sábado, 28 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2992: História de vida (11): Como eu, Eng Agrónomo, me safei de uma eventual guerra química (Jorge Picado)




Jorge Picado,
ex-Cap Mil,
CCAÇ 2589 e CART 2732,
Guiné, 1970/72



1. O nosso camarada Jorge Picado, ex-Cap Mil, que entre 1970 e 1972 palmilhou, como tantos de nós ao longo da guerra colonial, terras da Guiné, vem trazer uma nova visão desta mesma guerra, pelo prisma de um Técnico Superior de Agronomia, como é o caso dele.

Curioso será se entre a tertúlia houver alguém capaz de responder às suas interrogações, abrir um novo campo de discussão, neste caso, guerra biológica. Existiu? Não existiu? Houve tentativa de implementação?

Fica o relato do Jorge Picado.


Foto: © Albano Costa (2008). Direitos reservados.


2. SONHO
Por Jorge Picado

Depois de ler tantos argumentos explanados sobre "A Guerra estava ou não Militarmente Perdida?" veio-me à lembrança uma dúvida sobre uma suposição que fiz muito tardiamente acerca dumas recordações que nunca se me apagaram da memória. Por isso resolvi apresentar essa minha estória, que é verídica. Se julgarem que não tem interesse publicá-la, não faz mal.

SERÁ QUE O “SONHO” DE FICAR EM BISSAU ME PODERIA TER TORNADO COLABORADOR DUMA GUERRA CRIMINOSA?

Vou contar uma estória passada comigo que, se tivesse tido concretização, ter-me-ia causado graves danos, pelo menos de ordem psicológica. Poderão julgar inverídicos os factos que vou narrar, mas não são inventados, nem tão pouco sonhados. Sonho houve de facto, mas foi o de supor que podia inverter o destino da mobilização e cumpri-la em Bissau e, também como todos os sonhos, foi de curta duração.

Possivelmente nem o colega e amigo – ainda vivo, alentejano de gema e que desde Outubro de 1954 percorreu as mesmas salas de aula no velhinho ISA (Instituto Superior de Agronomia), passando pelos gabinetes e laboratórios do desaparecido Laboratório de Fitofarmacologia em que fomos companheiros de caminho, até eu abandonar esse percurso em 1963 e instalar-me nos Serviços Regionais de Agricultura – que me fez sonhar, se ler este relato, talvez não se recorde.
Mas eu lembro-me muito bem do sucedido, tão grande foi a esperança que ele fez nascer em mim, de evitar o percurso para o mato e instalar-me, pensava eu, confortavelmente em Bissau.

Esta era a triste realidade de muitos que naquela época se viram confrontados com o espectro duma guerra que não lhes dizia nada.
Já que não lhe podiam fugir, pelo menos que apanhassem uma cadeira e uma secretária num qualquer ar condicionado longe do mato e dos perigosos encontros com os malvados turras!
Eu não fiz excepção a estes pensamentos… mas tinha o destino traçado noutra direcção…e tive de o cumprir.

Seguindo o meu destino após a mobilização e uma vez desembarcado em Bissau a 19 de Fevereiro de 1970, depois dum cruzeiro marítimo, gentilmente oferecido pelo Ministério do Exército, numa viagem de carreira normal no N/M Alfredo da Silva da extinta SG – Sociedade Geral, uma Companhia de Navegação do Grupo dos Melos –, onde tive por companhia vários camaradas que iam em rendição individual – dos quais recordo um Capitão do Quadro Permanente de Transmissões, destinado ao respectivo Batalhão de Transmissões de Bissau – e um Destacamento de Fusos que ficaram em Cabo Verde, instalaram-me no Clube de Oficiais, onde fiquei a aguardar que quem desse pela minha falta me viessem reclamar

Como alguns dos desembarcados do Alfredo da Silva tínhamos combinado fazer a despedida numa refeição do Hotel (?), qual o meu espanto e, o dele, ao dar de caras com o amigo Covas de Lima, Eng.º Agrónomo – ex-Cap Mil José Covas de Lima que foi Cmdt duma CCaç em Farim, do BCaç aí estacionado de 1969-1971 e do qual também fazia parte outra CCaç cujo Cmdt era o então Cap do QP Vasco Lourenço – procurei situá-lo militarmente para o caso de algum Tertuliano ter sido seu camarada ou, como há alguns alentejanos que podem ser de Beja, conhecer esta família.

Nem eu sabia que ele já me tinha precedido no CPC/QC, nem ele tinha iguais notícias minhas. Daí o espanto de ambos.

Encontrava-se em Bissau a recuperar duma doença estando instalado no próprio Hotel e, dados os seus muito bons relacionamentos e conhecimentos, estava contactável com o Eng.º Agrónomo funcionário superior da Administração Ultramarina (?) que superintendia nos Serviços Agrícolas da Guiné e Cabo Verde (?), naquela ocasião em Bissau para tratar, com o Governador Geral (GG), precisamente de assuntos da área Agrícola.

Uma possibilidade de colocação

Naquela altura a Estação Agrícola e Florestal de Bissau (EAFB) encontrava-se sem chefia, pois o colega Agrónomo, por sinal também meu conhecido ainda que mais velho, que exercia o cargo, tinha terminado a comissão e regressado poucos dias antes à Metrópole. Convém recordar que depois de iniciada a guerra colonial aquele lugar deixou de ser cobiçado como lugar de carreira, passando então a ser ocupado, em regime de comissão militar, por colegas que assim se libertavam do comando de tropas, garantindo uma estadia mais calma em Bissau com todas as mordomias.

Estando por conseguinte o Covas de Lima conhecedor desta situação, que me transmitiu e, doutras preocupações que o dito colega da Administração Ultramarina lhe comunicara, sabendo da minha especialidade agronómica – Fitiatria e Fitofarmacologia com vastos conhecimentos no ramo dos Herbicidas –, logo me colocou ao corrente do seu plano. Precisavam de alguém com conhecimentos sobre o uso e aplicação daqueles produtos e como eu apareci e em rendição individual ia expor o caso ao Responsável da Agricultura e preparar um encontro com ele.

Embarquei logo naquilo que não passou dum sonho… de curta duração, mas julgando que o interesse fosse puramente agrícola… Nem outra coisa me passava pela cabeça. Julgava apenas que se tratava duma ferramenta técnica para aumentar a produção do arroz – uso de herbicidas nesta cultura onde tinha efectuado alguns trabalhos experimentais na Metrópole – e possivelmente no amendoim, duas das culturas que sabia mais importantes naquela Colónia.

O encontro e a desilusão

Tomei uma nova refeição no Hotel com ambos, que serviu de ponto de partida para uma longa conversa em que tive a possibilidade de responder às questões que me foram apresentadas e dar conta dos meus conhecimentos profissionais (não militares, claro), inclusive sobre os ditos herbicidas. Repiso este tema dos herbicidas, porque na realidade parecia ser este o busílis da questão… e não o da chefia da EAFB…que até talvez já tivesse destinatário… Tinha chegado em cima do acontecimento já que o assunto ia ser debatido um ou dois dias depois numa reunião com o GG.

Afinal a resposta que me deram foi negativa. Parece que já não havia interesse… e assim o meu sonho não durou mais do que 3 dias, pois tudo isto decorreu entre 20 e 22de Fevereiro. A 23 já tinha o destino traçado e na manhã de 24 lá estava o meu jeep no Clube de Oficiais, com o Alf Martinez a reclamar a sua substituição pela minha… à frente da CCaç.

Interrogações e evidências

Perguntarão então os que me lêem. Mas qual a piada desta estória? Qual o interesse nisto? O que é que isto tem a ver com o conteúdo do Blogue? De facto já estão a abastardar a finalidade e os objectivos dos fundadores, pensarão. É o resultado do alargamento e o aparecimento dalguns que andavam por lá com o rabinho metido entre as pernas e como não experimentaram outras sensações vêem agora com estas anedotas.

Pensem o que quiserem, porque eu também quando isto aconteceu não percebi bem a jogada em que me ia metendo e explico:

i) Não sabia que em 1970 a agricultura daquela Colónia estava desorganizada, pois as populações já não ocupavam as suas terras tradicionais, encontrando-se deslocalizadas. Só quando verdadeiramente desembarquei na guerra é que tomei conhecimento da real situação que se me apresentou;

ii) Quando uns tempos mais tarde vim a encontrar em Bissau o colega – um dos 4 que fizemos o 2.º Turno do CPC (Carne Para Canhão, como depreciativamente passei a traduzir a sigla) do QC de 1969, por sinal igualmente alentejano – cuja mobilização… lhe calhou… para a dita EAFB… atribui-lhe a culpa pela resposta negativa que me deram;

iii) Mas só muito mais tarde, então já na vida civil novamente, é que relacionei aquele possível interesse, depois de tomar conhecimento do uso desmedido e desregrado de desfolhantes feito pelas Forças Militares dos EUA no Vietname. Como é do conhecimento geral os Campeões das mais amplas Liberdades e Respeito pelos Povos de Todo o Mundo usaram herbicidas – dos designados totais e desfolhantes – em doses maciças para acabarem com o coberto vegetal natural formado pelas densas florestas equatoriais. Foram os também denominados agentes laranja – herbicidas primários do grupo 2,4 D – que na época ainda eram de uso agrícola e que eu bem conhecia e dominava – apliquei-os várias vezes. Só que os de uso agrícola, ainda que com os mesmos inconvenientes, eram um pouco mais seguros e mais purificados, isto é, mais limpos de certos componentes químicos por serem mais refinados, enquanto que os agentes laranjas usados no Vietname eram muito mais impuros… logo com ainda mais graves consequências não só para o meio ambiente, mas também e infelizmente para as pessoas, dados os seus efeitos toxicológicos e teratológicos.

A ideia de passar esta minha vivência ao blogue surgiu depois de ler tantos e tão bem documentados argumentos sobre a questão da “Guerra Estar ou Não Militarmente Perdida”. Será que algum dos camaradas com maior facilidade de consulta da vasta documentação militar poderá esclarecer se foi ou não aventada a hipótese de se empregar qualquer tipo de arma biológica na nossa Guerra Colonial?

É que, como disse, inicialmente julguei que as conversas que tive à minha chegada a Bissau com os meus colegas, se destinavam ao preenchimento da chefia da EAFB e, só muito mais tarde, associei tal interesse nos herbicidas à anologia com o Vietname… mas não tenho acesso a fontes bibliográficas que me confirmem as suposições… daí as muitas dúvidas que se me apresentaram quando descobri tal hipótese.

Um abraço
Jorge Picado

OBS:- Subtítulos da responsabilidade do editor
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Nota de CV:

Vd. último poste de Jorge Picado de 24 de Junho de 2008> Guiné 63/74 - P2983: Dando a mão à palmatória (14): O Régulo Iero não veio na coluna (Jorge Picado)

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