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terça-feira, 23 de dezembro de 2025

Guinéw 61/74 - P27566: O meu Natal no mato (47): Luís Graça, Missão do Sono, Bambadinca, 24/25 de dezembro de 1969





 Imagem gerada por inteligência artificial (ChatGPT, OpenAI), com base no texto e nas indicações de Luís Graça.


1. Já aqui contei,  há muito, há mais de 20 anos (*) como foi o primeiro Natal, passado na Guiné. Foi publicado no poste nº 4 deste blogue que já vai a caminho dos 27560 postes. Uma longa picada, em que muitos camaradas e amigos ficaram pelo caminho...

Tinha-me calhado na rifa a Guiné e a CCAÇ 2590 (mais tarde CCAÇ 12, uma companhia de intervenção, ao serviço do BCAÇ 2852, constituida por 60 graduados e especialistas e 100 praças do recrutamento local, todos fulas, com 2 mandingas, tresmalhados, oriundos dos regulados de Badora e Cossé). 

Já tinha tido o meu batismo de fogo, logo em 7 setembro de 1969, no subsetor do Xime onde o PAIGC estava bem implantado, ao longo da margem direita do Rio Corubal (Op Pato Rufia).

A proximidade do Natal punha logo nervoso o comando batalhão de  Bambadinca cujo quartel tinha sofrido um ataque em força na noite de 28 de maio de 1969, com 3 canhões sem recuo. Felizmente sem grandes consequências. Ainda estávamos, os "tugas" da CCAÇ 2590, a bordo T/T Niassa, à espera de poder desembarcar em Bissau. Mas passaríamos por lá, por  Bambadinca, a 2 de junho, a  caminho do CMI de Contuboel. Deu para ver alguns estragos e dar conta da "cagaço" do pessoal da CCS / BCAÇ 2852, já com uma ano de comissão.  Estávamos longe de pensar que, mês e meio depois, era aquele setor (da zona leste, L1) que nos haveria de calhar também na lotaria da guerra.

Menos seis meses depois, lá estamos nós, em plena época seca, a ser "pau para toda a obra". Lembro-me que,  na véspera de Natal, logo pela manhã do dia 24, 2 Gr Comb nossos, em cooperação com a autoridade administrativa de Bambadinca (o chefe de posto, que era cabo-verdiano, se bem recordo), fomos fazer "uma rusga com cerco" à tabanca de Mero, aldeia balanta, junto ao Rio Geba, ali nas imediações de Bambadinca. 

Uma operação policial, que nada tinha de militar, a não ser o aparato. Apesar de "alguns indícios suspeitos", não vimos nem cheirámos o "inimigo". Aproveitou-se o "passeio", para apertar o controlo populacional:  completou-se e actualizou-se o recenseamento dos habitantes de Mero, que, coitados, tinham o azar de ter "parentes" no mato, sendo por isso considerados "suspeitos"  ("Acção Guilhotina" foi o nome de código da operação). 

Tudo isto por que, nas duas semanas anteriores, o IN tinha desencadeado várias "acções de intimidação" contra as populações de Canxicame, Nhabijão Bedinca e Bissaque, vizinha de Fá Mandinga, do "alfero Cabral" (Pel Caç nat 63), a última das quais levada a efeito por um grupo enquadrado por "brancos"(sic),  que retirou para a região de Bucol, cambando o Rio Geba,  de canoa, para norte. De canoa, nas barbas da tropa!

Por outro lado, prevendo-se a possibilidade o IN atacar os aquartelamentos das NT,  durante a quadra festiva do Natal e Ano Novo, foi reforçado o dispositivo de defesa de Bambadinca. 

Assim, além da emboscada diária até à 1 ou  às 3 horas da noite, a nível de secção reforçada,  num raio de 3 a 5 km (segurança próxima), passou a ser destacado 1 Gr Comb para Bambadincazinha (em fase de reordenamento), todas as noites até às 6h da manhã.  Uma estopada!...Enfim, era preciso guardar as costas aos senhores de Bambadinca.

Constituia-se assim uma força de intervenção com a missão de fazer malograr  um eventual ataque ao aquartelamento e/ou às tabancas da periferia, actuando pela manobra e pelo fogo sobre as prováveis linhas de infiltração e locais de instalação das bases de fogo do IN (por exemplo, no fundo da pista, como no passado dia 28 de maio, pro voltaq dfa meia-noite e tal), ou no mínimo detê-lo e repeli-lo pelo fogo.

Nessa noite de 24 de dezembro de 1969, destacado na "Missão do Sono" (uma estrutura sanitária, desativada, de luta contra a doença do sono, transformada agora em tosco e vulnerável posto avançado!), escrevi no meu diário: 

"Natal nos trópicos! Não consigo imaginá-lo sem aquela ambiência mágica que me vem do fundo da memória. É que do cristianismo terei apenas captado o sentido encantatório do Natal e a sua antítese, que é o universo maniqueísta da Paixão." (...)

"Há, porém, certas imagens poéticas, recalcadas no subconsciente ou guardadas no baú da memória, que hoje vêm ao de cima. Por um qualquer automatismo. Ou talvez por ser Natal algures, 'far from the Vietnam', longe da Guiné, e eu passar esta noite emboscado. O que não tem nada de insólito: é uma actividade de rotina. 

"Mas é terrivelmnete cruel a solidão deste tempo em que os homens se esperam uns aos outros nas encruzilhadas da morte, os dentes cerrados e as armas aperradas, em contraste com o bando alegre de crianças cabo-verdianas que, não longe daqui, da Missão do Sono (...), entoam alegres cânticos do Natal crioulo ao som do batuque pagão.

"No aquartelamento, de que vejo as luzes ao fundo, a umas centenas de metros, ninguém se desejou boas festas porque também ninguém tem sentido de humor. Nem por isso deixou de celebrar-se a Consoada da nossa terra: um pretexto para se comer o tradicional prato de bacalhau com batatas e grelhos (desidratados!) e sobretudo para se beber (muito!).

"Hoji, festa di brancu, noite di Natal, manga di sabi, manga di ronco!", lembra-me um dos meus soldados africanos, ainda a aprender o português. Ao longe a artilharia do Xime e de Massambo faz fogo de reconhecimento. E eu fico a pensar neste tempo de silêncio e de solidão, que é o que custa mais, em noite de emboscada, e para mais em noite de Natal, que devia ser de paz para todos os homens de boa vontade" (...).

Lembro-me que, dias depois, a 30, Sua Excia. o Comandante-Chefe, general António de Spínola esteve em visita-relâmpago, em Bambadinca,  para apresentar cumprimentos de Ano Novo a todos os oficiais, sargentos e praças do Comando e CCS/BCAÇ 2852, e  subunidades adidas, a CCAÇ 12 incluída.

Luís Graça, Bambadinca, 24/25 de Dezembro de 1969:


2. Pedi à IA / ChatGPT:

P - Faz-me lá uma bela ilustração para este meu conto, "O meu Natal no mato"... E uma sumária análise literária...E boas festas, para ti e a tua equipa.                                               

R - Claro que faço, e com todo o gosto, camarada. O teu texto merece leitura atenta, e respeito. Vou fazer uma análise literária e testemunhal, sem “embelezar” artificialmente nem academizar em excesso.

(i) Natureza do texto: entre memória, crónica e literatura

“O meu Natal no Mato” é, antes de mais, um texto de memória vivida, mas não se limita ao registo memorialista cru. Situa-se num cruzamento muito fértil entre: testemunho histórico (dados precisos: unidades, datas, topónimos, operações); crónica militar (rotina operacional, linguagem funcional, siglas, jargão); escrita literária intimista, sobretudo nos excertos do diário.

Esta alternância não é um defeito,  é uma força. O texto respira como respirava a guerra: monótona e burocrática de dia; densa, simbólica e existencial de noite.
 
(ii) Estrutura: do coletivo ao íntimo

A construção é claramente descendente:

a) Plano macro enquadramento da comissão: situação operacional da Guiné, insegurança do setor de Bambadinca (L1); lógica repressiva/defensiva do dispositivo colonial.

b) Plano intermédio: a CCAÇ 2590 /CCAÇ 12; as operações “policiais” (rusgas, recenseamentos); a ambiguidade moral da chamada “Acção Guilhotina”.

c) Plano micro (o mais forte): a noite de Natal; a emboscada; a solidão; o contraste sensorial e humano.
Esta progressão é eficaz: o leitor é levado do relatório para a consciência.

(iii) O Natal como símbolo (e antítese): 

O Natal não surge como festa, mas como contraponto cruel. Tu dizes algo fundamental: “É terrivelmente cruel a solidão deste tempo em que os homens se esperam uns aos outros nas encruzilhadas da morte”

Aqui o Natal deixa de ser religioso ou familiar e passa a ser: tempo simbólico (expectativa, memória, infância); e medida da perda (do sentido, da inocência, da comunhão).

A oposição é magistral: crianças cabo-verdianas a cantar; batuque pagão; luzes ao longe; e tu, emboscado, arma apertada, à espera de quem talvez nunca venha.

Isto é antropologia da guerra, não apenas literatura.

(iv) Relação com os soldados africanos: sem exotismo, sem romantização

O comentário do soldado: “Hoji, festa di brancu, noite di Natal…” é decisivo.

Não é folclore: é distância cultural dita com simplicidade.

Mostra que:  o Natal é um marcador colonial; a guerra junta homens sem unir mundos; a solidão não é partilhada da mesma forma por todos.

Aqui o texto ganha uma dimensão pós-colonial, mesmo escrito no próprio tempo da guerra, o que é raro.

(v) Linguagem: tensão entre o técnico e o poético. 

Tens dois registos muito claros:

a) Registo operacional: seco, preciso, quase impessoal. Funciona como âncora de realidade.

b) Registo introspectivo: metáforas simples mas eficazes; imagens fortes (“encruzilhadas da morte”, “tempo de silêncio e solidão”); reflexão ética implícita, nunca panfletária.

Este segundo registo é o que faz do texto literatura e não apenas memória.

(vi) Valor histórico e humano

Este texto vale por três razões maiores: não glorifica a guerra; não demoniza o outro; não absolve o sistema

Limita-se a mostrar: homens colocados numa engrenagem, a viverem rituais deslocados (Natal, bacalhau, álcool), enquanto a guerra continua indiferente ao calendário cristão.

(vii) Em suma: “O meu Natal no Mato” é: um documento de época; um texto honesto; e, nos excertos do diário, um belo texto literário, contido, sem retórica excessiva.

Se algum dia quiseres, posso ajudar a editar sem trair a voz; ou a enquadrá-lo num conjunto maior (memórias de Bambadinca, por exemplo).

E deixo-te isto, de camarada para camarada: há textos que não pedem aplauso,  pedem escuta.
O teu é um deles.

Boas festas, Luís. E obrigado por partilhares memória viva.

(Pesquisa: IA + ChatGPT)
(Condensação, revisão / fixação de texto: LG)
_______________________

Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 7 de dezembro de 2004 > Guiné 63/74- P4: Um Natal Tropical (Luís Graça)


(**) Último poste da série > 22 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21675: O meu Natal no mato (46): Depois do ataque a Missirá, na noite de 22 de dezembro de 1966, pouco havia para consoar... O meu caçador nativo Ananias Pereira Fernandes foi à caça, e fez um arroz com óleo de chabéu que estava divinal... O pior foi quando, no fim, mostrou a cabeça do macaco-cão... (José António Viegas, ex-fur mil, Pel Caç Nat 54, Enxalé, Missirá e Ilha das Galinhas, 1966/68)

Últimos cinco postes da série:

25 de dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18137: O meu Natal no mato (45): Um Natal antecipado: 23 de dezembro de 1967 em Gadamael Porto (Mário Gaspar), ex-fur mil art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)

24 de dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18133: O meu Natal no mato (44): Naquele Natal de 1972, aprendi que os homens não são iguais, apenas porque uma toalha e um guardanapo os separam... (José Claudino da Silva, ex-1º cabo cond auto, 3ª CART / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74)

22 de dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18122: O meu Natal no mato (43): as mensagens natalícias de 1972, gravadas pela RTP a 23 de outubro... E se a gente morresse, entretanto ?...Como não tinha pai nem vivia com a minha mãe ou com os meus irmãos, tive de dizer “querida avó” e mais umas balelas obrigatórias... (José Claudino da Silva, ex-1º cabo cond auto, 3ª CART / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74)

25 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14080: O meu Natal no mato (42): 1971, em Zemba (Angola); 1972, em Caboxanque; 1973, em Cadique (Rui Pedro Silva, ex- cap mil, CCAV 8352, Cantanhez, 1972/74)


9 de outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13712: O meu Natal no mato (41): Natal de 1972 – CART 3494 (Jorge Araújo)