me, lesta como uma gazela, na palhota onde durmo, junto ao espaldão do morteiro 60. Tapou-me a boca com a mão, esboçou um sorriso cúmplice, puxou o pano de chita até à cintura, virou-se delicadamente de costas e ofereceu-me o seu esguio corpo de ébano, ressumando húmidos odores da floresta!...

“De pé, ligeiramente curvada para a frente, enigmática como uma máscara, lasciva como a serpente bíblica, submissa como uma fêmea de felino!"...

Não te olhou olhos nos olhos, mas tu fizeste questão de a mirar de alto a baixo, de frente:

“Não é bonita, o rosto deve-lhe ter sido marcado pela varíola, quando mais nova... É sensual e ainda jovem, de seios duros mas pequenos. É provável que seja infértil e nunca tenha parido.”


Tiveste dificuldade em perceber a sua atitude e em adivinhar-lhe a idade:

“Terá vinte e tal anos, menos de trinta. Tínhamos trocado apenas olhares no primeiro dia, quando cheguei, na linguagem mais universal dos seres humanos” (…)

“E, tal como tinha chegado, partia depois, furtivamente, pela calada da noite, sem dizer uma única palavra em português ou crioulo: a única, de resto, que até agora lhe ouvi, foi uma estranha corruptela do meu apelido.”

Um "affaire” no mato ? “Que palavra tão deslocada aqui no cú do mundo, num país em guerra!”, comentaste tu.

De qualquer modo, este momento foi “celebrado com uma singela troca de roncos: dei-lhe a minha toalha de banho turca, colorida,  e fiquei-lhe com a sua pulseira de missangas vermelhas e brancas como recordação das estranhas noites de Sare Ganá.”


Nem sequer te ocorreu "partir patacão" com ela: não querias, de modo algum, estragar a singeleza e até a beleza daquele momento, a partilha de corpos entre um homem e uma mulher que pertenciam a dois mundos opostos...mas tinham em comum a infelicidade do "hic et nunc", do aqui e agora...

Ainda hoje tens dificuldade em entender o significado… socioantropológico desta cena!... Simples atração sexual de um mulher por um estrangeiro ? Simples favores sexuais sem pedir mais nada em troca ? Cumprimento da obrigação feminina de hospitalidade, por ordens expressas do régulo ou do comandante de mílicias que tu mal conheceras ? Ritual de submissão ao representante dos tugas, os "senhores da guerra"? Solidão, despeito, ciúme, não sendo a mais nova das mulheres do comandante de milícias, e muito provavelmente sendo infértil, uma das piores maldições que pode recair sobre a honra de uma mulher em África ?

Este caso não não era virgem, na época, e outros camaradas teus contaram-teestórias semelhantes de partilha de favores sexuais, de iniciativa feminina... em contexto de guerra.


E concluias a escrita desse dia, no teu diário, antes de regressares a Bambadinca:

“Deveríamos ser, ali, em Sare Ganá, os dois seres mais deslocados e solitários do mundo... Nunca mais a vi, nem cheguei a saber a sua verdadeira estória. Nem sei se ainda voltarei a Sare Gana. Mas a sua imagem de gazela furtiva, essa, não vou tão cedo apagá-la da minha memória."


E, de facto, ainda não a apagaste, cinquenta anos depois...Nem nunca mais voltaste a Sare Ganá.

© Luís Graça (2006). Revisto: 24 de junho de 2023.
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 11 de maio de 2019 >  Guiné 61/74: P19775: A galeria dos meus heróis (30): Depressa, tuga, dá-me o tiro de misericórdia!... E que o teu deus te pague!... (Luís Graça)



(**) Vd. poste de  25 de junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6642: A minha CCAÇ 12 (4): Contuboel, Maio/Junho de 1969... ou Capri, c'est fini (Luís Graça)


(...) Aqui a consciência humana tem a dimensão da tribo, do grupo étnico ou até da aldeia. Uma precária serenidade envolve a azáfama quotidiana destes povos ribeirinhos do Geba que, no meu eurocentrismo de viajante, recém-chegado e distraído, descreveria como felizes, gentis e hospitaleiros. 

O que eu observo, sob o frondoso e secular poilão da tabanca, é uma típica cena rural: (i) as mulheres que regressam dos trabalhos agrícolas; (ii) as mulheres, sempre elas, que acendem o lume e cozem o arroz; (iii) as crianças, aparentemente saudáveis e divertidas, a chafurdar na água das fontes; (iv) os homens grandes, sempre eles, a tagarelar uns com os outros sentados no bentém, mascando nozes de cola…

Em suma, um fim de tarde calma numa tabanca fula de Contuboel que daria, em Lisboa, uma boa aguarela, para exposição no Palácio Foz, no Secretariado Nacional de Informação (SNI). E, no entanto, o seu destino, o destino destes homens, mulheres e crianças fulas, já há muito que está traçado: em breve a guerra, e com ela a morte e a desolação, chegará até estas aldeias de pastores e agricultores, caçadores e pescadores, músicos e artesãos, místicos e guerreiros…

O chão fula vai resistindo, mal, ao cerco da guerrilha. De Piche a Bambadinca ou de Galomaro a Geba, os fulas estão cercados. Mas por enquanto, Bafatá, Contuboel ou Sonaco ainda são sítios por onde os tugas podem andar, à civil, desarmados, como se fossem turistas em férias! (...).

Guiné 61/74 - P19893: Agenda cultural (689): Lançamento do livro de Mário Leitão, "Heróis Limianos da Guerra do Ultramar", Museu da Farmácia, Lisboa, dia 17 de junho, às 18h30



COMUNICADO DE IMPRENSA


Lisboa, 7 de Junho de 2019

17 de Junho | 18h30 | Museu da Farmácia*
Mário Leitão, Ponte de Lima


Guerra do Ultramar: Memória e actualidade no Museu da Farmácia

Livro “Heróis Limianos da Guerra do Ultramar”, de Mário Leitão, lançado em Lisboa.

O livro “Heróis Limianos da Guerra do Ultramar”, de Mário Leitão, vai ser apresentado publicamente a 17 de Junho, no Museu da Farmácia, em Lisboa. A obra, resultado de um trabalho de investigação inédito em Portugal, reúne as biografias dos 53 soldados de Ponte de Lima,  mortos na Guerra Colonial.

A cerimónia de apresentação será presidida pelo Tenente-General Chito Rodrigues, Presidente da Liga dos Combatentes, que vai relatar as questões sociais, económicas e emocionais que ainda perturbam o espírito dos antigos Combatentes e respectivas famílias.

O Coronel da GNR Luís Gonzaga Coutinho de Almeida fará a apresentação da obra e do autor.

António Mário Lopes Leitão, farmacêutico e professor reformado, foi furriel miliciano na Farmácia Militar de Luanda, entre 1971 e 1973. Esta é a sua terceira obra, que materializa «as vicissitudes que estão subjacentes a esta saga da conservação das Memórias dos Combatentes Limianos».

O Museu da Farmácia promoverá uma visita comentada pelo seu director, João Neto, às peças da sua exposição permanente que recordam a luta contra a morte e a doença dos soldados da Guerra Colonial.

* R. Marechal Saldanha, 1

Entrada livre

Informações: cultura@anf.pt
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