sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21323: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (17): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Agosto de 2020:

Queridos amigos,
Chegou o momento de ouvirmos Annette Cantinaux na intimidade, o desabafo do que a vida lhe ensinou, o inesperado deste romance, este esfuziante português que a passeia por Bruxelas de mão dada com um mapa na mão, à cata de becos e vielas no bairro de Marolles onde Annette nasceu na clandestinidade, ainda havia o perigo de uma denúncia, a criança judia cresceu entre duas famílias, amou e desamou, dois filhos cresceram e aquela cinquentona que se desloca em permanência de reunião em reunião na Europa dos Doze, atira para trás das costas as inquietações do que o futuro lhe reserva, aquele homem trouxe-lhe a luminosidade das estrelas e confiante parte para mais um dia de trabalho, sabe que de Lisboa virá carta ou telefonema, o seu amor prepara afanosamente uma viagem até Bruxelas, mas já avisou que no próximo Natal haverá encontro em Lisboa, pode até dar-se o caso de ela se apaixonar pela cidade e passar ali a velhice com os trapinhos ajuntados.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (17): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Este é o meu solilóquio de destemor e epifania. Possuo nome que não coincide com o meu sangue judeu, vim ao mundo em Marolles, na mais completa das clandestinidades, se minha mãe e eu tivéssemos sido descobertas viajaríamos sem regresso para Auschwitz. Não me envergonho de me sentir Annette Cantinaux, sabendo que os meus ancestrais se chamaram Rute ou Isaac, Aaron ou Judite. Os meus pais adotivos repartiram fielmente os seus afetos como os filhos de sangue, em circunstância alguma me privaram viver com os meus pais legítimos, naquele pós-guerra que se revelou duríssimo, a clandestinidade, os interrogatórios brutais e as prisões insalubres deixaram o meu pai diminuído, a minha mãe bem se esforçou por trabalhar, mesmo com falta de habilitações atirou-se à vida. A ajuda dos Cantinaux foi fundamental para que eu estudasse, cheguei a frequentar o Conservatório de Bruxelas, ali bem perto da Sinagoga, cedo se revelou a minha vocação para as línguas, esforcei-me por ser independente, era o timbre da minha geração, não depender dos pais, tive uma carreira afortunada, até hoje. Não lamento ter conhecido Gérard, contagiou-me o seu entusiasmo pela arquitetura e fotografia, a meio dos seus estudos descobriu vocação para bibliotecário, aceitei tudo, éramos jovens com pouco dinheiro, alugámos uma casinha perto da estação ferroviária de Namur, tínhamos as despesas muito controladas, os nossos dois filhos apareceram com um intervalo de três anos, a minha vida profissional pouco se ressentiu, foram anos com menos trabalho mas aceitámos as regras do jogo. Gérard concorreu para a Biblioteca Real Alberto I, por pura coincidência nesses anos eu trabalhava com muita regularidade no Comité Económico e Social Europeu, na Rue Ravenstein, chegámos a almoçar sentados nos bancos dos jardins, os nossos filhos na creche, Gérard saía mais cedo, tinha a vida facilitada com horário compactado, consegui mudar para perto da Gare du Nord, uma casa de três divisões que fomos melhorando e era o nosso castelo.

Cerca de vinte anos depois da vida em comum surgiram os espetros da indiferença, os monossílabos, o não saber o que fazer nas férias, os filhos cresciam, constituíram os seus mundos à parte, eu ainda tinha a fuga de uma vida profissional trepidante, o poder de receber um telefonema do meu chefe de serviço indicando-me que na semana seguinte começava em Kolmar na segunda-feira, terça-feira à tarde ia para uma cabine na Rue Froissart para uma reunião do Acordo Ásia, Caraíbas e Pacífico, qualquer coisa que metia pescas, quarta-feira ia para o Parlamento na Rue Belliard, quinta-feira a malfadada reunião de estatística no Luxemburgo, sexta-feira à tarde de novo em Bruxelas, sem limite de horário, um conselho de ministros. Achava que esta correria dissimulava a melancolia conjugal, puro engano. Saía de manhã, muitas vezes voltava ao fim da tarde ou ausentava-se no estrangeiro quando obrigado a reuniões internacionais em países europeus. Gérard encontrou um novo amor, foi tão intenso, desabrido e tão tomado a sério pelos dois que a revelação me chegou de chofre, Gérard terá procurado estudar a lição, confessou tudo aos solavancos, parecia que estava a pedir desculpa pelo desamor instalado. Foi o que se chama um fim de relação civilizado, sem gritarias, chantagens, não houve uma só crispação na divisão dos bens. Acordámos e cumprimos em dar aos nossos filhos todo o apoio na sequência de uma educação que pretendemos esmerada. Escolheram profissões mal remuneradas, nunca hesitámos em dar-lhes apoio, o nosso relacionamento com os filhos é firme e afetuoso. Consultei uma terapeuta, recomendou-me que mudasse de casa, que renovasse a vida relacional, que cuidasse do futuro. Numa dessas conversas até fiquei arrelampada quando ela me referiu que eu não me esquecesse que trabalhava como freelancer, devia cuidar com urgência de constituir um fundo de pensões, ela tinha razão, vivera cerca de duas décadas num regime de chapa ganha chapa gasta, mesmo sabendo que havia uma conta folgada no banco, não conhecíamos qualquer inquietação pela falta de dinheiro. Estou agora a olhar-me bem ao espelho enquanto me maquilho, ainda não são oito horas da manhã e vou trabalhar todo o dia no Parlamento Europeu. Conheci e habituei-me à solidão, a vida relacional que foi recomendada pela terapeuta teve os seus altos e baixos, devido às contingências profissionais. Estou a aplicar um creme hidratante do dia, sou uma cinquentona, encorpei, pinto o cabelo, e momentos houve nestes últimos dez anos em que aceitei resignadamente ter passado o prazo de validade.

E depois veio este tornado, este português de olhar intenso, de fala articulada, que me surpreende a qualquer hora, eu que sou belga passo a ser questionada sobre queijos, porque é que não comemos o Brie belga, os queijos do tipo trapista, disse-me gostar muito do Denée Maredsous, contou-me a história de ter levado num avião uma série de queijos picantes de Liège, mal acondicionados, era um fedor de tal ordem que o passageiro da fila atrás chamou a hospedeira para reclamar da atmosfera nauseabunda, que peripécia. Quando lhe falei de Marolles e da minha infância disse-me logo que iríamos fazer uma longa visita ao bairro, eu ainda insinuei que o que ele pretendia era voltar mais uma vez à Feira da Ladra, ficou muito sério e disse-me que queria conhecer rua por rua todo esse mundo da minha infância, como aconteceu, saímos da Rua do Eclipse de carro, estacionámos perto do Palácio da Justiça, eu levava um mapa detalhado, descemos pela Rue Ernest Allard, entramos numa igreja, depois visitámos o Museu Judaico da Bélgica, para pasmo do guia foi-me falando das diferentes migrações Asquenazes e Sefarditas, parámos na praça Émile Vandervelde onde existiu a Maison du Peuple, que eu ainda conheci, foi destruída em 1965, e lá puseram uma torre que é um mamarracho, seguimos para Nossa Senhora de la Chappelle, o Paulo queria revisitar o túmulo de Bruegel, um dos artistas belgas que ele mais admira, pediu-me mais um esforço para irmos a uma outra igreja, Église des Minimes, era perto do meio-dia, havia um concerto com cantatas de Bach, coisa de uma hora, e quando saímos Paulo abraçava-me efusivamente, segredava-me ao ouvido que Deus lhe trouxera este milagre da vida, esta companheira que ele estava pronto a seguir até ao fim dos seus tempos. Escolheu um restaurante perto do Grand Sablon, parecíamos dois namorados, então eu disse-lhe que também gostava de decidir, tínhamos feito uma parte de Marolles, tinha agora uma surpresa, íamos ver uma exposição a Antuérpia, e espontaneamente disse que sim, foi uma tarde muito feliz, momentos inesquecíveis a juntar a tantos outros.

Tenho pronta a maquilhagem, a escassos meses, turbilhonantes, este homem aponta-me para o futuro, não interessa neste momento pôr-me a inquietar com as distâncias entre Lisboa e Bruxelas, o que os nossos filhos vão pensar, e o mais que se sabe, neste momento eu sou a mulher mais feliz do mundo, não me interessa a interpretação que vou fazer hoje durante o dia todo, sei que o Paulo me irá telefonar ou escrever, excitada abrirei a caixa do correio ou ouvirei suar o telemóvel. Haja os sobressaltos que houver, este homem garantiu-me com uma solenidade inusitada que a âncora da vida está numa estranha travessa perto de um Boulevard e que tem um nome rutilante, bem adequado ao que nos aconteceu, um eclipse, não total, mas que marejou o insípido do nosso quotidiano de constelações em forma de estrelas, tão intensas que chegam aos nossos corações.

E pensar eu que tudo isto começou por causa de uma ficção engendrada pelo Paulo, uma paixão arrebatada que tinha como pano de fundo a guerra colonial na Guiné.

(continua)

Palácio da Justiça, uma desmesura de colunas, arcos babilónicos e vestíbulos monumentais

Porte de Hal, um dos raros vestígios do sistema fortificado medieval de Bruxelas

Um belo grafiti na Rue Haute, Marolles, Bruxelas

Bilhete-postal da Maison du Peuple, por Victor Horta

Torre do Sablon, mamarracho que substituiu a Maison du Peuple

Interior da Église des Minimes, Marolles, Bruxelas
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21278: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (16): A funda que arremessa para o fundo da memória

Guiné 61/74 - P21322: Agenda cultural (754): convite da Catarina Gomes para a sessão de lançamento do seu livro, «Coisas de Loucos: O que eles deixaram no manicómio": Feira do LIvro de Lisboa, Tinta da China, domingo, dia 6, às 17h00



Convite da autora, Catarina Gomes, e da editora, Tinta da China,


1. Mensagem da jornalista e escritora, Catarina Gomes [ tem cerca de 3 dezenas de referências no nosso blogue; não pertence formalmente à nossa Tabanca Grande, por razões de independência e deontologia profissional; é também autor da "Furriel Não É Nome de Pai: Os filhos que os militares portugueses deixaram na Guerra Colonial" (Lisboa, Tinta da China, 2018, 224 pp.)  

Data: terca feira, 1 set 2020, 11h10

Assunto: :«Coisas de Loucos» lançado na Feira do Livro a 6 de Setembro

Bom dia a todos,

O meu livro «Coisas de Loucos-O que eles deixaram no manicómio (editado pela Tinta da China) será lançado este domingo à tarde, 6 de Setembro, na Feira do Livro de Lisboa, sendo seguido de sessão de autógrafos às 17h00.

Devido às medidas de prevenção da Covid na Feira do Livro de Lisboa poderá haver limitações no acesso.

Abraços,  Catarina Gomes

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Nota do editor:

Último poste da série > 2 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21313: Agenda cultural (753): Arte urbana: mural, da autoria do artista plástico cabo-verdiano, António Conceição, de homenagem às mulheres da seca do bacalhau, e aos demais ofícios da Faina Maior... Gafanha da Nazaré,Ílhavo, agosto de 2020 (Ana Aveiro / Valdemar Aveiro)

Guiné 61/74 - P21321: In Memoriam (369): o historiador Joaquim Veríssimo Serrão (1925-2020), meu mestre e meu amigo, que falou do meu "Diário da Guiné", em 2007, como sendo "uma 'jóia' de verdade histórica e de beleza literária incomparáveis" (António Graça de Abreu)



Joaquim Veríssimo Serrão (Santarém, 1925 - Santarém, 2020): homenagem do António Graça de Abreu a um dos seus grandes mestres e amigos, recentemente desaparecido aos 95 anos. Para admiradores e críticos, uma figura incontornável do nosso séc. XX português

O Historiador Joaquim Veríssimo Serrão e a Guerra na Guiné-Bissau

António Graça de Abreu

Tive a sorte, ao longo da vida, de ter como professores e mestres, no liceu e na universidade, alguns homens de enorme envergadura intelectual e humana, que muito me ensinaram e, de algum modo, contribuíram para ser o que sou, um ser aparentemente humilde, em busca do inalcançável entendimento do mundo, um permanente apaixonado pelas palavras, a caminhar pelo fluir das gentes da minha Pátria, da China e da língua portuguesa, a navegar pelo mundo, pela prosa, pela poesia, pela História.
Recordo Óscar Lopes, o excepcional professor de Português nos meus antigos 3º., 4º. e 5º. anos, no início da década de sessenta do século passado, no Liceu D. Manuel II, Porto. 
Trinta anos depois, Óscar Lopes e Eugénio de Andrade fariam a apresentação da minha tradução Poemas de Li Bai, na Galeria da Praça, no coração do Porto, obra depois galardoada com o Prémio Nacional de Tradução 1990, do Pen Club e da Associação Portuguesa de Tradutores.
Mantive, com Urbano Tavares Rodrigues, meu professor de Português em 1965/66, no 7º. e último ano do liceu, no Colégio Moderno, Lisboa, uma amizade saudável e entusiasmante que perdurou até ao fim da sua vida. Em 1997, Urbano Tavares Rodrigues fazia, na Missão de Macau em Lisboa, a apresentação do meu livro China de Jade e escrevia palavras de grande simpatia sobre a minha poesia. 
Quer Óscar Lopes, quer Urbano Tavares Rodrigues foram militantes de topo do Partido Comunista Português, com ambos aprendi a olhar melhor o mundo, que respeitei e admirei sempre, embora, depois de seis anos de vida na China Popular, de 1977 a 1983, eu já não acreditasse nos “amanhãs que cantam” e na superioridade dos regimes políticos socialistas.
Na Faculdade de Letras de Lisboa, nos anos sessenta e setenta do século passado tive a ventura de encontrar Fernando Mello Moser, mais um excelente professor, no 1º. e 4º. ano do meu curso de Filologia Germânica. Grande Mestre e amigo, precocemente falecido, faz parte dos não muito homens de eleição que conheci.
Em 1995, regressei à minha Faculdade de Letras, agora para um mestrado em História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa. Dois professores se destacavam, António Borges Coelho e Joaquim Veríssimo Serrão. Bem diferentes nas suas opções políticas (Borges Coelho, ex-comunista, havia passado longos anos na cadeia de Peniche, Veríssimo Serrão era o grande amigo de Marcello Caetano). 
Unia-os a História e o rigor e seriedade com que transmitiam aos seus alunos as estórias da História. Aulas fabulosas com estes dois professores, tão diferentes e tão dentro da nossa viagem pelas gestas de um passado, tão presente.
            Joaquim Veríssimo Serrão, falecido há um mês atrás, com 94 anos, seria o orientador da minha tese de mestrado. Encontrávamo-nos na Academia Portuguesa da História, a que presidia, para conversarmos e melhorarmos o meu trabalho, a biografia de D. Frei Alexandre de Gouveia (1751-1808), bispo de Pequim. Diante de mim, a abertura permanente com um excepcional ser humano, um fabuloso homem da nossa História, um Amigo.
            Em 2004, era publicada pela Universidade Católica, a minha tese, a biografia D. Frei Alexandre de Gouveia, Bispo de Pequim.


Capa do livro de memórias do António Graça de Abreu,

"Diário da Guiné" (Lisboa, Guerra e Paz, 2007)



Em Junho de 2007, eu recebia esta carta do Prof. Dr. Joaquim Veríssimo Serrão, então com 82 anos:

Santarém, 8 de Junho de 2007
Exmo. Sr. Dr. António Graça de Abreu
                        
 Meu querido António

            Há muito que formei em mim a concepção de que a velhice não corresponde apenas ao último degrau da vida. Pelo contrário, deve ser vista como uma época de permanente actuação, para nela ainda fazermos o que se torna possível no campo da actividade creadora. 
            No dia 4 de Junho, adquiri na Feira do Livro de Santarém uma “jóia” de verdade histórica e de beleza literária incomparáveis. Fiel aos princípios acima enunciados, a obra foi logo objecto de leitura e apreciação, e esse agrado, fiz sentir no telefonema que lhe dirigi para o Estoril. Agora, no regresso de uma deslocação a Madrid, onde fui acompanhar o Professor Juan Velarde Fuertes, nos seus 80 anos. Mais novo do que eu que vou nos 82 anos! Mas todos os dias a ler, a escrever e a fazer livros.
            Pois hoje voltei ao belo e dramático “Diário da Guiné”, da sua autoria, e lá pude esclarecer a tonteria do General Spínola de deixar ir a um encontro com guerrilheiros 3 majores…desarmados, que foram feitos em postas. 
            Como se a moral dos “libertadores” fosse a mesma que a nossa: bons ou maus cristãos que sejamos! E não custa tampouco compreender a renúncia do General Spínola em 28 de Setembro de 74. Valente a lutar, inexperiente como político. E o coronel Fabião, que alinhavou a paz com os guerrilheiros, mas deixou que 2000 fulas tivesses sido fuzilados por “traição” à Guiné que nem sequer era ainda um país independente!
            As suas crónicas da Guiné de 1972-1974 são das mais lindas e comoventes que jamais foram escritas por um combatente. Que o Prof. Marcello Caetano tinha razões para desconfiar dos guerrilheiros, dá-a o António, na página 44. “Não era essa – nem é hoje – a linha política do governo de Lisboa, nem do PAIGC, que lutava pela independência total e expulsão dos colonialistas brancos.”
            Que lindas páginas que fazem chegar as lágrimas aos olhos!, da cor dos olhos dos meninos guinéus, da doçura tropical das mulheres do território que amenizavam a solidão dos combatentes, da beleza de uma Guiné que não merecia os libertadores que teve, nem o Luís Cabral, nem o Nino, talvez o Amílcar que era amigo dos portugueses, mas que abatido pelos radicais do PAIGC…
            O seu “Diário da Guiné” é uma obra prima de sinceridade, de enlevo pela terra, de ternura pelas crianças de olhos azuis e coração de ouro. Mas ganharam elas com a libertação, quando continuam a andar nuas, sem sapatos e esfaimadas, mas antes eram amadas pelo colonizador que as erguiam nos braços?
            Um grande abraço, cheio de ternura e admiração, do seu muito amigo, e a dedicação,
                                                           Joaquim Veríssimo Serrão


Cópia da carta, de 8 de junho de 2007. dirigida por Joaquim Veríssimo Serrão ao nosso camarada António Graça de Abreu, elogiando o seu livro, "Diário da Guiné" (Lisboa, Guerra e Paz, 2007).

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Nota do editor:

Último poste da série de 22 de julho de 2020 Guiné 61/74 - P21192: In Memoriam (368): José Barreto Pires (1945-2020): "termina uma vida, nasce uma saudade", a de um homem bom, grande camarada e indefetível barrosão, que muito amou a sua aldeia, Gestosa, Couto Dornelas, Boticas... Era membro da primeira hora da nossa Tabanca Grande.

Guiné 61/74 - P21320: Parabéns a você (1862): Armor Pires Mota, ex-Alf Mil Cav da CCAV 488 (Guiné, 1963/65); José Câmara, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56 (Guiné, 1971/73) e Torcato Mendonça, ex-Alf Mil Art da CART 2339 (Guiné, 1968/69)



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Nota do editor

Último poste da série de 3 de Setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21317: Parabéns a você (1861): Carlos Vieira, ex-Fur Mil do Pel Mort 4580 (Guiné, 1973/74) e Luís Gonçalves Vaz, Grã-Tabanqueiro, ex-Fur Mil PE (EPC, 1983/84)

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21319: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (2): A fuga da 'beijuda'


Guiné > Região de Quínara > Mapa de Tite  (1955) > Escala 1/50 mil > Alguns topómimos mais conhgecidos: Tite, Enxudé, Jabadá, na margem esquerda do Rio Geba.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2020)




Carlos Barros, Esposende


1. Mais um pequena história do Carlos Barros, um dos Mais de Nova Sintra, 2ª C/BART 6520/72 (Bolama, Bissau, Tite, Nova Sintra, Gampará, 1972/74) (*):



A fuga da “beijuda" 

por Carlos Barros


O 3º Grupo de Combate dos “Mais de Nova Sintra” foi garantir a segurança da estrada Tite-Enxudé, um acesso de extrema importância, uma vez que o cais do Enxudé [vd. infografia acima], garantia o acesso, por via marítima e fluvial, à cidade de Bissau, através da utilização de pequenas embarcações para o transporte de tropas, material de guerra e outras mercadorias..

No seu abrigo, o Barros entretinha-se a comer castanhas de caju oferecidas por um grupo de crianças que, geralmente, recebiam sopa quentinha vinda da cozinha de Tite, que era pedida pelo furriel Barros.

Sobrava sempre sopa,  já que a maioria dos soldados não a comia e, deste modo, “matava-se a fome” àquelas gentis e simpáticas crianças que, com os seus sorrisos, alegravam o ambiente.

De repente, ouviu-se uma gritaria tremenda:

− Socorro, socorro, ele vem atrás de mim!  −  uma jovem beijuda africana que fugia de um pretendente ao casamento…

− Furriel, ajude-me, ajude-me!…

O Barros não se queria envolver numa situação complicada e que não lhe dizia respeito e respondeu à jovem para fugir para a mata densa,  que depois  ria despistar o intruso…

Passados momentos, numa correria louca,  apareceu o africano, suando por todos os poros da pele, e perguntou ao Barros se tinha visto a beijuda...

O Barros respondeu-lhe que sim e que ela tinha fugido por aquele caminho, totalmente oposto ao percurso seguido pela jovem africana…

Naturalmente que os dois jamais se encontrariam e até ao final do dia, nunca mais soube do desfecho daquela “intriga” não palaciana mas... "tabancaciana"- 

− Acontece-me cada uma! −  desabafou o furriel Barros para um soldado que o acompanhava na segurança… 

Para esquecer isto, o Barros convidou o amigo para beberem uma cerveja fresquinha que estava dentro de um balde com água perto do Unimog…

Tite,  1972

Ex-furriel Barros
2ª C/BART 6520/72

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Nota do editor:

Último poste da série > 3 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21318: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (1): Bacari, o caçador furtivo

Guiné 61/74 - P21318: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (1): Bacari, o caçador furtivo



Guião do BART 6520/72 (Tite,  1972/74). 
Coleção: Carlos Coutinho
(com a devida vénia...)


Carlos Barros, ex-fur mil at art, 
2ª C/BART 6520/72 (1972/74).
"Os Mais de Nova Sintra"

1. Vamos dar início à publicação de algumas "pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra", série da autoria  do novo membro da Tabanca Grande, Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª CART / BART 6520/72 (Bolama, Bissau, Tite, Nova Sintra, Gampará, 1972/74).

 O nosso camarada é professor aposentado e  um  apaixonado pela  sua terra natal, Esposende, em cuja vida comunitária continua a participar proativamente. (*)


Bacari, o caçador furtivo

por Carlos Barros


O Bart 6520/72, o nosso Batalhão de Artilharia, já tinha 18 meses de Comissão e o tão ansiado regresso à Metrópole, estava cada vez mais próximo. Havia um redobrado cuidado nas saídas para o mato e no cumprimento das normas de segurança ao destacamento de Nova Sintra, guarnecido pela 2ª Companhia. 

O arame farpado era constantemente vigiado assim como qualquer acesso ao destacamento porque o inimigo era astuto e conhecia bem o terreno.

Numa tardinha, na despedida do astro-rei, o vigia a um dos postos viu um vulto no meio de capim à espreita e foi dado o alarme porque poderia ser um guerrilheiro do PAIGC. Via-se a cabeça a mover-se entre as ressequidas ervas do capim e o soldado avisou:

 Quem está aí, levante os braços e entregue-se! 

O militar poderia ter disparado mas teve o bom senso de tomar as devidas cautelas e com a arma G3 em posição de fogo apontou ao “fantasma”…

Ouve-se um grito:

− Não dispare , não dispare, sou o Bacari!

O Bacari era um elemento da povoação nativa que andava sempre à caça e, muitas vezes de noite, não avisava os militares de Nova Sintra, o que punha em risco a Companhia.

Felizmente, o desfecho não foi trágico mas poderia ter sido e este amigo foi avisado para nunca mais sair de noite para caçar, o que cumpriu até ao final da Comissão [, ou seja, até 17 de julho de 1974].

Ao amigo Bacari, nesta noite, tinha-lhe saído a sorte grande…

Nova Sintra,  1974

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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P21317: Parabéns a você (1861): Carlos Vieira, ex-Fur Mil do Pel Mort 4580 (Guiné, 1973/74) e Luís Gonçalves Vaz, Grã-Tabanqueiro, ex-Fur Mil PE (EPC, 1983/84)


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Nota do editor

Último poste da série de 1 de Setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21309: Parabéns a você (1860): Manuel Joaquim, ex-Fur Mil Armas Pesadas Inf da CCAÇ 1419 (Guiné, 1965/67)

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21316: Tabanca Grande (501): Carlos Barros, ex-fur mil, 2ª CART / BART 6520/72 (Bolama, Bissau, Tite, Nova Sintra, Gampará, 1972/74) que passa a sentar-se à sombra do nosso poilão, no lugar nº 815... É natural de Esposende e professor aposentado.


Carlos Barros, novo membro da Tabanca Grande, nº 815. Foi fur mil at art, 2º CART / BART 6520/72 (1972/74), "Os Mais de Nova Sintra"


1. Mensagem de Carlos Barros, ex-fur mil. 2ª CART / BART  6520/72 (Bolama, Bissau, Tite, Nova Sintra, Gampará, 1972/74) (*), que passa a sentar-se à sombra do nosso poilão, no lugar nº 815:


 
Data: 18/06/2020, 20:43

Um pouco da minha biografia:

(i) Sou Professor Aposentado, casado, embora continue , como voluntário num Projeto de Leitura/Literacia, numa Escola do Concelho de Esposende, "Escola de Mar";

(ii) sou dirigente, há mais de 15 anos,  da Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários de Esposende (AHBVE);´

(iii) pertenço à  Redação do Jornal "Farol de Esposende!,  redator permanente;

(iv) organizo anualmente, o Encontro/Convivio dos "Mais de Nova Sintra, (vamos no 45º),  sempre no Centro do País: Mealhada-Águeda-Recardães:  o 1º organizador foi o furriel José Sousa Gonçalves (12 anos seguidos,  de 1975 a 1987) e agora sou eu, nas calmas e faço-o com muito carinho;

(v) intervenho noutras atividades -Futebol;  fui Presidente da ADE (, Associação Desportiva de Esposende) e dirigente muitos anos;

(vi) em suma, sou um cidadão simples, humilde , solidário e interveniente.

Fico por aqui...Um abraço
Carlos Barros (Ex-furriel Miliciano)
Bart 6520/ 2ª Cart.

Nota: Todos os nossos testemunhos serão importantes para construir a História da Guerra Colonial

2. Resposta do editor LG, na volta do correio:

Carlos, então somos colegas, ambos somos professores, um profissão nobre...Na tua terra, Esposende, tenho amigos... E há um camarada do nosso blogue, que esteve comigo em Bambadinca, em finais de 1970, o Mário Miguéis da Silva, bancário reformado e talentoso cartunista... És capaz de o conhecer...Esteve no Saltinho, não muito longe de ti, que estavas m São João, mais a sul..

Mas vejo que não me mandaste nenhuma foto, das que te pedi, uma mais ou menos atual, e outro do "antigamente"... Vê lá isso, para eu te poder apresentar à Tabanca Grande, com pompa e circunstância... E também consegui abrir as fotos da entrega do aquartelamento de Nova Sintra, em 17 de julho de 1974, e outras do teu álbum, que me mandaste e que querias partilhar com os nossos leitores. Aguardo a 2ª via,

Boa saúde, boa reforma, bom desconfinamento... Luís

3. No mesmo dia, 18 de junho, às 22h43, o Carlos Barros respondeu:

Boa noite:

O Mário Miguéis é meu conterrâneo e grande amigo de infância. Estudamos juntos em Esposende, é um ano mais velho que eu, no Externato Infante Sagres.

A família são talentosos em "cartoon", todos eles, com ligeiras diferenças no talento. No ano passado fui a Lamego visitar o irmão. o Arquitecto Quim Miguéis.

Sabia que tinha estado em S. João onde esteve o alferes Garcia que faleceu assim como o nosso capitão da Companhia, Armando Cirne.

Ser professor é algo de dignificante e marcante na sociedade, sem desprimor para as demais profissões. Ser professor é ser diferente...

Por hoje é tudo. Um abraço e b.f.s.

Bom fim de semana.
Carlos Barros
Esposende 

4. Comentário de L.G.:

As tais fotos "históricas" não há maneira de cá chegarem... Mas entrentanto o Carlos Barros tem estórias do seu tempo de "soldado do fim do império" que aguardam publicação. Para não atrasar mais a sua edição, o Carlos Barros fica apresentado à Tabanca Grande, o que já devia ter acontecido há  dois meses atrás. Senta-se agora no lugar nº 815 (**), não precisa de pedir mais licença para entrar... Tem página no Facebook.

Sobre a sua companhia e batalhão, a 2ª CART / BART 6520/72, acrescentaremos o seguinte; mobilizados pelo RAL 5, partiram para o TO da Guiné em 23 de junho de 1972 e regressaram a 21 de agosto de 1974. Oficialmente estiveram em Nova Sintra e Bissau. Comandantes de companhia: cap mil inf Armando da Fonseca Cirne; cap art José Manuel Campante de Carvalho; e cap mil inf João Barbosa Machado. E ficaram justamente conhecidos pro "Os Mais de Nova Sintra".

O comano e a CCS do BART 6520/72, por sua vez esteviveram, em Tite, tendo por  o batalhão por comandantes o ten cor art Rui Ferreira dos Santos, e ten cor art Fernando José de Alemeida Mira. 

A 1º CART esteve em Jabadá e Bissau (cap mil inf José Pereira Baptista Dias), e a 3ª CART em Fulacunda (cap mil inf José João Mousinho Serrote).
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Notas do editor:


Guiné 61/74 - P21315: Historiografia da presença portuguesa em África (229): "Madeira, Cabo Verde e Guiné", de João Augusto Martins; edição da Livraria de António Maria Pereira, 1891 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
A diferentes títulos, as notas de viagem de João Augusto Martins são incontornáveis. Não é novidade o que nos diz na sua descrição de Bissau nem de Bolama, salvo que aqui António da Silva Gouveia que viera anos antes como Guarda-Fiscal se tornara um potentado económico. Não conheço na literatura colonial nenhum outro deslumbramento pela mulher como o que ele aqui nos deixa, tocado por uma sensualidade pouco usual na época, mesmo se atendermos que ele era um cultor do naturalismo, todo este documento é prova desta corrente literária. E nas conclusões será implacável com a natureza das cedências que fizemos à França, correlacionando estas cedências com o quadro de decadência nacional.
Vale a pena ler este João Augusto Martins na íntegra, ele não era peco em denunciar a lástima a que chegáramos.

Um abraço do
Mário


Impressões de viagem quando a Guiné já era província, com fronteiras definidas (1)

Beja Santos

O livro de viagens intitula-se "Madeira, Cabo Verde e Guiné", o seu autor é João Augusto Martins, veremos mais adiante que foi alguém influente na definição das fronteiras da colónia, a edição foi da Livraria de António Maria Pereira, 1891. Feito o périplo pela Madeira e Cabo Verde, chega-se a Bissau e o autor dá-nos assim notícia da vila:  
“A cidadela a altos muros e a poilões gigantes, o último reduto da vitalidade da Província, hoje o mais importante centro comercial da Guiné. O cheiro nauseoso e acre das suas praias (lodaçal extenso que se evidencia na baixa-mar por dezenas de metros), vinha, arrastado pela aragem da tarde, envolver-nos numa atmosfera sulfídrica, enquanto bandas de pássaros de múltiplas espécies e variadas cores atravessavam marcialmente para os ilhéus, marcando no horizonte rubro da tarde as curvas ondulosas do seu voo, que as trevas da noite foram a pouco e pouco apagando, até deixar-nos sós, isolados e esquecidos, na contemplação estática de quem espera, divisando na sombra as cumeadas altivas dos baobás, escutando o carpir plangente das corujas e dos jagudis, e sentido aos nossos pés como um vagir de criança, o marulhar hipnótico das águas pantanosas do rio”.
Bem interessante o estilo, ultrapassado que estava o romantismo, a escrita assumia o naturalismo e já parecia acolher os assomos do impressionismo pictórico. Adiante.

Chegaram à capital, o autor vai dizer:  
“Em Bolama fomos acolhidos principescamente por Caetano Macedo, cujo nome se prende à história da Guiné por títulos de valiosos serviços reconhecidos. Aí visitámos tudo: os quartéis, as repartições públicas, o hospital, a igreja, a casa do governador e o mais sumptuoso edifício de Bolama, pertencente a esse nomeado Gouveia, que veio para aí há nove anos como Guarda-Fiscal e que hoje representa o Rotschild da terra, à custa do trabalho, da perseverança e da felicidade, esse orvalho abençoado, capaz de fazer robustecer a planta mais exótica… Na terra ainda mais ingrata”.

O nosso João Augusto Martins vai revelar-se um cultor da mulher, não sei se há retrato mais sensual e venerador da mulher guineense daquele que ele escreveu:
“Foi-nos dado ver a mais extraordinária beleza de mulher, realçada por tudo o que há de mais irresistível nas atrações do seu sexo.
Era uma Fula: tipo indiano caldeado nas forjas incandescentes de África. Tinha apenas treze anos, e a adolescência irrompia das indecisões do seu sexo com toda a destreza da vida com que desabrocha uma flor. Seus grandes olhos pensadores, de uma expressão meiga e inquieta, a cor cuprina metálica das suas faces, as linhas suaves da sua fisionomia, seus lábios carminados que se entreabriam em risos de uma tristeza sedutora, os longos cabelos de um negro-azulado que pareciam envolvê-la em cintilações de desejos, o seu talhe esbelto, nu, de movimentos graciosamente ondulados, a harmonia das suas formas esculturais, a lubricidade das suas curvas e a têmpera vibrátil das suas carnes, tudo, enfim…”.

Mas este esplêndido elogio da mulher Fula não fica por aqui, a exaltação ainda vai subir de tom, num intercalado lírico:
“A sua límpida fronte pendia para o solo, na atitude melancólica de um sonhar de virgem. As suas mãos pequenas uniam-se na postura de uma súplica infantil e a sua inocência evolava-se na expressão do seu olhar como a alma das flores se evola nos aromas que nos inebriam.
Que tons, que formas, que cores e que curvas!
Oh! Mulher casta, pecaminosa na tua nudez virginal, permite que te relembre emoldurada nessa paisagem fulgurante, permite que sonhe ainda, pensando em ti… Perdendo-me em conjecturas”.
Então, leitor, não temos aqui a expressão máxima de um amor cortês e de uma sensibilidade ao feitiço africano em desmesura?

Veremos que ainda há muitas mais anotações de viagens, delas aqui se fará menção.

João Augusto Martins dirá nas conclusões quem é e a importância que teve a sua passagem pela Guiné, ficam aqui uns tópicos:
“Regressados há muito da Guiné, onde estivemos conjuntamente com os comissários de França e Portugal, para a célebre delimitação convencionada em Paris em 1886, esperávamos ver por escrito a história deste acontecimento dolorosamente ridículo e improducente, para apreciarmos sobre bases oficiais este convénio de lesa-nação, esse golpe fatal com que a diplomacia nos deixava então esquartejar saudavelmente pelos franceses, na Senegâmbia, como o nosso histerismo e o nosso idealismo tradicional nos tem deixado torpe e irremediavelmente espoliar pelos ingleses na África Oriental. Esperávamos ver posto a limpo esse facto monstruoso, que não tem decerto uma alta significação económica, atento o desleixo da administração colonial, mas que representa mais uma das muitas extorsões feitas à sombra da nossa imprevidência e das nossas facilidades, dando lugar a que todo o coração português tivesse mais um motivo a confranger-se em África ante o desprestígio da dignidade nacional.
A delimitação da Guiné, traduzindo uma perda enorme de território, uma regulamentação absurda de fronteiras e um verdadeiro bloqueio à nossa administração e ao comércio português nestas regiões, exprime um ato de leviandade política que não pode deixar de fazer corar de pejo todos os filhos da nação desmembrada”.

Prepare-se o leitor, pois iremos retomar esta catilinária, João Augusto Martins participou na operação de delimitação e tem uma ideia muito própria de que esta oferta à França obedecia a um contorcionismo diplomático um tanto parecido com o Tratado de Lourenço Marques, era revelador de uma política de decadência. Estranhamente, vemos esta exortação à dignidade nacional praticamente esquecida.

(continua)



Imagens retiradas do livro "Madeira, Cabo-Verde e Guiné", de João Augusto Martins.

Baobá-africano
Imagem tirada da Wikipedia, com a devida vénia.
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21294: Historiografia da presença portuguesa em África (228): Guiné Portuguesa - Terra de Lenda, de martírio, de estranhas gentes, de bravos feitos e de futuro (Mário Beja Santos)

Guiné 671/74 - P21314: Notas de leitura (1302): entrevista de José Matos ao "Diário de Aveiro", de 1 do corrente, sobre o seu último livro “O Estado Novo e a África do Sul na Defesa da Guiné - Nos meandros da guerra"



José Matos, foto do autor

"Guiné. Após anos de investigação, José Matos 'entra' nos bastidores da guerra colonial e revela a aliança secreta entre o Governo português e o sul-africano. Uma obra escrita com o Coronel Luís Barroso.

 

Entrevista  de Sandra Simões a José Matos. Diário de Aveiro, terça-feira, 1 de setembro de 2020, pág. 3


“O Estado Novo e a África do Sul na Defesa da Guiné - Nos meandros da guerra”, da autoria Cde José Matos e do Coronel de Infantaria Luís Barroso, acaba de ser lançado pela  Caleidoscópio e promete pôr a descoberto muito dos bastidores da guerra colonial na Guiné, com os últimos anos a serem marcados por uma aliança secreta que o Governo português terá estabelecido com os regimes brancos da África do Sul e da Rodésia. O objectivo desta ligação seria combater os movimentos de guerrilha em Angola e  Moçambique.

“Com recursos financeiros muito limitados, Portugal não hesitou em pedir ajuda à África do Sul, que, em 1974, nos concedeu um avultado empréstimo para financiar a guerra nas grandes colónias austrais e, sobretudo, para evitar o colapso militar na Guiné, onde uma derrota militar se afigurava cada vez mais provável perante uma guerrilha fortemente armada”, avançam os autores, determinados a traçar os meandros desta estratégia, em que consistia e em que contexto ocorreu.

Sobejamente conhecido pela sua actividade de astrónomo ligado ao FISUA [ Associação de Física da Universidade de Aveiro], José Matos admitiu ao Diário de Aveiro que há mais de uma década que investiga sobre a guerra colonialn e sobre o uso do poder aéreo na guerra, tendo vindo a publicar artigos sobre o tema em revistas nacionais e estrangeiras, mas nunca com esta profundidade e em formato de livro. E o que leva um apaixonado pelos astros a interessar-se pela guerra colonial?  Uma longa e intensa história, com muita documentação, mas nem sempre acessível!

Uma guerra de 13 anos

“A guerra em África durou mais de uma década e foi produzida muita documentação militar que pode ser consultada e permite reconstruir a guerra. Depois, há muita gente que passou por África e escreveu memórias desse tempo ou pode testemunhar a sua experiência. Portanto, todas estas fontes de informação são motivadoras para quem gosta de investigar”, sem esquecer que “todos temos um familiar que esteve lá, uma guerra que mobilizou cerca de um milhão de homens ao longo de 13 anos”, testemunhou o autor, considerando este um “acontecimento marcante na história de Portugal, que merece ser investigado e lembrado”.

Mas não foi um processo de escrita fácil, até porque encontraram entraves no acesso a documentação: “Lembro-me que quando comecei a fazer investigação nestes temas, em 2008, no Arquivo da Defesa Nacional, em Paço de Arcos, muita documentação ainda estava classificada mas nunca tive problemas de acesso. Contudo, nem todos os arquivos são assim”, referindo-se ao Arquivo da Presidência da República e ao do Conselho Superior de Defesa Nacional. “Foi lá que descobri a existência de documentação referente à guerra que nunca tinha sido desclassificada”: actas do Conselho Superior de Defesa Nacional, anteriores ao 25 de Abril (de 1968 a 1974), inacessíveis ao público. A época em que Marcello Caetano esteve no poder.

“O Conselho Superior era um órgão de aconselhamento de Marcello Caetano, onde tinham assento ministros e chefias militares. Era um local de alta discussão política que convinha consultar”. Quando, em 2013, tentou ver os relatos dessas reuniões, “foi-me recusado o acesso, alegando que era material classificado”, e só depois de duas queixas na Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos é que foi dado acesso às actas. “Posso assim dizer que foi graças a este livro que esses documentos ficaram finalmente acessíveis ao público”.

Os autores da obra pretendem “trazer algo de novo e clarificar como o Antigo Regime ia usar o dinheiro emprestado pelos sul- africanos, em 1974, para financiar a guerra”, clarificando a relação entre Lisboa e Pretória, que poucos conhecem, e qual o destino do empréstimo, e defendem “a teoria de que o regime não tinha outra solução senão continuar a guerra, pois o dinheiro sul-africano era para comprar equipamento militar, o que para nós é um sinal claro que a intenção era manter a guerra. Se não fosse o 25 de Abril, a guerra continuava”.

José Matos e Luís Barroso acreditam na inevitabilidade do 25 de Abril, e justificam: “Porque os militares perceberam que era preciso mudar o regime para acabar a guerra em África. Marcello Caetano sempre se recusou a negociar com os movimentos africanos nacionalistas, e quando assume esta posição está a dizer que a guerra é para continuar indefinidamente. Ora, os militares perceberam isto e acharam que já tinham dado demasiado tempo ao regime para encontrar uma solução política para a guerra”, considerando que fazer a descolonização e dar a independência às colónias “era a única solução possível”.

Quanto a futuras publicações, José Matos avança que sai em Novembro um livro sobre os 50 anos da Operação Mar Verde, uma operação militar portuguesa, em 1970, contra a Guiné-Conakry para realizar um golpe de Estado, e ainda este ano conta lançar uma obra sobre a guerra de fronteira em Angola, a publicar na Helion (uma editora inglesa especializada em livros militares). Para 2021, está previsto um livro sobre a guerra na Guiné.

[Com a devida vénia ao autor e editor... Revisão / fixação de texto para efeitos de edição neste blogue: LG]

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Guiné 61/74 - P21313: Agenda cultural (753): Arte urbana: mural, da autoria do artista plástico cabo-verdiano, António Conceição, de homenagem às mulheres da seca do bacalhau, e aos demais ofícios da Faina Maior... Gafanha da Nazaré,Ílhavo, agosto de 2020 (Ana Aveiro / Valdemar Aveiro)








 


 





Ilhavo > Gafanha da Nazaré > Viaduto de acesso ao acesso ao Cais Bacalhoeiro > Agosto de 2020 > Mural do artista de origem cabo-verdiana, natural do Mindelo, António Conceição, 50 anos de idade,  que se licenciou em Belas Artes na Universidade do Porto em 2005. 

Homenagem aos ofícios da Faina Maior, a pesca do bacalhau, e dos seus antigos ofícios, com destaque para as ,mulheres, trabalhadoras da seca do bacalhau, mas também os pescadores, as peixeiras, os marinheiros.... Entre os "lobos" da Terra Nova, destaca-se o nosso amigo Capitão Aveiro, o Valdemar Aveiro, que é uma lenda viva desta epopeia, além de escritor de grande talento .(E continua a trabalhar, no setor,  aos 85 anos, agora na área da gestão!),

Destaque também, no mesmo pilar, para a escritora ribatejana Maria Lamas (Torres Novas, 1893 - Lisboa, 1983), autora de "As Mulheres do Meu País" (1947-1950).

Transcrição de uma das obras do Capitão Aveiro: "A vida dos homens da Pesca do Bacalhau é uma vivência de excessos pela negativa. Vivendo quarentenas prolongadas entre dois desertos infinitos - Céu e Mar - para eles um Oásis é sempr eum Porto e a Mulher é a Miragem suprema".

Fotos: © Ana Aveiro (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 


Valdemar Aveiro, um dos últimos capitães da Faina Maior. 
Justa homenagem do artista António Conceição.


1. O Valdemar Aveiro, ou capitão Aveiro, como é carinhosamente conhecido e tratado na sua terra, é nosso amigo, meu e do arquitecto  José António Paradela. Tem uma dezena de referências no nosso blogue, ligadas à sua atividade como escritor e às suas memórias da pesca do bacalhau. Tem seis livros publicados na Âncora Editora. Acaba de nos mandar estas fotos, tiradas pela neta ou filha Ana Aveiro.

Por sua vez, temos 30 referências, no nosso blogue, à pesca do bacalhau que, para nós, está também associada à guerra colonial. Par muitos jovens  a Faina Maior foi uma não menos dolorosa alernativa à "guerra do ultramar".

De facto, não é demais recordar que  desde 1927, do tempo da Ditadura Militar (que antecedeu o Estafo Novo), havia legislação que veio promulgar medidas de incentivo ao desenvolvimento da pesca do bacalhau, e nomeadamente facilitar (e tornar mais atrativo) o recrutamento do pessoal (vd. Diário do Governo, 1.ª série, Decreto n.º 13441, de 8 de Abril de 1927).

Uma dessas medidas era justamente "a dispensa do serviço militar aos pescadores e marinheiros que tivessem cumprido um mínimo de seis campanhas de pesca consecutivas na frota nacional bacalhoeira". Frota heróica, diga-se de passagem!...A pesca do bacalhau é conhecida também como a Faina Maior.

Havia ainda a possibilidade de os mancebos apurados para o serviço militar beneficiarem de "adiamento até aos 26 anos"... Além disso, "a falta à junta de recrutamento podia ser relevada desde que os faltosos fizessem prova de que estavam embarcados"...

Conclusão; a pesca do bacalhau na Terra Nova e na Groenlândia, durante todo o Estado Novo, era um verdadeiro "desígnio nacional"...

O que este mural do artista António Conceição nos conta é, citando "O Ilhavense" ["Arte urbana está a ajudar a retratar antigos ofícios ligados à pesca do bacalhau", por Afonso Ré Lau, 30 de abril de 202'] , "um pouco da história não só das trabalhadoras das secas, mas de várias profissões ligadas à pesca do bacalhau" [dos pescadores aos marinheiros, passando pelas peixeiras].

(...) "O desafio de homenagear as mulheres que trabalhavam nas antigas secas partiu do empresário Leonardo Aires, da Frigoríficos da Ermida, empresa da Gafanha da Nazaré que se dedica à transformação e comercialização de bacalhau desfiado. O convite veio no seguimento de outra obra que António levara a cabo na fachada nascente do edifício-sede daquela empresa, mesmo ao lado do local onde surge, agora, este novo mural. " (...)

(...) "o que concerne a este mural de homenagem às mulheres que trabalhavam nas antigas secas de bacalhau, há um ponto prévio que António faz questão de esclarecer: 'Não fiz uma interpretação à luz de grande parte dos relatos que chegaram aos dias de hoje. Este é o meu olhar sobre o passado e é uma tentativa assumida de ‘fazer uma lavagem’ àquilo que parecia ser uma realidade muito triste, uma tentativa de corrigir essa noção de sofrimento e desgaste que nos transmitiram'.  

"Segundo o raciocínio deste criador, 'ao relatar tempos difíceis, o ser humano tem sempre tendência para choramingar e pintar cenários mais dramáticos do que a realidade'. 'Mas imaginem estas mulheres em grupo. Era uma alegria fantástica! Era impossível andarem todas consternadas', repara António. 'Para levarem a vida que levavam, aquelas mulheres tinham de ter muita força. Mas essa não era uma força de sofrimento, mas sim coragem e ânimo', acredita.

"Assim sendo, 'as mulheres aqui retratadas transpiram energia, juventude e até alguma bizarria – umas parece que estão a brincar, outras mais concentradas no trabalho. Quis criar essa combinação expressiva entre elas', conclui." (...)

(...) "Ao recuperar a memória destas mulheres e do seu ofício, António está a retratar um objeto cultural e patrimonial profundamente ligado à história pessoal de muitas das pessoas que por ali passam diariamente. Esta proximidade afetiva com a comunidade faz com que a obra se eleve, adquira um simbolismo especial e estimule uma participação cívica curiosa" (...)

(...) "Já nos anos de 1990, António pintava murais ligados à pesca artesanal, em Cabo Verde. Todavia, esta é a primeira vez que trabalha o tema da faina maior. Para conceber estes retratos, António fez pesquisa no Museu Marítimo, visitou antigas secas, mas também teve em conta a comunidade, as pessoas, os herdeiros diretos desta cultura e tradição. No fim, já não tem dúvidas, o imaginário da pesca do bacalhau 'é fascinante' " (...)

2. Nota biográfica sobre o capitão  Aveiro:

(i) Valdemar Aveiro nasceu em Dezembro de 1934, em Ílhavo, no seio de uma família
de pescadores;

(ii)  aos 15 anos concorreu à Escola Profissional de Pesca, ganhou uma bolsa de estudo que lhe deu acesso ao liceu e, posteriormente, à Escola Náutica, onde concluiu o Curso de Pilotagem;

(iii) embarcou como moço a bordo do lugre-motor Viriato para fazer uma viagem à pesca do bacalhau no sentido de suportar as despesas da sua formação;

(iv) em 1957 embarcou como praticante de piloto no navio Santa Mafalda, da Empresa de Pesca de Aveiro, sendo promovido no ano seguinte a piloto, a bordo do mesmo navio;

(v) pssou a oficial imediato, do navio Santa Joana, em 1960;

(vi) foi emigrante no Canadá, até que  em 1966 voltou à Faina Maior, embarcando no navio São Gonçalinho;

(vii)  no ano seguinte passou para um navio moderno, Santa Isabel, comandado pelo capitão David Calão;

(viii) assumiu, em 1970, o comando do mais velho arrastão português, Santa Joana, e, dois anos depois, foi convidado para comandar o navio Coimbra, então em construção nos Estaleiros de S. Jacinto;

(ix)  retirou-se por doença em 1988;

(x) após a sua recuperação, foi convidado a colaborar com a administração da Empresa de Pescas S. Jacinto, SA, sendo, desde 1991, membro do seu conselho de administração.

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21312: Documentos (31): Envio de Declaração de comprometimento de voltar a Jolmete em alternativa a uma ida "d'assalto" para Paris (Eduardo Moutinho Santos, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2366)



1. Mensagem do nosso camarada Eduardo Moutinho Santos, ex-Alf Mil da CCAÇ 2366 (Jolmete e Quinhámel) e ex-Cap Mil Grad, CMDT da CCAÇ 2381 (Buba, Quebo, Mampatá e Empada), com data de 31 de Agosto de 2020:

Carlos Vinhal
Um abraço.

No "baú dos despejos" encontrei esta declaração que terei assinado para vir de férias, e que me terá sido devolvida porque não fui "d'assalto" até Paris...

Fazia parte das regras militares assinar este tipo de declaração.

Partilha o documento com a Tabanca.

Novo abraço
Porto, 30/8/2020
Eduardo Moutinho Santos
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Guiné 61/74 - P21311: Agenda cultural (752): "Os Velhotes: contos eróticos", de António José Pereira da Costa... Feira do Livro: Lisboa, 6/9/2020, 14h30; Porto, 12/9/2020, 15h00

O autor. António José Pereira da Costa. Cortesia da Editora Alfarroba,



O livro: "Os Velhotes: contos eróticos" (Lisboa, Editora Alfarroba, 2020, 184 pp) . [ ISBN: 978‑989‑8888‑78‑9 | Formato: 14 x 21 cm |  Encadernação: Capa mole |1.ª Edição: 07‑2020) | Preço de capa: 11,25 €]


 1. Mensagem do nosso camarada e grã-tabanqueiro, cor art ref António J. Pereira da Costa, Tó Zé, para os amigos:

 
Date: quinta, 27/08/2020 à(s) 14:10
Subject: Comprem o meu livro 

Olá Camaradas


No próximo dia 6 de setembro, às 14h30, todos ao Auditório Sul da Feira do Livro de Lisboa!

As "medidas" de segurança são as normais para a época. Não se esqueçam do avental no nariz. As mãos para serem consideradas como lavadas basta apresentar um certificado de que foram lavadas com sabão-macaco há mês e meio. 

Dizem que a situação só se complica a partir das 3300 pessoas presentes e a feirar

O livro é uma categoria e vocês vão adorar. Trata-se de uma colecção de textos eróticos em que os personagens são gente da nossa idade. 

Vão ver que aprendem alguma coisa. Sugiro que leiam atentamente o prefácio que está disponível no site da editora "Alfarroba" e depois vão consultar o travesseiro e/as bases e digam-me alguma coisa. 

A malta do Porto e região Norte, em geral, deverá ir aos Jardins do Pavilhão Rosa Mota em 12 de setembro, às 15h00,

O livro não é caro e são permitidos açambarcamentos para mais tarde revender. 

Despachem-se antes que esgote.

Um abraço
António J. P. Costa

2. Autor e sinopse do livro:

Sinopse:

Dália é viúva. Casada durante quase cinquenta anos, a perda do marido foi um golpe […] que a vida lhe vibrou. Há umas noites sucedeu o inevitável: sentiu vontade de sexo. Já tinha sentido umas sensações, mas recusara, esmagando a necessidade e reprimindo o desejo. Porém, ontem, ao fim da tarde, aconteceu…

Maria ganhou coragem e foi procurar a bancada de carpinteiro. O coração bateu‑lhe fortemente quando a encontrou. Passou as mãos pelo tampo bem liso [...]. Então, não pôde conter‑se e chorou, chorou muito. Soluçou mesmo. Era ali que se possuíam num abraço violentamente delicioso. Num exercício de forças combinadas, Adriano sentava‑a na bancada e […] penetrava‑a com aquela gentileza que ela sempre tinha apreciado. Depois, vinha o abraço, bem apertado, e o beijo terno e constante…

Ao acordar, olharam‑se bem nos olhos e Pikenina não se conteve e beijou os lábios da amiga, ao de leve, mas de modo a senti‑los bem. Fofa pegou‑lhe nas faces e retribuiu. Não, não eram nenhuns devassos.

Eram um vulgar casal de sexagenários.

Autor:

Produzidos individual ou colectivamente, os meus trabalhos anteriores são de índole científica. Pelas suas características próprias, podem ser contestados por divergência, sem - pre relativamente ao seu teor. Além disso, a divergência e consequente contestação, no campo científico, não envolve apreciações de carácter moral ou preconceito, o que simplifica a sua execução (construtiva ou até destrutiva). Fi-los, às vezes com esforço, e estou sempre esperando a Crítica que lhes possa ser feita. 

Pelo contrário, a contestação a um texto erótico tem sempre como base a moral, os “bons costumes” e o preconceito relativamente à matéria tratada. Já antes tinha mudado de área de escrita e o livro que surgiu, apresentando as minhas memórias da Guerra Colonial, na Guiné, apresenta umas características bem diferentes. Tem uma sólida base de verdade, pelo menos do meu ponto de vista. Ao escrever não recorri à ficção, mesmo dispondo de experiência que mo permitiria. A Verdade é sempre a ideia e a memória com que fiquei e ainda guardo dos factos. Procurando melhorá-la, em alguns casos, submeti as narrativas que fui produzindo à apreciação de outros intervenientes, sempre com bons resultados.

 Foi uma experiência apaixonante e que considero muito positiva por poder divulgar como foi a minha vida na Guiné e também a dos outros que estavam ao pé de mim. E é bom que os vindouros a conheçam. Agora, esta incursão numa área pouco cultivada será mais uma tentativa de ser um pouco mais “eterno”.

Este é um livro erótico, que não pornográfico, cujas personagens são homens e mulheres que se inserem na chamada terceira idade. Não recorri a linguagem obscena, embora esta esteja, muitas vezes associada aos diálogos que acompanham a descrição das práticas sexuais. Tenho para mim que, dessa forma, o leitor nunca se sentirá ofendido sem necessidade. Fica, contudo, a saber que irá ser confrontado com descrições de actos sexuais, de modo franco e explícito. 

Em lugar de me limitar à descrição dos actos, procurei estabelecer também relacionamentos de carácter afectivo entre personagens que, em alguns casos, atingem níveis elevados de ternura. A ternura, ou, no mínimo a amizade são acompanhantes que muito valorizam as práticas sexuais. Se não consegui despertar no leitor interesse e uma reacção de aceitação, apresento, desde já, as minhas desculpas, mas o erotismo não é a minha área de escrita habitual, embora sempre tivesse tido o desejo de me aventurar nela. 

Agora, com setenta e dois anos, resolvi cultivá-la, por uma única vez, mesmo sabendo que isso poderá trazer-me toda a espécie de revezes – que nem prevejo quais possam ser – e de comentários negativos por parte de amigos, conhecidos e, mesmo até daqueles que, não sabendo quem sou, têm boa impressão dos meus trabalhos anteriores.

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Nota do editor:

Último poste da série > 1 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21310: Agenda cultural (751): "Nos meandros da guerra: o Estado Novo e a África do Sul na defesa da Guiné", de José Matos e Luís Barroso, Lisboa, Editora Caleidoscópio, 2020, 146 pp.