Queridos amigos,
Chegou o momento de ouvirmos Annette Cantinaux na intimidade, o desabafo do que a vida lhe ensinou, o inesperado deste romance, este esfuziante português que a passeia por Bruxelas de mão dada com um mapa na mão, à cata de becos e vielas no bairro de Marolles onde Annette nasceu na clandestinidade, ainda havia o perigo de uma denúncia, a criança judia cresceu entre duas famílias, amou e desamou, dois filhos cresceram e aquela cinquentona que se desloca em permanência de reunião em reunião na Europa dos Doze, atira para trás das costas as inquietações do que o futuro lhe reserva, aquele homem trouxe-lhe a luminosidade das estrelas e confiante parte para mais um dia de trabalho, sabe que de Lisboa virá carta ou telefonema, o seu amor prepara afanosamente uma viagem até Bruxelas, mas já avisou que no próximo Natal haverá encontro em Lisboa, pode até dar-se o caso de ela se apaixonar pela cidade e passar ali a velhice com os trapinhos ajuntados.
Um abraço do
Mário
Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (17): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Este é o meu solilóquio de destemor e epifania. Possuo nome que não coincide com o meu sangue judeu, vim ao mundo em Marolles, na mais completa das clandestinidades, se minha mãe e eu tivéssemos sido descobertas viajaríamos sem regresso para Auschwitz. Não me envergonho de me sentir Annette Cantinaux, sabendo que os meus ancestrais se chamaram Rute ou Isaac, Aaron ou Judite. Os meus pais adotivos repartiram fielmente os seus afetos como os filhos de sangue, em circunstância alguma me privaram viver com os meus pais legítimos, naquele pós-guerra que se revelou duríssimo, a clandestinidade, os interrogatórios brutais e as prisões insalubres deixaram o meu pai diminuído, a minha mãe bem se esforçou por trabalhar, mesmo com falta de habilitações atirou-se à vida. A ajuda dos Cantinaux foi fundamental para que eu estudasse, cheguei a frequentar o Conservatório de Bruxelas, ali bem perto da Sinagoga, cedo se revelou a minha vocação para as línguas, esforcei-me por ser independente, era o timbre da minha geração, não depender dos pais, tive uma carreira afortunada, até hoje. Não lamento ter conhecido Gérard, contagiou-me o seu entusiasmo pela arquitetura e fotografia, a meio dos seus estudos descobriu vocação para bibliotecário, aceitei tudo, éramos jovens com pouco dinheiro, alugámos uma casinha perto da estação ferroviária de Namur, tínhamos as despesas muito controladas, os nossos dois filhos apareceram com um intervalo de três anos, a minha vida profissional pouco se ressentiu, foram anos com menos trabalho mas aceitámos as regras do jogo. Gérard concorreu para a Biblioteca Real Alberto I, por pura coincidência nesses anos eu trabalhava com muita regularidade no Comité Económico e Social Europeu, na Rue Ravenstein, chegámos a almoçar sentados nos bancos dos jardins, os nossos filhos na creche, Gérard saía mais cedo, tinha a vida facilitada com horário compactado, consegui mudar para perto da Gare du Nord, uma casa de três divisões que fomos melhorando e era o nosso castelo.
Cerca de vinte anos depois da vida em comum surgiram os espetros da indiferença, os monossílabos, o não saber o que fazer nas férias, os filhos cresciam, constituíram os seus mundos à parte, eu ainda tinha a fuga de uma vida profissional trepidante, o poder de receber um telefonema do meu chefe de serviço indicando-me que na semana seguinte começava em Kolmar na segunda-feira, terça-feira à tarde ia para uma cabine na Rue Froissart para uma reunião do Acordo Ásia, Caraíbas e Pacífico, qualquer coisa que metia pescas, quarta-feira ia para o Parlamento na Rue Belliard, quinta-feira a malfadada reunião de estatística no Luxemburgo, sexta-feira à tarde de novo em Bruxelas, sem limite de horário, um conselho de ministros. Achava que esta correria dissimulava a melancolia conjugal, puro engano. Saía de manhã, muitas vezes voltava ao fim da tarde ou ausentava-se no estrangeiro quando obrigado a reuniões internacionais em países europeus. Gérard encontrou um novo amor, foi tão intenso, desabrido e tão tomado a sério pelos dois que a revelação me chegou de chofre, Gérard terá procurado estudar a lição, confessou tudo aos solavancos, parecia que estava a pedir desculpa pelo desamor instalado. Foi o que se chama um fim de relação civilizado, sem gritarias, chantagens, não houve uma só crispação na divisão dos bens. Acordámos e cumprimos em dar aos nossos filhos todo o apoio na sequência de uma educação que pretendemos esmerada. Escolheram profissões mal remuneradas, nunca hesitámos em dar-lhes apoio, o nosso relacionamento com os filhos é firme e afetuoso. Consultei uma terapeuta, recomendou-me que mudasse de casa, que renovasse a vida relacional, que cuidasse do futuro. Numa dessas conversas até fiquei arrelampada quando ela me referiu que eu não me esquecesse que trabalhava como freelancer, devia cuidar com urgência de constituir um fundo de pensões, ela tinha razão, vivera cerca de duas décadas num regime de chapa ganha chapa gasta, mesmo sabendo que havia uma conta folgada no banco, não conhecíamos qualquer inquietação pela falta de dinheiro. Estou agora a olhar-me bem ao espelho enquanto me maquilho, ainda não são oito horas da manhã e vou trabalhar todo o dia no Parlamento Europeu. Conheci e habituei-me à solidão, a vida relacional que foi recomendada pela terapeuta teve os seus altos e baixos, devido às contingências profissionais. Estou a aplicar um creme hidratante do dia, sou uma cinquentona, encorpei, pinto o cabelo, e momentos houve nestes últimos dez anos em que aceitei resignadamente ter passado o prazo de validade.
E depois veio este tornado, este português de olhar intenso, de fala articulada, que me surpreende a qualquer hora, eu que sou belga passo a ser questionada sobre queijos, porque é que não comemos o Brie belga, os queijos do tipo trapista, disse-me gostar muito do Denée Maredsous, contou-me a história de ter levado num avião uma série de queijos picantes de Liège, mal acondicionados, era um fedor de tal ordem que o passageiro da fila atrás chamou a hospedeira para reclamar da atmosfera nauseabunda, que peripécia. Quando lhe falei de Marolles e da minha infância disse-me logo que iríamos fazer uma longa visita ao bairro, eu ainda insinuei que o que ele pretendia era voltar mais uma vez à Feira da Ladra, ficou muito sério e disse-me que queria conhecer rua por rua todo esse mundo da minha infância, como aconteceu, saímos da Rua do Eclipse de carro, estacionámos perto do Palácio da Justiça, eu levava um mapa detalhado, descemos pela Rue Ernest Allard, entramos numa igreja, depois visitámos o Museu Judaico da Bélgica, para pasmo do guia foi-me falando das diferentes migrações Asquenazes e Sefarditas, parámos na praça Émile Vandervelde onde existiu a Maison du Peuple, que eu ainda conheci, foi destruída em 1965, e lá puseram uma torre que é um mamarracho, seguimos para Nossa Senhora de la Chappelle, o Paulo queria revisitar o túmulo de Bruegel, um dos artistas belgas que ele mais admira, pediu-me mais um esforço para irmos a uma outra igreja, Église des Minimes, era perto do meio-dia, havia um concerto com cantatas de Bach, coisa de uma hora, e quando saímos Paulo abraçava-me efusivamente, segredava-me ao ouvido que Deus lhe trouxera este milagre da vida, esta companheira que ele estava pronto a seguir até ao fim dos seus tempos. Escolheu um restaurante perto do Grand Sablon, parecíamos dois namorados, então eu disse-lhe que também gostava de decidir, tínhamos feito uma parte de Marolles, tinha agora uma surpresa, íamos ver uma exposição a Antuérpia, e espontaneamente disse que sim, foi uma tarde muito feliz, momentos inesquecíveis a juntar a tantos outros.
Tenho pronta a maquilhagem, a escassos meses, turbilhonantes, este homem aponta-me para o futuro, não interessa neste momento pôr-me a inquietar com as distâncias entre Lisboa e Bruxelas, o que os nossos filhos vão pensar, e o mais que se sabe, neste momento eu sou a mulher mais feliz do mundo, não me interessa a interpretação que vou fazer hoje durante o dia todo, sei que o Paulo me irá telefonar ou escrever, excitada abrirei a caixa do correio ou ouvirei suar o telemóvel. Haja os sobressaltos que houver, este homem garantiu-me com uma solenidade inusitada que a âncora da vida está numa estranha travessa perto de um Boulevard e que tem um nome rutilante, bem adequado ao que nos aconteceu, um eclipse, não total, mas que marejou o insípido do nosso quotidiano de constelações em forma de estrelas, tão intensas que chegam aos nossos corações.
E pensar eu que tudo isto começou por causa de uma ficção engendrada pelo Paulo, uma paixão arrebatada que tinha como pano de fundo a guerra colonial na Guiné.
(continua)
Nota do editor
Último poste da série de 21 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21278: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (16): A funda que arremessa para o fundo da memória