Carlos amigo
Na sequência das notícias sobre o acidente com uma aeronave na pista do Ciborro, durante algum tempo chegou a pensar-se no interior da Tabanca Grande (e não só) que eu estaria envolvido nele*.
Isso bastou para que chovessem telefonemas e e-mails de camaradas que queriam saber de mim, e mesmo depois de esclarecido que não era eu mas um amigo e um conhecido, continuo a receber mensagens, agora reflectindo a tristeza por ter eu perdido um amigo, mas felizes (a vida é isto) por não ter sido eu.
Naturalmente que quero agradecer a todos esses camaradas e aos que não me contactaram porque souberam dos factos, e nada melhor do que o fazer através do blogue, se os camaradas editores assim o entenderem.
Voar não é uma exercício mais perigoso do que tantos outros que quotidianamente a maioria de nós pratica. Exige, sim, grande rigor no cumprimento de regras conhecidas dos pilotos no que se refere à máquina, ao espaço de operação e ao próprio piloto.
Entretanto, a rotina e a auto-confiança, por vezes, levam-nos a descurar partes das regras instituídas.
Outras vezes, sobretudo na fase pioneira da aviação ultraleve, abusou-se muito do conhecimento (ou da falta dele), indo para o ar apenas por gozo.
Do meu próximo livro, faz parte uma pequena abordagem a esta questão, e, também se os editores o acharem oportuno, ofereceria aos camaradas em antecipação, tal texto que, da guerra colonial tem apenas o facto de, escrevente e protagonista trágico, terem, em épocas e locais diferentes, protagonizaram essa parte da história pátria.
Obrigado a todos e um abraço fraterno.
José Brás
eu sou devedor à Terra
a Terra me está devendo
a Terra paga-me em vida
eu pago à Terra em morrendo

Nascemos, e ao primeiro vagido a conta-corrente agarra-nos, cola-se, determina a dádiva e a dívida.
É certo que não quantifica em meses ou anos a duração do aluguer ou o valor e o intervalo de cada prestação. A bem dizer nem cobra prestações.
Cada dia é uma hipótese de pagamento pelo total!
Nascemos (eu sou devedor à Terra), podemos morrer no dia seguinte, três meses depois, dez anos, trinta, oitenta... e a dívida mantém-se sem juros nem amortizações.
Morremos (eu pago à Terra em morrendo) de escarlatina, de sarampo, de coice de mula, debaixo do tractor, de enfarte, na estrada, no trabalho, nas férias, na mesma cama que nos viu sair do útero da madre.
Dizem alguns, mesmo sem provas, que temos o destino marcado na hora do nascimento. Dizem outros que cada ser humano é quem faz o seu destino no modo de andar por cá.
Mas a coisa é mais funda! Em verso se canta no Alentejo (e seguramente noutros lugares do mundo), que a Terra já me devia a mim (a Terra me está devendo), mesmo antes do dia das dores de parto da minha mãe.
Mesmo antes do acto de amor que me gerou, provavelmente, e se assim for, desde o começo dos dias do mundo, encadeando nascimento e morte de todos os que me antecederam no nevoeiro dos tempos.
Então, é a Terra que nos paga a prestações em cada dia de vida, em cada minuto, em cada vitória, em cada trambolhão.
Do valor da prestação se sabe apenas que é bom ou que é pobre se a mãe "teve um menino" ou "pariu um moço".
Da duração da dívida da Terra a cada um, só mesmo bruxos muito diplomados podem saber. Sabe-se apenas que a Terra paga (a Terra paga-me em vida) enquanto aqui andarmos e que se liberta da dívida quando saímos.
Afinal, simultânea e reciprocamente pagando cada qual, Terra e pessoa morrente, a sua dívida particular.
Acertamos as contas, diz-se.
Foi assim com o Xico. Como qualquer outro, poderia ter morrido nos dias todos que antecederam o momento em que ouviu pela primeira vez a palavra voar. Podia ter morrido no primeiro voo, no segundo acidente, no oitavo, no décimo segundo...
Pagou a dívida agora, não sei se ao décimo terceiro, se ao décimo quarto.
Pagou! Acertou as contas.
O Xico sabia muito pouco das leis da física que justificam o voo. O Xico sabia muito pouco de aerodinâmica, de performances, de estabilidade, das qualidades dos materiais de que se fazem as aeronaves.
O Xico nunca fez um curso de pilotagem. Teoria, voo; teoria e voo; voo e teoria...
Perguntava, suponho que perguntava. Ouvia aqui e ali, opiniões avulsas.
Podíamos dizer que o Xico foi um pioneiro da aviação.
Um pioneiro fora de tempo, é certo, sem cronómetro nem calendário, mas um pioneiro.
O Xico formou-se em cada queda, em cada hospital, em cada caranguejola que inventava para sair do chão, garantindo aos amigos que não gostaria de morrer de pneumonia na cama.
Alargou os dias esvoaçando. Esvoaçando e caindo; caindo e esvoaçando à volta das pistas, à volta de si próprio.
Não foi herói porque aqui chegou descoordenado da história dos aviões. Foi mais um anti-herói, anonimamente percorrendo os caminhos dos heróis mas sem glória nem proveito senão nos passos que ele próprio ensaiava, nos moinhos que derrubava.
Os irmãos Wright eram mecânicos de bicicletas e voaram numa máquina não muito diferente em qualidade de voo, daquelas que o Xico inventava.
Sobre as experiências dos irmãos Wright, sobre a sua coragem, a sua ingenuidade, os seus acidentes; sobre a doação de muitas vidas depois deles, se acumularam conhecimentos e tecnologia que nos permitem hoje, de modo seguro e cómodo, cruzar oceanos, ir à Lua e voar em Ultraleve.
O Xico foi um desses pioneiros.
Fora de tempo, é certo; em pleno triunfo da tecnologia; convivendo, paredes-meias, com essa tecnologia e sem poder gozá-la; ignorando-a e arriscando a vida em palpites e em suposições.
No empirismo alegre e puro de quem acabou de chegar e já está pronto para partir.
O Xico pagou à Terra!
A Terra pagou ao Xico.
À terra pagaremos todos, tu, Filipe, que quiseste coisa escrita e me encarregaste desta maluqueira, eu, teu funcionário pelo tempo da escrita e teu amigo até ao fim dos tempos, se é que tal coisa existe.
Amém.
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Nota de CV:
(*) Vd. poste de 8 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5948: Blogoterapia (147): A notícia da minha morte foi um exagero: vão ter que continuar a aturar-me... (José Brás)