Guiné > s/l [Bambadinca?] > s/d [c. 1971/73] > A Força Africana... O major inf Carlos Fabião, na altura (1971/73), comandante do Comando Geral de Milícias, e o gen António Spínola, passando revista a uma formatura de novos milícias.
In: Afonso, A., e Matos Gomes, C. - Guerra colonial: Angola, Guiné, Moçambique. Lisboa: Diário de Notícias, s/d. , pp. 332 e 335. Autor da foto: desconhecidos. (Reproduzidas com a devida vénia)
1. Há segredos que não se partilham, por uma razão ou outra. Este, que envolve o Amadu Djaló, pode ter sido por uma de quatro razões (especulativas, acrescente-se):
(i) o Amadu Djaló não estava lá nesse dia, em Bambadinca (ele vivia em Bafatá, com as suas duas mulheres e restante família, incluindoa a amada mãe):
(ii) o Amadu Djaló terá achado indigno o comportamento dos seus camaradas e subordinados, e escamoteou, esqueceu ou branqueou este episódio, grave, que foi a insubordinação da CCAÇ 21 (no seu todo ou em parte)
(iii) o Amadu Djaló já se desligara, disciplinar e afetivamente, dos seus antigos camaradas e subordinados da CCAÇ 21, que era comandado pelo ten graduado 'cmd' Abdulai Jamanca (a companhia seria dissolvida e extinta dois dias deppois, em 18 de agosto de 1974);
(iv) "last but not the least" (isto é: não menos importante...), a ser verdade que cada militar da CCAÇ 21 só aceitava entregar a arma e passar à disponibilidade por 300 contos "per capita", estávamos perante uma exigência "milionária": na época, 300 contos (da Guiné, 1 escudo a valer 0,90 de 1 escudo da metrópole) seriam qualquer coisa como cerca de 50 mil euros (a precos atuais); multiplicando por 150 homens (=1 companhia, só de guineenes) daria qualquer coisa como 7,5 milhões de euros (que não poderiam caber na mala de nenhum governador-geral, ainda para mais na véspera do reconhecimento do independência e da saída do território por parte de Portrugal; o Amadu Djaló não podia deixar de estar a par destas reivindicações, para mais sendo um alferes graduado da companhia; mas será que ele tinha a noção exata ou aproximada dos valores que estavam em jogo ?
2. Vamos reconstituir o que se passou nesse "dia de todas as emoções" (como escreveu, no seu diário, o senhor cor cav CEM Henrique Manuel Gonçalves Vaz, 1922-2001).
Repete-se aqui a mensagem do nosso leitor (e camarada) Fernando Gaspar, ex-Fur Mil Mec Arm, CCS/BCAÇ 4518/73 (1973/74):
Data: 11 de Maio de 2012 22:30
Assunto: Bambadinca 1974
Boa noite, Luís
Fui furriel miliciano com a especialidade de mecânico de armamento e fui incorporado no Batalhão [de Caçadores] 4518/73 para a Guiné...
Após o 25 de abril de 1974, fui destacado para Bambadinca para receber material militar, viaturas, armas, etc.
Em agosto de 1974 (não consigo memorizar o dia), os militares presentes no destacamento de Bambadinca (eu incluído), foram surpreendidos com a presença de dezenas de militares do denominados Comandos Africanos (tropas nossas aliadas).
Todos nós (talvez duas dezenas), ficámos perplexos... Primeiro pensámos que vinham entregar as armas (o que nos facilitava o regresso a Portugal), mas não!... Fomos encostados à parede e deram um prazo de 48 horas para serem pagos da indemnização a que tinham direito, ou então, seríamos fuzilados...
Cerca de 40 horas após o sequestro, o brigadeiro Carlos Fabião chegou num helicóptero com duas malas carregadas de dinheiro... Terminou o sequestro!
Se através do teu blogue for possível reencontrar esses camaradas de armas, ficarei muito agradecido.
Até sempre, um abraço | Fernando Gaspar
2. Comentário de L.G.:
Na altura manifestámos a nossa gratidão e apreço ao Fernand0 Gaspar pela coragem de vir, a público, num blogue de antigos combatentes, revelar esse segredo, que possivelmente guardava, enterrado há muito na sua memória...
De qualquer modo, o que ele contava - ao fim de quase 4 anos todos - e que deve ter isso um pesadelo para ti e para os demais camaradas que foram feitos reféns, já não era segredo para mim... Já aqui transcrevi, ao de leve, uma conversa que tive, em Monte Real, por ocasião do nosso VII Encontro Nacional, com o último comandante do Pel Caç Nat 52, o alf mil Luís Mourato Oliveira [foto à direita].
Ele também estava em Bambadinca, sentado tranquilamente no bar de oficiais, a beber o seu copo, quando ocorreram os graves incidentes aqui referidos, sem grandes detalhes.. Foi igualmente sequestrado como o Fernando Gaspar e mantido como refém até à chegada do brigadeiro Carlos Fabião, que, vindo de Bissau, resolveu o problema (havia um vazio legal, com a CCAç 21 e a CCAÇ 20, que estaria ainda por resolver, mais de um ano deppois da sua criação).
Isto ter-se-á passado não com os "Comandos Africanos" (que pertenciam ao Batalhão de Comandos da Guiné, com sede em Brá, Bissau) mas com o pessoal da CCAÇ 21, que era comandada pelo tenente 'cmd' graduado Abdulai Queta Jamanca, e onde havia antigos militares da formação inicial da CCAÇ 12 do nosso tempo (Contuboel e Bambadinca, 1969/71)...
Disse-nos o Mourato Oliveira que, depois da negociação com o Carlos Fabião, houve grande ronco...
Semelhantes incidentes (graves) deram-se em Paúnca, pela mesma altura, com a malta da CCAÇ 11 (antiga CART 11), já relatados pelo nosso camarada J. Casimiro Carvalho. (*)
De qualquer modo, esperávamos que tanto o Fernando Gaspar como o Luís Mourato Oliveira nos pudessem, na altura, fornecer mais pormenores destes tristes acontecimentos que poderiam ter originado um tragédia imensa, se as ameaças de fuzilamento dos reféns fossem levadas a série pelos militares revoltosos da CCAÇ 21, em caso de falharem as "negociações"!.
3. O alferes 'cmd' graduado Amadu Bailo Djaló [foto à direita] também pertenceu a essa companhia, que era inteiramente constituída por pessoal do recrutamento local (incluindo os graduados e os especialistas). No entanto, nas suas memórias (Amadu Bailo Djaló - Guineense, comando, português: 1º volume: comandos africanos, 1964-1974. Lisboa: Associação de Comandos, 2010, 299 pp., il), não são narrados, referidos ou sequer evocados os "incidentes" de Bambadinca (vd. pp. 276 e ss.).
Talvez o nosso camarada Virgínio Briote [foto à esquerda,] que o ajudou a escrever o livro (como "copy desk") e privou muito com ele, nos seus últimos anos de vida, possa ainda esclarecer o que se passou exatamente nesses dia 16 de agosto de 1974 em que a CCAÇ 21 (ou parte do seu pessoal, possivelmente até à revelia do seu comandante, Abdulai Jamanca) tomou como reféns cerca de duas dezenas de militares metropolitanos que ainda restavam em Bambadinca, a aguardar o fim da comissão.
4. Estes factos já eram conhecidos do nosso blogue, ainda antes do final de 2011. Terminamos este poste, já longo, com um dos excertos dos registos pessoais, manuscritos, do cor cav CEM, Henrique Manuel Gonçalves Vaz (1922-2001), no ano de 1974, no TO da Guiné (foto a seguir, à direita).
A recolha e a transcrição são da responsabilidade do seu filho Luís Gonçalves Vaz que estava, nessa época (1973/74), com a sua família, em Bissau (é hoje professor de matemática e ciências da natureza numa escola da zona de Braga; é membro da nossa Tabanca Grande).
Recorde-se que a CCAÇ 21, de vida efémera (e que não tem história da unidade) foi dissolvida e extinta dois dias depois, em 18 de agosto de 1974.
(...) 16 de Agosto de 1974
... Este foi um dia tremendo de trabalho e emocionante com as notícias de Bambadinca, em que a Companhia de Caçadores nº 21 a tomar conta do aquartelamento e a exigirem 300 contos por homem, para entregarem a arma e passarem à disponibilidade!
Foi para lá o Governador Brigadeiro Fabião e ao fim da tarde foi recebida a notícia de que tudo estava resolvido. ..."
Coronel Henrique Gonçalves Vaz (Chefe do Estado-Maior do CTIG) (...)
Este valor (300 contos, 300 mil escudos ultramarinos) era uma exorbitância! Tem de ser confirmado. (Nesta altura, em meados de 1974, já depois do 25 de Abril, um Fiat 127, que era o carro mais vendido em Portugal, custava 95 contos, o litro da gasolina andava nos 7$50, e o salário mínimo nacional acabava de ser fixado em 3300$00 mensais)...
Nunca o pobre do Amadu Djaló ganhou 300 contos em toda a guerra. Nem sequer um oficial general ganhava isso numa comissão de dois anos!...Pode ter havido um erro de audição e/ou transcrição, se calhar há um zero a mais: vamos ter de pedir ao Luís Gonçalves Vaz que releia com atenção o "manuscrito" do seu querido pai.
No nosso tempo, um soldado da CCAÇ 12, do recrutamento local, uma praça de 2ª classe (!) ganhava 600 escudos por mês, mais o "per diem" de 24$50 por ser desarranchado: comia na tabanca e no mato, em operações, não tinha direito a ração de combate (levava um lenço atado com um mão cheia de arroz cozido) ... Em suma, recebia em média 1300 escudos ("pesos") mensais (em 1969/71).
Os militares da CCAÇ 21 devem ter recebido em 16/8/1974, aliás como o disse o Amadu Djaló (não no livro mas noutra fonte), o dinheiro a que tinham direito até fim do ano de 1974. O Amadu Djaló foi oficial do Exército Português até essa data. Depois teve que optar por uma das nacionalidados... Recuperaria mais tarde a nacionalidade portuguesa, mais tarde,; quando vem para Portugal em 1986, juntamente com outros antigos comandos...
Infelizmente estas "pequenas grandes histórias " não vêm nos livros da CECA nem na historiografia militar oficiosa, oficial ou académica. São "anedotas"...
__________
(**) Vd. poste 13 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9190: O último Chefe do Estado-Maior do CTIG, Cor Cav Henrique Gonçalves Vaz (Jan 1973/ Out 74) (Parte II): Agosto de 1974: rebelião da CCAÇ 21 (Bambadinca) e do BCAV 8320/72 (Bula)
9 comentários:
Comandos Africanos ou CCAÇ21? Fiquei confuso.
Um abraço.
César Dias
CCAÇ 21, César, que tinha a sua sede em Bambadinca... O Batalhão de Comandos da Guiné, que era conmstituído entre entre outras, por 3 compabhias de Comandos Africanas, tinha a sua sede e, Brá, Bissau... Ab, Luís
Luís Vaz, por favor, confirma o que o teu +ai escereveu!... 300 contos (da GTuiné) na época era uma fortuna!... 50 mil euros a preços de hoje!
Caros amigos,
Este é um caso para lembrarmo-nos da frase mais famosa do filósofo alemão Carl Marx:
“A história se repete , a primeira vez como tragédia, e a segunda como farsa”.
A tragédia tinha acontecido na Africa ocidental, no acontecimento conhecido como o massacre de Thiaroye, no Senegal, entao AOF (Africa Ocidental Francés).
A França que tinha sido humilhada pela alemanha no decurso da segunda guerra, tinha lançado mão ao recrutamento de um numero consideravel de “voluntarios” africanos nas suas colónias de Africa, como carne para canhão. Mas, com o desembarque dos aliados em 1944, em Junho do mesmo ano, decidiu branquear o seu exercito que tinha sido desbaratado pelos alemães e desembarçar-se dos africanos que enchiam as suas fileiras na defesa das suas cidades e vilas.
Assim, perto de 10.000 soldados, designados de “Tirailleurs Sénégalais” foram, contra sua vontade, metidos em navios e recambiados a força em alguns portos do continente, entre os quais Senegal e que foram provisoriamente instalados em Thiaroye, arredores de Dakar, para a sua desmobilização.
O problema, segundo as fontes, tinha a ver com o não pagamento de soldos, prêmios prometidos e não pagos, recuperação de pequenas economias guardadas em instituições francesas de poupança e condiçoes para um regresso digno aos seus territórios de origem e junto das suas familias, mas que, segundo as autoridades coloniais francesas, provocou protestos e graves motins que resultaram na morte de muitas dezenas (segundo autoridades coloniais) ou centenas (segundo outras fontes).
Assim, o caso de Bambadinca em 1974, representa uma pequena repetição ou a farsa de Marx na história dos povos colonizados de Africa que, tendo em conta os antecedentes e o contexto, dificilmente poderia resultar numa grande ameaça ao exército portugués, tendo em conta a ausência de qualquer organização e/ou coordenação no seio dos soldados de diferentes aquartelamentos, e que nunca tinham tido qualquer autonomia e capacidade de decisão que pudesse constitiuir uma ameaça real ou uma força de pressão consistente por falta de homogeneidade e lideranças que pudessem defender suas causas.
Exigir o pagamento de 300 mil Escudos por cabeça naquelas circunstancias só podia ser o prenúncio de uma grande farsa que, para todos os efeitos, servia para dizer aos oficiais que representavam Portugal, que alguém tinha falhado nas suas obrigaçoes e palavra de honra, pelo que já não havia nada a respeitar de parte a parte. Que se f...dam a disciplina militar e tudo resto !...
Com um abraço amigo,
Inteiramente de acordo, Cherno... Mas eu continuo a perguntar: porquê esta "branca" do nosso Amadu ? ...
Bom Carnaval em Bissau. Mantenhas. Luis
Havia antecedentes... Recorde-se que a "ilegalidade" da CCAÇ 21 (a oara da CCAª 20) foi assunto abordado na reunuão com o CEWE, gen Paiva Brandão de visita a Bissau:
(...) "No final do mês de Janeiro, o Chefe do Estado-Maior do Exército, General
João de Paiva de Faria Leite Brandão, acompanhado de 2 Oficiais do
CEM, visitou o TO da Guiné (...) Em 29 de janeiro realizou-se uma reunião de trabalho
com o Cmdt-Chefe das FAG" (pág. 454)
Não há detalhes da visita. (vd. aqui notícia, na RTP da chegada ao aeroporto de Bissalanca, em 28 de janeiro: vídeo de 3' 16'', infelizmente sem som). A CECA (2015) publicou em anexo (nº 1) a ata da reunião.
(...) Anexo n° 1 - Visita do CEME - Reunião de Trabalho (pp. 482/483)
a. - Situação de Unidades do TO sem cobertura legal
O Gen B. Rodrigues mais uma vez levantou o problema da existência de Unidades do TO sem cobertura legal, indicando as seguintes unidades:
- CCaç 20 e 21, totalmente africanas;
- Comp. Eventual de Cuntima.
Foi definido não haver encargos de pessoal metropolitano para estas unidades, tratando-se de legalizar a sua constituição e orçamentar a respectiva despesa. (Negritos nossos, LG).
O assunto foi anotado pelo Cor Figueira. (...)
Fonte: Excertos de: Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; Livro III; 1.ª Edição; Lisboa (2015), pp. 482/483 (Com a devida vénia...).
https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2024/02/guine-6174-p25134-23-hora-memorias-do.html
Não me recordo de alguma vez eu ter ouvido esta história da boca do Amadu. O assunto aconteceu, os testemunhos de quem lá estava são indiscutíveis e não acredito que o Amadu não soubesse.
V Briote
Considero admissível a reação dos militares da CCAÇ21, assim como a de outras Companhias de Guineenses, que se revoltaram pela forma como foram tratados os militares guineenses, por aqueles que os tinham mobilizado, formado e comandado, nas missões em que participaram, e a quem tinham obedecido com lealdade e por vezes com abnegação.
O montante pedido pelos militares da CCAÇ21, em Bambadinca e o sequestro dos militares da metrópole, com ameaças de morte, apenas significava o seu forte descontentamento e revolta com a situação para que estavam a ser empurrados. Naturalmente que era só para assustar e darem a dimensão do seu drama.
Penso que o sentimento de desilusão e revolta destes militares, quando confrontados com a imposição da desmobilização e desarmamento,com o abandono pelos seus antigos camaradas e chefes de Portugal, ficando às mãos aos seus anteriores inimigos do PAIGC, que tinham combatido, em nome de um futuro melhor para a sua terra, que lhes era prometido sob a proteção e apoio de Portugal, como vinha acontecendo nos últimos anos, se poderia generalizar a todas as Unidades de militares e milícias guineenses.
Sei de outras Companhias Africanas comandadas por Oficiais da metrópole, onde também se viveram situações muito difíceis, na comunicação e aceitação dessa imposição, por quem recebeu ordens para o fazer.
Cada um de nós, se estivesse na situação desses camaradas como se sentiria?
E mal sabiam o que os esperava no futuro, com perseguições e morte, como infelizmente aconteceu.
Relembrar esses acontecimentos pode ser doloroso, mas é de justiça que não sejam esquecidos.
O que se passou tem responsáveis, a diversos níveis, que não vou aqui descrever.
Eu, como português, sinto alguma vergonha pelo que se passou, mesmo que seja apenas vergonha alheia, já que os principais responsáveis não dão a cara e, pelo menos, peçam desculpa.
Cordialmente
JLFernandes
Olá Camaradas
À famosa do filósofo alemão Karl Marx podemos acrescentar qualquer coisa:
“A história acontece a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa” e a terceira como ópera-bufa.
Bom domingo
António J. P. Costa
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